segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Deus me livre de ser mulher II


Contei meio conto, agora a outra metade. Emendando associação de ideias, que é quase sempre meu modo de compor um texto, pois me falta disciplina e método para esboçar sequer um roteiro de composição, o andamento pré-traçado de um argumento, uma tese, uma demonstração organicamente estruturada, começo atando a segunda metade do meu conto à fantasia feminina da outra metade amorosa. Quantas vezes não ouvi, quantas vezes não li a expressão impensada dessa fantasia: a busca da outra metade? As mulheres a repetem como repetem outras fantasias amorosas que resistem inabaláveis às impossibilidades objetivas de realização de fantasias tão insensatas. Se se detivessem para refletir um minuto, logo constatariam que a fantasia da outra metade é apenas um sintoma narcisista. A outra metade é uma fantasia especular: a imagem do outro me refletindo no espelho. Noutras palavras, o ideal do amor seria encontrar fora de mim o outro que me reflete, o outro que completa minha metade cindida.

Penso precisamente o contrário dessa fantasia narcisista. Penso que o amor, o amor adulto que eu pelo menos procuro, se realiza na dimensão da diferença complementar, do outro que nunca será meu eu. É por isso que dele preciso, que, quando o tive, ele ampliou minha vida, enriqueceu-a com expressões de ser que me faltavam, que não sou e não posso ser. O outro que amo é minha diferença e meu igual, alguém que nunca poderia ser o que sou nem quero que seja. Se amasse o outro para ser minha outra metade, minha fração especular, então estaria procurando a mim próprio. Por isso afirmei que essa fantasia da outra metade é uma fantasia narcisista. Ora, a grande singularidade do amor, e aí reside sua fonte de generosidade e entrega ao outro, consiste na experiência de sair de si, de se desatar da tirania da nossa força egocêntrica.

Depois de tudo, depois do século da mulher, como antes observei citando Eric Hobsbawm, muita coisa deu e continua dando errado. A mulher conquistou a liberdade num grau sem precedente histórico, mas as relações entre gêneros, as relações de amor e família entraram em curto-circuito. O amor romântico, que passou a reger a consumação e duração dos casamentos e da constituição da família, vaza água por todas as juntas, inunda nossos desejos e fantasias mais profundos. Se fosse sociólogo, mobilizaria dados empíricos, acessíveis a qualquer pessoa letrada no site do IBGE, antes de tudo na nossa experiência refletida, para comprovar o que todos sabem, ainda quando não o queiram saber: o amor romântico está na UTI (O Teu Inferno, de acordo com minha tradução) das relações amorosas.

O amor romântico, que tem atrás de si uma história de séculos, segrega contradições insolúveis entre o que contém de fantasia amorosa e o teste da realidade, que tem sempre a última palavra. Para começar, ele consiste na idealização do outro amado. Não há idealização que resista à prova da intimidade e da rotina. Como disse alguém, nenhum homem é grande para seu criado de quarto. Traduzo mal, e de memória, mas sei que quem me lê entende perfeitamente o que quero dizer. A intimidade é demasiado reveladora para encobrir nossas idealizações. Viver sob o mesmo teto, compartilhar o mesmo cotidiano, a mesma cama, os mesmos odores, rotinas e reações em face da realidade é o modo mais banal e infalível de ver o outro como ele é, na medida em que ele se revela. Se não o vemos nessa medida aferível pela experiência, é porque nossas fantasias, nossa necessidade de ilusão é mais poderosa do que a força dos fatos que a todo momento nos dizem: ele é apenas humano e falível, apenas um homem, apenas uma mulher. Mas o amor romântico se lixa para essas evidências comezinhas da vida conjugada, do cotidiano doméstico, da família despida de romantização. O amor romântico precisa acreditar que o céu é sempre azul, que a vida é sempre bela, que o amor é sempre magia.

