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segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Aforismos e desaforos VIII


A justiça é um cochilo da lei.
Não existem fatos nem versões, apenas aversões.
No Brasil, cada um interpreta a lei de acordo com as minhas inconveniências.
Existe até lei com prazo de validade. Aliás, muitas têm apenas prazo de nulidade.
No Brasil, jurisprudência é palpite. A prova consiste no fato de que todos confundem Constituição com hermenêutica.
A Nova Constituição Brasileira:
Parágrafo único: vale tudo.
Ficam revogadas todas as indisposições em contrário.

O passado continua governando o presente, enquanto o presente sonha o futuro como a realidade desejável. Por isso, se você liga a televisão, corre o risco de confundir o folhetim novelesco com a crônica político-policial.
Liberalismo – É um termo tão ambíguo e deslizante que começou como liberação do mercado, daí escancarou os costumes, que caíram completamente na vida e acabaram no bordel. Agora a puta liberal é a que faz tudo cobrando pelo serviço completo. Tornou-se, no plano dos costumes, o correspondente do humanista do Renascimento. Isso ilustra a trajetória perfeita do progresso humano.
Neoliberal – não confundir com “novo liberal” ou renovador dos ideais liberais. No Brasil, o neoliberal é todo propositor ou agente de privatização da atividade econômica. No ideologuês estatizante, é o espoliador do povo. Ah, é também o empresário que defende o mercado livre, contanto que o Estado financie seus empreendimentos sem risco.
Para os inconformados: relaxem, o Brasil já foi muito pior; para os otimistas: cuidado, amanhã pode ser ainda pior.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Capitalismo Estatal e Cinema


Talvez importe iniciar este artigo declarando alguns fatos que sugerem meu trânsito à margem da realidade cultural pernambucana e sua rede de relações associativas. Faz muitos anos que não freqüento salas de cinema, muito menos a exibição de filmes brasileiros. O cinema que continuo vendo e revendo por escolha, fruição estética e prazer procede do mercado de DVD e redes como o You Tube. Ensaio este preâmbulo porque, depois de muito relutar, decidi enfiar minha colher torta no bate-boca que tomou conta do mural do Facebook, onde ocasionalmente ainda navego. Leio bem poucos. Alguns, como Cristiano Ramos e Mano Ferreira, me dão uma vaga noção de um incidente deplorável, mas culturalmente sintomático, como tentarei esclarecer adiante, ocorrido durante uma sessão no Cinema do Museu. Isento-me de sumariamente relatá-lo por ser de amplo conhecimento público. Meu interesse é partir do incidente encarando-o, antes de tudo, como um sintoma do nosso capitalismo estatizado. Reduzindo a questão ao campo cultural, passo a algumas ponderações inspiradas pelo ideário liberal que embasa esta coluna cujo título é A Letra Plural, publicada pela revista eletrônica Café Colombo.

Há vários anos, quando o chamado renascimento do cinema pernambucano ainda engatinhava, ouvi de um de seus participantes a frase seguinte: ninguém faz um filme no Brasil sem ceder 30% do patrocínio estatal (o truísmo intencional vale como ênfase) aos intermediários. O cinema nasceu e se difundiu pelo mundo como a arte do século XX. Convém todavia lembrar que é um misto de arte e indústria, talvez mais esta do que aquela. Além de produto financiado e controlado economicamente por capitalistas poderosos e ousados, depende de uma infraestrutura complexa, também de um processo de criação coletiva que o torna, não obstante a teoria falaciosa dos críticos do Cahiers du Cinema, obra de autoria coletiva.

No Brasil o enredo é outro e isso diz muito sobre a natureza do nosso capitalismo e a nossa cultura tutelada pelo Estado patrimonial. Bastaria lembrar que Fernando Collor, no auge do seu delírio privatista, dissolveu o cinema brasileiro com uma simples canetada. Aboliu a estatal e com ela se foi o cinema. Alguns mais talentosos, como Arnaldo Jabor, migraram para o jornalismo. Anos mais tarde o cinema renasceu novamente graças à tutela do Estado. Isso explica, em parte, a proliferação de tantos filmes ruins e sobretudo filmes que dão prejuízo aos cofres públicos, mas lucro assegurado a seus realizadores, para não falar dos ladrões que amealharam financiamento do qual não resultou nenhum filme. Enfiando aqui outra anedota autêntica, um amigo, sobrinho de cineasta famoso, me disse que o tio vive do que ganha dos filmes que dirige. De cinco em cinco anos realiza um filme cujos custos incluem seus ganhos pessoais previstos. É o chamado capitalismo sem risco. Assim funciona boa parte da nossa produção cultural.

No capitalismo moderno, largamente independente do Estado, as pessoas competem em todas as esferas. As relações culturais, ou o mercado da cultura, não foge a esta regra. No Brasil, todavia, a competição se concentra dentro e nas relações com o Estado entre agentes pautados não pelas normas impessoais do mercado, mas por um complexo de interesses e negociações dependentes de duas vigas: o Estado patrimonial e a renitente cordialidade admiravelmente dissecada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Indo aos miúdos que me interessa salientar, como ser um agente e/ou crítico independente no contexto acima grosseiramente esboçado? Como ser um liberal conseqüente dentro de uma ordem capitalista na qual o Estado mete o bedelho em tudo e a própria cultura, aqui compreendida no seu sentido socioantropológico, quase sempre funciona como a luva que veste a mão do Estado arbitrário? É por essas e outras que me constrange ainda declarar minha adesão ao liberalismo.

Tentei explicar o sentido em que o adoto através de uma citação de Vargas Llosa. Para quem queira compreender melhor o argumento deste artigo, e outros implícitos, recomendo a leitura do meu artigo inaugural já mencionado. Simplificando, limito-me a dizer que defendo um Estado regulador das relações gerais do mercado e interventor apenas na esfera das políticas públicas (saúde, educação, segurança, transporte público...). Por isso me oponho ao Estado empreendedor na esfera econômica, o Estado detentor de monopólios. Além de ineficaz, ele é fonte inevitável de corrupção e abuso de poder. A Petrobrás ilustra isso muito bem e só os inocentes ou desonestos podem acreditar que a culpa é apenas do PT ou de qualquer outro partido implicado nessa roubalheira colossal. Enquanto forem propriedade do Estado, as estatais serão fonte de abuso de poder político gerando privilégios, corrupção, nepotismo, superfaturamento e outras pragas correntes no Brasil. Enquanto o Brasil não reformar pela base o seu Estado, crises como que a estamos sofrendo serão recorrentes.

Mas quem quer reformar o Estado brasileiro convertendo-o de fato num Estado moderno, isto é, republicano e democrático? Nem o povo quer, ele que é a vítima desse modelo espoliador. Afinal, formou-se há séculos sob a tutela do Estado-pai encarnado mais recentemente em Getúlio Vargas e Lula. Raimundo Faoro traçou-lhe a genealogia demonstrando como se perpetuou através da nossa história. Dou um exemplo do seu oposto, o Estado democrático-liberal moderno, que vale por mil argumentos. Estava vivendo na Inglaterra quando o Estado totalitário soviético desmoronou. Quando destruíram o muro entre a Alemanha Ocidental e a Oriental li, com olhos de brasileiro perplexo, esta manchete de primeira página do The Sunday Times: 30 mil soldados ingleses sumariamente demitidos. Explicando melhor, as forças armadas que guarneciam o lado ocidental da fronteira foram automaticamente demitidas pelo Estado inglês tão logo o muro foi demolido e elas se tornaram portanto inoperantes. Não preciso acrescentar mais nada. Sugiro apenas ao leitor que imagine um dos nossos 39 ministérios sendo abolido e demitindo 1000, digamos 100, parasitas do nosso funcionalismo público. Que mais dizer, além do que o leitor crítico pode deduzir do meu exemplo?

Encurtando o artigo com uma provocação, pois as articulações entre Estado patrimonial, cordialidade e cultura são complexas demais para minha inteligência fatigada e cética, sugiro apenas a abolição dos patrocínios estatais ao cinema que não obedeça a funções rigorosamente educativas e culturais isentas de finalidades mercantis. Pelo menos uma conseqüência seria facilmente previsível: cessariam esses bate-bocas de gênio de província e o Recife – também o Brasil, por extensão – seria removido das páginas do Guiness como a cidade, e o país, que tem a mais alta taxa de cineastas por m2 do mundo.

sábado, 10 de outubro de 2015

A letra plural


Se não relutei em aceitar o convite de Mano Ferreira para me tornar colaborador da revista Café Colombo, relutei, e muito, para me decidir a adotar o título desta coluna. Tanto relutei que precisei escrever este artigo para justificar minha escolha. Na verdade, antes de ser mera justificativa, o artigo tende a ser um roteiro de viagem. Assim encurto o risco de me perder de mim e, pior ainda, perder o leitor que acaso me leia. Portanto, se este artigo inaugural está longe de ser um texto programático (o mundo se tornou tão incerto que somente call girl faz ainda programa), não deixa de ser um enunciado das intenções que espero transportar no curso dessa viagem quinzenal.
Começando pelo título da coluna, a ideia que de início propus a Mano Ferreira foi chamá-la de A Imaginação Liberal. A inspiração procede de um livro de Lionel Trilling, o grande crítico liberal americano que fez da sua militância como crítico literário uma forma coerente e confessa de adesão à tradição liberal americana. Antes disso, como tantos dos grandes intelectuais americanos de sua geração, Trilling filiou-se ao comunismo integrando o corpo de um dos mais importantes periódicos culturais dos EUA: a revista Partisan Review. Como Edmund Wilson e muitos outros, Trilling desiludiu-se com o comunismo soviético, aderiu ao liberalismo e se tornou desde então um crítico implacável do stalinismo. Sua obra mais importante, The Liberal Imagination, acima mencionada, foi traduzida no Brasil em meados dos anos 1960. Só que entre nós recebeu um outro título: Literatura e Sociedade, homônimo da obra igualmente notável de Antonio Candido. O tradutor foi Rubem Rocha Filho. Por acaso conheci-o aqui no Recife no apto. de Jacques e Helena Ribemboim poucos anos antes de morrer. Dado que a imaginação liberal se perdeu no trânsito tardio entre a língua de origem e a de recepção, tentou-me a ideia de batizar minha coluna com ela. Depois de muito relutar, acabei trocando-a pela que dá título a este artigo. É isso o que tentarei explicar abaixo.
O termo liberal e derivados, dentro da nossa tradição intelectual, parece-me demasiado preso à terminologia e à história política. Talvez isso seja um forte indício da nossa incapacidade de implantar nas nossas práticas culturais e políticas uma sólida tradição liberal. Daí, desdobrando ainda meu raciocínio hipotético, as resistências e deformações que o liberalismo tem sofrido no Brasil. Embora na prática tenhamos assimilado muitos dos seus melhores valores (bastaria pensar nos aspectos mais positivos da liberação dos costumes desde os anos 1960, herança antes de tudo da tradição liberal mais avançada que noutros países, como é o caso da Inglaterra, remontam ao século 19), tendemos a associar essas conquistas à esquerda. Trocando em miúdos, ao marxismo e tendências similares. Assim, os avanços no plano dos costumes e direitos civis, que em países de forte tradição liberal decorrem da dinâmica do liberalismo, aqui são atribuídos exclusivamente a ideologias que entendemos antagônicas ao liberalismo. O fato, em suma, é que o liberalismo entre nós é objeto de resistências e graves equívocos históricos e teóricos. O mais grave é que essas resistências tendem a anular um clima de debate livre que poderia esclarecer melhor o sentido dessas divergentes tradições (liberalismo, marxismo, socialismo...) concorrendo assim para melhor esclarecer as ideias e pôr as coisas nos seus devidos lugares. Infelizmente, liberalismo, mesmo nos círculos acadêmicos mais ilustrados, tornou-se neoliberalismo, termo que no geral se confunde com um insulto ideológico que de partida anula qualquer possibilidade de debate.
Estendi-me indevidamente nessas considerações para melhor justificar por que desisti de dar a esta coluna o título de A Imaginação Liberal. Além dos mal-entendidos e preconceitos que de imediato suscitaria, poderia induzir o leitor a pensar que se trata de uma coluna antes de tudo consagrada à discussão da política. Além de não ser um especialista no assunto, sou de resto avesso à política em qualquer sentido militante por formação e temperamento, quero sentir-me à vontade para comentar antes de tudo questões mais variadas, que também incluem a política. Minha perspectiva confessa é liberal. Daí, depois de muito relutar entre muitos títulos que me ocorreram, A Letra Plural que confere o devido batismo à coluna.

