Mostrando postagens com marcador Velhice. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Velhice. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A velhice II


Os sintomas da velhice
São tantos que os desconheço
Por isso nunca te disse
Verdades que não mereço.

São tantas as suas dores
Tão vários os seus achaques
Que há quem em meio aos tremores
Não lhe resista aos ataques

De febre, temor, fraqueza.
Reumatismo e dor nas juntas
Torpor e vaga tristeza
Embrulham duras perguntas

Que a doença da idade
Espeta no corpo velho
E a crua realidade
Enquadra na luz do espelho.

Por isso agora me sento
Ora na cama, na rede
E quando não mais me aguento
Mato com vinho essa sede

De vida que me percorre
O corpo já fatigado
E se o desejo me corre
O corpo cai derreado.

Que bom chegar aos noventa
Assim como já me sinto
Sabendo que o corpo aguenta
Toda mentira que minto.

Um dia serei poeira
Cumprindo o que há muito sei:
Lavrei minha vida inteira
Pra merecer esse velho
Que a meu modo serei.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A Velhice


Se o espírito ri, o corpo chora
Se o corpo deplora, o espírito canta.
A velhice os opõe a cada hora
Que a vida consome e o tempo espanta.

Se o tempo esgota a juventude
Que é volátil e cessa ao fim do dia
O espírito ágil ainda se ilude
Vertendo o peso e a noite em vã poesia.

A noite um dia afinal desceu
Cravando a dor no corpo combalido.
O espírito lutou e até bebeu
O pó que exalta o corpo envelhecido.

Que força opor ao que é fatalidade
Se a carne passa e o tempo é imperativo?
O velho chega ao cabo da idade
Sem mais em si saber se é morto ou vivo.

E entanto ainda luta contra o tempo
Contra tudo que mina sua sorte
Passando enquanto o eco e a voz do vento
Transportam na passagem sua morte.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Aforismos e desaforos VII


O único passado feliz é o que nunca existiu.
Por que atormentar-se com o futuro, se nem a Deus ele pertence? Como ser proprietário do que não é?
Quando o futuro é, é já presente. Logo, o futuro nunca é.
O Brasil é ruim, mas o Nordeste é muito pior.
O Brasil não existe nem deveria ser inventado.
O povo que elege Lula, vulgo Mula Nine Fingers, o presidente mais popular da nossa história política, merece o país que somos.
Nunca subestimo a classe dirigente brasileira: ela é sempre capaz de ir além de minhas piores previsões.
A justiça é cega, mas no Brasil ela sabe perfeitamente o que quer ver.
Há mulher capaz de qualquer tipo de coisa para ter um homem, inclusive o homem de qualquer tipo.
Como levar a sério um país que tem 32 partidos políticos? Isso não é pluralismo democrático, mas circo ideológico.
Sempre que se pronuncia sobre a economia brasileira, o ministro Guido Mantega confunde manteiga com margarina. Vai ver que a culpa é do sobrenome.
O suicida malogrado não quer morrer, quer apenas chamar a atenção de alguém que o ajude a suportar a dor de viver.
Só há uma solução para quem quer viver sem sofrer: o suicídio.
Para Manuel Bandeira, materialista místico, o que estraga o amor é a alma. E coerentemente nos aconselha: deixe que o seu corpo se entenda com outro corpo. Quando no entanto o corpo é já velho, não será razoável, senão necessário, amar além do corpo, ainda que aquém da alma? As almas são incomunicáveis, diz ainda o poeta. Mas os corpos se fartam corroídos pelo tempo e a rotina. Esta é uma lei fatal da matéria que a cultura do presente, desvairada pelo hedonismo, não quer admitir nem na cama dos amantes já velhos.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Anovelhoariando


