segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Carpeaux e Merquior


Começo por esclarecer ao leitor que este artigo foi escrito há algum tempo. Na ocasião em que meu amigo César Melo o leu, prontamente sugeriu-me propor a Daniel Lopes, nosso editor do blog Amálgama, que o publicasse quando do intervalo entre as datas da morte de Carpeaux e Merquior. Lembro ao leitor desmemoriado, como é o meu caso, que Merquior morreu em 07 de janeiro de 1991; Carpeaux, 03 de fevereiro de 1978. Minha intenção, portanto, era encaminhar o artigo para Daniel em meados de janeiro passado. A data passou, também o mês e somente agora, meio envergonhado de minha memória, proponho afinal a Daniel que publique o artigo. Encerro esta nota introdutória acrescentando uma razão pessoal e outra pública visando justificar a publicação tardia. A pessoal prende-se ao fato de que César, Daniel e eu admiramos a obra de Carpeaux e Merquior, além de nos identificarmos com a tradição do humanismo liberal a que se filiam; a segunda deriva do silêncio, salvo desatenção compreensível num leitor pouco regular da mídia, que cercou as datas acima assinaladas.

Tenho ainda uma outra razão, esta bem recente, para justificar a repostagem deste artigo. Embora pouco informado sobre a produção crítica corrente, até por não ser e nunca ter sido crítico militante, tenho lido dois críticos da nova geração de escritores pernambucanos: Cristiano Ramos e Eduardo César Maia. Além de intervirem com freqüência nas redes sociais e em eventos relacionados à literatura, têm ambos explicitado o quadro ideológico ao qual vinculam sua atividade crítica. Adeptos confessos e combativos do liberalismo humanista, escrevem e debatem publicamente as obras e as idéias correntes salientando a importância que os críticos considerados neste artigo têm na sua formação. A eles acrescentam Octavio Paz, Mario Vargas Llosa, Ortega y Gasset e Álvaro Lins. Dado que a tradição liberal dentro da qual nos alinhamos é ainda tão incompreendida no Brasil e na América Latina, quando não deliberadamente deformada, acolho com vivo entusiasmo estes jovens decididos a intervir no nosso ambiente intelectual tão pobre de obras e idéias, sobretudo neutralizado no seu potencial crítico pela prática longeva da cordialidade literária. Friso conferir ao termo cordialidade o sentido que lhe deu Sérgio Buarque de Holanda. Como foi tão incompreendido, e ainda o é, esforcei-me por esclarecê-lo no artigo Raízes do Brasil, que o leitor interessado pode conferir no meu blog. E assim fecho a nota explicativa antes que ela se torne mais extensa que o artigo original.

Penso que Otto Maria Carpeaux e José Guilherme Merquior realizaram com erudição singular e rara independência ideológica a mais alta expressão do jornalismo cultural que já tivemos no Brasil. Talvez pronunciando-me em termos tão absolutos incorra em alguma injustiça, pois tivemos outros de estatura semelhante. A isso acrescento algumas distinções entre ambos que me parecem dignas de registro. Carpeaux foi jornalista de profissão, enquanto Merquior cedo ingressou na diplomacia e infelizmente morreu no esplendor de sua vitalidade intelectual. Penso que o mérito supremo do primeiro foi transportar para o Brasil, com sua impressionante erudição, a mais alta tradição intelectual europeia. Num país de tradição similar ainda muito restrita, é difícil avaliar o quanto fez no sentido de familiarizar o leitor brasileiro com uma infinidade de autores e obras fundamentais, alguns até então praticamente desconhecidos no Brasil. Embora tenha produzido antes de tudo para o jornal, deixou duas obras únicas que melhor demonstram o que acabo de indicar. Refiro-me à monumental História da Literatura Ocidental e a Uma Nova História da Música. Quanto a Merquior, chamou a atenção de imediato devido à precocidade com que principiou intervindo no debate cultural e ideológico através de suplementos literários extintos pela revolução tecnológica operada no campo da comunicação com efeitos profundos sobre o sistema cultural.

Carpeaux concentrou sua atividade na literatura. Mas nos anos 1960, dentro de um clima de mudanças sociais sem precedente aquecidas pela radicalização do debate ideológico, ele deslocou o foco da sua militância para a política. Essa tendência acentuou-se ao ponto de se impor de forma quase absoluta depois do golpe militar e da imposição do regime que ele combateu até o fim da vida com coragem admirável e corte polêmico impressionante. Nesse sentido, Merquior tem o perfil mais definido do que com certa liberdade designo como crítico cultural. Embora altamente dotado como crítico literário, sua intervenção pública estendeu-se ao debate cultural compreendido numa escala que entendo mais ampla do que aquela descrita pela trajetória de Carpeaux.