Adiciono mais algumas linhas à coluna para melhor esclarecer o sentido que confiro ao termo plural. Mario Vargas Llosa incluiu no volume Sabres e Utopias um texto, intitulado Confissões de um liberal, que define com clareza a concepção de liberalismo que adota. Acrescentaria ser também a minha. Por isso o recomendo ao leitor interessado em melhor demarcar os limites do liberalismo que informará o espírito geral desta coluna. Além de me servir, serve também para demonstrar o quanto Vargas Llosa tem sido incompreendido e até caluniado por ousar romper com as tradições autoritárias latino-americanas à esquerda e à direita aderindo a uma noção prática e teórica do liberalismo infelizmente longe de se consolidar nas nossas relações e instituições sociais. Melhor citar diretamente o parágrafo que condensa o que desejo ressaltar:
“Como o liberalismo não é uma ideologia, ou seja, uma religião laica e dogmática, mas sim uma doutrina aberta que evolui e se adapta à realidade em vez de procurar forçar a realidade a se adaptar a ela, há entre os liberais várias tendências e profundas divergências. No que diz respeito à religião, por exemplo, ou ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou ao aborto. Assim, os liberais que, como eu, são agnósticos, partidários da separação entre Igreja e Estado e defensores da descriminalização do aborto, bem como do casamento homossexual, são às vezes criticados com dureza por outros liberais, que, nesses assuntos, pensam o contrário de nós. Tais divergências são saudáveis e produtivas, pois não ferem os pressupostos básicos do liberalismo, que são a democracia política, a economia de mercado e a defesa do indivíduo frente ao Estado” (p.301).
Minha modesta proposta ao aceitar o convite de Mano Ferreira é expor nesta coluna questões relativas ao liberalismo e sobretudo ao fortalecimento de uma cultura liberal. É alentador, a propósito, constatar que muitos dos melhores intelectuais jovens que leio (evito citar nomes, pois incorreria em omissões indesejáveis) debatem o bom e o mau legado intelectual e ideológico da minha geração isentos da intolerância e dos preconceitos ideológicos que a maior parte da minha geração, também muitos que a precederam e a sucederam, foi e é incapaz de radicalmente revisar. Na cultura encastelada na academia, notadamente, transmite-se um legado de fidelidade intransigente ao marxismo que muito dificulta a renovação ideológica dos estudantes, que obviamente representam os novos agentes de renovação cultural. Esse fato deplorável concentra-se nos programas de pós-graduação, onde os orientandos tendem a reproduzir acriticamente as modas intelectuais e modelos ideológicos impostos pelos mestres e orientadores. Assim procedendo, estes travam o processo de livre debate de ideias que deveria reger o funcionamento institucional da educação de elite. Para além disso, o que é já muito negativo, eles traem o princípio máximo da educação, isto é, educar o aluno para pensar por si próprio. Repetindo o dito célebre de Kant que se tornou apanágio da tradição liberal e humanista, sapere aude. Quem pensa verdadeiramente é quem ousa pensar. Se a cultura acadêmica promovesse este princípio, a história das ideias no Brasil teria sofrido uma profunda e desejável mudança depois que se consumou o fracasso colossal do comunismo. Infelizmente, o Brasil, assim como a América Latina em geral, está longe de ajustar essas contas com a história. Até quando o peso das tradições negativas continuará bloqueando as reformas de que tanto precisamos para ingressar definitivamente na modernidade?
Nota: artigo publicado na revista eletrônica Café Colombo em setembro de 2015 inaugurando minha coluna intitulada Letra Plural. O artigo foi publicado com um título ligeiramente diferente: Da imaginação liberal à letra plural.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O Islamismo no Ocidente


É difícil para um brasileiro alheio à realidade concreta das relações culturais em países como a França e a Inglaterra opinar adequadamente sobre os atos de terrorismo ocorridos há poucos dias em Paris. Além de detentor de um vasto território, o Brasil goza do privilégio de ter uma cultura nacional integrada e nunca sofreu pressões imigratórias semelhantes às que ocorrem na Europa e nos EUA. Nossas pressões imigratórias são internas, basicamente no sentido campo-cidade e Nordeste-Sudeste. Apesar de se processarem entre compatriotas, sabemos os problemas que geraram e ainda geram. Tomo a liberdade de mencionar brevemente minha própria experiência como estudante brasileiro vivendo na Inglaterra. Assim poupo o leitor de abstrações teóricas mais complicadas.
O célebre affair Salman Rushdie eclodiu pouco depois que cheguei à Inglaterra. Para quem tem memória curta, Rushdie é um paquistanês de nacionalidade inglesa. Quando publicou Os Versos Satânicos, seu explosivo romance abordando o islamismo através de mecanismos literários correntes no Ocidente, desencadeou um clima de revolta e intolerância que me deixou simplesmente chocado. Quando vi na BBC multidões de imigrantes muçulmanos manifestando-se agressivamente nas ruas, sobretudo em Bradford, no Norte da Inglaterra, onde o livro foi queimado publicamente, logo me vieram à memória imagens do nazismo e uma amostra do humor mordente de Freud. Quando estudantes nazistas queimaram obras de escritores judeus e antinazistas, Freud fez a seguinte observação ao saber que livros seus foram também para a fogueira: Como estamos progredindo... Na Idade Média eles me queimariam; hoje contentam-se em queimar meus livros (omito as aspas, já que cito de memória).
Convivendo durante mais de quatro anos numa universidade inglesa com gente de todos os credos e procedências, pude constatar que mesmo o país fundador do liberalismo e das mais civilizadas formas de tolerância entre culturas lida com problemas inconcebíveis em países como o Brasil para acomodar sem conflitos extremos a sua população muçulmana. A julgar, no entanto, por quase tudo que ouço e leio entre nós, parece que nossa inconsciência etnocêntrica e o clima relativista e até niilista da nossa cultura acadêmica é incapaz de apreender a complexidade das tensões crescentes entre religiões e culturas inconciliáveis. Antes que me acusem de pregar o choque das civilizações, alinhando-me com o conservadorismo ocidental, adianto que o choque, se efetivamente ocorresse, teria consequências inimagináveis. Lembrando apenas um fato banal, a população de muçulmanos da Inglaterra, França e EUA é tão grande que não haveria como fixar fronteiras culturais e religiosas entre os grupos conflitantes. Noutras palavras, qualquer solução possível forçosamente traduzirá uma acomodação de forças dentro da realidade gerada pelo mundo globalizado que habitamos.
Aludi acima ao relativismo e ao niilismo correntes na nossa cultura acadêmica, que é de resto, como de praxe, reflexo do radicalismo intelectual servilmente adotado por nossa inteligência colonizada, porque daí procedem as críticas mais veementes contra o Ocidente e tudo que de pior este produziu na história moderna: colonialismo, imperialismo, racismo, xenofobia, genocídio, espoliação das massas periféricas e outros males que o leitor informado poderá acrescentar melhor do que eu. O que me incomoda é o fato de essa casta privilegiada de radicais simplesmente silenciar sobre os melhores valores da tradição ocidental que prezo com a convicção de que estão entre as defesas precárias de que dispomos para realizar um ideal mais civilizado e integrador de convívio. Lembrando Walter Benjamin, não existe documento de cultura que não seja também um documento de barbárie (novamente sem aspas).
Tenho em mente, noutras palavras, conquistas como a democracia moderna, a liberdade de opinião e credo, os direitos humanos e o reconhecimento do outro. Os radicais do Ocidente que não medem esforços para minar esses valores vêem apenas o que lhes convém denunciar. Parecem incapazes de reconhecer que o próprio relativismo cultural que praticam, além da sucessão de modas teóricas gestadas e diluídas na academia (estruturalismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-colonialismo etc) são inconcebíveis fora do Ocidente. A evidência é simples assim: tentem imaginar um Nietzsche, um Foucault, um Edward Said, qualquer dos gurus do relativismo e do niilismo pregando suas ideias no Oriente Médio ou em qualquer país muçulmano. Tentem imaginar qualquer teórico ou adepto das minorias (aqui incluídas maiorias, pelo menos estatísticas, como o feminismo) pregando e sobretudo vivendo em ato e fato a diferença e o multiculturalismo que são moeda corrente e com freqüência falsa no vale tudo cultural do Ocidente.
Encurto o artigo sugerindo ao leitor um breve exercício de imaginação sociológica. Um terço da população de Marselha, berço do hino nacional francês, é constituído de muçulmanos. Espremendo o caldo, todos que não foram assimilados – ou aculturados, como bem ou mal dizem os antropólogos – nada têm a ver com os valores dominantes na França fundados pela tradição iluminista depois de séculos de conflitos internos e externos. Fatos extremos e inqualificáveis como os atos de terror recentes concorrem apenas para agravar tensões já por si muito complexas. Ademais, o terror não serve a ninguém, salvo àqueles que querem resolver os impasses humanos através da força e da destruição. Até nós, que gozamos do privilégio de não abrigar em território nacional esses conflitos entre culturas e religiões, até nós perdemos parte da liberdade e da segurança já precárias de que desfrutamos. No mais, é fácil para um relativista ou ressentido cultural brasileiro esbravejar contra a xenofobia francesa agravada por esses atos de terror. Queria ver como nos comportaríamos se Paris fosse a capital do Brasil.
Recife, 12 de janeiro de 2015