Leio nesses olhares ávidos de triunfo a expectativa da confirmação de uma verdade evidente e indisfarçável. Portanto, o que me resta é reconhecer o meu crime: sou velho, sim. Melhor dizendo, tornei-me velho. Mas estejam certos, vocês que vieram depois de mim, vocês também chegarão lá, ou aqui. Meu consolo é refugiar-me na linguagem publicitária do nosso tempo. Sendo assim, não sou nem me tornei velho, sou apenas um membro tardio e descuidado da terceira idade. Aliás, a única terceira do meu tempo era a terceira via, expressão com que se procurava tornar palatável a abominável socialdemocracia. Se tentasse ainda melhor sugerir os abismos que se cavaram entre gerações vizinhas, entre tempos que em eras remotas eram vividos como uniformes, ou quase inalteráveis, anotaria distinções do tipo das que seguem:
Sou do tempo em que sexo era pecado.
Sou do tempo em que cachorro era cachorro e gente era gente.
Virgindade era virtude. Perdê-la era perder-se, mancha indelével de desonra. Refiro-me evidentemente à virgindade feminina.
O Brasil parecia ter jeito, ou pelo menos a gente acreditava. Hoje a gente sabe que é insolúvel, mas finge acreditar que ainda dará certo.
Todas as pessoas de bem, ou supostamente de, tinham orgulho de ser de esquerda. Quem não era comunista era com certeza simpatizante ou companheiro de viagem.
Sou do tempo em que meus amigos brigavam por ideias, ainda que tortas e dogmáticas. Hoje brigamos apenas por cargos e escalas de renda e consumo.
Sou do tempo em que Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues eram reacionários e liberalismo era um insulto ideológico. George Orwell era agente do imperialismo americano e Stálin era o grande benfeitor da humanidade. Che Guevara simbolizava um fuzil varrendo a América Latina com múltiplos focos revolucionários. Hoje, como o compram, é um mito romântico domesticado pelo consumo que o converteu em pura dureza enternecida. Vestir o mito de Che tornou-se tão inofensivo quanto beber Coca-cola.
Sou do tempo em que acadêmicos de esquerda iam fazer pós-graduação nos EUA e retornavam a suas universidades de origem para dissertar sobre paradigma histórico-estrutural com ares de quem estivesse fermentando uma revolução comunista nos minúsculos círculos elitistas da pós-degradação que se tornou uma fábrica de diplomas para doutores iletrados.
Sou do tempo em que pessoas de direita mascaravam seu direitismo alegando ser de esquerda. Com a derrocada fragorosa dos regimes supostamente comunistas, somada à ascensão da esquerda em países do tipo do Brasil, esquerda e direita foram ficando semelhantes ao ponto de em termos práticos se confundirem. Sendo assim, não é de espantar que esquerdistas se orgulhem agora de ser de direita e direitistas se orgulhem de ser de direita. Enfim, parece que agora todos chegaram ao consenso tardio de que a realidade é de direita. Digo isso porque Freud – também eu, imodestamente – há muito sabia disso, fato que de resto não o torna necessariamente de direita. A propósito, quem sabe mesmo o que é ser de direita ou de esquerda?
A classe média ouvia bossa nova, Chico e Caetano, Edu Lobo e Gilberto Gil. Por isso olhava de cima, com patente desprezo, para bregas e bolerões como Waldick Soriano e Benito de Paula. Hoje, pasmem, Waldick, Benito e Ivete Seugalo são clássicos da MPB.
Filme de arte era atestado de identidade intelectual e ideológica. A gente morria de tédio, mas o tédio pagava os créditos do reconhecimento, nosso orgulho mimético de pertencer a uma casta privilegiada.
Nosso sonho de uma sociedade sexualmente liberada, fundada na livre escolha do sexo e do prazer, deu nisso que hoje vemos: sexo tornou-se a mercadoria mais universal e barata do capitalismo de consumo.
Sou do tempo em que havia barulho no ar, nossa cultura foi sempre ruidosa, mas em algum remoto lugar era ainda possível captar no silêncio miraculoso da madrugada as ondas sutis de um acorde dissonante. Hoje, até dentro de minha casa, último e vulnerável reduto de minha liberdade, sou forçado a ouvir tudo que rejeito e odeio: o vendedor de gás, o traficante de cd pirata, o alarme dos carros, a febre trepidante da construção civil, o buzinaço dos torcedores de futebol eufóricos e toda a boçalidade repetitiva que designam como música popular contemporânea. A tortura mais inescapável e corrente do nosso tempo é a auditiva. Isso explica o paradoxo seguinte: num país orgulhoso de ser tão musical, bem poucos fazem e ouvem música. Ninguém precisa da idiossincrasia de João Gilberto, nem do recolhimento dos monges, para constatar o quanto fomos privados da liberdade de ouvir o silêncio.
Fumar era um ato de ingresso e afirmação dentro do mundo adulto. Era sobretudo sedutor e por trás da névoa de fumo a gente dissimulava a timidez e insegurança diante da mulher desejada. Hoje o fumante é o equivalente do comunista na década de 1970.
Ah, o cinema ia morrer. Somente o livro, na crônica dos vaticínios catastróficos, teve e tem fôlego de sete gatos para morrer e ressuscitar mais que o cinema.
Como veem, sou velho. Sou tão velho que nasci num outro século, num tempo em que palavrão era palavrão. Hoje é apenas refrão do vocabulário infantil.
Sou do tempo em que todo mundo era contra o mercado, tinha horror ao mercado. O mercado que reconhecíamos, e amávamos com tinturas de lírico esquerdismo populista, era o mercado popular com sua sujeira, seu tradicionalismo insalubre, sua inércia mercantil. Shopping, invenção posterior agora convertida em templo do consumo, shopping era apenas chope.
Sou de tempo em que honestidade era virtude. Meu pai, já falido, vendeu os cacos sobrantes para pagar a seus credores, não para antes investir num outro meio de vida. Bem, acho que ele confundiu honestidade com imprevidência. A prova é que durante anos vivemos apertados pela pobreza. Subi tanto, pasmem novamente, que hoje até pareço rico.
Sou do tempo em que havia apenas um marco teórico: o marxismo. Os outros estavam condenados ao paredão da justiça pós-graduada. O mundo deu voltas tão alucinantes que até eu fui elevado à gloriosa categoria de marco teórico. O autor desta façanha, provável candidato ao Bobel das Ciências Humanas, é meu delirante amigo Flávio Brayner.
Por volta de 1915, Lytton Strachey, constrangido, declarava-se um velho à sua jovem amada Carrington. Tinha então 36 anos. Pouco mais tarde, aí por 1942, Drummond gravou este verso num poema: “há muito pressenti o velho em mim”. Tinha 40 anos. Não recuo ao século XIX porque então as diferenças eram ainda mais extremas. Basta lembrar que as pessoas já nasciam velhas. De lá para cá, sobretudo hoje, essas medidas de idade sofreram uma autêntica revolução. Hoje os menores de 15 anos, incluídas as crianças, querem ser adultos apenas para terem acesso a prazeres inacessíveis à criança e ao adolescente. Os adultos, maduros e velhos (perdão, quis dizer terceira idade) querem apenas ser adultescentes, isto é, aduladores dos delinquentes. No futuro, não muito remoto, a cultura narcisista abolirá a velhice e a morte e então seremos todos eternos. Aviso que já sou.
Nossa identidade é uma costura consistente de muitas máscaras não porque queremos ser hipócritas ou mentirosos, mas porque precisamos dissimular para conviver e ser aceitos, medida necessária de nossa própria aceitação. Não obstante toda a reivindicação de transparência e verdade que inscrevemos no cerne de nossos ideais éticos, a nua transparência do que somos constitui uma verdade intolerável para as convenções que regem o funcionamento do mundo. Eliot assinala num dos Four Quartets o quanto é limitada nossa medida de tolerância da verdade. Se igualmente pouco toleramos a mentira nua e crua, como então determinar a medida do que somos e fingimos?
Pensando melhor, não fui eu que envelheci, foi o tempo que se apressou. Mais que pressa, há nele uma progressiva aceleração que se manifesta no espaço e dentro de nossa medida subjetiva. Um dia deixarei de ser um nome para me tornar gerúndio: um tempo sempre sendo. Um dia inventarão a parada móvel, o sono acordado, o presenteando: presente sempre em processo. Um dia, carente de identidade, um dia sonhei ser eu. Sei agora que ser é sempre ser outro. O outro é nosso incerto destino.
Espanta-me ainda toda a cantilena que desenhamos em nome da felicidade. Dela falamos sempre e desejosos a evocamos como se ser feliz fosse um fim, quando não é sequer uma possibilidade. A felicidade é apenas um delírio obsessivo que inventamos, pois seres feitos de nossa insensata matéria não podem nunca alcançá-la. Os afortunados, poucos mas reais, poucos mas empiricamente assinaláveis, provam-na enquanto estado, enquanto deleitação momentânea, não enquanto expressão de permanência. Se fôssemos capazes de ajustar a medida do que desejamos à medida do que efetivamente somos, regularíamos nossos desejos e fantasias imantados na medida da felicidade momentânea. Noutras palavras, não estamos no mundo para ser felizes.
Uma das mais graves e difundidas moléstias do nosso tempo é a compulsão de ostentar felicidade e otimismo. Pessoas visivelmente infelizes falam de si próprias como se fossem clipes publicitários ambulantes. O cúmulo dessa estranha forma de alienação é o slogan “sem medo de ser feliz”. Se bem o entendo, ele sugere que a única razão de nossa infelicidade radica no medo que sofremos de conquistá-la.
A mulher? Sei que é a grande ausência aparente deste delírio em que racionalmente me meço e me repasso. Como falar da mulher num texto em que ironicamente me cotejo no tempo neste acentuando as linhas indisfarçáveis de sua passagem e ação? Se de algum modo somos vítimas do tempo, ninguém o é mais que a mulher. Daí tantas vezes lembrar a amigos, em nossa correspondência mais íntima e livre, as formas mais cruéis de manifestação da mãe natura. A mulher não se espelha nas linhas deste discurso porque temo de algum modo feri-la aludindo aos estragos que o tempo risca sobre sua pele, sobre sua inefável beleza que é objeto de meu culto mais lírico e secreto. É preciso que num homem se combinem a privação de uma mãe e a fatalidade da poesia antes vivida que realizada para que bem se compreenda a razão do meu objeto de culto. A mulher é tudo e tudo é apenas a mulher. Por que então precisaria eu iluminá-la nas linhas tortas de minha noturna e encantada navegação?
Mas acreditem: meu tempo é hoje, como na canção de Paulinho da Viola.
A música é a arte do tempo. No entanto, sou eu que passo. Ela fica. Até os gênios da música passam, pois são matéria humana como eu. O que fica é a música que os imortaliza.
Em suma, sou culpado do crime de ser velho, pois somente um velho evocaria no dia do seu aniversário tanto passado ido, irreversível e consumado. Fugindo ainda e sempre das convenções sociais que me oprimem, vivo o dia do meu aniversário como se fosse um segredo, um pacto de sangue entre mim e minha solidão. Ou ainda um pacto somente comunicado a dois ou três amigos. Mas eles próprios já o esqueceram, pois a memória humana é compreensivelmente curta e logo apaga o que não importa. Por que não admitir que no fundo o aniversário importa apenas para o aniversariante? Parabéns pra vocês.

