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terça-feira, 1 de março de 2011

Iluminismo e Caráter Nacional




Dante Moreira Leite. O Caráter Nacional Brasileiro. 4a.ed. definitiva, com introdução de Alfredo Bosi. Sao Paulo: Pioneira,1983.


Talvez um dos critérios decisivos para a aferição da permanência de uma obra de ciência, palavra aqui empregada à margem de qualificações estreitamente positivistas e iluministas, consista na sua capacidade de sobreviver às teses e juizos contingentes que acaso abrigue no corpo de formulações e argumentos com que se nos apresente. Se esta é uma afirmação sustentável, será então justo assinalar em O Caráter Nacional Brasileiro, de Dante Moreira Leite, uma das mais importantes obras dentro da sua especialidade no conjunto da bibliografia brasileira de ciências sociais. Pois se é certo que contém ela teses e juízos sem dúvida corrigidos pelo processo de transformação objetiva da sociedade, além de obras subsequentes favorecidas na sua formulação pela explicitação de experiências e recursos intelectuais de que Dante Moreira Leite se via privado, ainda assim ela resiste a novas leituras e releituras com a vibração e densidade que dela fazem um dos mais agudos trabalhos de análise ideológica da cultura brasileira.

Explicitando um pouco do que nela me parece haver de falível, importaria acima de tudo frisar as fontes iluministas em que o autor se inspira para refutar o conteúdo ideológico das obras que estuda afirmando, em contrapartida, convicções "científicas" ao cabo tão merecedoras de qualificação ideológica quanto o conjunto da produção que se empenha em desacreditar. O argumento aqui exposto, estou certo, mereceria desenvolvimentos que uma mera resenha infelizmente não autoriza. Daí ficar eu devendo ao leitor provas, ou pelo menos argumentos mais consistentes, e passar à exposição das linhas gerais da obra.

Moreira Leite consagra largas seções da obra à exposição crítica dos conceitos básicos que enformam a composição e a sua análise da categoria caráter nacional brasileiro. Tais conceitos, elaborados e continuamente revistos ao longo de mais ou menos um século de investigações nos domínios da antropologia, sociologia e psicologia, incluída a experimental, são os de racismo, cultura, nacionalismo, personalidade básica, teoria, ideologia e, claro, caráter social e nacional. Nesta parte da obra, que se estende pelos seis primeiros capítulos compreendendo 146 páginas, ele cobre com claro e atento método expositivo o desenvolvimento científico dos conceitos acima, além de outros a eles conexos, nas obras de Marx, Freud, Franz Boas, Hans Kohn, Otto Klineberg, Erich Fromm, Margaret Mead, Ruth Benedict e muitos outros.

A parte entretanto decisiva corre do Capítulo 7 em diante, onde ele aplica os conceitos básicos antes expostos à obra dos autores brasileiros relacionada à construção do caráter brasileiro nas ciências sociais. Também aqui desenha-se investigação ambiciosa de amplo espectro. Partindo do texto que inaugura nossa fértil tradição ufanista, ao mesmo tempo em que oficialmente celebra a ocupação portuguesa nos trópicos, i.e. A Carta de Pero Vaz de Caminha, Moreira Leite avança até o nacionalismo brasileiro dos anos 50, formulado sobretudo pelos ideólogos do ISEB.

Como o propósito maior desta resenha é considerar o modo como analiticamente tratou a obra dos modernistas e de Gilberto Freyre naquilo que concerne à questão central da obra, observo com estranheza e desapontamento a omissão de Mário de Andrade, notadamente o Mário autor de Macunaíma, de Oswald de Andrade e das correntes direitista e conservadora do movimento. É certo que a obra contém um capítulo especialmente dedicado à análise do Retrato do Brasil, de Paulo Prado, e mais adiante, num outro capítulo, ampla seção atinente a Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. De qualquer modo, caberia tratá-los como representativos do modernismo brasileiro apenas na medida em que se atribuísse significação abrangente a este movimento que foi primariamente artístico e literário. Nao esqueço aqui, vale frisar, o quanto a nossa tradição literária esteve mesclada às questões de natureza social livremente consideradas. Por outro lado, o fato de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros modernistas na obra omitidos estarem antes de tudo vinculados à produção de natureza literária não seria argumento que por si só justificasse o critério seletivo adotado por Moreira Leite, visto que em capítulos precedentes ele deu notável atenção a poetas e prosadores da literatura brasileira.

