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sábado, 2 de julho de 2016

No Mural do Facebook XIX


O exemplo de Drummond:

Penso que Drummond é o maior poeta brasileiro. Por isso leio seus poemas rotineiramente. Sua obra é a minha bíblia que não tenho e por isso não rezo. Quando irrompeu talvez a mais extrema crise da civilização nos anos 1930 e 1940, com o mundo dilacerado por totalitarismos de direita e esquerda, Drummond se engajou engajando também sua poesia. Disso resultou A Rosa do Povo, a obra poética que melhor harmonizou a estética e a política. Não tardou para que se desiludisse com o Partido Comunista Brasileiro e desistisse da política militante. Continuou participando enquanto cidadão e escritor público. Como todo intelectual liberto de fantasias ideológicas, foi sempre tentado pelo ceticismo e até o niilismo. Os exemplos contidos na sua obra poética são muitos. Cito o primeiro que me vem à memória: o belo Cantiga de enganar.
Um dia ele escreveu num poema: "meu verso é minha cachaça".
Também Freud, modelo no qual igualmente me inspiro, afirmou que o ser humano não suporta viver sem algum tipo de droga. O mundo é uma sucessão de desastres porque poucos são capazes de inventar um modo criativo de droga, o tipo de droga que concorre para melhorar o mundo ou pelo menos frear nossas pulsões destrutivas. Muitos dos que militam na política, notadamente os intelectuais, confundem-na com uma forma secular de religião. São idealistas, arrogantes portadores de ideologias libertadoras do povo oprimido e alienado. Não há como avaliar as devastações que provocaram ao longo da história humana, sempre, claro, em nome dos mais belos ideais. Confesso que a experiência ensinou-me a fugir desses idealistas. Aprendi a fugir deles, também a temê-los, pois sei que seus ideais sempre acabam em banhos de sangue e opressão.
Há quem louve a falta de convicção e caráter da maioria dos brasileiros. Alegam que isso nos imuniza contra a tentação das soluções extremas. Será que têm razão? Será que os males de formação do nosso povo nos poupam de males ainda maiores? Ainda que isso seja verdade, não me conformo em viver num país tão injusto e cruel ao ponto de me obrigar a reconhecer que o instituto da delação premiada, por exemplo, é um mal necessário. Quer dizer, o bandido faz carreira e fortuna corrompendo e roubando, depois grava tudo que conversa com os cúmplices, entrega todos à polícia e é premiado com prisão domiciliar numa mansão com garagem para dez carros, quadra de tênis e outros privilégios. Pensando bem, não vale a pena seguir o exemplo de Drummond.
(Postado no Facebook, 29 de junho de 2016).

Do Petrolão ao Safadão

Dizem que o Ministério Público e a Polícia Federal começaram a escavar o esquema de corrupção no poço dos megashows que se tornaram rotina em cidades interioranas. Se os serviços já são o que são nas capitais, imagine-se nos grotões que hoje fornecem circo eletrônico ao povo faminto. Espero que escavem o poço, todos os poços da bandidagem e depredação do Estado que vai do Petrolão ao Safadão. Logo ficará claro por que tantos artistas militam em defesa do PT alegando belas razões ideológicas. É claro que a corrupção também envolve os outros partidos, todos os partidos e o conjunto da sociedade brasileira.
Quem pensa que a podridão do reino da Dinamarca é obra do PT, nada sabe do país onde vivemos. Se brincarem, a única alma honesta que vai sobrar será a minha, não a de Lula. A culpa não é minha, mas de quem não tentou me corromper.
Por fim, já que tantos andam clamando contra a cultura do estupro, lembro que muito mais grave é o estupro da cultura. Só Deus sabe o que ela sofre todos os dias neste país de artistas safadões e políticos que reafirmam a genial criatividade brasileira. Sem serem cineastas (o Brasil tem algum?), os políticos inventaram um novo gênero cinematográfico: o da Política Mafiosa. Está em cartaz 24 horas por dia em todo o noticiário midiático. Censura livre, almoço grátis e delação premiada.
Como diria Macunaíma, o Safadão da cultura brasileira, tem mais não. Isto é, digo eu, tem ainda: ou os políticos acabam com a Lava Jato ou esta transformará o Brasil no país da da prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Quem sobrará para jogar bola e batucar o samba no pé no país do futebol e do carnaval?
(Postado no Facebook, 24 de junho 2016).