Merquior foi dos raros que entre as décadas de 1970 e 1980 evoluíram da esquerda, num clima em que o termo se revestia de muita rigidez, dada a polarização ideológica imposta pela ditadura militar, para o liberalismo. Isso era anátema na atmosfera ideológica da época. De resto, a resistência ao liberalismo nos círculos intelectuais brasileiros, sobretudo nos acadêmicos, parece-me ainda muito grande. É um sintoma, presumo, do circuito restrito de nossa tradição democrática, dentro e fora do ambiente intelectual. Isso explica em parte o silêncio ou indiferença diante da sua obra, mesmo aquela que em princípio deveria ser do interesse obrigatório dos intelectuais acadêmicos. É o caso, especifico, do seu livro duramente crítico contra Foucault, autor que é ainda referência obrigatória na academia. Como é frequente, estudam-no, como a outros autores da moda, ignorando a contribuição de procedência nacional, sobretudo quando o autor em questão, como é o caso de Merquior, não é membro de nenhuma instituição universitária.

Polemista afiado e independente, Merquior atacou o estruturalismo no auge da moda, quando os intelectuais acadêmicos seguiam a moda, como de hábito, com a subserviência costumeira em país de cultura periférica. Atacou ainda as vanguardas, quando elas, não obstante em declínio progressivo, gozavam de tremendo prestígio, que ia da redescoberta de Oswald de Andrade e da antropofagia à tropicália, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos à revista Vozes de Cultura, que nos anos 1970 abrigou vanguardismos de todos os timbres e vozes. Atacou ainda a psicanálise, que sobrevive no Brasil, dentro e fora da academia, enquanto sua visibilidade decai no horizonte intelectual de países como a Inglaterra e os Estados Unidos. Até na França, onde a releitura psicanalítica de Lacan impôs sua hegemonia irradiando para países como o Brasil, até lá os ataques à psicanálise e a Lacan são crescentes. Mas este é um assunto que me prometo considerar num outro artigo.

Importa ainda anotar a crítica persistente de Merquior ao marxismo. Este é um dos mais exemplares capítulos da nossa história das ideias mais recente. Digo-o exemplar ao considerar que a polêmica por ele desfechada concentrou-se antes de tudo na forma de um diálogo tenso e democrático com seus amigos Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. A maior evidência do caráter exemplar, bem raro no Brasil, dessa polêmica pautada pela nobreza da tolerância crítica, do conflito sempre conduzido em termos democráticos, consiste na permanência da amizade que ligou Merquior a Konder e Coutinho até o fim da vida. Estes, por sua vez, assim como Luiz Sérgio Henriques e Gildo Marçal Brandão, para ficar na menção a um determinado grupo de marxistas, também mudaram em direção nitidamente orientada para a revisão do sentido da democracia dentro da nossa tradição marxista.

Por fim, ressaltaria que Carpeaux e Merquior realizaram sua obra infelizmente tão desprezada pela academia refinando um estilo de exposição de ideias que timbrava pela profundidade sem prejuízo da limpidez e elegância da forma. Assim procedendo, atuaram como mediadores esclarecidos e esclarecedores entre a obra e o público. Do Brasil à França, da Inglaterra aos Estados Unidos, essa admirável tradição do intelectual público parece esgotada depois que a cultura letrada refugiou-se em nichos acadêmicos ou se acasalou com a grande mídia com o olho e as ideias visando antes o mercado do que a expressão pública da cultura. Também os marxistas acima citados, mesmo quando vinculados à academia, cuidaram de preservar a clareza na exposição das ideais.

Quanto à academia, dela procede Antonio Candido, nosso crítico literário insuperável. Embora suas ideias e docência tenham produzido uma leva de críticos de alta qualidade, sua obra não se disseminou como padrão de estilo expositivo na academia. Mencionando um único exemplo, o da sociologia, até porque a obra de Antonio Candido se sustenta sobre essas duas sólidas vigas, a literatura e a sociologia, o estilo que triunfou impondo-se portanto como padrão foi o de Florestan Fernandes e outros cientistas de mérito inegável, mas escritores de categoria apenas medíocre. O pior é a enxurrada de iletrados letrados, o paradoxo é intencional, produzida em massa pelos programas de pós-graduação. Esses escrevem regidos pelo princípio do método obscuro, que impressiona na mesma proporção em que mascara a pobreza ou banalidade das ideias.Obediente à última moda intelectual importada dos EUA ou da Europa, concluo.

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