O fato é que o modernismo, compreendido na sua conceituação mais ampla, concorreu de forma decisiva para a consolidação de uma atmosfera ideológica e um estado de espírito radicalmente renovador e otimista com relação às possibilidades culturais e civilizacionais do Brasil. Isso é perceptível notadamente a partir do momento, precisamente associado à famosa viagem que os modernistas empreendem às paisagens históricas de Minas Gerais, em que se empenham numa verdadeira descoberta do Brasil. Essa descoberta traduziu-se em obras concretas de autoria de Mário e Oswald de Andrade nas quais é nítida a revisão criativa e positiva da cultura brasileira. Como já observei, o ponto culminante desse processo é a publicação de Macunaíma. Além de publicada no mesmo ano de Retrato do Brasil, encerra muitos elementos de afinidade e convergência com a obra de Paulo Prado, fato que passa ao largo das páginas que Moreira Leite dedica à sua interpretação pessimista do historiador paulista.

Também Oswald de Andrade merece algumas breves considerações nesse contexto. A omissão de sua obra, tão desigual e tecida ao sopro de suas intuições por vezes geniais, é também de se lamentar, se lembramos a importância da poesia que realiza nos anos 1920 recriando os cronistas coloniais que registram e celebram traços da cultura e da paisagem brasileira. Essa matéria interessa de forma direta à composição e objetivos do livro de Moreira Leite. Também o movimento antropofágico, de desconcertante radicalidade estética e ideológica, constitui variante fundamental para uma apreciação mais diferenciada e rica do largo e fascinante enredo sobre o nacionalismo e o caráter nacional que Moreira Leite descreve e analisa na sua obra.

Mas passo ao que mais importa neste breve comentário: o capítulo consagrado a Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Embora critique severamente Casa Grande & Senzala, Moreira Leite parte do reconhecimento da sua extraordinária importância na história intelectual brasileira. Observando características comuns a esta obra e a Os Sertões, de Euclides da Cunha, acentua, como já o fizeram outros críticos, os ingredientes de composição literária que as inscrevem em categoria híbrida atribuindo-lhes uma imperecibilidade inalcançada por empreendimentos semelhantes assinalados por ambições ostensivamente científicas.

Outra característica comum que importa aqui ressaltar é o "princípio redentor" inspirador das duas obras-primas. Enquanto Euclides da Cunha intenta redimir o sertanejo, intento cuja súmula estaria contido na célebre frase "o sertanejo é, antes de tudo, um forte", Gilberto Freyre o faz com relação ao negro num momento em que nossas elites encaravam com sombrio pessimismo a mistura racial de que resultara a população brasileira.

Moreira Leite assinala a inconsistência do plano interpretativo geral ao qual, de acordo com Freyre, Casa Grande & Senzala serviria como ensaio introdutório. A este seguiriam Sobrados e Mocambos, Ordem e Progresso e finalmente Jazigos e Covas Rasas. O que entretanto de fato se observa no ambicioso projeto a que Freyre se propôs sob o título geral "História da Sociedade Patriarcal no Brasil" é a repetição e a banalização das teses contidas em Casa Grande & Senzala nas obras compreendidas pela sequência prevista.

O que mais ressalta da análise desenvolvida por Moreira Leite é sua crítica severa aos métodos com que Freyre opera visando fundamentar juízos e conclusões abrangentes, tais como os que concernem à democracia racial brasileira, à nobreza da aristocracia rural pernambucana, à superioridade do escravismo brasileiro comparado ao de outras partes do mundo, à alegria do escravo, ao erotismo decorrente da mistura racial..., e o atual descrédito a que foram reduzidas suas construções ideológicas depois das lutas por direitos civis e da definitiva superação das formas tradicionais de colonialismo e opressão racial.

