segunda-feira, 15 de julho de 2013
O Preconceito do Preconceito
Já houve quem observasse, não sem razão, que o brasileiro é portador do pior tipo de preconceito: o de acreditar que não tem preconceito. Por que é o pior? Porque a consciência do que somos, a consciência do que pensamos e sentimos é o primeiro passo necessário para que mudemos o que temos de pior. O preconceito – de raça, de gênero, de classe, de região e nacionalidade – está entre o que temos de pior. Ele alimenta, nas condições sociais rotineiras, as atitudes de discriminação e intolerância contra o outro objeto do preconceito. Nos tempos de crise, ele é instrumento pernicioso a serviço de ideologias e grupos sociais intolerantes e violentos.
Um exemplo da inconsciência do nosso preconceito extraído do balaio onde ajuntei uma infinidade: a senhora recifense, mãe de duas adolescentes louras e lindas, orgulhosa de dizer que não tinha preconceito racial. Um acaso feliz – ou infeliz, depende do ponto de vista – fez com que um dia as filhas se apaixonassem por dois negros. O mundo caiu sobre a consciência perplexa da mãe, que mobilizou todas as suas forças e recursos para suprimir a paixão inter-racial. Não obstante, continuou afirmando de pés juntos que não alimentava nenhum preconceito de cor, apenas não tolerava que suas filhas se apaixonassem por negros.
O nordestino é o judeu brasileiro na história dos nossos preconceitos. Sei que a analogia é um tanto forçada, mas quase todas o são. Não faltam explicações históricas e sociológicas, também psicológicas, para a frequência desse tipo de preconceito. A educação e o esclarecimento, que supõem a assimilação do saber necessário à compreensão racional desse tipo de preconceito, sem dúvida muito importam para que modifiquemos nossas disposições preconceituosas. Como acima observei, a consciência é o primeiro passo necessário para a correção dessas distorções que intervêm na nossa apreensão racional da realidade. O problema é que preconceitos e estereótipos alimentam-se de paixões correntemente manipuladas por grupos sociais interessados em assegurar na sociedade posições de poder econômico e político. Mais grave ainda é considerar que são sintomas da agressividade constitutiva da nossa natureza.
Se a educação e o esclarecimento fossem suficientes para abolir o preconceito, como explicar que ele exista em toda sociedade conhecida, não importando o grau de difusão dos processos educativos nela observável? O exemplo histórico mais conhecido, também o mais terrível, é fornecido pelo advento do nazismo na Alemanha. Sabemos que oficiais de alta cultura, educados na tradição do mais alto humanismo germânico, oprimiam judeus nos campos de concentração enquanto à noite se comoviam em casa ouvindo Bach e Mozart, lendo Goethe e mirando-se como modelo de uma supremacia racial e civilizacional destinada a imperar sobre o mundo. Sei que o termo que acabo de empregar, “oprimiam”, soa como um eufemismo, como uma expressão amena para sugerir os horrores produzidos nos campos de concentração. O fato sugere a complexidade espantosa do ser humano capaz de habitar essas duas ordens de realidade em princípio antagônicas. O mesmo valeria para as sociedades escravocratas. O Nordeste brasileiro constituiu um dos mais completos exemplos dessa história. Bem poucos se davam conta do antagonismo entre a escravização do negro e a instituição da religião católica, que prega a igualdade universal dos seres humanos.
Se no Brasil a polaridade corrente, em termos de preconceito regional, compreende o Sul, notadamente São Paulo, e o Nordeste, nos EUA a relação se inverte, pois lá o Sul é objeto de preconceito dos nortistas. Convém frisar que me refiro a inversão em termos de poder. A raiz histórica dessa polaridade procede do fato de que nos EUA a escravidão e a economia de base agrária concentraram-se no Sul, enquanto a economia industrial e moderna desenvolveu-se sobretudo no Norte do país.
Como o nordestino é vítima corrente do preconceito sulista, antes de tudo paulista, é compreensível que reaja enquanto vítima denunciando a violência do mais forte. Se no entanto queremos ir mais fundo na consideração do preconceito, precisaremos reconhecer que, numa outra perspectiva, o nordestino sai da posição de vítima para se converter em agente do preconceito ou agressor. O preconceito de gênero, por exemplo, é provavelmente mais forte no Nordeste, onde o patriarcalismo fincou raízes muito mais profundas e duradouras. Esse tipo de preconceito, como sabemos, visa a mulher, vítima sobretudo de violência doméstica e da misoginia comum nos círculos machistas. Sabemos ainda que esse tipo de preconceito, estendido na forma de preconceito sexual no sentido amplo, envolve também homofobia, ou a intolerância investida contra o homossexual. Outra forma corrente de preconceito, ainda na ordem das diferenças regionais ou espaciais, remete à discriminação imposta pelo elemento citadino ou urbano ao rural. O termo matuto, muito corrente no Nordeste, está impregnado de discriminação. O matuto simboliza o oposto de todos os valores culturais positivos atribuídos ao habitante da cidade grande.