03 de outubro de 2012.


segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Deus me livre de ser mulher II


Contei meio conto, agora a outra metade. Emendando associação de ideias, que é quase sempre meu modo de compor um texto, pois me falta disciplina e método para esboçar sequer um roteiro de composição, o andamento pré-traçado de um argumento, uma tese, uma demonstração organicamente estruturada, começo atando a segunda metade do meu conto à fantasia feminina da outra metade amorosa. Quantas vezes não ouvi, quantas vezes não li a expressão impensada dessa fantasia: a busca da outra metade? As mulheres a repetem como repetem outras fantasias amorosas que resistem inabaláveis às impossibilidades objetivas de realização de fantasias tão insensatas. Se se detivessem para refletir um minuto, logo constatariam que a fantasia da outra metade é apenas um sintoma narcisista. A outra metade é uma fantasia especular: a imagem do outro me refletindo no espelho. Noutras palavras, o ideal do amor seria encontrar fora de mim o outro que me reflete, o outro que completa minha metade cindida.

Penso precisamente o contrário dessa fantasia narcisista. Penso que o amor, o amor adulto que eu pelo menos procuro, se realiza na dimensão da diferença complementar, do outro que nunca será meu eu. É por isso que dele preciso, que, quando o tive, ele ampliou minha vida, enriqueceu-a com expressões de ser que me faltavam, que não sou e não posso ser. O outro que amo é minha diferença e meu igual, alguém que nunca poderia ser o que sou nem quero que seja. Se amasse o outro para ser minha outra metade, minha fração especular, então estaria procurando a mim próprio. Por isso afirmei que essa fantasia da outra metade é uma fantasia narcisista. Ora, a grande singularidade do amor, e aí reside sua fonte de generosidade e entrega ao outro, consiste na experiência de sair de si, de se desatar da tirania da nossa força egocêntrica.

Depois de tudo, depois do século da mulher, como antes observei citando Eric Hobsbawm, muita coisa deu e continua dando errado. A mulher conquistou a liberdade num grau sem precedente histórico, mas as relações entre gêneros, as relações de amor e família entraram em curto-circuito. O amor romântico, que passou a reger a consumação e duração dos casamentos e da constituição da família, vaza água por todas as juntas, inunda nossos desejos e fantasias mais profundos. Se fosse sociólogo, mobilizaria dados empíricos, acessíveis a qualquer pessoa letrada no site do IBGE, antes de tudo na nossa experiência refletida, para comprovar o que todos sabem, ainda quando não o queiram saber: o amor romântico está na UTI (O Teu Inferno, de acordo com minha tradução) das relações amorosas.

O amor romântico, que tem atrás de si uma história de séculos, segrega contradições insolúveis entre o que contém de fantasia amorosa e o teste da realidade, que tem sempre a última palavra. Para começar, ele consiste na idealização do outro amado. Não há idealização que resista à prova da intimidade e da rotina. Como disse alguém, nenhum homem é grande para seu criado de quarto. Traduzo mal, e de memória, mas sei que quem me lê entende perfeitamente o que quero dizer. A intimidade é demasiado reveladora para encobrir nossas idealizações. Viver sob o mesmo teto, compartilhar o mesmo cotidiano, a mesma cama, os mesmos odores, rotinas e reações em face da realidade é o modo mais banal e infalível de ver o outro como ele é, na medida em que ele se revela. Se não o vemos nessa medida aferível pela experiência, é porque nossas fantasias, nossa necessidade de ilusão é mais poderosa do que a força dos fatos que a todo momento nos dizem: ele é apenas humano e falível, apenas um homem, apenas uma mulher. Mas o amor romântico se lixa para essas evidências comezinhas da vida conjugada, do cotidiano doméstico, da família despida de romantização. O amor romântico precisa acreditar que o céu é sempre azul, que a vida é sempre bela, que o amor é sempre magia.

A realidade – ou o princípio de realidade, como repisava o estoico do charuto ao pé do divã – a realidade desmente todas essas nossas fantasias. No fim, sabem os iludidos mais renitentes, no fim é sempre ela quem triunfa. O amor se esfarela, o casamento se desmancha e cada um volta para sua solidão e endereço. Acaso insinuo, como um analista sadicamente negativo, que não há solução, que precisamos sempre sofrer essa via crucis? Bem pelo contrário, acho que a gente precisa mudar de disposição amorosa, reinventar o amor, ajustá-lo a uma medida humana mais realista. A leitora romântica certamente retrucará observando que o amor é sempre assim, assim romântico como ela o figura e compreende. Para ela o amor é um dado inalterável da natureza. Não, minha iludida leitora. O amor humano muda, como quase tudo que é humano muda, pelo menos nas formas sancionadas pelo costume, pelas formas históricas de organização da sociedade. Bem ao contrário do que espontaneamente imaginamos, durante a maior parte da história do Ocidente o amor e o casamento obedeceram a interesses inteiramente alheios à realização amorosa tal como idealizada pelo movimento romântico, obra de circunstâncias históricas apreensíveis por quem se disponha a estudá-lo, pesquisá-lo e interpretá-lo nas suas características distintivas.

Chego a este ponto e me detenho para avaliar espantado o estrago que acabo de causar. Ia desdobrar meu argumento visando justificar por que não quero ser mulher e todavia vejam onde acabei. Peguei o atalho do amor romântico, empurrado por uma arbitrária associação de ideias (relembrando: a metade do meu conto e a metade romântica sonhada pela mulher) e a essa altura nem eu sei mais onde estou, ou estava. Como precisamos sempre invocar alguma causa nobre ou suprema para justificar nossas imperfeições e erros, invoco Montaigne, meu herói filosófico e literário. Quem o leu com alguma atenção sabe que ele usa e abusa desse tipo de procedimento na composição dos seus ensaios. Quero dizer, promete falar sobre determinado assunto, por vezes já enunciado no título do ensaio, e logo deriva para outra matéria: entra por um beco, percorre uma vereda, atravessa uma ponte e quando damos por ele está nos revelando verdades insuspeitadas e imprevisíveis. Longe de mim presumir que a leitora conclua que me comparo a Montaigne. Afinal, se há em mim um orgulho que confesso à vontade, é o orgulho da humildade. Portanto, comparo-me a Montaigne tão-só em termos de forma de composição do texto ou argumento, não de valor. Afinal, interroga-se perplexo o narciso de TV, quem é Montaigne para se comparar comigo?

Retomo meu refrão: Deus me livre de ser mulher! Querem ainda razões que me justifiquem ou desgracem diante do olhar sombrio da leitora que teima ainda em descobrir aonde quero chegar? Pois invoco agora o argumento que me parece mais poderoso e por isso é talvez a fonte maior da infelicidade e da angústia feminina. Invoco a crueldade da mãe natura. Invoco-a para aludir mais precisamente ao corpo, ao lugar do corpo na nossa vida, à centralidade do corpo que por isso se projeta indomável na vaidade feminina, no seu senso de identidade e autoestima, no porte arrogante ou humilhado com que se move nas ruas, praias, festas, badalações, shoppping, no grande cenário do narcisismo de espetáculo em que foi convertido o mundo em que vivemos.

O corpo é nossa fração do ser mais falível, a mais vulnerável aos humores e movimentos mutáveis da nossa subjetividade. Isso é patente até no corpo de uma mulher linda e jovem. Basta-lhe uma noite de insônia, uma farra mal curada, um vinco de depressão ou desânimo e logo essas rachaduras do ser repontam no corpo. Se é assim quando somos jovens, o que dizer quando já ultrapassamos a fronteira da idade confessável, da idade que recobrimos com os disfarces que nos tornam ou semelham tornar-nos, não raro ao custo de um ridículo que a vaidade cega se recusa a admitir, aquilo que já não somos? Apesar de todos os avanços maravilhosos da ciência posta a serviço da beleza, do prolongamento da juventude, apesar da indústria do cosmético, dos muitos adornos e falsas fachadas, a rigidez e vitalidade da carne são parte da nossa natureza mais falível.