Com relação ao primeiro ponto, referente aos métodos e à teoria aplicados por Freyre, Moreira Leite conclui que o que nas obras dele se afirma é "o primado do subjetivismo e, portanto, de um inevitável relativismo". (p. 272) Indiferente a métodos e técnicas de verificação correntemente adotados na investigação sociológica contemporânea, Freyre serve-se do que ele próprio classifica como impressionismo sociológico para avançar conclusões cuja ousadia exigiria comprovação factual.
Quanto ao segundo ponto, pertinente a suas construções ideológicas nos domínios da investigação sócio-antropológica, Moreira Leite afirma: "Hoje, com a independência dos povos africanos e com a luta dos negros norte-americanos pelos seus direitos civis, a posição de Gilberto Freyre parece inevitavelmente datada e anacrônica. Finalmente, as posições políticas de Gilberto Freyre - tanto no Brasil como com relação ao colonialismo português na África - contribuíram para identificá-lo com os grupos mais conservadores dos países de língua portuguesa e para afastá-lo dos intelectuais mais criadores. Disso resulta que Gilberto Freyre é hoje, pelo menos no Brasil, um intelectual de direita, aceito pelos grupos no poder, mas não pelos jovens intelectuais." (p.27l)

Para Moreira Leite o processo de superação do pensamento ideológico começa a partir dos anos 50. Embora procure indicar os pontos de ruptura deste processo, ele acentua a sua complexidade sugerindo os dinamismos de um processo que conduz alguns ideólogos à revisão de suas teses, um exemplo seria Monteiro Lobato, ou à permanência de muitas das suas contribuições, não obstante enraizadas no solo onde brotou a ideologia do caráter nacional brasileiro.

Assim como em Ideologia da Cultura Brasileira, de Carlos Guilherme Mota, obra que em muitos sentidos intenta impor-se como sua sucessora, sem no entanto em nenhum deles a superar, O Caráter Nacional Brasileiro distingue na obra de Caio Prado Jr., sobretudo em Formação do Brasil Contemporâneo, o marco do processo de ruptura que divide o pensamento ideológico do científico. Como escreve o autor,
"Em resumo, Formação do Brasil Contemporâneo assinala um novo momento na interpretação histórica do Brasil: já não se trata de explicar a situação do país através de um ou outro fator - a raça, o clima, a escravidão, as características psicológicas dos colonizadores - mas de interpretá-la em função do sentido da colonização (grifos do autor). Essa interpretação é fundamentalmente dinâmica, e a análise das tensões criadas pelo sistema permitirão a Caio Prado Júnior reinterpretar vários episódios de nossa história, não porque esta seja monótona repetição de si mesma, mas porque um momento resulta das condições criadas pelo momento anterior ou por novas condições do mercado externo, para o qual estava voltada a produção brasileira." (p. 316)
Mas o processo geral de superação tem suas bases no desenvolvimento social e econômico do Brasil que se faz acompanhar, no âmbito da organização da cultura, do desenvolvimento da universidade, leia-se especificamente a Universidade de São Paulo, com resultados fecundos nos domínios da pesquisa e da interpretação científicas. Exemplos frisantes deste desenvolvimento seriam as obras de Roger Bastide, Florestan Fernandes e Antonio Candido.
Moreira Leite trata ainda de forma indicativa do papel desempenhado pelos intelectuais associados ao ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) na produção de uma ideologia nacionalista e desenvolvimentista. Ele identifica no projeto proposto em Ideologia e Desenvolvimento Nacional, de Álvaro Vieira Pinto, a concepção romântica de nacionalismo que supõe a unidade nacional acima das divisões internas e atribui papel decisório ao povo. (ver p. 319)
Embora a observação acima remeta especificamente à obra referida, não me parece errado estendê-la à ideologia nacionalista em geral, visto que as duas características mencionadas são de importância central para a concepção romântica do nacionalismo.
Moreira Leite argumenta que a superação da ideologia do caráter nacional é também verificável no plano da produção literária. Se é genericamente acertado afirmar acerca da nossa história literária, como já o fizeram Alceu Amoroso Lima e Antonio Candido, o conflito, seja ou não dialético, entre o local e o universal, Moreira Leite levanta dúvidas quanto à permanência desse esquema. Contra ele apresenta os exemplos cristalizados nas obras de Drummond, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, todos convergindo para uma dimensão de universalidade superadora da tensão que tem caracterizado o desenvolvimento geral da nossa literatura.