domingo, 25 de janeiro de 2015

No Mural do Facebook II


Brasilbrás
A inconsciência e a apatia política do brasileiro não é uma coisa qualquer. É um mal entranhado na nossa formação mais remota. Por isso governantes, seja de que partido forem, usam e abusam dos nossos direitos e bens. Mesmo a minoria politizada e opinativa denuncia no geral os efeitos, pois não percebe as causas profundas do nosso atraso e problemas que se arrastam através de séculos. O Estado brasileiro, por exemplo, não mudou essencialmente desde as origens do império colonial português. É o Estado patrimonial, privatizado por uma casta que governa em benefício próprio e dos seus parentes, apadrinhados, amigos e associados. Nossa chamada elite é apenas uma clientela, como bem observou Evaldo Cabral de Melo. O Estado concentra o poder usando seu poder de agente interventor na esfera econômica para pilhar impiedosa e sistematicamente a sociedade. Segundo Eduardo Giannetti, 60% da nossa renda salarial procede do Estado. Isso evidencia o quanto a esfera do capital privado é restrita. Todos os países de comprovada eficiência econômica no capitalismo moderno funcionam exatamente de modo contrário. No país das estatais, ai de quem ousar sequer sugerir a privatização de um monstrengo como a Petrobrás.
Não falta quem denuncie a corrupção, sobretudo agora, quando assistimos à investigação de mais uma colossal pilhagem que provavelmente vai dar em nada ou em muito pouco, já que todos os partidos de maior força estão implicados. Para bom entendedor: vão se associar para impedir o avanço efetivo das investigações na esfera política. Quem paga a conta? O contribuinte, é claro. A sociedade apática e inconsciente da pilhagem sistemática a que é submetida continua dormindo nas filas e macas depredadas pela corrupção e o parasitismo público. Temos uma das mais altas cargas tributárias do mundo, com o agravante de que o Estado bem pouco retribui em serviços e deveres constitucionais o que cobra da sociedade, e agora vem por aí mais arrocho. Vamos novamente pagar as contas astronômicas da corrupção entranhada nas estatais e em todo o aparato estatal. Mas nem os críticos mais veementes ousam falar em privatização. Falar nisso é incorrer numa heresia, é coisa de neoliberal entreguista. E assim continuamos pagando contas sem resgate cada vez mais extorsivas. O que nos consola é a complacência fatalista com que nos gozamos e gozamos de tudo, sobretudo o circo que não pode parar. O carnaval já começou de costas para a crise que se agrava enquanto a classe dirigente e sua clientela continuam saqueando a sociedade inconsciente e apática. Merecemos continuar sendo um país de segunda categoria como se isso fosse uma praga ou fatalidade. E quase todos se consolam cantando o país da esperança, como se esperança fosse realidade. Nossa miséria é tão grande que sequer nos consola esperar sentado. Tem fila até para a esperança.
Facebook, 20 de janeiro de 2015

Je suis Charlie

Acho que minha amiga Deborah Echeverria pisou em falso ao endossar argumentos de certos relativistas e críticos do Ocidente. Refiro-me a quem diz que não é Charlie. Para começar, o endosso à frase, ou slogan, não significa adesão irrestrita ao humor da revista Charlie Hebdo. Significa, antes de tudo, defesa da liberdade de expressão. Portanto, rejeição à barbárie destrutiva, com perdão do truísmo que se justifica como forma enfática. Lembrando a definição da liberdade proposta por Rosa Luxemburgo: Liberdade é sempre e exclusivamente a liberdade de discordarem de nós. Afirmar que o islamismo rejeita as grandes conquistas da modernidade, fruto da tradição iluminista cujo foco mais dinâmico foi a França do Século XVIII, não é incorrer em crime de intolerância ao islamismo, muito menos justificação do imperialismo ocidental.
É claro que há intolerância de um e de outro lado. Mas todas as conquistas democráticas, toda a tradição de reconhecimento e respeito pelo outro é obra do Ocidente. Isso é tão verdadeiro que somente no Ocidente existe relativismo cultural. Nossas universidades estão cheias de radicais de cátedra usando os sofismas do relativismo para atacar o Ocidente e defender todas as culturas diferentes ou incompatíveis com a tradição de tolerância fundada no Ocidente depois de muitos séculos de luta. A diferença é simples: tentem imaginar um Foucault ou um militante de qualquer movimento em defesa das minorias no Oriente Médio
Facebook, 10 de janeiro 2015.

P. S. – O comentário acima, postado no mural do Facebook, provocou a incompreensão previsível. Os limites do espaço já de partida me obrigam a condensar e também simplificar meus argumentos. Não bastasse tanto, a natureza polêmica do tema concorre acima de tudo para gerar todo tipo de controvérsia e apreciação impertinente. Não sou de frente ampla nem de voz unida. Nunca militei em partido político ou professei qualquer fé religiosa. Ademais, deixei claro o sentido em que endossava a frase que correu o mundo como um símbolo de resistência à intolerância e ao terror: Je suis Charlie. Pois não faltou quem me interpelasse acerca dos limites da liberdade de expressão, do meu eurocentrismo e por fim me incluísse na corrente dos conservadores intolerantes. Apesar de tudo, insisto em me explicar fiel a um princípio de respeito à opinião alheia, à opinião do leitor, seja quem for, até que me dou conta de que esbarro em paredes surdas e me calo.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Nos Murais da Internet III


A ditadura e seu legado
Caro Carlos Orsi: Muito bom o seu artigo sobre a ditadura e seu legado. As distinções que você faz, tendo como eixo o valor suprimido da democracia, esclarecem de forma sumária, como seria inevitável dentro dos limites do artigo, algumas confusões frequentes nos debates sobre o assunto. Acrescentaria apenas que a ditadura foi mais do que militar-civil. Ela foi também amplamente apoiada pelo povo, sobretudo pela via da passividade ou indiferença. Acho que a explicação deste fato, no geral silenciado até pelos críticos mais lúcidos e isentos, deriva do autoritarismo constitutivo da nossa formação social. Vivi boa parte dos “anos de chumbo” trabalhando numa fábrica e convivendo intensamente com operários, gente da classe média baixa e habitantes da zona açucareira de Pernambuco, linha de ponta da revolução que não houve nem poderia haver, salvo nas avaliações fantasiosas da esquerda e da direita paranóica, que usou isso como instrumento para justificar o golpe. Vivi com o outro pé na universidade estudando direito. Afora os gatos pingados que opunham alguma resistência à ditadura, antes de tudo no plano da consciência, o apoio à ditadura era massivo. Cansei de ouvir elogios rasgados a Médici e aos militares. Seria engano supor que essa mentalidade autoritária mudou muito. A democracia que você ressalta, e inteiramente aprovo, é de fato muito restrita, pois o Brasil mantém fora dela a maioria que somente poderia exercê-la se nossa noção de democracia se estendesse efetivamente para o plano social. Noutras palavras, precisamos ainda da democracia que nunca tivemos: a social, a que removeria a maioria do povo do estado de tirania social e econômica a que continua submetido. Não preciso acrescentar que somente ele, o povo, pode conquistá-la. (Blog Amálgama,27 de março 2014)

Estatismo brasileiro
Acho que só existe uma solução para o problema das estatais bem desenhado no editorial desta semana: privatizá-las. Privatizá-las, acrescento, impondo ao capital privado regulações efetivas impostas pelo Estado. Propor isso, no entanto, seria propor uma revolução que não interessa a ninguém, nem ao povo espoliado pelo modelo estatizante que sempre prevaleceu na nossa economia. Esse modelo, sabem os economistas e historiadores bem melhor que eu, remonta a Getúlio Vargas e nunca foi substancialmente alterado. Hegemônico na esfera econômica e política, sustenta-se sobretudo na mentalidade geral, que encara qualquer proposta de modernização segundo modelos como o anglo-saxônico como neoliberalismo – noutros tempos foi entreguismo. O modelo estatizante inabalável no Brasil serve antes de tudo como instrumento poderoso de espoliação do povo. (Revista Será?, 28 março 2014).

Petrobrás e estatais
Existe solução para as estatais que se servem da sociedade (do dinheiro do contribuinte, melhor dizendo), quando deveria ser o contrário. Existe solução, mas é difícil e de resto ninguém quer sequer pensá-la. A solução seria privatizar as estatais. Mas antes seria preciso submeter o Estado brasileiro a uma reforma profunda, que seria na verdade uma revolução: converter suas estruturas patrimoniais em instituições democráticas modernas características de uma autêntica social-democracia. No Brasil tal como é, esta solução é inconcebível. Portanto, tudo vai continuar como sempre foi. Como observei algures, nunca subestimem o poder de inércia social do Brasil. Noutras palavras, a força das nossas tradições retrógadas. Somente a organização democrática do povo poderia forçar essas mudanças. Mas o povo nada sabe nem quer saber. O povo, domesticado por cinco séculos de tirania patrimonialista e catequese que afinal nos valeu um santo, continua achando que tudo deve vir do governo: o governo pai, atualmente mãe Roussef, e provedor. Com um Estado como o nosso, o Brasil continua sendo o paraíso do capitalismo sem risco, também das multinacionais e corporações que aqui fazem o que querem. (Revista Será?, 28 março 2014).

Radicalização e violência
Discordo da estranheza acentuada no Editorial da Revista Será?: Radicalização e Violência. A democracia que temos de fato é e sempre foi restrita. Ela exclui a maioria dos brasileiros. Liberdade de expressão, por exemplo, é um direito que importa apenas para a minoria que pensa e opina no Brasil. Não significa nada para a maioria que vive um cotidiano factualmente opressivo e violento. Nossa violência é endêmica e impregna nossos modos correntes de vida. É tão endêmica que nem a percebemos. O que me espanta é a persistência dessa percepção mítica de um país sempre representado como alegre, feliz e festeiro. Somos também isso, mas tudo isso convive com a violência. Portanto, nada de estranhável. Aliás, acho mesmo é que devemos nos inquietar não só com o que está acontecendo, mas também com o tom dos dois comentários dos leitores que precedem este meu, que diante deles é sinceramente banal e previsível, vindo de quem vem. Acho que o leitor de Será? deveria ler com muita reflexão o tom dos comentários acima. Eles são a faísca de uma violência social há muito reprimida neste país que me inquieta e transtorna minhas medidas de compreensão. (Revista Será?, 3 maio 2014).

Radicalização e violência II
Não resisto ao desejo de fazer uma adição ao meu comentário. O comentário de César Garcia parece o fragmento de um conto de Rubem Fonseca, escritor que ousaria dizer profético. Como sabemos, ele teve um livro de contos (Feliz Ano Novo) censurado pela ditadura. Se não soubesse um pouco de política, acharia irônica a censura a uma obra literária sobre a violência brutal no auge de uma ditadura. Acho sintomático o fato de o escritor que melhor traduziu literariamente a violência brasileira ter sido um delegado de polícia. Continuo achando que o conjunto da obra de Rubem Fonseca é o que melhor explica os formigueiros urbanos que habitamos. A classe dirigente brasileira, herdeira do colonialismo e do escravismo, continua governando a sétima economia do mundo com a mentalidade dos engenhos cujo fogo já se apagou há muito tempo. Essa é uma das contradições desconcertantes entre a história das mentalidades e a econômica. (Revista Será?, 3 maio 2014).