Como todo país de largo passado colonial, de resto ainda bem vivo no presente, o Brasil sofre de uma angústia de reconhecimento e identidade diante do estrangeiro, sobretudo o estrangeiro norte-americano e europeu. É fato que nossa imagem nesses países não passa de estereótipo grosseiro. Há até quem pense, refiro-me a gente que estuda nas melhores universidades do mundo, que o espanhol é a língua oficial do Brasil, que somos um país africano, que temos apenas futebol, carnaval e mulher submissa e gostosa e desfrutável. Seria injusto atribuir a persistência de preconceitos tão ofensivos e infundados apenas ao etnocentrismo estúpido dos países cultural e economicamente dominantes. Nós próprios, sejamos honestos, concorremos para a difusão e persistência desses preconceitos quando, em nome da afirmação de uma discutível identidade cultural, projetamos de nós próprios uma imagem exótica baseada em tradições e elementos diferenciais pré-modernos. Um único exemplo: a publicidade oficial brasileira já espalhou pelo mundo fotos de mulheres mulatas, rabudas e desfrutáveis como atrativo turístico.
Teresa Sales discordou de mim ao ler acima o adjetivo “rabudas”. Entre outros argumentos ponderáveis, salientou o fato de que destoava do meu estilo. Dei-lhe pronta razão, que aqui explicito, embora omita os detalhes do que discutimos receoso de alongar desnecessariamente o ensaio. Importa no entanto frisar que, embora concordando com ela, insisto em manter o adjetivo. Usei-o de forma deliberada, acrescentaria expressivamente necessária, pois o adjetivo traduz o sentido preciso do cartaz da publicidade oficial mencionada no parágrafo acima. Sendo mais exato, vi-o no próprio consulado do Brasil em Londres, por volta de 1990. Difundido internacionalmente pela extinta Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), enquadrava num close that speaks volumes (abuso agora do eufemismo) o traseiro de uma mulata. O sentido da foto, ou propaganda, está de tal modo impregnado no imaginário erótico brasileiro e estrangeiro que me dispenso de esmiuçá-lo, já que é de fato um estereótipo cultural vivíssimo da sexualidade brasileira, ou da docilidade desfrutável da mulher brasileira.
Como conversa puxa conversa, e memória puxa memória, minha discussão com Teresa me fez lembrar um outro fato que reforça a linha do argumento desfiada nos parágrafos precedentes. Na década de 1990, quando cresceu a afluência de turistas europeus para o Nordeste, um dos principais periódicos nordestinos (o Diário de Pernambuco ou o Jornal do Commercio) estampou na primeira página da sua edição de domingo: “A Europa se curva ao Nordeste”. Sabe o leitor atento que a manchete é uma variação do nosso orgulho ressentido de país colonizado quando algum triunfo ou virtude brasileira imposta ao europeu vinga nosso passado. O mais significativo, no entanto, é que o texto da reportagem tratava explícita e prioritariamente de turismo sexual. Um dos turistas entrevistados (italiano ou alemão) louvava (era o tom da reportagem, não minha memória nem o estilo com que a reproduzo) a sensualidade submissa e quente da mulher pernambucana.
A última campanha presidencial deu margem a conflitos que expressam antes de tudo interesses momentâneos dos grupos em luta pelo poder. Apesar de todo o barulho eleitoreiro e marqueteiro dos militantes e profissionais da política, há bem pouca diferença ideológica entre o PT e o PSDB, entre Dilma Roussef e José Serra. Em meio a tanta disputa contaminada e antes de tudo dirigida por interesses políticos e econômicos, o caldo transbordou sobre o solo de antigas e enraizadas disputas regionais saturadas de preconceito. É nesse contexto que a polêmica entre São Paulo e o Nordeste, tendo o preconceito como cerne da disputa, é periodicamente retomada. Há quem assim esqueça de que a própria propaganda política alimentou nossos preconceitos correntes. Os dois candidatos concorrentes à presidência, inspirados pelo pragmatismo desonesto, diluíram o debate em torno da questão do aborto, outra deplorável evidência dos nossos preconceitos inconscientes e não raro hipócritas.