Concluindo, Moreira Leite observa que a ideologia do caráter nacional surge em momentos de crise articulados a movimentos nacionalistas. As teorias racistas, por sua vez, tendem a conferir legitimidade a formas de luta de classes ou ao domínio de um grupo sobre outro. Enquanto a primeira acentua o elemento de unidade nacional, sobretudo quando confrontada com situações belicosas, guerras externas ou internas, as segundas estimulam a divisão.

O autor acrescenta ainda uma periodização na qual ressalta o quanto a produção da ideologia do caráter nacional brasileiro e as teorias de fundo racista são devedoras do pensamento europeu. Admite, porém, a dificuldade de explicar tanto a aceitação no Brasil dessas teorias procedentes da Europa quanto o processo de superação da fase ideológica. De qualquer modo, explicita sua hipótese que reproduzo:
"Poder-se-ia apresentar, como hipótese a ser verificada posteriormente, a sugestão de que a ideologia do caráter nacional brasileiro passou a ter menos significação e começou a desaparecer no momento em que as condições objetivas da vida econômica de certo modo impuseram a necessidade de um novo nacionalismo." (p. 327)

Embora isento da convicção categórica com que certos continuadores da tradição iluminista celebram a razão e a ciência opondo-as à ideologia, aqui compreendida como saber parcial e legitimador de interesses idem, a característica última da investigação a que Moreira Leite se propõe é substituir a análise ideológica do caráter nacional até então produzida, por uma teoria fundada em critérios de máxima objetividade cientificamente verificáveis.

Prolongando esta tradição iluminista, cujo mais recente e declarado representante no Brasil é Sérgio Paulo Rouanet, Moreira Leite firmemente acredita que, alcançado o processo de desenvolvimento do saber ilustrado em que a ciência superasse a ideologia, os valores particularistas implícitos nas concepções de caráter, raça e nação seriam ofuscados pela realização da universalidade. Como bem a propósito esclarece a epígrafe por ele extraída do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, "Existe é homem humano".

Recife, outubro de 1997.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

O Caráter Nacional Brasileiro


O Caráter Nacional Brasileiro. História de uma ideologia. 2a. ed. revista, refundida e ampliada. São Paulo: Pioneira, 1969.

Relutante entre iniciar ou concluir meus comentários a partir da epígrafe do livro ("Existe é homem humano", Guimarães Rosa) acabei por adotar uma solução de compromisso que consiste em começar pelo comentário de alguns usos e funções da epígrafe no âmbito da produção intelectual acadêmica. Um dos usos mais correntes a que se presta a epígrafe é o da ostentação de cultura. Mais que uma exibição de credenciais, muitas vezes infundadas, vale tal ostentação tanto para impressionar leitores pouco críticos quanto para validar relações de legitimação de saber no círculo dos pares. Como veremos, não é este o caso da epígrafe adotada por Dante Moreira Leite. Recortada com fino senso de propriedade crítica, condensa ela efetivamente o sentido fundamental da obra. Se a importâcia da epígrafe consiste no seu poder de concentrar em algumas palavras o significado essencial de uma obra, ou a tese central nela contida, não hesito em repetir que o autor procedeu com rara ciência de síntese crítica.
Em suma, desdobrando agora alguns dos significados implícitos na epígrafe, o objetivo perseguido por Dante Moreira Leite é submeter a noção "caráter nacional", que no seu entender não passa de uma ideologia, como já o indica o subtítulo da obra, a uma crítica inspirada no universalismo iluminista. Essa concepção epistemológica percorre o conjunto da argumentação proposta pelo autor mas é sobretudo evidente no capítulo 6, cujo título é "Método de análise das ideologias".