quarta-feira, 26 de março de 2014

Memórias de um leitor VIII

                                                                            
Retomo o fio da narrativa lembrando que  meu assunto presente é ainda a função formadora dos livros. Diria ainda mais: sua função terapêutica, fonte de consolação nos momentos de dor e desamparo. Em determinadas circunstâncias, como algumas que eu próprio vivi, o livro pode desempenhar o papel do amigo ou da força de amparo e renovação que nos falta na realidade das relações pessoais. O socorro espiritual que nos presta, a companhia na solidão carente de voz significativa, por vezes o livro pode ser isso na nossa vida. Quando a doença grave sobrevém, por exemplo, e sem aviso se apossa do paciente que não tem nem onde cair morto. Quem não ama os livros, quem não lhes cultiva a companhia, está com certeza bem mais exposto ao desamparo que nos assalta na hora da fatalidade. É exatamente nessa hora, a da fatalidade, que mais precisamos do outro, da sua ajuda e companhia consoladora. Mas quantos têm de fato a ventura de contar com esses suportes humanos? Quem nos concede companhia significativa e desinteressada quando a doença nos priva de autonomia expondo-nos à dependência do outro?
Os livros nada sabem de medicina, salvo evidentemente os que versam sobre este assunto,  e portanto são impotentes para salvar um jovem enfermo, desempregado e sem vintém. Logo, a medicina salvadora não proveio deles. Deles proveio a companhia que suprime o tédio dos enfermos, do corpo e sobretudo da alma, a solidão que sobrevém quando o corpo adoece e o enfermo é condenado ao isolamento de uma cama e quarto. O que fazer então da vida e do tempo paralisados sobre o colchão do enfermo solitário? Os supostos amigos desaparecem e então fica claro que as amizades de farra, de festa e botequim, prevalecentes na nossa inconsciente experiência da amizade, nada valem. O enfermo precisa enfim lidar consigo próprio, com sua solidão e com o tédio das horas que se arrastam impiedosas no quarto vazio de vida e humanidade. Posso no entanto afirmar por experiência própria que o enfermo leitor está isento dessa forma de dor e desamparo. Ele tem os livros, a companhia do semelhante imaginário que ilumina e imprime sentido à sua doença, sua solidão, seu desamparo de enfermo.
Embora longe de depreciar o amor e a solidariedade de Rejane e Semadá, amiga que conquistei na hora da adversidade, uma das mais poderosas evidências da amizade verdadeira, foi na companhia dos livros que ancorei minha carência de vida significativa. A leitura que acima de tudo ilustra essa experiência é a do Dom Quixote, de Cervantes. Li-o no momento ideal, quando dispunha de todo tempo do mundo para ler, já que forçado ao repouso absoluto, atado à cama dos enfermos. Foi então que pedi a Rejane que tomasse de empréstimo à Biblioteca de Afogados a edição em cinco volumes, primorosamente ilustrada por Gustave Doré, editada pela José Olympio. Nunca um livro me transformou de forma tão radical. Estava ainda sob o efeito sombrio da doença e do medo da morte quando comecei a ler aqueles volumes pesados. Pois logo mergulhei num mundo de transfiguração imaginária da vida tão imprevisível que cheguei ao extremo de inspirar temores a Rejane. Surpreendendo-me às gargalhadas quando o livro gargalhava, tagarela quando o alucinado Dom Quixote e seu escudeiro também delirante arengavam pelas estradas da Espanha, Rejane começou a duvidar de minha sanidade. Até Ednaldo precisou prescrever-me Somalium, o Lexotan da época, para induzir-me a dormir com alguma regularidade e assim estar desperto nos horários prescritos para a medicação necessária à minha cura.  À leitura do Dom Quixote acrescentei a audição continuada das sonatas e partitas para violino solo, de Bach. O intérprete era Heifetz. Ainda hoje ouço essas gravações que me comunicam uma experiência de beleza indizível. A companhia dos livros e da música tornou-se tão preciosa nesse momento difícil de minha vida que ao cabo, tendo já como certo meu regresso à vida saudável e normal, fui muitas vezes seduzido pelo desejo de continuar doente, de não mais reatar os vínculos ordinários e previsíveis com a vida.
Nas circunstâncias acima descritas, o livro nos concede mais do que companhia ou remédio para a solidão dos enfermos. Se importasse apenas para isso, poderia ser substituído pela televisão, um filme qualquer reproduzido num aparelho de DVD, assim como outras alternativas imagináveis num mundo cuja revolução tecnológica propicia múltiplas formas de anulação do isolamento individual. Para mim, a obra de Cervantes e a de Bach representaram muito mais do que mera companhia povoadora do longo estado de enfermidade que me reteve na cama. Ambas constituíram fonte de enriquecimento espiritual, de expansão da minha consciência e sensibilidade. Embora incapaz de traduzir em palavras o sentido radical dessa experiência estética, tenho ainda consciência de que a vivi e portanto sei o que significou para a minha vida, em particular para as circunstâncias adversas que então vivia.
