quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Dialética Tropical


O novo livro de ensaios críticos de Roberto Schwarz, Martinha versus Lucrécia, pouco varia nos temas, enquanto previsivelmente reitera a perspectiva teórica que embasa toda sua atuação como crítico. Machado de Assis, como também seria previsível, é a figura dominante. Além de fornecer o mote que dá título ao livro, é o foco do ensaio de abertura, “Leituras em competição”, de “A virada machadiana” e de uma das entrevistas que integram o volume. Além disso, a crônica de Machado que confere título e matéria ao livro vem reproduzida no final do volume. Repetindo procedimento já familiar para quem acompanha sua obra, as entrevistas se somam aos ensaios, como de resto vem explícito no subtítulo de Martinha versus Lucrécia. O ensaio de maior fôlego, que alcançou mais repercussão na mídia, como seria também previsível, é o que dedica a Verdade Tropical, livro de memórias de Caetano Veloso. Aliás, Schwarz o identifica como autobiografia quase-romance (ver p. 85). Schwarz também retoma alguns dos seus autores de eleição na cena literária contemporânea: Chico Buarque, Francisco Alvim, Paulo Lins. Por fim, os uspianos e afins: Giannotti, Bento Prado, Gilda de Mello e Souza, Francisco de Oliveira, Michael Löwy. Tentarei abaixo esmiuçar um pouco do que vai condensado neste parágrafo inicial.

Antes que o leitor apressadamente conclua que os muitos “previsíveis” acima anotados supõem algum juízo crítico negativo, me apresso a afirmar o contrário. Um livro de ensaios críticos de Roberto Schwarz contém muito de previsível, antes de tudo, porque ele, à diferença da usina recicladora de modas intelectuais que é a universidade, sobretudo a brasileira, periférica e portanto sempre deslumbrada com tudo que produzem os centros hegemônicos da cultura intelectual, ele é um crítico consistente e coerente. Podemos discordar de sua perspectiva teórica, é o meu caso; daí a desqualificá-lo deformando grosseiramente suas ideias, procedimento patente em resenhas como a de Nelson Ascher, publicada na Veja (2 de maio de 2012), é passar da divergência teórico-ideológica para o ataque grosseiro. Aliás, é isso o que também faz Caetano Veloso na entrevista que concedeu à Folha de S. Paulo (22 de abril 2012). Infelizmente, no Brasil raramente sustentamos um debate de ideias, que logo desanda para o bate-boca e o ataque pessoal. Há algumas explicações razoáveis para esse fenômeno, algumas identificáveis na própria leitura que Schwarz faz da obra de Machado e de outros autores, mas prender-se a elas seria fugir do foco desta resenha, além de alongá-la em demasia.

Roberto Schwarz declara sempre nitidamente de onde fala, em nome de que fala e intervém no debate ideológico e intelectual. A todo tempo, eis nele algo previsível que já se tornou lugar comum, reitera sua filiação ao pensamento dialético. Seus mestres supremos também são sempre invocados: Adorno, na tradição marxista alemã, e Antonio Candido, na brasileira. O primeiro me parece absolutamente ilegível, mas a culpa é certamente minha, talvez por não saber alemão nem me dispor a um treinamento de exegese e hermenêutica (que o leitor de blog me perdoe os palavrões) que consumiria anos de minha vida e me tornaria mais infeliz. Antonio Candido é outra história. É não apenas nosso crítico literário supremo, mas também autor dotado de um estilo de exposição crítica, de esclarecimento das ideias que lamentavelmente não fizeram escola na nossa capenga tradição universitária. Alguns dos seus discípulos confessos, é o caso de Walnice Nogueira Galvão e João Luiz Lafetá, são fieis à sua linhagem estilística, que prima pela clareza, elegância e aversão sistemática a qualquer modismo ou tentação obscura que muitos subletrados confundem com profundidade. Quanto a Schwarz, seu discípulo mais célebre, ostenta um estilo dialético demais para o meu gosto.

Mas sigamos voltando ao ensaio de grande fôlego dedicado ao livro de Caetano Veloso. Num dos seus ensaios mais citados (“Cultura e política, 1964-69”, incluído na obra O pai de família e outros estudos), escrito em 1972, Schwarz faz uma apreciação crítica do movimento tropicalista no contexto dos embates culturais e ideológicos daquela época turbulenta. Agora, 14 anos depois da publicação de Verdade Tropical, ele retoma as questões centrais daquele ensaio ampliando-as no exame de crítica dialética a que submete a trajetória artística e ideológica de Caetano Veloso. Perguntaram ao próprio Caetano a razão de Schwarz demorar tanto tempo para afinal escrever o ensaio. Claro que Caetano não tem resposta para isso. Pelo visto, nem o próprio Schwarz, que responde alegando ser mais lento do que deveria.

A julgar pelo que ele descreve sobre seu processo de maturação de intuições e ideias, é fácil seguir essa rota através das muitas entrevistas que concede e integra a várias das suas obras, Schwarz é um acadêmico típico consagrado ao convívio com os livros e ideias que o perseguem como obsessões inarredáveis. Seguindo o que historia sobre sua intuição fundamental da obra de Machado de Assis, concluímos que suas reflexões e análises que gradualmente se refinam prendem-no à obra de Machado desde a juventude até o presente. Embora tenha escrito apenas dois livros sobre o conjunto dos romances do Bruxo do Cosme Velho, livros aliás um tanto compactos, um intervalo de cerca de 15 anos separa as duas obras, sem contar tudo que matutou antes e depois.