É aí que as mulheres são mais vulneráveis e com certeza sofrem mais que os homens. Estes, que evidentemente não passam impunes por essas mutações, continuam levando vantagens patentes sobre a mulher. Bastaria considerar a fragilidade do amor romântico, o amor que, como acima assinalei, está vazando água por todos os furos e juntas. Como rege ainda de forma imperativa o amor e o casamento, estes duram na medida em que ele é. Para a mulher isso parece ser condição inegociável. Os homens, escolados em milênios de dominação, além de dotados de uma força libidinal que se ramifica por muitas vias de gratificação (a política, o poder, o sucesso profissional, os esportes, as artes e o cultivo das práticas intelectuais...), raramente elegem o amor romântico como fundamento dos seus vínculos amorosos, mais exatamente do casamento e constituição da família.

Duvido que esta regra se aplique à mulher. Conheço mulheres inteligentes, cultivadas, com trunfos de sucesso profissional invejável etc. Nunca nenhuma me disse que isso lhe bastava, que se sentia realizada por alcançar essas formas de afirmação social e triunfo tão caras ao homem. O que sempre me dizem é: quero ser feliz no amor, quero ter filhos com o homem que amo e coisas parecidas. Por isso provavelmente a atmosfera confusa do amor contemporâneo, os abalos que sacodem a família, diretamente associados ao fenômeno precedente, atingem mais dolorosamente a mulher. Não bastasse tanto, ela envelhece (perdão, nesse mundo de eufemismo dissimulador da realidade não convém usar expressão tão ofensiva; digamos terceira idade, ou até boa idade, deixo a expressão ao gosto de quem mais queira ou não iludir-se) mais solitária ou mais privada de amor, de oportunidades amorosas do que o homem.

Quantos homens, já idosos e não raro barrigudos e carecas não se acasalam com uma mulher jovem no dia seguinte à separação da mulher mais velha que já não querem? Pior, mas não incomum, é descobrir que a causa da separação foi a opção inconfessada do homem pela mulher mais jovem e bela. Tenho amigas, além de conhecer outro tanto, que nunca mais voltaram a casar, a ter um homem permanente depois da separação conjugal. Mas se olhamos à volta, se deitamos o olhar sobre a paisagem onde transitam os homens maduros e idosos – barrigudos ou não, carecas ou não, feios ou bonitos – vemos quase sempre uma mulher jovem e bonita enlaçando seu braço, quando não mimando-o com modos servis. Portanto, apesar de reconhecer e louvar tudo que de admirável a mulher conquistou, concluo repisando meu irritante refrão: Deus me livre de ser mulher!
Recife, 3 de agosto de 2012.

domingo, 8 de julho de 2012

Pai e Filho


Fazia anos que se balançava quietamente na cadeira de balanço. Os vizinhos vinham ocasionalmente à varanda e logo deparavam aquele velho silencioso e solitário balançando-se na cadeira diante da televisão: para lá, para cá. Assim, sem variação significativa, assim ele se balançava quietamente, assim balançava na cadeira sua velhice sem acontecimentos. O velhinho silencioso tornou-se assim parte inconsciente da paisagem apreensível através da cadeia de varandas acotoveladas nos condomínios onde se empilhavam seres incomunicáveis, náufragos resignados dentro de suas ilhas.
Embora fitasse a televisão, pouco se dava conta do fluxo de imagens que se desdobrava infinitamente diante dos seus olhos apertados, as retinas já fatigadas de ver um mundo que pouco o atraía e menos ainda compreendia. Era de um outro tempo, de um tempo que agora lhe parecia muito distante, embora a memória o assombrasse com imagens, gente, paisagens cada vez mais nítidas. Sentia-se como se o presente palpável, restrito à sala deserta e ao fluxo de imagens e sons da televisão, fosse cada vez mais remoto. Este recuava, não obstante ruidoso e presente, enquanto o outro, o passado acumulado na memória, era cada vez mais presente.
Lembrou-se do filho, o único que lhe restou sem que de fato o tivesse, pois que foi embora, como tudo que importava na sua vida. Em muitos sentidos, o filho tornou-se seu avesso, seu outro tão refeito pela experiência e negações deliberadas que se foi dele desgarrando, gradualmente apagando do seu caráter as marcas mais profundas que sobre ele imprimira. A semelhança física entre um e outro era notável, também muitas disposições temperamentais que o filho, não sabia por que, foi modulando, transfigurando, forjando na matéria herdada um outro modo de homem cada vez mais distanciado do pai.
O filho tornou-se assim muito do que não era, também muito do que gostaria de ser, do que talvez tivesse sido, fosse outro o mundo em que cresceu, outros os acasos, circunstâncias, oportunidades... Era homem do Brasil rural, de um Brasil onde poucos tinham acesso àquilo que seu filho tenazmente conquistou: estudos refinados, viagens e contatos renovadores com a alta cultura letrada de procedência europeia. Seu sonho era ver o filho doutor. Doutor, no seu entender e aspiração, era doutor em direito. O filho, talvez cedendo ao peso opressivo da herança de sangue e desejo, chegou mesmo a esboçar a realização do sonho nutrido pelo pai. Ingressou no curso de direito, mas logo desistiu. Daí errou através de confusos corredores acadêmicos, errou ainda mais na vida, e afinal encontrou algo de si, do que lá nele mais fundo ele era, e se fez intelectual impregnando-se de literatura, filosofia, outros saberes impermeáveis à compreensão pedestre do pai.
Lembrou-se do filho com um desejo tão urgente, tão carente de povoar a sala vazia, o balanço invariável da cadeira de balanço, que por pouco o viu diante de si, ocupando o espaço vazio entre a sala e a varanda com sua altura descomunal. O filho era alto, bem mais alto que ele, e agora lhe parecia imenso diante da sua velhice encolhida dentro do corpo solitário, dentro do apartamento vazio. Sentiu uma dor sem nome, uma solidão irreparável. Como seria bom tê-lo ali a seu lado, ouvi-lo novamente lendo passagens da Bíblia que o reconfortavam. Sabia que o filho também se distanciara de Deus. Mas gostava de ler a Bíblia para o pai já cansado, sem ânimo mental ou disciplina de leitura para abismar-se nos evangelhos, na palavra de Deus por conta e risco próprios.
Quantas noites o filho não se inclinou bondosamente sobre ele derramando no desamparo da sua velhice a palavra de Deus que para ele, o filho, não existia? O volume restara silencioso e empoeirado sobre a prateleira da sala. Um livro sem leitor, pensava, era como uma casa sem dono. Por vezes, evocando a palavra divina vertida pela fala do filho, que lia com inflexões e pausas apaziguadoras, quase mergulhava num cochilo quieto, um limbo entre a vigília e o sono. A voz do filho, comunicando-lhe o verbo divino, era música para sua velhice, era o refúgio dentro do qual se reconciliava com o mundo. Tudo que verdadeiramente lhe sobrava era o filho. Mas um dia ele também foi embora. Restou-lhe apenas a televisão ligada, tantas vezes sem som, tantas vezes mero fluxo de imagens cegas, pois ele em nada se reconhece. Se algo dá sentido a seu presente solitário, a seu presente vazio, é o mundo da memória ritmando os movimentos do corpo fatigado sobre a cadeira de balanço.
Major Gomes. Ele sorriu quietamente enquanto uma lágrima escorria silenciosa pela face enrugada. O filho inventou um dia, já não lembrava quando nem por que, de chamá-lo Major Gomes. Major Gomes isso, major Gomes aquilo e assim por tudo e por nada o filho habituou-se a chamá-lo major Gomes. Era um modo carinhoso e íntimo de tratamento, embora paradoxalmente evocasse uma patente militar, valores e práticas de vida absolutamente estranhos a ambos, que eram homens avessos à hierarquia e à violência associadas à profissão militar. Daí a estranheza do apelativo íntimo e carinhoso. Por que major Gomes? Parafusava a memória até que por fim se resignava ao puro eco da voz do filho vindo de longe, mas tão nítido, tão carregado de gradações afetuosas, risonhas, tão o sopro infantil das brincadeiras que entre si tramavam alheios ao hiato entre o pai e o filho, entre a patente militar e a expressão de amor compartilhada por dois homens bondosos e delicados.
Estoico. O que queria dizer? Balançou a cabeça desanimado, o pensamento confuso entre a ignorância do sentido suposto na palavra e a memória nítida vibrando aqueles sons que se somavam para perfazerem a palavra inequívoca: estoico. Sim, era isso o que ele dizia. Um dia interrompeu o filho mergulhado nas suas leituras habituais. Acercou-se timidamente, pois era tímido até para perturbar o recolhimento do próprio filho, e lhe perguntou o que lia. Na verdade, a pergunta era irrelevante, apenas um pretexto para chamar a atenção do filho; um pedido, quase uma súplica abafada. Como se dissesse: meu filho, converse comigo, pois estou doente de velhice e solidão e agora tenho medo dessas sombras vindas do passado.
O filho se volta para ele: Major Gomes. Sorriem como iguais, como eu espelhado no outro, mas um outro que é o mesmo, tão profundas eram as semelhanças enraizadas sob a superfície que os dividia: a idade, a cultura, modos irredutíveis de experiência e perspectiva dentro do mundo que os aproximava e dividia. Major Gomes, repete o filho e novamente sua presença consoladora avoluma-se na memória do velho. O que você está lendo? Lia um livro de filosofia e naquele preciso momento lutava para compreender a noção filosófica do tempo adotada pelos estoicos. Estoico... os sons voltam a vibrar na memória e ele sorri tristemente ignorante. Mas o que importa na memória que agora o reanima não é a ignorância do que seja estoico, do que seja o tempo para o estoico; o que importa é a presença do filho povoando a sala vazia, injetando ânimo ao movimento rangente da cadeira de balanço.
Recife, 3 de abril 2012.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Idade e finitude