Valendo-se nos cinco capítulos precedentes de instrumentos críticos emprestados à Antropologia, à Psicologia Social, à Sociologia e à História das Idéias, compõe o autor o cenário teórico-conceitual sobre o qual articula seu projeto de crítica ideológica aplicado a um expressivo conjunto de obras destacadas do corpus da cultura brasileira. Bastaria dizer, visando sugerir a abrangência temporal e temática do objeto, que parte da Carta de Pero Vaz de Caminha, documento fundante da nossa tradição letrada, para vir ancorar na produção crítico-nacionalista e universitária dos anos 50 e 60.

Ilustrando um pouco o caráter processual da obra, parte Dante Moreira Leite de uma crítica do que designa como sendo "As raízes do caráter nacional". Dá aqui relevo a categorias de uso corrente na Antropologia: o estranho e o conhecido, de características similares às que Walter Benjamin identifica nas figuras do viajante e do artesão sedentário no ensaio "O Narrador"; etnocentrismo e autoritarismo; nacionalismo; racismo; caráter nacional. Operando com muita perspicácia crítica, não se limita a uma mera contraposição de termos tais como o estranho versus o conhecido. Indo além da aparência imediata, demonstra como à relação de oposição se sobrepõe uma rede de ambiguidades segundo a qual o estrangeiro, que num momento inspira reação de desconfiança ou medo, noutro inspira fascínio e um rico registro de desejos e realidades virtuais. Doutro lado, se o conhecido supõe sentimentos básicos de segurança e familiaridade condensados na experiência de sentir-se parte integrante de um grupo portador de valores e práticas compartilhados pelos membros que o compõem, é também verdade que aqui se insinuam a ambiguidade e a ambivalência sugeridas nos provérbios "ninguém é profeta em sua terra" e "santo de casa não faz milagre".

Aplicando tratamento crítico semelhante aos conceitos de xenofilia e xenofobia, patriotrismo, chauvinismo e autoritarismo, passa o autor à consideração do nacionalismo e do caráter nacional. Refutando William Graham Sumner, afirma que o nacionalismo é forjado pelas elites ilustradas, que por sua vez o transmitem às massas (ver p. 17). A passagem do etnocentrismo ao nacionalismo, fenômeno típico do século XIX, não é contínua ou espontânea. Se o indivíduo tende a vincular-se afetivamente ao meio social imediato (vizinhança, aldeia, cidade onde vive ou viveu experiências significativas), a vinculação com a nação se realiza num grau abstrato. Sendo assim, supõe que o nacionalismo é inculcado através dos meios educacionais e comunicativos acionados pelo Estado moderno. Acrescenta que, embora seja costumeira a distinção entre nacionalismo defensivo e ofensivo, o fato é que o nacionalismo traduz sempre uma atitude de superioridade perante outros grupos ou nações. (cf. p. 18).

O caráter nacional, por sua vez, decorre do Pré-Romantismo alemão, aqui destacando-se a figura intelectual de Herder cujas idéias vão confessadamente influenciar o nacionalismo militante de Mário de Andrade. Como se observa nas expressões gerais do nacionalismo cultural e do caráter nacional, Herder enfatiza o desenvolvimento orgânico das nações, que se exprime numa língua própria. Daí o relevo conferido à originalidade de cada povo condensada nas tradições populares. Como afirma o próprio Dante Moreira Leite,
"Essas teses de Herder, como de modo geral as inovações românticas, eram fundamentalmente ambíguas: de um lado, conduziam à valorização da arte e das tradições populares e, nesse sentido, representavam um enriquecimento da sensibilidade e da inteligência; de outro, conduziam também à valorização do passado e a uma fuga diante da vida moderna. Sob outro aspecto, poderiam conduzir à valorização da individualidade e da nacionalidade, o que era maneira de fugir à monotonia do racionalismo e do formalismo no pensamento e na Arte, na medida em que o sentimento e a intuição pessoal encontrariam meios de expressão; no outro extremo, isso conduzia à incomunicabilidade interindividiual e a uma separação entre culturas supostamente heterogêneas". (p. 30)
A consideração sumária dos conceitos acima justifica-se na medida em que o autor entende que a categoria caráter nacional, objeto central do seu ensaio, finca raízes no solo comum de onde brotaram tais conceitos. Dado que esta resenha, assim como o próprio livro de Dante Moreira Leite, intende concentrar a análise no caso brasileiro, não irei além das referências já expostas. Importaria entretanto acrescentar que o autor concebe o nacionalismo como uma mera justificativa ideológica empunhada por grupos que através dele visam legitimar conflitos pré-existentes localizados nas esferas seja da política, da religião, da economia ou da cultura. (ver p. 25).