O despertar do gigante
Teresa Sales: Você tem razão ao assinalar distinções significativas entre dois tempos do Brasil “despedaçado”. No entanto, acho que sua apreciação é otimista demais ao traduzir as explosões sociais agora correntes com o despertar do gigante. Sem dúvida, ele está despertando em muitos sentidos. Mas o trote da carruagem, a julgar pelos fatos cotidianos, tende mais para a reação desordenada, para explosões sociais que, na falta de melhor expressão, designaria como movimentos pré-políticos. Um dos aspectos inquietantes dessas manifestações, como aliás ressalta o Editorial desta semana, é a violência, é a depredação anárquica do nosso frágil tecido social. Noto na revista uma concepção um tanto difusa de democracia que tende, salvo erro de avaliação minha, a confundir democracia com funcionamento das instituições políticas. Ora, isso é muito pouco para definir a estabilidade democrática de um país como o Brasil. Sustento a opinião de que a maioria, apesar do bolsa família e outras mudanças positivas, continua vivendo à margem de um Estado efetivamente democrático.
Enquanto não tivermos democracia social para valer, e estamos ainda muito longe disso, as forças de instabilidade, potencialmente anárquicas, são sempre uma ameaça possível. Minha perspectiva, como frisei discutindo com Sérgio Buarque, é a da longue durée, até porque não tenho competência como alguns da revista, para opinar com segurança sobre os processos vivos e conjunturais da política e da economia. Por observar o Brasil do ângulo acima acentuado, não consigo ser otimista. Uma análise mais adequada teria que incorporar as mudanças profundas do capitalismo global e o modo como ele funciona num país periférico como o Brasil, que nunca foi capaz de ajustar suas contas com a modernidade. Tentei sugerir algo disso no comentário que postei sob o título Consumo vs. Civilização. (Comentário sobre o artigo de Teresa Sales, O despertar do gigante, Revista Será?, 17 maio 2014).





segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Carpeaux e Merquior


Começo por esclarecer ao leitor que este artigo foi escrito há algum tempo. Na ocasião em que meu amigo César Melo o leu, prontamente sugeriu-me propor a Daniel Lopes, nosso editor do blog Amálgama, que o publicasse quando do intervalo entre as datas da morte de Carpeaux e Merquior. Lembro ao leitor desmemoriado, como é o meu caso, que Merquior morreu em 07 de janeiro de 1991; Carpeaux, 03 de fevereiro de 1978. Minha intenção, portanto, era encaminhar o artigo para Daniel em meados de janeiro passado. A data passou, também o mês e somente agora, meio envergonhado de minha memória, proponho afinal a Daniel que publique o artigo. Encerro esta nota introdutória acrescentando uma razão pessoal e outra pública visando justificar a publicação tardia. A pessoal prende-se ao fato de que César, Daniel e eu admiramos a obra de Carpeaux e Merquior, além de nos identificarmos com a tradição do humanismo liberal a que se filiam; a segunda deriva do silêncio, salvo desatenção compreensível num leitor pouco regular da mídia, que cercou as datas acima assinaladas.

Tenho ainda uma outra razão, esta bem recente, para justificar a repostagem deste artigo. Embora pouco informado sobre a produção crítica corrente, até por não ser e nunca ter sido crítico militante, tenho lido dois críticos da nova geração de escritores pernambucanos: Cristiano Ramos e Eduardo César Maia. Além de intervirem com freqüência nas redes sociais e em eventos relacionados à literatura, têm ambos explicitado o quadro ideológico ao qual vinculam sua atividade crítica. Adeptos confessos e combativos do liberalismo humanista, escrevem e debatem publicamente as obras e as idéias correntes salientando a importância que os críticos considerados neste artigo têm na sua formação. A eles acrescentam Octavio Paz, Mario Vargas Llosa, Ortega y Gasset e Álvaro Lins. Dado que a tradição liberal dentro da qual nos alinhamos é ainda tão incompreendida no Brasil e na América Latina, quando não deliberadamente deformada, acolho com vivo entusiasmo estes jovens decididos a intervir no nosso ambiente intelectual tão pobre de obras e idéias, sobretudo neutralizado no seu potencial crítico pela prática longeva da cordialidade literária. Friso conferir ao termo cordialidade o sentido que lhe deu Sérgio Buarque de Holanda. Como foi tão incompreendido, e ainda o é, esforcei-me por esclarecê-lo no artigo Raízes do Brasil, que o leitor interessado pode conferir no meu blog. E assim fecho a nota explicativa antes que ela se torne mais extensa que o artigo original.

Penso que Otto Maria Carpeaux e José Guilherme Merquior realizaram com erudição singular e rara independência ideológica a mais alta expressão do jornalismo cultural que já tivemos no Brasil. Talvez pronunciando-me em termos tão absolutos incorra em alguma injustiça, pois tivemos outros de estatura semelhante. A isso acrescento algumas distinções entre ambos que me parecem dignas de registro. Carpeaux foi jornalista de profissão, enquanto Merquior cedo ingressou na diplomacia e infelizmente morreu no esplendor de sua vitalidade intelectual. Penso que o mérito supremo do primeiro foi transportar para o Brasil, com sua impressionante erudição, a mais alta tradição intelectual europeia. Num país de tradição similar ainda muito restrita, é difícil avaliar o quanto fez no sentido de familiarizar o leitor brasileiro com uma infinidade de autores e obras fundamentais, alguns até então praticamente desconhecidos no Brasil. Embora tenha produzido antes de tudo para o jornal, deixou duas obras únicas que melhor demonstram o que acabo de indicar. Refiro-me à monumental História da Literatura Ocidental e a Uma Nova História da Música. Quanto a Merquior, chamou a atenção de imediato devido à precocidade com que principiou intervindo no debate cultural e ideológico através de suplementos literários extintos pela revolução tecnológica operada no campo da comunicação com efeitos profundos sobre o sistema cultural.

Carpeaux concentrou sua atividade na literatura. Mas nos anos 1960, dentro de um clima de mudanças sociais sem precedente aquecidas pela radicalização do debate ideológico, ele deslocou o foco da sua militância para a política. Essa tendência acentuou-se ao ponto de se impor de forma quase absoluta depois do golpe militar e da imposição do regime que ele combateu até o fim da vida com coragem admirável e corte polêmico impressionante. Nesse sentido, Merquior tem o perfil mais definido do que com certa liberdade designo como crítico cultural. Embora altamente dotado como crítico literário, sua intervenção pública estendeu-se ao debate cultural compreendido numa escala que entendo mais ampla do que aquela descrita pela trajetória de Carpeaux.

Merquior foi dos raros que entre as décadas de 1970 e 1980 evoluíram da esquerda, num clima em que o termo se revestia de muita rigidez, dada a polarização ideológica imposta pela ditadura militar, para o liberalismo. Isso era anátema na atmosfera ideológica da época. De resto, a resistência ao liberalismo nos círculos intelectuais brasileiros, sobretudo nos acadêmicos, parece-me ainda muito grande. É um sintoma, presumo, do circuito restrito de nossa tradição democrática, dentro e fora do ambiente intelectual. Isso explica em parte o silêncio ou indiferença diante da sua obra, mesmo aquela que em princípio deveria ser do interesse obrigatório dos intelectuais acadêmicos. É o caso, especifico, do seu livro duramente crítico contra Foucault, autor que é ainda referência obrigatória na academia. Como é frequente, estudam-no, como a outros autores da moda, ignorando a contribuição de procedência nacional, sobretudo quando o autor em questão, como é o caso de Merquior, não é membro de nenhuma instituição universitária.

Polemista afiado e independente, Merquior atacou o estruturalismo no auge da moda, quando os intelectuais acadêmicos seguiam a moda, como de hábito, com a subserviência costumeira em país de cultura periférica. Atacou ainda as vanguardas, quando elas, não obstante em declínio progressivo, gozavam de tremendo prestígio, que ia da redescoberta de Oswald de Andrade e da antropofagia à tropicália, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos à revista Vozes de Cultura, que nos anos 1970 abrigou vanguardismos de todos os timbres e vozes. Atacou ainda a psicanálise, que sobrevive no Brasil, dentro e fora da academia, enquanto sua visibilidade decai no horizonte intelectual de países como a Inglaterra e os Estados Unidos. Até na França, onde a releitura psicanalítica de Lacan impôs sua hegemonia irradiando para países como o Brasil, até lá os ataques à psicanálise e a Lacan são crescentes. Mas este é um assunto que me prometo considerar num outro artigo.

Importa ainda anotar a crítica persistente de Merquior ao marxismo. Este é um dos mais exemplares capítulos da nossa história das ideias mais recente. Digo-o exemplar ao considerar que a polêmica por ele desfechada concentrou-se antes de tudo na forma de um diálogo tenso e democrático com seus amigos Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. A maior evidência do caráter exemplar, bem raro no Brasil, dessa polêmica pautada pela nobreza da tolerância crítica, do conflito sempre conduzido em termos democráticos, consiste na permanência da amizade que ligou Merquior a Konder e Coutinho até o fim da vida. Estes, por sua vez, assim como Luiz Sérgio Henriques e Gildo Marçal Brandão, para ficar na menção a um determinado grupo de marxistas, também mudaram em direção nitidamente orientada para a revisão do sentido da democracia dentro da nossa tradição marxista.

Por fim, ressaltaria que Carpeaux e Merquior realizaram sua obra infelizmente tão desprezada pela academia refinando um estilo de exposição de ideias que timbrava pela profundidade sem prejuízo da limpidez e elegância da forma. Assim procedendo, atuaram como mediadores esclarecidos e esclarecedores entre a obra e o público. Do Brasil à França, da Inglaterra aos Estados Unidos, essa admirável tradição do intelectual público parece esgotada depois que a cultura letrada refugiou-se em nichos acadêmicos ou se acasalou com a grande mídia com o olho e as ideias visando antes o mercado do que a expressão pública da cultura. Também os marxistas acima citados, mesmo quando vinculados à academia, cuidaram de preservar a clareza na exposição das ideais.