Sou absolutamente favorável à luta contra o preconceito, contra todo tipo de preconceito, que deve ser denunciado e desmascarado. A educação e a opinião esclarecida são parte crucial dessas formas de participação e luta nos conflitos sociais. Sendo ainda mais preciso, argumento baseado na perspectiva do racionalismo universalista. Sei que essa perspectiva está em baixa, obstruída e combatida por toda forma de particularismo nacional, regional, religioso, racial, de gênero etc. Sei ainda que é ilusório acreditar na instituição de uma ordem humana universal isenta de preconceito e dominação. Não obstante, continuo fiel a meu racionalismo universalista. Por quê? Ora, porque estou convencido de que conceitos como os de humanidade, nação, identidade etc, são antes de tudo construções míticas ou pelo menos abstrações inevitáveis, isto é, não têm existência empírica ou factual. O que é o brasileiro, por exemplo? Qual a sua identidade? O brasileiro que mentalizamos ou conceituamos é produto de projeções imaginárias, o que não quer dizer que seja puramente fictício. Já que estamos no terreno das ilusões necessárias, dado que não podemos viver sem elas, fico com a ilusão do racionalismo universalista.
Mito por mito, como já escrevi num outro contexto argumentativo, prefiro o do universalismo. Ele se baseia na unidade biopsíquica do ser humano, não na pluralidade inegável das culturas. Cada uma tem seus modos próprios de expressão e linguagem, de relação com os universos da natureza e da cultura. Uma coisa é reconhecer essa pluralidade efetiva, outra, bem distinta, é propor uma teoria relativista segundo a qual cada cultura é única e portanto intraduzível em qualquer outro código. Reconheço a singularidade de cada cultura, mas isso não me impede de conferir prioridade àquilo que identifica em escala universal a espécie humana. Somente dentro desse quadro argumentativo podemos coerente e efetivamente defender valores humanos transcendentes a cada cultura. Se o critério é este, o de cada cultura particular, como argumenta o relativista, então ficamos de mãos atadas para defender qualquer valor prescrito, por exemplo, na Declaração dos Direitos Humanos.
O mito universalista tende a produzir políticas e formas de relação entre culturas baseadas na tolerância e no respeito a valores universais que nos facultam tomar posição efetiva contra valores particularistas que em termos práticos agridem os direitos do indivíduo. A questão momentosa envolvendo a iraniana Sakineh, à qual dediquei um artigo intitulado Universalismo versus Relativismo, ilustra muito bem essa questão. O mito universalista, se não quer se confundir com o humanismo ingênuo, compreende a natureza agressiva do ser humano, raiz psicológica do preconceito.
Reiterando uma frase que se tornou lugar comum, o mundo em que vivemos é uma aldeia global. A universalização dos meios de comunicação de massa, assim como dos processos de produção econômica e circulação da mercadoria, dissolveu as fronteiras tradicionais entre culturas e nações. Este fato impõe cada vez mais a necessidade do intercâmbio entre culturas, a necessidade de formas de consciência distintas daquelas forjadas pela ideologia nacionalista, assim como por qualquer outra ideologia particularista. Sei que os processos universalizantes acima indicados de modo algum suprimem relações de dominação e poder entre as nações. O que me parece evidente é que precisamos propor novas formas de relação e consciência opostas à opressão que nunca se baseou puramente em relações de dominação colonial ou imperialista, como os nacionalistas supõem e não raro usam esse argumento para justificar ou mascarar relações internas de dominação.
Quanto ao preconceito, ele continuará vivo. Seria ilusório acreditar que o simples aperfeiçoamento dos meios de educação e esclarecimento são suficientes para suprimi-lo. Como acima ressaltei, nem isso é suficiente para suprimi-lo nem é suficiente a perspectiva racional e universalista. O preconceito alimenta-se antes de tudo de paixões humanas postas a serviço de interesses políticos e econômicos. O que nesse ponto destaco de positivo é o fato de que hoje nenhuma nação do Ocidente, aqui compreendidas suas extensões periféricas, adota políticas de Estado baseadas no preconceito ou qualquer outro tipo de intolerância. Essa é uma conquista que credito ao mito baseado numa perspectiva universalista, também à difusão do saber sócio-antropológico na sociedade contemporânea.
Por mais que avancem, e felizmente têm avançado, as políticas de tolerância e respeito pela diferença são insuficientes para suprimir o preconceito. Portanto, precisamos realisticamente aceitar que ele é parte da nossa natureza agressiva, que precisa de justificação ideológica para impor a dominação violenta contra o outro. É dessa energia psíquica do ser humano que os grupos políticos se valem para promover conflitos sociais que por sua vez revertem em benefício dos que mandam, dos que exercem o poder na sociedade.
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