Apoiado nos avanços feitos pela Antropologia, a Psicologia Social e a Sociologia, critica Dante Moreira Leite as teses racistas produzidas no contexto cientificista que caracterizou a segunda metade do século passado. Refuta, por exemplo, qualquer relação de causalidade entre raça e características psicológicas, que na verdade se explicam a partir da cultura. Salienta ainda como o desenvolvimento desses saberes, baseados na observação empírica, levou os especialistas em Ciências Humanas a superar o conceito de caráter nacional, que entretanto persiste em estudos de historiadores, ensaístas e filósofos da cultura. Embora frise bem este ponto (cf. p. 41), os capítulos seguintes tratam precisamente do modo como antropólogos, sociólogos e psicólogos sociais prosseguiram desenvolvendo estudos sobre caráter nacional e personalidade básica apoiados em descrições de natureza empírica. Logo, contrariamente ao que sustenta o autor, os estudos sobre caráter nacional não ficaram de modo algum confinados ao domínio dos historiadores, ensaístas e filósofos da cultura. A diferença efetiva que aqui se observa deriva do procedimento adotado (análise intuitiva, no caso destes, contra descrição empírica, no caso daqueles).

Como acima observei, antes de grossseiramente sumariar o conteúdo básico dos cinco primeiros capítulos da obra, é no capítulo 6 que o autor melhor justifica no plano teórico o significado da epígrafe "Existe é homem humano". Partindo da distinção entre teoria e ideologia, acentua que aquela pode ser compreendida em nível bem geral com fundamento no saber objetivo que não seria, por isso, confundível com o nível ideológico ou a racionalização. De outro lado, há entretanto quem afirme que todo saber sobre o homem é inevitavelmente ideológico, isto é, não se realiza independentemente da perspectiva e valores do sujeito cognoscente. Dante Moreira Leite ilustra o primeiro ponto lembrando que as teorias racistas do século XIX não passavam de uma justificação ideológica de interesses colonialistas das nações européias mais avançadas. Tal fato seria demonstrado pelo desenvolvimento de um saber objetivo (não-ideológico, portanto) decorrente dos avanços observáveis na Antropologia Cultural e na Psicologia Diferencial. A ideologia racista seria assim superada por uma "teoria objetiva da cultura, e pela explicação de diferenças de inteligência através de recursos econômicos e educacionais. Também neste caso seria possível demonstrar que a teoria culturalista apresenta um esquema objetivo e universal, pois afirma que as teorias racistas seriam apenas formas complexas do etnocentrismo". (p. 131)

Não podendo, nos limites deste breve comentário, estender-me na consideração desse problema, acrescento, seguindo sempre o autor, que se a primeira alternativa teórica implica a superação da ideologia pelo desenvolvimento do saber científico, a segunda, dado seu relativismo intrínseco, submete qualquer teoria ao princípio da dúvida que no limite torna insustentável qualquer teoria. Esta perspectiva relativista mereceu em obra recente de Sérgio Paulo Rouanet, iluminista mais radical que Dante Moreira Leite, uma crítica devastadora. (Ver O mal-estar na modernidade)

Na parte final do já referido capítulo há uma prova adicional do Iluminismo de Dante Moreira Leite. Propondo uma periodização do caráter nacional brasileiro, define como quarta e última fase "O desenvolvimento econômico e a superação da ideologia do caráter nacional brasileiro". Tal processo de superação do caráter nacional, compreendido enquanto ideologia que permeia um largo período da nossa história cultural, corresponderia à década de cinquenta.