Quanto à academia, dela procede Antonio Candido, nosso crítico literário insuperável. Embora suas ideias e docência tenham produzido uma leva de críticos de alta qualidade, sua obra não se disseminou como padrão de estilo expositivo na academia. Mencionando um único exemplo, o da sociologia, até porque a obra de Antonio Candido se sustenta sobre essas duas sólidas vigas, a literatura e a sociologia, o estilo que triunfou impondo-se portanto como padrão foi o de Florestan Fernandes e outros cientistas de mérito inegável, mas escritores de categoria apenas medíocre. O pior é a enxurrada de iletrados letrados, o paradoxo é intencional, produzida em massa pelos programas de pós-graduação. Esses escrevem regidos pelo princípio do método obscuro, que impressiona na mesma proporção em que mascara a pobreza ou banalidade das ideias.Obediente à última moda intelectual importada dos EUA ou da Europa, concluo.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Deus me livre de ser mulher III


Concluo minha série de crônicas sobre as relações entre o homem e a mulher invocando razões sobremodo pessoais para gostar de ser homem. Antes de tudo, é por ser homem que posso amar a mulher num sentido incogitável para uma mulher. Não esqueço de que existe o amor lésbico, cada vez mais corrente. Confesso que sempre achei belo e delicado o amor entre mulheres. Talvez meu modo de figurá-lo seja apenas fantasioso, mas o fato é que sempre me sensibilizou. Nunca me incomodou, pelo contrário, saber que minhas namoradas, quando o amor lésbico era bem mais reprimido, tinham amigas lésbicas. Embora não tenha nenhum preconceito contra o homossexualismo masculino, nunca consegui fantasiá-lo ou simplesmente imaginá-lo revestido dos tons de beleza e lirismo que associo ao amor lésbico.

Já que comecei aludindo ao amor homossexual, aproveito a cadeia associativa (quase sempre meu processo de composição escrita, como ressaltei no segundo texto desta série) para declarar minha posição ética e ideológica acerca do assunto. Sou liberal. Não o confundam com o sentido recentemente adotado em sites de prostituição. Se bem entendo este novo sentido adicionado a um termo tão polissêmico e incompreendido, ser liberal é topar tudo, como antes se dizia nos ambientes de língua solta. Sendo mais preciso, talvez convenha dizer que é topar tudo, em particular sexo anal. Voltando ao sentido que tinha em mente e de resto aqui defendo, sou liberal dentro da tradição do liberalismo anglo-americano. No Brasil, infelizmente, liberal é quase sempre um insulto ideológico, mesmo depois que a hegemonia do pensamento de esquerda ficou confinada na academia, sindicatos e outros nichos da política avessa ao liberalismo e à direita em geral.

Liberalismo e socialismo são linhagens ideológicas que ganharam força na primeira metade do século 19. No decurso desse período eles se afastaram, já que a burguesia triunfante traiu os ideais progressistas contidos no liberalismo. Mas este, tão ou mais ambíguo do que o socialismo, desenvolveu a tendência com a qual me identifico: a que postula a igualdade de gênero, a autonomia do indivíduo perante o Estado, com certeza sua característica essencial, e a democracia social. A direita liberal tende a reduzir a democracia a fundamentos puramente econômicos, isto é, reivindica antes de tudo a autonomia do indivíduo perante o Estado como se tal autonomia se reduzisse à liberdade econômica. Neste sentido, concordo com a crítica curta e seca de marxistas e afins: de que me serve a liberdade para morrer de fome?

Ora, é justamente por lutar pela autonomia do indivíduo não apenas enquanto agente econômico, mas também enquanto cidadão e membro de um gênero, que o liberalismo esteve e está na raiz dos movimentos de liberação hoje mais ativos do que os movimentos políticos convencionais. Refiro-me, noutras palavras, ao feminismo, aos movimentos em defesa dos direitos das minorias etc. É pena que o desenvolvimento do liberalismo no Brasil, associado sobretudo aos movimentos de direita, nos impeça de reconhecer o papel decisivo que a tradição liberal desempenhou no sentido de ampliar a conquista e exercício dos direitos humanos. Por essas e outras, acima de tudo por considerar a representação político-partidária do liberalismo no Brasil, sempre me constrangeu afirmar minha filiação ao liberalismo. Tanto me constrangeu que somente há bem pouco tempo ousei declarar-me liberal. Friso ainda que, em termos de representação política oficial, não seguiria nenhum dos partidos que se declaram baseados em ideais liberais. Noutras palavras, liberalismo para mim é um conceito investido de conotações antes culturais do que políticas.

Retomo o veio do meu argumento relativo ao homossexualismo para salientar que é precisamente por me definir como liberal que me sinto livre para defender os direitos do amor homossexual, os direitos de todas as minorias, em suma, a autonomia do indivíduo perante o Estado. Especificando: autonomia política, econômica, religiosa, sexual etc. Saindo dessas abstrações que por vezes me confundem, pois bem pouco conheço a história das ideias políticas, há muito me espanta o fato de tanta gente ser moralmente tolerante, quando não cúmplice, de políticos comprovadamente corruptos, de criminosos cujas infrações à lei resultam em danos sociais devastadores e todavia ser impiedosa no exercício do preconceito contra o homossexualismo. Ainda que se admita que este é moralmente recriminável, que mal ele causa a mim ou a quem não o pratica? Nesse sentido, acredito que a intolerância encerra um ingrediente inequívoco de insegurança psicológica acerca do que somos. A norma que deveria reger nossa atitude moral perante o homossexualismo parece-me simples: na medida em que não interfira na liberdade do outro, o indivíduo é livre para fazer sexualmente o que quiser.

Dei tantas voltas, errei acima através de tantos becos que acabei perdendo a mulher de vista. Como dizia, preciso ser homem para desfrutar do privilégio de amar a mulher como somente o homem a pode amar. Minha grande ventura foi amar e ser amado pela mulher. É uma experiência indizível que, na medida do que pude e precisei, notadamente quando sofri a dor e a perda, quando precisei limpar a chaminé da minha memória atormentada pelo amor ido e perdido, tentei toscamente traduzir em poema, em prosa lírica, em estados de epifania irredutíveis à palavra. Além disso, senti-me sempre tolhido pela consciência de que trato de uma ordem de experiência privada. Quando falo de amor, implico o outro, a mulher que não me autorizou a identificá-la e despi-la nas linhas da minha crônica. Portanto, além de defender minha própria reserva, minha própria privacidade, importa ainda mais preservar a privacidade de quem amei, de quem mergulhou comigo nos labirintos inconfessáveis da carne, da intimidade inefável.

De resto, é devido às razões acima grosseiramente expostas que detesto a cultura da exposição narcisista dominante no cenário contemporâneo. Repisando um trocadilho preciso, as pessoas se evadem da privacidade com um gozo de ostentação e vulgaridade que me inspira aversão. Não vou, portanto, incorrer nas práticas que reprovo. Sendo assim, encerro minhas três crônicas num tom decerto banal para quem se meteu a levantar tanta poeira nas páginas precedentes. Seguindo com uma distinção que me parece oportuna, critico o discurso sobre o amor e o sexo na medida em que se confunde com a vulgarização que sempre o rebaixa, além de remover seus objetos da esfera privada para a exposição contaminada pelo exibicionismo, a vaidade, a inveja, a ostentação de poder, todos esses modos de ser negativos incompatíveis com o amor e o sexo tal como os entendo e procuro vivê-los.

Esclarecendo a distinção acima proposta, afirmo hoje que o amor precisa manifestar-se em palavra, precisa sempre prodigamente declarar-se ao outro amado. Num poema tardio (“Quero”, incluído em As impurezas do branco), Drummond enfatiza o quanto precisa do amor declarado, o amor traduzido em palavra à exaustão repetida. Somente assim, frisa o poema, o poeta se sente amado. Lendo um dia esse poema, lembrei-me do quanto durante muito tempo me deixei trair pelo engano de que o amor deveria manifestar-se em ato, não em palavra. A palavra é fácil e frequentemente falsa. Isso todavia não anula a necessidade que temos de acreditar no amor do outro porque ele o declara. Talvez precisemos desse tipo de certeza precária ou confirmação simplesmente porque somos demasiado vulneráveis à incerteza, duvidamos demais do amor, duvidamos ainda da medida em que o merecemos. Além do mais, não bastasse a dúvida latejando na raiz do ser, duvidamos da sua duração quando o acreditamos real. Ele é hoje, mas será também amanhã? Essa insensatez corrói o amor, chega com frequência a ameaçá-lo, mas é com toda essa fragilidade insensata que no geral amamos.

O que sei é que aprendi, decerto tardiamente, porém ainda a tempo, aprendi a dizer o amor. Quando doravante voltar a vivê-lo, pois há ainda tempo para amar e amar com a maturidade serena que em mim tenho lavrado, direi o amor sempre que possível e necessário, sempre até quando prescindível. Nossa experiência do amor, nossa carência dele, tudo isso é incerto demais, precário demais para que a gente se contente simplesmente em vivê-lo enquanto ato. O poeta tem razão: é preciso dizer sempre o amor, dizê-lo todos os dias, quando de fato amamos. Contudo, é preciso antes encontrar o amor. E a verdade que antes a mim me toca, que antes em mim me fere, além da que observo à minha volta, é que andamos pobres de amor, andamos desavindos do amor. Assim, como tem sido difícil valer-me do privilégio de ser homem para amar a mulher num sentido somente concebível para quem é homem!

Já que acima aludi a Drummond, que até em matéria de amor é mais meu poeta do que românticos extremos como Vinícius de Moraes, concluo citando a quadra inicial de um dos seus poemas que não me canso de ler:
“Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva”.
Recife, 7 de agosto de 2012.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O peso da liberdade


Segundo a voz corrente, ser livre é fazer o que quiser. É uma concepção infantil da liberdade, mas como espantar-se diante do fato de ter largo curso, de ser a voz corrente? Afinal, a cultura hedonista que hoje rege nossa realidade baseia-se na infantilização das pessoas. Dizendo o mesmo de um outro modo, a cultura publicitária, presente até no nosso sono, para não dizer nos nossos sonhos acordados, repisa esse refrão para tudo vender. Repetindo o refrão, ser livre é fazer o que quiser, é realizar nosso desejo. Ora, essa concepção infantil da liberdade não resiste ao teste de realidade mais elementar, à prova mais corriqueira da realidade.

A liberdade é um bem precioso, mas é também um peso. Por que um peso, interroga perplexo o leitor infantilizado pela fumaça publicitária que permeia nossas vidas. Ora, porque ser livre é ser livre para escolher. Nossa vida, na medida em que é livre, supõe sempre o exercício de escolhas. Estamos sempre fazendo escolhas. E é precisamente dessa circunstância entranhada no ser e no exercício da liberdade que decorre seu peso sobre nossas vidas.

Vamos a alguns exemplos práticos. Somos livres para amar. Num mundo de tantas possibilidades, tantas tentações e encontros, a liberdade de amar é bem maior do que a observável em outros tempos e culturas regidas por códigos mais repressivos. Hoje um jovem de classe média urbana, por exemplo, é livre para transar com a namorada, em muitos casos dormir com ela na casa dos pais graças ao consentimento destes. É uma forma de liberdade desejável e fácil, já que consentida. Quando eu era jovem, precisei sair de casa, lutar arduamente para ter um lugar meu onde pudesse dormir com minha namorada, ou com quem mais desejasse. Ninguém me deu essa liberdade. Precisei conquistá-la e portanto sei o quanto me custou. Hoje o jovem de classe média para cima não apenas leva a namorada para a casa dos pais, mas também com frequência a engravida e os pais financiam também essa liberdade. Como estranhar que esse tipo de jovem, cuja liberdade é financiada pelos pais, diga irrefletidamente que ser livre é fazer o que quiser e quando quiser?