Mas em que consiste essa intuição luminosa de Schwarz que provocou uma reviravolta na leitura da obra de Machado de Assis? Espremendo a matéria do modo mais sumário e claro possível, o crítico descobre na sua paciente leitura dos romances de Machado, notadamente os que datam a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, uma relação de homologia entre forma romanesca e processo social. A forma caprichosa e volúvel adotada pelo narrador machadiano corresponderia ao processo social singular que o crítico identifica na realidade brasileira na qual contraditoriamente (como convém ao jargão dialético) se combinam escravidão e liberalismo. O grande feito de Machado seria estilizar nossa realidade social contraditória onde escravidão e liberalismo, homens livres privados de mercado, favor e clientelismo se mesclam de forma peculiar. Em síntese, Schwarz parte dessa intuição para elaborar o dispositivo crítico que mobiliza e reitera para dar conta da obra de Machado de Assis e mais tarde de praticamente todos os autores que submete ao escrutínio de sua crítica dialética.

Para chegar aonde chegou, depois de muito ruminar ideias com a lentidão que é o primeiro a admitir, o crítico uspiano traçou um longo e complexo percurso de ideias passando pela tradição dialética alemã, em particular Adorno, e pelo estreito convívio com seus companheiros formados na Universidade de São Paulo. Esse convívio fecundo compreende sua aprendizagem da crítica dialética de Antonio Candido e seu debate franco e contínuo com amigos de geração. Esse debate é um fenômeno raro no ambiente intelectual brasileiro. Um exemplo pessoal. Estava em São Paulo em 1995, quando de uma das muitas celebrações acadêmicas do famoso seminário de estudos do Capital, de Marx. Os discípulos de Schwarz, Giannotti e outros dos participantes desse grupo não mediram esforços para converter essa experiência acadêmica singular numa lenda que, como convém ao pioneirismo de locomotiva dos intelectuais paulistas, eleva o feito a desmedidas incongruentes com o espírito desmitificador e desmistificador do marxismo.

Reunidos no auditório da USP, situado na lendária rua Maria Antônia, Schwarz, Giannotti, Fernando Novais, Paulo Eduardo Arantes e outras estrelas da universidade debateram exaustivamente a história e as consequências ideológicas e culturais do seminário de leitura de O Capital. O que mais me impressionou, além do bandeirantismo indisfarçável dos uspianos, não obstante as ironias corretivas de Schwarz e Giannotti, foi a franqueza isenta de qualquer complacência observável no debate entre estes. Surpreende-me ainda, tendo em mente minha experiência pregressa e prospectiva, ao considerar a forma como argumentavam e divergiam.

O título da minha resenha, que pouco trata do livro, admito, contém seu grão de ironia ou provocação. Como comecei assinalando, Roberto Schwarz continua manejando com sofisticação e pertinácia sua dialética tropical. Assim procedendo, ele se alinha dentro da longa tradição do pensamento crítico que procura ainda e em vão explicar o Brasil. Não que sua obra não esclareça muito de Machado, em particular, e do Brasil, em geral. Mas confesso que por vezes muito me custa, não raro às bordas da angústia, articular minha compreensão do Brasil, com seus impasses insolúveis, tendo as categorias dialéticas de Schwarz como norte.

Elas me parecem abstratas demais, a partir do próprio conceito de dialética que, como certa vez observou José Guilherme Merquior, é uma dama de bem pouca virtude. De fato, o conceito foi vítima de tanto uso e abuso que gente como eu, mal escolada no radicalismo teórico da academia, tende a encará-la como indigesta. No mais, descendo a um exemplo extraído do ensaio sobre Caetano Veloso, surpreendeu-me ler o tom elogioso com que Schwarz menciona um longuíssimo período de Verdade Tropical (cf. pp. 35-6) que é estilisticamente uma das passagens mais infelizes na prosa clara e lúcida de Caetano. Depois de qualificar o período como um autêntico “olé dialético”, Schwarz afirma que “... a síntese procura sugerir, ou captar, a complexidade do processo real. Pela abrangência da visão, pela sua potência organizadora, pelo teor de paradoxo e pela capacidade de enxergar o presente no tempo, como história, é uma façanha”. (p. 72).

Por fim, embora com razão tanto critique o radicalismo inoperante da cultura acadêmica, Schwarz pratica uma crítica dialética exposta ao risco de resvalar na impotência e no desespero político. Afinal, onde se inscreve o solo social da sua dialética inspirada numa ideologia que sempre insistiu sobre a necessidade de mudarmos o mundo? Como sabemos, o agente histórico dessa suposta mudança revolucionária pregada por Marx seria o proletariado urbano. Onde se esconde esse sujeito histórico na dialética de Schwarz? Até onde sei, não é mais o proletariado do ABC paulista, cujo líder chegou ao poder e nele se manteve e mantém aliado às forças mais retrógadas da política brasileira. Portanto, Lula Sarney ou Lula Maluf é carta fora do baralho dialético. Quem é, afinal, o sujeito histórico da dialética tropical tão refinadamente burilada e reiterada pela crítica de Roberto Schwarz?
Recife, 15 de julho de 2012.

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