A realidade – ou o princípio de realidade, como repisava o estoico do charuto ao pé do divã – a realidade desmente todas essas nossas fantasias. No fim, sabem os iludidos mais renitentes, no fim é sempre ela quem triunfa. O amor se esfarela, o casamento se desmancha e cada um volta para sua solidão e endereço. Acaso insinuo, como um analista sadicamente negativo, que não há solução, que precisamos sempre sofrer essa via crucis? Bem pelo contrário, acho que a gente precisa mudar de disposição amorosa, reinventar o amor, ajustá-lo a uma medida humana mais realista. A leitora romântica certamente retrucará observando que o amor é sempre assim, assim romântico como ela o figura e compreende. Para ela o amor é um dado inalterável da natureza. Não, minha iludida leitora. O amor humano muda, como quase tudo que é humano muda, pelo menos nas formas sancionadas pelo costume, pelas formas históricas de organização da sociedade. Bem ao contrário do que espontaneamente imaginamos, durante a maior parte da história do Ocidente o amor e o casamento obedeceram a interesses inteiramente alheios à realização amorosa tal como idealizada pelo movimento romântico, obra de circunstâncias históricas apreensíveis por quem se disponha a estudá-lo, pesquisá-lo e interpretá-lo nas suas características distintivas.

Chego a este ponto e me detenho para avaliar espantado o estrago que acabo de causar. Ia desdobrar meu argumento visando justificar por que não quero ser mulher e todavia vejam onde acabei. Peguei o atalho do amor romântico, empurrado por uma arbitrária associação de ideias (relembrando: a metade do meu conto e a metade romântica sonhada pela mulher) e a essa altura nem eu sei mais onde estou, ou estava. Como precisamos sempre invocar alguma causa nobre ou suprema para justificar nossas imperfeições e erros, invoco Montaigne, meu herói filosófico e literário. Quem o leu com alguma atenção sabe que ele usa e abusa desse tipo de procedimento na composição dos seus ensaios. Quero dizer, promete falar sobre determinado assunto, por vezes já enunciado no título do ensaio, e logo deriva para outra matéria: entra por um beco, percorre uma vereda, atravessa uma ponte e quando damos por ele está nos revelando verdades insuspeitadas e imprevisíveis. Longe de mim presumir que a leitora conclua que me comparo a Montaigne. Afinal, se há em mim um orgulho que confesso à vontade, é o orgulho da humildade. Portanto, comparo-me a Montaigne tão-só em termos de forma de composição do texto ou argumento, não de valor. Afinal, interroga-se perplexo o narciso de TV, quem é Montaigne para se comparar comigo?

Retomo meu refrão: Deus me livre de ser mulher! Querem ainda razões que me justifiquem ou desgracem diante do olhar sombrio da leitora que teima ainda em descobrir aonde quero chegar? Pois invoco agora o argumento que me parece mais poderoso e por isso é talvez a fonte maior da infelicidade e da angústia feminina. Invoco a crueldade da mãe natura. Invoco-a para aludir mais precisamente ao corpo, ao lugar do corpo na nossa vida, à centralidade do corpo que por isso se projeta indomável na vaidade feminina, no seu senso de identidade e autoestima, no porte arrogante ou humilhado com que se move nas ruas, praias, festas, badalações, shoppping, no grande cenário do narcisismo de espetáculo em que foi convertido o mundo em que vivemos.

O corpo é nossa fração do ser mais falível, a mais vulnerável aos humores e movimentos mutáveis da nossa subjetividade. Isso é patente até no corpo de uma mulher linda e jovem. Basta-lhe uma noite de insônia, uma farra mal curada, um vinco de depressão ou desânimo e logo essas rachaduras do ser repontam no corpo. Se é assim quando somos jovens, o que dizer quando já ultrapassamos a fronteira da idade confessável, da idade que recobrimos com os disfarces que nos tornam ou semelham tornar-nos, não raro ao custo de um ridículo que a vaidade cega se recusa a admitir, aquilo que já não somos? Apesar de todos os avanços maravilhosos da ciência posta a serviço da beleza, do prolongamento da juventude, apesar da indústria do cosmético, dos muitos adornos e falsas fachadas, a rigidez e vitalidade da carne são parte da nossa natureza mais falível.