A digressão acima desviou-me do curso de meu argumento. Meu propósito, ao acentuar o peso da liberdade, era ir ao cerne do que compreendo como liberdade. O exemplo que dei é secundário, já que deriva do que agora deixarei claro. Ser livre é ser livre para escolher e escolher envolve sempre a exclusão de tudo que fica à margem da minha escolha. Quando escolho amar uma mulher, excluo automaticamente todas as demais possíveis. Quando escolho ficar em casa sexta-feira à noite lendo um livro ou escrevendo, excluo todas as possibilidades de vida que estão fora do meu apartamento. Quando escolho minha solidão, para nela realizar possibilidades impensáveis em qualquer forma de convívio, escolho-a porque ela importa para mim mais do que qualquer companhia disponível.

A condição fundamental para que me realize no exercício da minha liberdade de escolher consiste na adequação entre meu desejo e o objeto que escolho. Quantas pessoas escolhem em conformidade com esse princípio? Receio que bem poucas. Ademais, ainda que na minha escolha obedeça a este princípio, o objeto que escolho, se é humano, pode contrariar ou mesmo contradizer minha liberdade. Para que minha escolha me faça bem, idealmente me torne feliz, é preciso que eu queira verdadeiramente o que escolho, tão verdadeira e profundamente que a exclusão de tudo mais não me cause frustração ou arrependimento, suspensão relutante entre o que escolho e o que em consequência deixei de escolher.

Como conciliar a realidade efetiva da liberdade com a noção infantil acima indicada? De acordo com esta, faço o que quero como se isso significasse fazer tudo o que quero. Ora, ninguém faz tudo o que quer. Mesmo no estado idealmente mais livre, somos livres porque fazemos escolhas. É aí que muitas vezes sofremos entre o desejo e a possibilidade, entre a realidade da escolha e a realidade das possibilidades em princípio infinitas. É impossível escolher tudo que queremos e aquilo que mais queremos. A liberdade ideal, portanto, consiste na escolha daquilo que mais importa para a realização da nossa vida. Convém ainda acrescentar que não há nenhuma linha reta, nenhuma relação de necessidade entre minha escolha e meu desejo de felicidade. Não raro, o que mais desejo e escolho logo se converte em fonte de desastre e sofrimento. A liberdade não se dá, a liberdade se conquista, reza um lugar comum, no caso verdadeiro. Mas a liberdade que se conquista não é garantia de nada, muito menos de felicidade.

O fato é que a liberdade, como já frisei, é um bem precioso, mas também um peso. É por tanto pesar que a ela frequentemente renunciamos, não raro em nome dela. É por isso que nos deixamos docilmente governar por líderes baratos, reles políticos que apenas ambicionam o poder, o pior do poder. Curvamo-nos não apenas a esse tipo de governo, mas também ao governo do tirano cujo poder se sustenta apenas na nossa servidão voluntária, como há muito demonstrou Étienne de La Boétie.

“Ó liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome”. Esta citação, longe de ser um lugar comum, como a que acima introduzi, é de Madame Roland, que a pronunciou no auge do terror desencadeado pela revolução cujo ideal era esta santíssima trindade: Igualdade, Liberdade, Fraternidade. Madame Roland perdeu literalmente a cabeça, cortada pela guilhotina que suprimiu muitas outras cabeças gloriosas. Matamos pela liberdade, assim como também matamos em nome dela. Por ser tão imperiosa, dela frequentemente nos valemos para mascarar muitos dos nossos piores crimes. E quantas vezes, tendo-a a nosso alcance, não a rebaixamos à sarjeta das paixões humanas? Será que somos verdadeiramente capazes de realizar a liberdade nesse mundo humano tão imperfeito? Se o leitor acredita nesse mito, o da liberdade universal ou absoluta, convém começar a afiar a lâmina da guilhotina. Ou o fio da navalha, no caso de ser barbeiro.
Recife, 15 de junho de 2012.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O Liberal Vargas Llosa


Sabres e Utopias, a mais recente coletânea de artigos e ensaios de Mario Vargas Llosa publicada no Brasil, reúne em mais de 400 páginas substanciosa e variada amostragem da sua obra de intelectual público empenhado em questões políticas e culturais. O critério de seleção adotado pelo prefaciador do volume, Carlos Granés, privilegia a política e o combate ideológico em detrimento da literatura. Esta é inserida na coletânea já no capítulo final intitulado: “Os Benefícios do Irreal: Arte e Literatura Latino-americanas”. Além de Borges, Octavio Paz e outros poucos escritores hispano-americanos, comparecem os brasileiros Euclides da Cunha e Jorge Amado.

Saliento, todavia, que Vargas Llosa bem pouco considera a literatura compreendida no seu sentido estrito. Já aludi num outro artigo a essa característica tão marcante em romancistas de renome como Vargas Llosa e José Saramago no debate público da cultura. Embora prioritariamente escritores literários, o fato é que quase sempre se pronunciaram sobre questões políticas e ideológicas. A literatura importa, em termos práticos, apenas como aval ou credencial de sucesso para que intervenham na cena cultural contemporânea.

O que Vargas Llosa escreve acerca de Euclides da Cunha e Jorge Amado, também de outros escritores literários, amplia no campo estético suas obsessões político-culturais enraizadas na América Latina. Noutras palavras, lê Os Sertões, por exemplo, antes de tudo como uma das manifestações supremas dos males típicos que infestam nossas sociedades herdeiras do colonialismo ibérico, do misticismo obscurantista, do nacionalismo estatizante e parasitário, das ditaduras e da corrupção endêmicas apoiadas em ideologias que mantêm o conjunto da América Latina na periferia da modernidade e do autêntico liberalismo democrático.

O que é afinal o liberalismo há décadas ardentemente postulado por Vargas Llosa como solução para os problemas crônicos indicados no parágrafo precedente? A pergunta se impõe em face das incompreensões, quando não grosseiras calúnias, que sobre ele correntemente recaem no conjunto dos países latino-americanos. No Brasil, para ficar no nosso terreiro, o conceito do liberalismo é frequentemente deformado na mídia e no que se pode ainda qualificar como franco debate de ideias. Basta que se pense no abuso com que se emprega sua variante, neoliberalismo. Este é sempre usado não como um conceito, mas simplesmente um insulto ideológico, uma forma de se desqualificar sumariamente um político, pensem em Fernando Henrique Cardoso, uma orientação política ou ainda uma opção ideológica.

Mas voltemos a Vargas Llosa. Esclarecer a noção de liberalismo que adota e propõe como solução para a América Latina saturada de ditaduras e populismos é já um meio de melhor situar nossas turvas disputas relativas a conceitos políticos fundamentais. Os textos chave do livro que comento no que se refere ao liberalismo do autor são “Confissões de um liberal” (páginas 299-308) e “Ganhar batalhas, não a guerra” (páginas 245-58), ambos incluídos no capítulo relativo à democracia e ao liberalismo na América Latina.

Destaco e adiante comento estes textos porque nos ajudam a melhor compreender o liberalismo adotado por Vargas Llosa e também, à parte variantes acidentais, Octavio Paz, a quem dedica um belo artigo intitulado “A Linguagem da Paixão”, e José Guilherme Merquior. Cito nominalmente estes por se distinguirem há décadas entre os grandes intelectuais latino-americanos na defesa de políticas liberais como solução gradual para os problemas crônicos de atraso e subdesenvolvimento que tanto marginalizam nosso subcontinente no contexto do capitalismo globalizado. Assim procedendo, opuseram-se corajosamente ao que o comunismo cubano representa como expressão de caudilhismo político e violação sistemática dos direitos humanos. Quando lembramos que a maioria dos nossos intelectuais, dentro e fora das universidades, ainda reluta em tomar posição contra a persistência do comunismo cubano, para não mencionar os que simplesmente insistem em apoiá-lo, não é de espantar que sua postura liberal tenha provocado tanta incompreensão crítica, não raro também intolerância caluniosa. Embora combatam com igual veemência as ditaduras de direita, este fato, como seria previsível, não os isenta dos ataques procedentes de ambos os lados. Afinal, esta é uma verdade tão antiga quanto a política: quem ousa opor-se aos extremos acaba apanhando de ambos.

“Confissões de um liberal” é o texto de uma palestra proferida por Vargas Llosa no American Enterprise Institute for Public Policy Research na oportunidade em que lhe foi outorgado o prêmio Irving Kristol. Depois de salientar que pela primeira vez, ao lhe conferirem o prêmio, lhe reconhecem a unidade ou coerência que sempre procurou realizar no homem e na obra, na literatura quanto na identidade política, Vargas Llosa acentua a imprecisão do conceito de liberal.

Começa por fixar a distinção observável no emprego do termo na tradição anglo-saxônica e na América Latina – também na Espanha, país que há anos lhe concedeu cidadania quando foi expatriado do Peru por combater uma de suas ditaduras costumeiras. Na primeira o termo tem conotações de esquerda, sendo por vezes associado ao socialismo e ao radicalismo político. Já na segunda tradição o termo sofreu um processo singular de perversão semântica, sobretudo quando consideramos sua última variação, o neoliberalismo. No Brasil ele se converte num insulto ideológico, pois o neoliberal é sempre visto como um conservador ou reacionário, adepto desprezível de toda política privatista geradora da opressão imposta aos pobres do mundo. Em suma, é um chavão usado em bloco por todo esquerdista de sindicato ou militante acadêmico. Confundir o liberalismo de Vargas Llosa, Octavio Paz e Merquior, por exemplo, com as políticas adotadas por gente como George Bush, ou com a política externa norte-americana tout court, é mais que um erro de apreciação ideológica, é incorrer na corrupção leviana da linguagem política.

O conceito se torna ainda mais turvo quando os próprios que se definem como liberais divergem entre si, como é aliás frequente. Melhor dar a palavra ao próprio Vargas Llosa, que num parágrafo exemplar ressalta os traços fundamentais do liberalismo que defende:
“Como o liberalismo não é uma ideologia, ou seja, uma religião laica e dogmática, mas sim uma doutrina aberta que evolui e se adapta à realidade em vez de procurar forçar a realidade a se adaptar a ela, há entre os liberais várias tendências e profundas divergências. No que diz respeito à religião, por exemplo, ou aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, ou ao aborto. Assim, os liberais que, como eu, são agnósticos, partidários da separação ente Igreja e Estado e defensores da descriminilização do aborto, bem como do casamento homossexual, são às vezes criticados com dureza por outros liberais que, nesses assuntos, pensam o contrário de nós. Tais divergências são saudáveis e produtivas, pois não ferem os pressupostos básicos do liberalismo que são a democracia política, a economia de mercado e a defesa do indivíduo frente ao Estado”. (p. 301).