Uma das ilusões de minha juventude era supor que a velhice implica sabedoria, uma serena aceitação da vida e do envelhecimento gradual e inevitável. Leio gente como Drummond, Philip Roth, Caetano Veloso e outros dizerem o contrário. Mesmo os que envelhecem alegremente, com vitalidade invejável, como é o caso de Caetano, não relutam em reconhecer que a velhice traz sempre limitações indesejáveis, quando não dolorosas, para quem a vive. O espelho, e antes de tudo o próprio corpo, emitem progressivos sinais indicativos da nossa perda de vitalidade. Portanto, ninguém precisa ser um Narciso deslumbrado ante a própria imagem no espelho das águas mutáveis para sentir os crescentes abalos da idade.

Espero envelhecer como Daniel Lima, o mais admirável exemplo que conheci de velhice alegre e plena de energia. Daniel envelheceu com tanta juventude espiritual que nunca consegui vê-lo como um velho. No entanto, ouvi-o muitas vezes deplorar a perda irreversível de vitalidade. Se não se queixava mais abertamente, era provavelmente por fidelidade, não sei até que grau efetivamente assimilada, à sua convicção católica nas virtudes da idade. Afinal, não é à toa que é padre, condição que, somada aos anos de formação em seminário, identificou-se com sua própria vida e visão de mundo. Como Alceu Amoroso Lima, católico ainda mais consistente e convicto que ele, acreditava que a idade e a experiência nos trazem alguma sabedoria, uma maior capacidade de aceitação da vida.
Será que alguma sabedoria advirá de minha velhice? Confesso que hoje considero isso muito duvidoso. O que já sei, e me parece saudável, é que a idade implica uma consciência transformadora da noção que tenho dos limites de minha vida. Melhor dizendo, de minha finitude. Quando jovem, não tinha consciência do quanto sou finito, do quanto minha vida está fatalmente orientada para a minha morte. Por isso tanto me desperdicei, tanto gastei de mim na companhia de gente sem importância, vivendo coisas irrelevantes, que nada importaram para a minha vida. Quantas vezes não errei embriagado em madrugadas sem rumo, oprimido pela solidão da carne, caçando mulheres que nada representavam para mim? O que nelas via e buscava era o gozo momentâneo e fugaz do corpo, a sede do sexo enquanto puro sexo, sem prolongamento ou conexão de qualquer outra natureza. Durante um tempo mais ou menos prolongado, sentia necessidade compulsiva de beber nos fins de semana, ir sempre para os bares e cenários de badalação noturna. Conheci muita gente cujos nomes ignorava. Bebia com essa gente e me enredava num círculo promíscuo sem aderência ou real envolvimento do indivíduo que eu era. Estas são algumas das consequências negativas da inconsciência da idade, da inconsciência de nossa natureza finita.

Hoje sei palpavelmente que minha vida é finita. Sei hoje que vivo para morrer, que em algum momento futuro tudo que sou e sinto e penso se dissolverá em poeira. Dust stardust, nonada. Digo-o isento de angústia, a salvo dos tormentos que oprimem os incapazes de sequer encararem o fato meridiano e incontornável de seu envelhecimento, de sua finitude. Mas não identifico nisso nenhuma bravura, nenhuma coragem especial. Na verdade, considero-me um homem fraco, um homem de coragem muito assustada, ou pouco em si própria confiável. Talvez eu me acovarde e vacile, talvez me acanalhe se souber da morte que chega emitindo anúncios de chegada, alertando sua vítima para a fatalidade do momento último. O que sei é que felizmente tenho sido sempre capaz de encarar todos esses fatos e possibilidades isento de angústia, ansiedade, medo antecipado. Isso, no entanto, não quer dizer que terei a coragem de que precisarei no momento decisivo. Reiterando a sábia lição dos estoicos, o único tempo real é o presente. Logo, cuidemos de deixar os males do futuro entregues a seu tempo, até porque não temos como prefigurá-los. Portanto, ceder à ansiedade de temer o que ainda não é é apenas sofrer por antecipação, na linha do presente, o que não existe, ou não existe ainda. Os males que vierem hão de vir sem que precisamente saibamos o que serão, como serão.

Desdobrando ainda as implicações que hoje tenho de minha finitude, diria que ela é positiva na medida em que me fez mais seletivo em quase todos os sentidos significativos de minha vida. Consciente de que vivo para morrer, de que já vivi pelo menos dois terços do que me cabe neste mundo transitório, aprendi a valorizar o sentido do meu tempo. Já não me passa pela cabeça errar pela noite à cata de aventuras sem importância impelido por fantasias insensatas. Faz anos, por exemplo, que me afastei dos bares e festas onde nunca encontrei motivos de real gratificação existencial. Se há muito incomodava-me já o gregarismo ruidoso e inconsequente de nossas celebrações sociais, das festas onde ninguém está com ninguém e ninguém de fato importa para ninguém, hoje tudo isso me sabe simplesmente desinteressante. Diria mais, diria inconcebível.