É aí que as mulheres são mais vulneráveis e com certeza sofrem mais que os homens. Estes, que evidentemente não passam impunes por essas mutações, continuam levando vantagens patentes sobre a mulher. Bastaria considerar a fragilidade do amor romântico, o amor que, como acima assinalei, está vazando água por todos os furos e juntas. Como rege ainda de forma imperativa o amor e o casamento, estes duram na medida em que ele é. Para a mulher isso parece ser condição inegociável. Os homens, escolados em milênios de dominação, além de dotados de uma força libidinal que se ramifica por muitas vias de gratificação (a política, o poder, o sucesso profissional, os esportes, as artes e o cultivo das práticas intelectuais...), raramente elegem o amor romântico como fundamento dos seus vínculos amorosos, mais exatamente do casamento e constituição da família.

Duvido que esta regra se aplique à mulher. Conheço mulheres inteligentes, cultivadas, com trunfos de sucesso profissional invejável etc. Nunca nenhuma me disse que isso lhe bastava, que se sentia realizada por alcançar essas formas de afirmação social e triunfo tão caras ao homem. O que sempre me dizem é: quero ser feliz no amor, quero ter filhos com o homem que amo e coisas parecidas. Por isso provavelmente a atmosfera confusa do amor contemporâneo, os abalos que sacodem a família, diretamente associados ao fenômeno precedente, atingem mais dolorosamente a mulher. Não bastasse tanto, ela envelhece (perdão, nesse mundo de eufemismo dissimulador da realidade não convém usar expressão tão ofensiva; digamos terceira idade, ou até boa idade, deixo a expressão ao gosto de quem mais queira ou não iludir-se) mais solitária ou mais privada de amor, de oportunidades amorosas do que o homem.

Quantos homens, já idosos e não raro barrigudos e carecas não se acasalam com uma mulher jovem no dia seguinte à separação da mulher mais velha que já não querem? Pior, mas não incomum, é descobrir que a causa da separação foi a opção inconfessada do homem pela mulher mais jovem e bela. Tenho amigas, além de conhecer outro tanto, que nunca mais voltaram a casar, a ter um homem permanente depois da separação conjugal. Mas se olhamos à volta, se deitamos o olhar sobre a paisagem onde transitam os homens maduros e idosos – barrigudos ou não, carecas ou não, feios ou bonitos – vemos quase sempre uma mulher jovem e bonita enlaçando seu braço, quando não mimando-o com modos servis. Portanto, apesar de reconhecer e louvar tudo que de admirável a mulher conquistou, concluo repisando meu irritante refrão: Deus me livre de ser mulher!
Recife, 3 de agosto de 2012.

Um comentário:

  1. Uma leitora, que prefere o anonimato, enviou-me o comentário abaixo deixando a meu critério postá-lo ou não.

    É difícil encontrar textos instigantes sobre questões de gênero como esse. As transformações recentes trouxeram perdas e ganhos para homens e mulheres; convivemos com facetas opostas dessa relação, que compreende uma paleta desde mulheres que até renunciam a constituir família em nome da carreira até as que se dedicam exclusivamente ao casamento e aos filhos, esta uma situação cada vez mais rara. No meio, está a maioria, equilibrista do cotidiano, ainda cheia de dilemas mas, na maioria das vezes, privilegiando o afeto e a família, atualmente com diversos modelos. No geral, creio que os homens, apesar de várias perdas, ganharam a possibilidade de ter alguém caminhando par e passo; de manifestar sua afetividade e de se permitir ser sensível. O poder perdido ainda se reflete na violência doméstica e geral contra a mulher; também nessa maior possibilidade do clichê homem velho-mulher nova. Entretanto, creio que homens e mulheres desejam uma relação onde todos os estereótipos sejam derrubados e cada um tenha ao seu lado, alguém humano o suficiente para amar, mesmo dentro da realidade. Seremos adultos quando descobrirmos que a paixão infalivelmente terminará, mas é possível a vida companheira com amor, não importando a duração, mas sim a satisfação, uma “paixão comportada”, se isso existir. Infelizmente as mulheres caimos como moscas nessa história de juventude eterna – atrás dela os homens também passaram a correr. Ambos perdem com isso; perdem as mulheres que querem reproduzir, de maneira idêntica, o modo masculino; perdem os homens que privilegiam instinto e força. Pode ser uma ilusão, mas desejo que um dia, homens, mulheres e até as novas categorizações de gênero, possam se entender melhor e ser um pouco mais felizes, ou, no mínimo, menos infelizes. Assim, quem sabe se um dia já não será mais necessário que Deus livre os homens de ser mulher?

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