Apesar de Dante Moreira Leite estar sempre criteriosamente matizando suas afirmacões mais categóricas, o final deste capítulo, e sobretudo o Capítulo 18: "Superação das Ideologias", cabalmente comprovam o que eu antes observara a propósito do seu universalismo iluminista condensado na epígrafe do livro. Assim como num dado momento Daniel Bell profetizou, em nome do liberalismo, o fim das ideologias (ver The End of Ideology) e há pouco Fukuyama, reatualizando o ideário liberal, procedeu como espetaculoso coveiro da história (ver O Fim da História), Moreira Leite decreta na sua refinada interpretação marxista de matriz universalista, o truísmo é apenas aparente, o fim da ideologia do caráter nacional brasileiro.

A superação das ideologias consistiria na passagem das interpretações baseadas em fatores psicológicos ou raciais para a explicação de base econômica. Moreira Leite ilustra o fenômeno no Capítulo 18 esboçando a trajetória ideológica de Monteiro Lobato. Partindo de uma explicação inicialmente psicológica, o que caracterizaria a fase propriamente ideológica da periodização proposta pelo autor, chega Lobato por fim, quando se converte em militante fervoroso da industrialização brasileira, à compreensão das verdadeiras causas dos nossos impasses nacionais, que radicam na esfera da economia (conferir pp. 311-2).

Um outro exemplo, referente a Caio Prado Jr., reforça a adesão do autor ao Iluminismo de raiz marxista. Formulando um juízo que se tornou consensual nos domínios da crítica cultural contemporânea, identifica na obra de Caio Prado, notadamente em Formação do Brasil Contemporâneo, uma efetiva ruptura em termos de renovação interpretativa da história brasileira. Seguindo as pegadas de Caio Prado, que adota o marxismo como matriz teórica e identifica no sistema econômico implantado desde os primórdios da colonização a causa última das nossas condições de dependência e atraso, assim se exprime Dante Moreira Leite
"...Caio Prado Júnior representa um momento decisivo na superação do pensamento ideológico: as características da colônia não são determinadas por misteriosas forças impostas pelo clima ou trazidas pelas raças formadoras, mas resultam do tipo de colonização imposto pela economia européia". (pp. 315-6).
No plano da literatura, o universalismo de Dante Moreira Leite se traduz na firmeza com que refuta a dicotomia regional-universal que até a altura da fase de superação das ideologias teria regido o conjunto do processo literário brasileiro. Ao dissolver a dicotomia acima aludida, a grande literatura contemporânea, simbolizada em autores como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, constituiria não mais uma tradução da alma brasileira, ou uma ordem de realidade confinada nos limites da nossa particularidade cultural, mas sim "as situações fundamentais dos homens de outras épocas e lugares". (p. 322)

Como já ressaltei noutra parte, quando Dante Moreira Leite erra, não erra por simplismo ou juízo redutor. Confirmando esta observação, ao procurar propor no fecho do seu livro uma explicação definitiva para a superação das ideologias do caráter nacional, pondera ele algumas possibilidades de explicação para ao cabo cautelosamente contentar-se em avançar uma hipótese sujeita a ulterior comprovação. Eis como a formula:
"... a ideologia do caráter nacional brasileiro passsou a ter menos significação e começou a desaparecer no momento em que as condições objetivas da vida econômica de certo modo impuseram a necessidade de um novo nacionalismo. Em outras palavras, à medida que se acentua a industrialização brasileira, é a economia do país que passa a ser posta em jogo e a luta pela independência econômica substitui as explicações da inferioridade nacional". (p. 327).
Sustentando embora que a obra de Dante Moreira Leite é regida por princípios universalistas, doutro lado assinalando alguns erros de enfoque resultantes dessa perspectiva, importa repetir, agora de um modo diverso, que o conjunto da sua argumentação não é linear. Noutras palavras, longe de atribuir aos fenômenos que analisa, e ao modo como se processa a inserção desses fenômenos no âmbito da história e da cultura, formulações e respostas simples, continuamente acentua a complexidade, quando não os tons contraditórios, com que se traduzem na ordem concreta da realidade. Sendo assim, embora acredite que a epígrafe do livro condensa a interpretação de um estudioso de corte iluminista, ideologia hoje sitiada pelo que uma convenção simplificadora denomina de crise de paradigmas nas Ciências Humanas, não faria justiça a Dante Moreira Leite se deixasse de observar que realiza a crítica de inspiração iluminista no seu mais fecundo e elevado sentido: a crítica que duvida do seu objeto ao mesmo tempo em que se submete ela própria ao exercício implacável da dúvida.