Também as leituras e muito do que vivo na solidão e rotina de minha casa, também isso se alterou. Infelizmente, ocupo-me ainda com muita coisa que, fosse eu mais estritamente criterioso, deveria afastar de mim. Por vezes solicitações de amigos, até de meros conhecidos, constrangem-me a perder tempo com coisas que livremente evitaria. Mas aí entra uma inevitável cota de negociação com a vida, com limites de convivência praticamente imperativos. Ou aceitamos esses limites e constrangimentos da vida convivida, ou então nos internamos em algum deserto impraticável. O que sei, em resumo, é que aprendi a governar melhor minha vida e meu tempo depois que assimilei a consciência de minha finitude. Espero ainda, em algum passo improvável do futuro, libertar-me dos livros que já não importam, nem nas prateleiras e menos ainda enquanto matéria de leitura; da música que não se harmonize integralmente com minha sensibilidade; do semelhante que me entrava o caminho e concorre para infelicitar ainda mais a vida e minha obscura e discreta passagem. Ser é conviver, dizia Drummond. Mas a solidão conquistada, a que escolhemos como condição necessária da experiência que carece de recuo em face do tumulto e futilidade da vida, esta amplia nossa ilha simbólica poupando-nos, entre outras coisas, das companhias pouco recomendáveis.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Velhice ou má idade



Confesso nunca haver sido importunado pelo fantasma da velhice, ou mesmo da morte. Muitas vezes me perguntei a razão de assim conduzir-me diante de um problema que noto atormentar tanta gente que conheço. Hoje então, submersos na atmosfera tirânica da cultura narcisista, sei de quem já se atormenta antes dos trinta apenas por considerar fugazmente a possibilidade do amadurecimento e da velhice. Se assim nos comportamos ante a mera possibilidade de perda da juventude, o que dizer da morte? A morte tornou-se uma realidade obscena, na verdade impronunciável. Interrogo-me há muito, desde que li Philippe Ariès, pelo menos, sobre os rumos de uma cultura que incorre na insensatez de pretender suprimir do seu horizonte precisamente o que há de mais inelutável na nossa condição. Aí radica, talvez, a evidência da supressão de uma forma elementar de sabedoria humana.
Abstraindo considerações mais alongadas sobre a história cultural, pondero tão somente os limites convencionais de minha experiência, de fatos correntes vividos ou observados durante minha infância e adolescência. Lembro-me, por exemplo, de que meu pai, que nunca foi exemplo de sabedoria e coragem, acolheu com resignação estes terrores da nossa experiência contemporânea: a maturidade, a velhice e a morte. Poderia igualmente estender esta observação a pessoas de sua geração que participaram do mundo de minha infância e adolescência: minha avó materna, vizinhos, conhecidos incontáveis. Não retenho nenhuma memória de pessoas que se angustiassem ou suportassem inconformadas limitações, dores e perdas naturalmente acolhidas como parte incontornável da nossa condição. Em suma, todos aparentavam saber e resignadamente aceitar o fato, então inelutável, de que seres humanos amadurecem, envelhecem e por fim morrem. Tudo isso era e é doloroso, claro. Decerto não ocorreria a ninguém de livre vontade viver experiências tão infelizes e indesejáveis. O que friso é o fato de que as pessoas prescindiam de formação estoica, filosoficamente considerada, para resignar-se a essa condição de fatalidade.
Foi isso, em suma, o que acima quis sugerir quando me referi a uma forma elementar de sabedoria humana. É flagrante que essa forma elementar de sabedoria dissolveu-se no cerne de uma cultura que elege o culto infrene e delirante do hedonismo como modo e fim de uma condição realisticamente incogitável. Pois, salvo engano, nenhum milagre da ciência e da técnica, nenhuma possibilidade assegurada pelo mercado, nada disso tem o poder de anular nosso fatal processo de envelhecimento e morte. A ciência e a tecnologia médica podem hoje, como é fato, estender o prazo de nossas vidas, pelo menos das camadas socialmente privilegiadas, mas não anular a realidade imperativa do envelhecimento, com tudo que contém de redução gradual e progressiva de nossas potencialidades, menos ainda abolir a mortalidade inscrita na nossa natureza.
Talvez meu modo de experiência individual relacionado a esta questão me tenha até o presente isentado da angústia associada à premonição da velhice e da morte. O convívio frequente com pessoas bem mais velhas, a começar pelo meu pai, propiciou-me um modo de familiaridade prematura com esses fantasmas. Crescendo dentro dos limites fechados de uma vila, onde todos os tipos de idade e experiência se mesclavam, aprendi a conviver com a doença, a velhice, a morte. Aliás, duas delas, a doença e a sombra da morte, cedo infiltraram-se na minha própria vida. Diria ainda que a leitura de alguns poetas e filósofos foi decisiva para que eu logo assimilasse, pelo menos enquanto fato teórico, ou realidade de consciência e imaginação, a fatalidade do que constitui matéria de denegação e assombro para Narciso.
Que me lembre, intentando ainda escavar no passado meu modo pessoal de familiaridade com a morte, a poesia de Manuel Bandeira foi uma descoberta decisiva de acolhimento resignado de minha finitude. Quando na minha juventude sobreveio uma doença cardíaca, minha reação imediata foi de pânico e desamparo. Privado de meios materiais e psíquicos para enfrentar uma realidade que me assombrava, vaguei durante alguns dias sobre a cama presa de opressões indescritíveis. Foi a meio disso que a poesia de Manuel Bandeira – mais exatamente aquela consagrada ao tema da doença e da morte – desceu sobre mim, sobre minha solidão desamparada, e me foi gradualmente em mim me repondo e me foi iluminando e reconciliando com a ordem obscura e inevitável de minha vida. A isso somou-se a música de Bach, que desde então passou a constituir o que concebo como a materialização suprema da expressão musical.
Retomo meu tema variando o registro, agora tendente à sátira. São inumeráveis as evidências cotidianas do estado de inconsciência que hoje define o rebaixamento deplorável de nossa experiência humana. O publicitário, uma das divindades do mundo cretino em que vivemos, aciona a máquina de calcular e dela extrai um slogan que logo se dissemina pela mídia e a consciência geral: A boa idade. Alude à idade em que me encontro, que já não é velhice, muito menos maturidade. Esta foi a motivação principal que me levou a intitular de Má Idade a fase atual do meu diário. A velhice tornou-se assim outra condição obscena do presente, além da morte. Graças à indústria publicitária, ninguém mais envelhece. Passa-se miraculosamente da juventude, ideal supremo da cultura hedonista, para a boa idade. É patético, para não dizer deprimente, ver essas multidões de mulheres e homens reumáticos, fisicamente combalidos e deformados pela idade, rebolando nos salões de festa da terceira idade (eis outro avatar da terminologia consumista).
Outro dia, aliás, fui dançar com Bella no Clube da Aeronáutica, bem próximo a meu apartamento. A festa promovida pelo clube, sempre às quintas, chama-se Salla (sic) de Dançar. Embora frequentada por gente de todas as idades, o predomínio é dos velhos, fato de resto igualmente observável em festas desse tipo. Perdão, quis dizer terceira idade, ou boa idade. Observei consternado velhinhas (vozinhas, como diria Bella) ridiculamente mimetizando garotas. Pior: garotas vulgares, remexendo os quadris desproporcionalmente avolumados pelo peso dos anos, erguendo a ponta da saia acima dos joelhos. Seus parceiros são negros jovens e musculosos. Estão ali, suponho, como prestadores de serviço a essas velhas comportando-se como adolescentes retardadas, iludidas pela fantasia de que o tempo é recuperável ou reversível.
É triste ver pessoas envelhecerem desse modo. Mas a inconsciência desse estado real é tamanha que talvez ninguém mais se dê conta do quanto é indigna essa forma de envelhecimento e decadência. Como percebê-la, se a própria terminologia que a recobre é já intencionalmente fabricada para servir à alienação, à incapacidade de mirarmos a velhice com aquele estoicismo elementar do passado que vi refletido na face do meu pai, de minha avó, dos velhos do seu tempo? Digo-o sem nenhum traço de nostalgia, até porque continuo preferindo o presente. Sou e espero continuar sendo um homem do presente, dentro dele vivendo sem ceder à tentação da evasão fácil e irrealista orientada para um passado de fantasia, recriação imaginária do mal-estar na linha do presente. O que subjaz ao argumento que aqui venho desenvolvendo é algo bem distinto: é a capacidade de relacionar a experiência do presente à medida do tempo vivo, traduzido na consciência da tradição que nos vincula às condições em que nos formamos, à corrente invisível da experiência que deságua no presente. Somente o narcisista, alheio ao tempo que supõe trânsito, envelhecimento e morte, somente ele vive a ilusão do eterno presente, um tempo ilusoriamente absoluto, portanto sem nexos com o que foi e o que será.
A crítica do presente não supõe necessariamente nostalgia, linha de fuga para o passado ou ainda algum ideal utópico. Uma das prisões supostas na meia idade ou velhice deriva precisamente dessa pressuposição, isto é, se criticamos o presente é porque somos nostálgicos, porque a idade fatalmente nos impele, até inconscientemente, a idealizar o passado, ou contrapor ao presente opressivo alguma impraticável utopia. Esse psicologismo barato é moeda corrente. Até amigos íntimos, gente de minha própria geração, valem-se desse expediente grosseiro para desqualificar uma crítica contra a música barata que hoje somos obrigados a ouvir em qualquer lugar público, inclusive em casa, já que os vendedores de cd pirata trovejam rua afora sua mercadoria criminosa. O exemplo sugere a que ponto descemos na nossa inconsciência social e estética. Bastaria o cotejo mais elementar entre a bossa nova e seus sucessores dos anos 60 e 70, época suprema em toda a história da nossa música popular, com o que hoje correntemente se produz e divulga, para que salte aos olhos o abismo de qualidade separando um e outro tempo. No entanto, quando vez ou outra ensaiei dizer coisas desse tipo, tão evidentes e indiscutíveis, prontamente retrucaram: “Ah, você está sendo nostálgico. Durante nossa juventude também havia muita porcaria que hoje esquecemos”. Ora, esquecemos, ou esqueci, porque nunca sequer perdemos tempo ouvindo esse lixo que atulha nossos ouvidos. O mais curioso, no argumento, é o quanto ele despreza a lógica suposta no meu juízo. Retrucam com tolices dessa natureza como se eu por acaso falasse da porcaria musical de minha juventude...