A citação um tanto longa parece-me bem esclarecedora do liberalismo adotado por Vargas Llosa. Ele consiste fundamentalmente na afirmação integrada dos três pressupostos anotados ao final do parágrafo. Compreendendo-os de forma integradora, não incorre na adoção do liberalismo puramente econômico, que tudo entrega às forças do mercado. Pelo contrário, critica em termos veementes esta forma parcial de liberalismo, que na sua perspectiva precisa associar-se à democracia política. Como afirma sem meias palavras, o que distingue a civilização da barbárie não é a liberdade de mercado, não importando o quanto seja eficiente, mas a cultura consistente de um corpo de ideias, valores, crenças e costumes compartilhados em termos democráticos. Se o mercado for entregue a suas forças competitivas cegas, produzirá riqueza, mas sempre ao preço de uma batalha darwiniana, como frisa citando em seguida Isaiah Berlin, um dos teóricos supremos do liberalismo: “os lobos comem todos os cordeiros”.

Além de ressaltar a liberdade como expressão maior do liberalismo que postula, Vargas Llosa coerentemente sublinha a defesa fundamental do indivíduo perante os poderes do Estado. É em nome desse valor supremo, a liberdade individual, que assinala a tolerância como medida civilizada da nossa relação com o outro, sobretudo o outro que nos nega, que pensa diferentemente de nós. Afinal, é fácil concordar com quem conosco concorda. A liberdade individual e a tolerância cívica se expressam antes de tudo diante do diferente, do que pensa diferentemente de nós. Como disse Rosa Luxemburgo, uma comunista libertária, a liberdade é sempre e exclusivamente a liberdade de discordarem de nós.

O problema do comunismo, para aludir aqui a uma ideologia de esquerda que exerceu poderosa influência sobre os intelectuais e camadas mais críticas das sociedades ocidentais, é que ele, pelo menos em termos práticos, baseou a liberdade na realização da igualdade econômica, além de abolir o Estado burguês embalado pela utopia da extinção do Estado de classe. Ora, o que ele de fato realizou foi a instituição do Estado totalitário a partir do momento em que suprimiu as liberdades civis sob o pretexto de que não passavam de liberdades burguesas. Isso é tão verdadeiro que os melhores comunistas brasileiros precisaram amargar no nosso país uma ditadura militar para aprenderem a importância dessas liberdades, que não podem ser confundidas com valores da classe burguesa. Elas representam nossa defesa última contra o poder do Estado que ameaça nossa autonomia individual.

É dentro do contexto acima que me inquieta, numa dimensão em último caso política, a difusão de uma cultura narcisista, votada ao espetáculo do consumo hedonista, que induz as pessoas a renunciarem à sua liberdade, à defesa de sua vida privada que, reitero, constitui nossa defesa última contra os poderes do Estado. Essa renúncia é bem patente neste trocadilho penetrante: evasão da privacidade. Rendidas ao desejo de aparecer, de usufruir os 15 minutos de fama cronometrados na famosa boutade de Andy Warhol, as pessoas tudo negociam, relembrem o caso exemplar de Geisy Arruda, para conquistarem uma ilusória sensação de importância passível de removê-las das vidas insignificantes que sofrem. Essa renúncia à liberdade individual, servilmente negociada no palco ou passarela onde desfilamos nosso narcisismo insaciável, constitui, no meu entender, uma das mais graves ameaças à liberdade no mundo em que vivemos. Portanto, não é por motivações estreitamente moralistas que a critico, mas por considerar o valor político que em última instância encerra.

Vargas Llosa dedica alguma atenção à cena política e cultural brasileiras quando de algumas passagens pelo país. Louva a política liberal adotada por Lula – o que é fato, não obstante o foguetório retórico deste e de muitos que o apoiam – ao mesmo tempo em que duramente o critica pelos passos mais desastrosos de sua política externa. Para ser mais preciso: critica-o quando posa sorridente ao lado de Fidel Castro, emprestando assim apoio público ao ditador no momento em que este golpeava de morte os direitos humanos de prisioneiros políticos da ilha.

É sem dúvida admirável a tenacidade com que, ao longo de uma longa vida, Vargas Llosa combate em defesa da liberdade compreendida dentro dos termos liberais que procurei esboçar neste artigo. O melhor evidentemente é o leitor conferir com seus próprios olhos os fundamentos do liberalismo que adota atentando em particular para os dois textos acima referidos. Melhor ainda é antes remover a névoa dos preconceitos que contaminam as apreciações ideológicas sobre o liberalismo correntes no nosso meio. Confundir o liberalismo de Vargas Llosa, por exemplo, com o da esmagadora maioria dos nossos políticos, dentro quanto fora do congresso, é apenas concorrer para turvar ainda mais essas águas que somente uma autêntica cultura política poderia adequadamente iluminar.

Por fim, restaria assinalar que Vargas Llosa, dentro da sua tenacidade combativa, é um dos últimos representantes de uma espécie em vias de extinção: a do intelectual público, empenhado na luta das ideias e na defesa das liberdades fundamentais do indivíduo ou ainda dos valores humanos invocados por uma longa tradição humanista que aparenta atravessar um declínio irreversível. Russell Jacoby escreveu há alguns anos um livro, The Last Intellectuals, devotado a essa questão na cena cultural americana. Nele demonstra, em síntese, o processo que deslocou os intelectuais da cena pública (bastaria lembrar nomes como Edmund Wilson, Lionel Trilling e Norman Mailer) para o refúgio da academia, onde hoje entretêm teorias complicadas e radicalismo de cátedra para consumo dos próprios pares, como um jogo de castália praticado em nichos impenetráveis à participação mais ampla do povo no reino da cultura letrada. Vargas Llosa, assim como seus parceiros liberais antes mencionados, Octavio Paz e Merquior, constitui a negação dessa realidade que tende a se impor cada vez mais.
Recife, 24 de dezembro de 2010.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Vargas Llosa e o Nobel




Vargas Llosa foi enfim agraciado com o Nobel de Literatura, o que é de justiça, ainda que tardia. Sabemos que o Nobel com frequência sobrepõe critérios políticos aos estéticos, que no meu entender deveriam ser prevalecentes. Isso fica evidente quando acaso corremos os olhos pela lista dos premiados, não poucos desconhecidos por grande parte do público universal da literatura. Além de conhecidos e apreciados numa esfera restrita, logo mergulham no esquecimento mal a repercussão momentânea decorrente do prêmio se dissolve na mídia e no mercado editorial. Bastaria a propósito observar os nomes destes premiados a partir de 2000: Gao Xingjian, Imre Kertész, Elfriede Jelinek, Orhan Pamuk, Herta Müller. Quem de fato os conhece no Brasil e em grande parte do mundo ocidental, incluídas suas extensões periféricas?

O leitor pode discutir os méritos estéticos da obra de Vargas Llosa, assim como os discutem alguns críticos que lhe depreciam a obra no que encerra de filiação ao realismo típico do romance novecentista. Ressaltando o quanto os condicionantes políticos e ideológicos perturbam apreciações dessa natureza, acrescentaria que Vargas Llosa é combatido antes de tudo devido à natureza ideológica do discurso com que desde a juventude intervém no debate público.

Até recentemente o intelectual procedente da América Latina se distinguia como intelectual público. Até mesmo Borges, o mais atípico e livresco rebento dessa tradição, teve sua obra e biografia momentaneamente subordinadas à força imperativa dessa circunstância político-cultural. Já que seu nome veio à baila, importa lembrar que morreu sem ganhar o Nobel, erro que o atual presidente da Academia Sueca é o primeiro a reconhecer. Vargas Llosa constitui um dos exemplos mais vivos e constantes do intelectual militante, tão constante, aliás, que teimosamente se destaca como um dos últimos sobreviventes dessa espécie em vias de extinção. Autor de obra e notoriedade precoces, literatura e apaixonada participação política se entrelaçam no desdobramento de sua biografia.

Por que Vargas Llosa é tão combatido no Brasil e sobretudo no Peru, seu país de origem? Antes de tudo, por se opor ao comunismo e a ditaduras de direita e esquerda tão comuns na história da América Latina. Na juventude aderiu ao marxismo e apoiou entusiasticamente a Revolução Cubana. Não obstante, ousou discordar desta quando os fatos passaram a comprovar o desvio ditatorial contraditório dos ideais libertários que antes justificavam sua adesão.

Como é também típico da história intelectual latino-americana, Vargas Llosa formou-se tendo como modelo a cultura parisiense. Espelhou-se antes de tudo em Sartre, o grande mandarim da inteligência de esquerda entre as décadas de 1950 e 1970. Quando eclodiu a histórica polêmica entre Sartre e Camus (documentada num livro de Vargas Llosa: Contra Vento e Maré), Vargas Llosa tomou o partido do primeiro. Anos mais tarde, depois de um percurso acidentado, que passa da adesão ao comunismo e à Revolução Cubana à crítica das utopias de esquerda e conversão combativa ao liberalismo, Vargas Llosa dá enfim razão a Camus.

É curioso o fato de que, escrevendo sobre Sartre no remoto ano de 1964, quando este provocou momentosa polêmica ao recusar o prêmio Nobel de Literatura, Vargas Llosa o aprecie em termos que anos mais tarde, também hoje, se encaixam perfeitamente na imagem controvertida que seus críticos traçam dele próprio. Vale a pena conferir: “Sartre não facilita a tarefa dos críticos, obriga-os a correr, a ir e vir, a experimentar cada vez novas algemas para prendê-lo. O que não perdoam nele é a sua condição de franco-atirador, sua independência de julgamento, sua atitude alerta, sua imprevisibilidade, seu inconformismo. Nem a direita nem a esquerda conseguiram ´oficializá-lo`: por isto o atacam com tanta virulência”. (Mário Vargas Llosa, Contra Vento e Maré, p. 55).

Salvo o fato de que a virulência cedeu no tom e no ímpeto, sintoma do abrandamento dos antagonismos ideológicos na cena intelectual do presente, a citação acima aplica-se perfeitamente ao percurso ideológico de Vargas Llosa. Ele e Octavio Paz foram dos primeiros, vale a pena lembrar aqui o exemplo de José Guilherme Merquior no contexto brasileiro, que se reconciliaram com a melhor tradição liberal para combater Cuba e os movimentos de esquerda e direita na América Latina. Assim procedendo, como seria previsível, pois a história ideológica está saturada de exemplos semelhantes, foram atacados por ambos os lados. Mas é sempre difícil, salvo para os intolerantes e dogmáticos indiferentes aos fatos impositivos da realidade, acomodá-los num extremo ou noutro. Afinal, ambos aderiram ao liberalismo não para justificar regimes opressivos de direita, não para se acomodarem às iniquidades da nossa história social e política, mas para denunciarem a desigualdade e a injustiça produzidas tanto à esquerda quanto à direita.