Apreciando agora a validade de sua tese em confronto com algumas das tendências mais recentes observáveis no horizonte da crítica da cultura, espero melhor explicitar o que no parágrafo precedente indiquei como erros de enfoque contidos na perspectiva norteadora da sua interpretação. Uma das tendências mais frisantes é a reavaliação crítica da obra de Gilberto Freyre. Mesmo no âmbito da USP, onde foi mais forte e consistente o movimento de oposição teórica à obra do sociólogo pernambucano, observam-se fatos que claramente sinalizam uma revisão positiva. O que Dante Moreira Leite assim como outros críticos mais "científicos" repeliam na obra de Freyre como sendo inconsistente interpretação impressionista, quando não mero discurso ideológico justificador do sistema de dominação de classe historicamente instituído na sociedade brasileira, merece agora dos estudiosos qualificações críticas mais diferenciadas.

No que se refere ao âmbito específico da historiografia, caberia salientar como, paralelamente à revisão crítica que se processa em torno às obras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, há uma certa retração da magnitude de Caio Prado Jr., unanimemente consagrado como nosso mais importante historiador marxista. Se ampliamos o campo de observação para a cena internacional, parecem também sintomáticos os percursos de Simon Schama, Peter Burke e Penelope Lively, historiadora convertida em celebrada ficcionista na Inglaterra. Para concluir, o fenômeno sem dúvida mais notável radica no amplo processo de revisão historiográfica denominado Nova História.

A dinâmica sob certos pontos de vista desnorteante da cena cultural contemporânea indica com clareza o que no debate acadêmico já se vai banalizando como expressão e sintoma de uma crise de paradigma nas Ciências Sociais. E essa crise é indissociável de um realinhamento geral do sistema ideológico e intelectual. Valores até há pouco ignorados ou hostilizados, como seria o caso de Gilberto Freyre, são agora considerados de um modo tal que o que fora antes visto como abuso subjetivista no plano epistemológico adquire estatuto de excelência interpretativa; o que no plano ideológico inspirava críticas acerbas, quando não puro e simples silêncio, agora é reintegrado ao horizonte crítico da cultura, como atestam o teatro de Nélson Rodrigues, o unânime reconhecimento do gênio de Jorge Luís Borges; a celebração de companheiros de viagem incômodos, como Ernesto Sábato; uma concepção de historiografia crítica liberta do compromisso de realizar a macro-história, ou ainda as grandes narrativas, como diria o epistemólogo pós-moderno François Lyotard, aderente aos feitos de uma suposta saga revolucionária inscrita na escala do tempo passado, desdobrada na linha do presente e por fim projetada na dimensão utópica do futuro.

Não obstante os erros contidos na interpretação proposta por Dante Moreira Leite, que decorrem fundamentalmente da perspectiva iluminista em que se situa, O caráter nacional brasileiro subsiste nos quadros da cultura brasileira como um dos nossos mais agudos ensaios de crítica ideológica, vertente à qual se seguiram nos anos setenta obras como Iseb - Fábrica de Ideologias, de Caio Navarro de Toledo, Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil (1920-1945), de Sérgio Miceli e Ideologia da Cultura Brasileira, de Carlos Guilherme Mota. Além de valer pela excelência da concepção e tratamento estilístico conferido ao amplo material analisado dentro do espírito do nosso melhor ensaísmo de síntese, realiza Dante Moreira Leite uma fecunda interpretação de cunho interdisciplinar recolhendo com largo senso de propriedade crítica elementos emprestados à Antropologia, à Psicologia Social, à Sociologia, à Literatura e à História das Idéias. Disso resulta um impressivo painel no cerne do qual as insuficiências decorrentes da tese central em nada abalam a construção e o mérito da arquitetura geral da obra.
São Paulo, maio de 1995.