Recife, 02 de setembro de 2008.

domingo, 14 de agosto de 2011

Solidão



Quem cuidará de mim quando a doença
Enfim chegar tangida pelos anos
Quem velará no céu minha descrença
Quem meu silêncio à borda do piano?

Quem me amará ao sol desse deserto
Onde meu grão fenece à luz do outono
Quem “meu amor”, dirá, “meu peito aberto
Na solidão embalará teu sono”?

Quem na velhice, quando ela chegar
A mão na minha medirá a estrada
Passando assim, pois tudo há de passar
E a sombra é sobra e é tudo que é meu nada?
Recife, 13 de agosto de 2011.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A Idade através das Idades


Há poucos dias Paul McCartney estrelou um show monumental no Brasil. Dentro de um estádio de futebol, ocupado por uma massa composta por 60 mil pessoas, o ex-Beatle deslumbrou o público com a vitalidade e o talento que confirmam sua posição mítica na história da cultura de massas universal no decorrer dos últimos cinquenta anos. O fato de estar com 68 anos não aparenta afetar sua condição de ídolo cuja atuação no cenário pop se mantém inabalável, quer consideremos o caráter da sua performance, quer a receptividade delirante do público. Esse fenômeno tornou-se tão rotineiro na história da arte de massas contemporânea que ninguém mais estranha a permanência do sucesso e da atuação pública de ídolos como Roberto Carlos, Caetano Veloso, Chico Buarque e muitos outros, todos bem acima dos 60 anos.

Notem que citei apenas homens. Embora a mulher também espelhe na posição social que ocupa essa extraordinária mudança atinente à noção atual de idade ou valor etário, o grande beneficiário dessa mudança é sem dúvida o homem. Pois o fenômeno que até aqui considerei em termos restritos aos ídolos da música de massas é de extensão suficiente para que o caracterize como uma modificação profunda observável na concepção da idade e dos papéis sociais a ela referentes. Basta que se pense na frequência com que homens de meia idade, para não dizer idosos, hoje se separam e logo se envolvem com mulheres jovens e bonitas, quando já não é esse próprio envolvimento a causa de muitas separações. Nesse sentido, como em tantos outros, o privilégio é antes de tudo masculino, pois bem poucas são as mulheres maduras, separadas ou não, que desfrutam das oportunidades amorosas franqueáveis ao homem.

Lembrando um exemplo de caráter contrastivo que poderia ampliar ao infinito, por volta de 1920 o escritor inglês Lytton Strachey reagiu perturbado quando a pintora Dora Carrington declarou-se apaixonada por ele. O leitor maledicente ou preconceituoso que acaso tenha alguma noção de quem foi Strachey poderia alegar que a perturbação seria apenas fruto de sua homossexualidade. Isso também importava no contexto do meu exemplo, mas o motivo que mais perturbava Strachey decorria do fato de ter 34 anos, enquanto Carrington teria por volta de 18. Em suma, declarou-se um velho e isso não era decerto um exagero para os padrões etários e culturais da época.

Bem antes, no decorrer do século 19, os padrões etários e culturais seriam ainda mais inconcebíveis se fossem cotejados com os contemporâneos. Quem leu Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre, sabe como ele caracterizava o lugar da criança naquela época. Condensando este outro exemplo contrastivo, a criança era concebida como um adulto em miniatura. Por isso, a cultura do tempo lhe impunha um papel que era como que uma antevisão da velhice prematura já indicada nas roupas fechadas e austeras, num comportamento em tudo inconcebível não apenas para a criança do presente, mas para o próprio adulto, para não dizer o próprio velho, se me atrevo a pensar em gente como Paul McCartney e outros ídolos da sua geração como velhos.

Se o amor muda através das idades, como leio num poema de Drummond, também a idade muda através das idades. Hoje chegamos aos 60, ultrapassamos os 60 e todavia já não somos velhos. A noção de idade mudou tão radicalmente que seria hoje ofensivo identificar alguém maior de 60, seja ou não ídolo das massas, como velho. Parece-me muito positiva essa distensão da vida ativa e mesmo hedonista para além dos limites que convencionalmente separavam a velhice e mesmo a maturidade da juventude. Se esta era vivida e concebida como a estação própria à participação ampla no mundo, sobretudo o mundo do prazer, da festa e da experiência amorosa, a maturidade e a velhice tendiam a isolar o homem e sobretudo a mulher numa esfera da vida onde não mais conviria “entregar-se aos prazeres da vida” cedendo a tentações apenas concebíveis e aceitáveis na juventude.

Se numa ponta o adolescente ingressou no território “adulto” que garante acesso à vida desatada de limites e repressões consagrados pela tradição, na outra o ser maduro ou já idoso conquistou a liberdade de continuar no mercado, como agora se diz, traduzido este termo num sentido muito amplo. Dizendo de um outro modo: o mercado do consumo novamente compreendido num sentido muito amplo. Mesclando as idades no mesmo balaio, ou no mesmo show da vida, para repisar o lugar comum difundido por um célebre e já longevo programa de televisão, as fronteiras etárias convencionais foram diluídas no reino da permissividade desencadeada pela cultura do narcisismo consumista.