Vargas Llosa esteve muitas vezes no Brasil e muito conhece da nossa tradição social e literária. Quando escreveu A Guerra do Fim do Mundo, ampla narrativa inspirada no grande clássico de Euclides da Cunha, fez demorada viagem de pesquisa através do sertão da Bahia. Antes disso leu muito sobre o Brasil, em particular sobre essa guerra que vincou de modo traumático o início da nossa história republicana e sobrevive na nossa memória social como uma das evidências mais brutais de extermínio de uma sofrida fração do nosso povo incendiado por um ideal utópico inspirador de resistência inédita na história dos nossos conflitos sociais. Seu romance é antes de tudo uma recriação ficcional do messianismo primitivo do sertanejo brasileiro e da intolerância ideológica que resulta em cegueira mútua: cegueira dos seguidores de Antônio Conselheiro, transfigurados pelo delírio utópico do beato; cegueira dos adeptos intolerantes da República, que erradamente figuraram a resistência de rebeldes miseráveis como se fosse um movimento de restauração da monarquia associado até ao capitalismo inglês.

Durante muito tempo Vargas Llosa afirmou que A Guerra do Fim do Mundo era o melhor romance que tinha escrito. Outros no entanto preferem Conversa na Catedral. Ele próprio, crítico literário refinado e grande manipulador das técnicas narrativas, reconhece o quanto escolhas dessa natureza são discutíveis. Uma coisa, porém, continuou sustentando: A Guerra do Fim do Mundo foi o romance que mais lhe deu trabalho e portanto lhe consumiu energia e imaginação recriadora dos eventos e documentos pesquisados.

O Paraíso na outra Esquina, belo título de romance, foi um projeto que Vargas Llosa nutriu durante muito tempo. Embora somente publicado em 2003, já por volta de 1985 a figura extraordinária de Flora Tristán, protagonista feminina da obra, já o fascinava. Avó do grande pintor Paul Gauguin, ambos dividem o conjunto dessa extensa narrativa que desdobra em linhas paralelas suas vidas desenhadas em capítulos justapostos. Parece-me pertinente afirmar que esse romance constitui outra variação ficcional das frustrações e desastres germinados pela imaginação e ideais utópicos dos personagens. Flora foi sem dúvida uma mulher extraordinária, admirável precursora dos movimentos feministas numa época cuja intolerância com relação a tais ideias o leitor pode facilmente desenhar. Quanto a seu neto, Gauguin, renunciou às vantagens e conveniências da vida burguesa em Paris ao migrar para o Taiti em busca de um sentido de vida liberto das convenções civilizadas em meio a povos e culturas remotas e aderentes ao mundo da natureza.

Outro dos romaces recentes de Vargas Llosa que merece registro num breve artigo de circunstância é Travessuras da Menina Má. Este é um romance de rica e envolvente ação. Narrando os encontros e desencontros amorosos de Ricardo e Lily, que se conhecem ainda adolescentes no Peru, o livro se estende através de décadas movimentadas e turbulentas num percurso que compreende a Paris revolucionária dos anos 1960 e a swinging Londres do mesmo período (não seria arbitrário concluir que uma substancial fração dessa parte da narrativa é projeção da própria biografia do autor); a cultura hippie associada à liberação do sexo e da droga; a Tóquio dos mafiosos e por fim a conturbada atmosfera de Madri durante a transição política dos anos 1980. A meio disso, as contínuas e desconcertantes mutações de Lily, a menina má, podem ser lidas como expressão literária de um mundo cultural regido pela mudança acelerada e atordoante. Daí se desprendem nossas incertezas tão dolorosas, as identidades confusas que vestimos e logo trocamos e logo perdemos ou simplesmente rejeitamos, pois Lily não tem sequer identidade nominal estável.

Por fim, acrescentaria meu apreço pelo crítico literário e pelo infatigável artesão das formas narrativas que Vargas Llosa tem espelhado em obras como A Orgia Perpétua (1979), La Verdad de las Mentiras (2002) e Letters to a Young Novelist (2002). Peço desculpas ao leitor por citar edições em línguas e datas divergentes das edições brasileiras correntes. É que recorri exclusivamente aos livros que tenho à mão. Repetindo o que já escrevi na primeira linha deste artigo, o Nobel faz enfim justiça, ainda que tardia, ao grande romancista, intelectual público e homem de pensamento e ação Mário Vargas Llosa.
Recife, 9 de outubro de 2010.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Carpeaux e Merquior


Penso que Otto Maria Carpeaux e José Guilherme Merquior realizaram com erudição singular e rara independência ideológica a mais alta expressão do jornalismo cultural que já tivemos no Brasil. Talvez pronunciando-me em termos tão absolutos incorra em alguma injustiça, pois tivemos outros de estatura semelhante. A isso acrescento algumas distinções entre ambos que me parecem dignas de registro. Carpeaux foi jornalista de profissão, enquanto Merquior cedo ingressou na diplomacia e infelizmente morreu no esplendor de sua vitalidade intelectual. Penso que o mérito supremo do primeiro foi transportar para o Brasil, com sua impressionante erudição, a mais alta tradição intelectual europeia. Num país de tradição similar ainda muito restrita, é difícil avaliar o quanto fez no sentido de familiarizar o leitor brasileiro com uma infinidade de autores e obras fundamentais, alguns até então praticamente desconhecidos no Brasil. Embora tenha produzido antes de tudo para o jornal, deixou duas obras únicas que melhor demonstram o que acabo de indicar. Refiro-me à monumental História da Literatura Ocidental e a Uma Nova História da Música. Quanto a Merquior, chamou a atenção de imediato devido à precocidade com que principiou intervindo no debate cultural e ideológico através de suplementos literários extintos pela revolução tecnológica operada no campo da comunicação com efeitos profundos sobre o sistema cultural.

Carpeaux concentrou sua atividade na literatura. Mas nos anos 1960, dentro de um clima de mudanças sociais sem precedente aquecidas pela radicalização do debate ideológico, ele deslocou o foco da sua militância para a política. Essa tendência acentuou-se ao ponto de se impor de forma quase absoluta depois do golpe militar e da imposição do regime que ele combateu até o fim da vida com coragem admirável e corte polêmico impressionante. Nesse sentido, Merquior tem o perfil mais definido do que com certa liberdade designo como crítico cultural. Embora altamente dotado como crítico literário, sua intervenção pública estendeu-se ao debate cultural compreendido numa escala que entendo mais ampla do que aquela descrita pela trajetória de Carpeaux.

Merquior foi dos raros que entre as décadas de 1970 e 1980 evoluíram da esquerda, num clima em que o termo se revestia de muita rigidez, dada a polarização ideológica imposta pela ditadura militar, para o liberalismo. Isso era anátema na atmosfera ideológica da época. De resto, a resistência ao liberalismo nos círculos intelectuais brasileiros, sobretudo nos acadêmicos, parece-me ainda muito grande. É um sintoma, presumo, do circuito restrito de nossa tradição democrática, dentro e fora do ambiente intelectual. Isso explica em parte o silêncio ou indiferença diante da sua obra, mesmo aquela que em princípio deveria ser do interesse obrigatório dos intelectuais acadêmicos. É o caso, especifico, do seu livro duramente crítico contra Foucault, autor que é ainda referência obrigatória na academia. Como é frequente, estudam-no, como a outros autores da moda, ignorando a contribuição de procedência nacional, sobretudo quando o autor em questão, como é o caso de Merquior, não é membro de nenhuma instituição universitária.

Polemista afiado e independente, Merquior atacou o estruturalismo no auge da moda, quando os intelectuais acadêmicos seguiam a moda, como de hábito, com a subserviência costumeira em país de cultura periférica. Atacou ainda as vanguardas, quando elas, não obstante em declínio progressivo, gozavam de tremendo prestígio, que ia da redescoberta de Oswald de Andrade e da antropofagia à tropicália, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos à revista Vozes de Cultura, que nos anos 1970 abrigou vanguardismos de todos os timbres e vozes. Atacou ainda a psicanálise, que sobrevive no Brasil, dentro e fora da academia, com uma visibilidade claudicante no horizonte intelectual de países como a Inglaterra e os Estados Unidos. Até na França, onde a releitura psicanalítica de Lacan impôs sua hegemonia irradiando para países como o Brasil, até lá os ataques à psicanálise e a Lacan são crescentes. Mas este é um assunto que me prometo considerar num outro artigo.

Importa ainda anotar a crítica persistente de Merquior ao marxismo. Este é um dos mais exemplares capítulos da nossa história das ideias mais recente. Digo-o exemplar ao considerar que a polêmica por ele desfechada concentrou-se antes de tudo na forma de um diálogo tenso e democrático com seus amigos Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. A maior evidência do caráter exemplar, bem raro no Brasil, dessa polêmica pautada pela nobreza da tolerância crítica, do conflito sempre conduzido em termos democráticos, consiste na permanência da amizade que ligou Merquior a Konder e Coutinho até o fim da vida. Estes, por sua vez, assim como Luiz Sérgio Henriques e Gildo Marçal Brandão, para ficar na menção a um determinado grupo de marxistas, também mudaram em direção nitidamente orientada para a revisão do sentido da democracia dentro da nossa tradição marxista.

Por fim, ressaltaria que Carpeaux e Merquior realizaram sua obra infelizmente tão desprezada pela academia refinando um estilo de exposição de ideias que timbrava pela profundidade sem prejuízo da limpidez e elegância da forma. Assim procedendo, atuaram como mediadores esclarecidos e esclarecedores entre a obra e o público. Do Brasil à França, da Inglaterra aos Estados Unidos, essa admirável tradição do intelectual público parece esgotada depois que a cultura letrada refugiou-se em nichos acadêmicos ou se acasalou com a grande mídia com o olho e as ideias visando antes o mercado do que a expressão pública da cultura. Também os marxistas acima citados, mesmo quando vinculados à academia, cuidaram de preservar a clareza na exposição das ideais.

Quanto à academia, dela procede Antonio Candido, nosso crítico literário insuperável. Embora suas ideias e docência tenham produzido uma leva de críticos de alta qualidade, sua obra não se disseminou como padrão de estilo expositivo na academia. Mencionando um único exemplo, o da sociologia, até porque a obra de Antonio Candido se sustenta sobre essas duas sólidas vigas, a literatura e a sociologia, o estilo que triunfou impondo-se portanto como padrão foi o de Florestan Fernandes e outros cientistas de mérito inegável, mas escritores de categoria apenas medíocre. O pior é a enxurrada de iletrados letrados, o paradoxo é intencional, produzido em massa pelos programas de pós-graduação. Esses escrevem regidos pelo princípio do método obscuro, que impressiona na mesma proporção em que mascara a pobreza ou banalidade das ideias. Obediente à última moda intelectual importada dos EUA ou da Europa, concluo.