Frisei acima que esse fenômeno geral é positivo, mas importa também ressaltar o que na outra dobra encerra de negativo. Apelando para um outro lugar comum, não há afinal bem que não contenha mal, assim como não há solução que não gere outro problema. O problema do adultescente - valendo-me aqui de um neologismo que já empreguei no artigo Elogio da Inutilidade, também postado neste blog - é que agora todos tem horror à velhice e por extensão à morte. Envelhecer tornou-se um processo tão degradante, tão incompatível com nossa ilusão narcisista embalada pelo mito da juventude eterna que o discurso publicitário logo cuidou de suprimir estas palavras repulsivas: velhice, idoso e todos os similares que remetem à imagem crua e iniludível do corpo castigado pela idade e o tempo. Se o discurso publicitário se encarrega de refazer a linguagem e as imagens que remetem a essa dobra detestável da realidade, nosso narcisismo soprado por mil velas incandescentes cuida do resto. É certo que, se é impensável quebrarmos todos os espelhos que nos refletem como somos, todos hoje fazemos o possível para suprimir o insuprimível: até segunda ordem da ciência, a verdadeira religião do nosso tempo, somos ainda seres mortais.

Portanto, estamos condenados a um ciclo biológico que foi sem dúvida estendido e profundamente modificado, como acima indiquei, mas continuamos envelhecendo e morrendo. Paul McCartney e nossos ídolos da sua geração expressam um inusitado sentido de vitalidade e desafio às convenções do tempo e da cultura, mas eles próprios, condenados à contingência da espécie, envelhecem e morrem. No caso deles sobrevive a obra, símbolo de uma imortalidade inexistente na vida de quem a cria. É nisso e apenas nisso que transcendem nossa humanidade comum. No mais, continuamos todos sendo mortais. Portanto, seria prudente, talvez algo sábio, encararmos na linha do espelho mais real e imperativo a sombra do nada que lá no fundo da imagem nos espreita e espera. Como sussurra a voz arrepiante da Indesejada das Gentes: busca um sentido para tua mortalidade, pois um dia não haverá mais dia...
Recife, 24 de novembro de 2010.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Elogio da Inutilidade


George Steiner ressalta num dos seus ensaios extraordinários a força corruptora que um regime totalitário – o nazismo, no caso – exerce sobre a língua que falamos. Antes de tudo, ele corrompe a possibilidade de a utilizarmos para expressar a verdade. Embora não exista felizmente nenhum regime totalitário regendo nosso presente, há no entanto certas características dele rondando obscuramente nossas vidas. Consideremos novamente o problema da linguagem. Vivemos numa época dominada pelo discurso publicitário, cujo objetivo maior é vender tudo, não raro ao preço de ilusões completamente infundadas, mentiras que não resistem a um minuto de análise sensata. O discurso publicitário contamina a mídia em geral, que por sua vez atua sobre nossas consciências incautas, ou simplesmente carentes de auto-engano. Assim, passamos a empregar livre e correntemente palavras e conceitos que servem antes de tudo para embaçar nossa relação com a realidade, representá-la turvada por uma rede de mentiras e ilusões nesse sentido afins ao discurso totalitário. Bastaria pensarmos no sentido verdadeiro de expressões correntes como fogo amigo, bala perdida (digam isso a quem foi atingido por uma, ou a quem perdeu uma pessoa amada atingida por uma) ou terceira idade. Pensemos ainda nos clipes publicitários que a toda hora, a todo minuto, representam o consumidor como um ser investido de onipotência. O limite é o nosso desejo. Se tomo uma coca-cola, converto-me milagrosamente num super-herói; se tomo uma Skol, o prazer desce redondo milagrosamente convertendo-me num Casanova de botequim...
Mas meu objetivo é concentrar a matéria deste artigo em algumas das implicações submersas na expressão terceira idade e variantes como boa idade e adultescente. Este talvez seja um neologismo que eu possa humildemente reivindicar como sendo de minha autoria, pelo menos no sentido em que o emprego. Para mim, o adultescente é apenas um adulador da adolescência. Esta idade, a adolescência, elevada pelo discurso publicitário a ideal de vida, converte a velhice (usei enfim a palavra obscena, o termo impronunciável) em autêntico pavor, espécie de assombração do processo biológico que precisa ser a todo custo abafada. Isso nos leva de volta ao uso da linguagem como exercício de uma forma de vida mentirosa, uma forma de vida baseada na ilusão e na mentira. O mais grave é que, no caso, lidamos com experiências humanas inescapáveis, modos de ser que são constitutivos do processo biológico que todos fatalmente vivemos. Trocando em miúdos, qualquer pessoa que tenha o privilégio (ou desgraça, depende sempre do ponto de vista de quem fala e vive) de viver uma vida longa inevitavelmente atravessa os ciclos da infância, da juventude e da velhice. Mas parece que agora, possuídos pela cultura narcisista e hedonista, refizemos o processo da seguinte maneira: infância, adolescência, juventude e adultescência (agora no sentido de regressão ao irregressível, já que desconheço o milagre do velho efetivamente adolescente). Em suma, abolimos a velhice e estamos a caminho de abolir a morte, obscenidade ainda mais impronunciável. Como todavia a realidade é sempre imperativa, não há como suprimir a velhice. E já que é impossível suprimi-la, resta-nos criar uma linguagem que a recusa, uma linguagem que a representa como se não fosse, ou fosse outra coisa. É aí que o publicitário entra em cena e cunha expressões do tipo terceira idade, ou boa idade. Outro recurso empregado pela ideologia corrente consiste em representar o idoso (perdão, quis dizer o membro da terceira idade) como um ser útil ou como um consumidor feliz. Observem a felicidade combalida dos idosos filmados em bailes da terceira idade. Observem ainda as reportagens onde aposentados falam orgulhosamente do que fazem para conservar-se ativos como parafusos lubrificados a serviço da grande e monstruosa máquina do consumo.
Diante do quadro feliz e harmonioso acima esquematicamente esboçado, incorro agora na atitude herética de reivindicar para mim próprio o direito de envelhecer e morrer conscientemente, envelhecer e morrer liberto do peso dessas ilusões lucrativas... para os publicitários e comerciantes que nelas investem. Falando baixinho, para não escandalizar os jovens que têm pavor da velhice e os velhos que se refugiam no espelho de uma juventude esgotada, um dos meus grandes sonhos é aposentar-me para me entregar luxuriosamente, para me entregar deliciosamente à minha inutilidade. Como dizia Mário de Andrade, ele que ironicamente trabalhou feito um mouro, quero desfrutar da divina preguiça. Quero ser um aposentado para enfim conquistar a liberdade de ser inútil, de não precisar mover-me como um parafuso disciplinado dentro da cadeia imperativa que move a sociedade. Quero ser um velho aposentado liberto para desfrutar de prazeres suprimidos pela mentalidade utilitária que vê em cada poema uma evasão criminosa da realidade, em cada canção um desperdício de desocupado, em cada leitura de romance uma rendição à mentira ou ao faz de conta. Melhor dizendo, quero ser um velhinho. Quero que minha namorada e meus amigos me chamem velhinho. Se a tanto posso aspirar, quero que me amem como amamos um velhinho, que em mim considerem a dignidade e o respeito que devemos a um velhinho humilde e humanamente vivo. Quero ser um aposentado para ler e reler todos os livros que requerem um tempo incogitável nesse mundo regulado pelo tempo útil, o tempo dinheiro, o tempo competitivo, o tempo a serviço de alguma finalidade alheia a quem o vive. Quero o tempo do aposentado inclusive para encarar minha velhice sem falsas ilusões, como essas que a mascaram sob a face neutra de termos como terceira idade e boa idade. Quero enfim conquistar na velhice um privilégio suprimido pelo mundo mesquinhamente utilitário em que vivemos: quero viver o privilégio da inutilidade que pulsa na poesia de Drummond, num romance de Machado de Assis, numa sonata de Beethoven, na música sublime de Bach, numa caminhada à beira mar quando a noite desce com seus sortilégios e promessas inefáveis...