Observei ainda, como por certo notou o leitor atento, que fui tomado pelo desejo de continuar doente. Volto a retomar este detalhe por me parecer que remete à compreensão da obra de arte investida de dupla funcionalidade: enquanto uma funciona como via de evasão da realidade, a outra nos devolve a esta enriquecidos pela sensibilidade e a consciência renovadas graças à obra que funde princípio de prazer e princípio de realidade, para lembrar aqui uma das polaridades conceituais propostas por Freud. Impregnado pela ideologia cientificista dominante na época de sua formação, Freud não raro se contradisse ao considerar a arte psicanaliticamente. Leitor refinado da melhor tradição do humanismo clássico, que remonta aos trágicos gregos desaguando em alguns dos seus contemporâneos, Freud expressou muitas vezes a consciência de que a dupla funcionalidade da arte acima indicada não implica, nas obras de autêntico valor estético, anulação de uma pela outra. Noutras palavras, a função evasiva funde-se à função transformadora da nossa relação com a realidade.
O próprio Freud nos fornece a melhor evidência dessa verdade. Quando recebeu o Prêmio Goethe de Literatura e foi saudado como o descobridor do inconsciente, teve a humildade, rara num homem dotado de ousado e confessado orgulho de conquistador na esfera do pensamento, de afirmar que o inconsciente foi descoberto bem antes dele pelos poetas e grandes inventores da literatura. Logo, a natureza fantasiosa da arte, expressão do princípio do prazer, não anula a possibilidade de a fantasia atuar sobre a realidade e portanto transformá-la. Se Freud foi por vezes incapaz de reconhecer essa verdade, o erro decorreu da impregnação da ideologia cientificista de sua época. Embora sem recorrer à psicanálise, contrário ou favorável a ela, Mario Vargas Llosa abordou frequentemente essa questão na sua obra, notadamente em La verdad de las mentiras, livro no qual estuda com sensibilidade e penetração crítica alguns dos mais importantes e influentes romances do século 20. Os textos de abertura e fecho da obra, intitulados La verdad de las mentiras e La literatura y la vida, exploram muito bem a questão que tentei esboçar acima.
E o que dizer agora da poesia, da forma como convencionalmente a representam as pessoas ajuizadas, a maioria esmagadora dos mortais aderentes aos movimentos pragmáticos da vida, à norma imperativa que nos incita a acreditar que a educação é meramente um instrumento de ascensão social e por conseguinte importa apenas na medida em que se traduz em inserção no mercado, sucesso profissional e muito dinheiro na conta bancária?  Se o intelectual, como antes ressaltei, é um tipo subordinado a representações sociais ambíguas, o poeta é definitivamente um caso perdido na história de qualquer família, um desastre corroendo os cálculos e ambições materiais de qualquer pai que tenha a desgraça de gerar esse tipo incapaz de ajustar-se aos códigos práticos da vida. Dou um outro salto no tempo para melhor ilustrar o que um inútil dessa natureza pode fazer em benefício de um gauche como eu. Uso o termo gauche bem a propósito, pois o poeta em questão é Carlos Drummond de Andrade.
Salto para o ano de 1980. O espaço dentro do qual me movo é São Paulo, a macota cidade, como diria o moleque Macunaíma. Tudo que fiz de prático ao me mudar para São Paulo foi transpor para lá, para aquela selva de concreto que me deixou aturdido durante muitos dias, a minha vida sem rumo, minha vida de judeu errante. Estava novamente sem um vintém no bolso. Literalmente à mercê do desamparo das ruas frias e indiferentes à minha desgraça, lembrei-me providencialmente de telefonar para Cleisa Maffei. Não a conhecia. Tudo que dela sabia era o seu telefone, anotado na minha agenda e fornecido por Denis Bernardes que em Olinda, pouco antes de minha partida, falou-me um pouco de Cleisa. Conheceram-se em Paris, ambos estudantes de pós-graduação.
Liguei para Cleisa e fui generosamente acolhido. Quando lhe relatei a situação em que me encontrava, convidou-me para morar provisoriamente no seu apartamento, onde vivia sozinha. Durante meses vivemos uma relação que nos marcou muito. Levei para o seu mundo de mulher pragmática, - professora da PUC, mas sobretudo militante em defesa dos pobres e miseráveis com quem trabalhava como assistente social – a sedução transfiguradora da literatura e da música. Lembrando o título do romance hoje esquecido de Orígenes Lessa, O feijão e o sonho, enquanto ela era a provedora do feijão, eu em troca lhe dava sonho, a imaginação sedutora e vagabunda de Macunaíma, que nessa época descrevia incríveis cambalhotas na minha vida. Além dele, vivia povoado por toda a obra de Mário de Andrade, então o autor que mais intensamente lia e se infiltrou de mil modos na minha vida e na minha imaginação, até porque era o centro do meu projeto de dissertação de mestrado, a fonte irradiadora de minha vida imaginativa naquele momento.
Precisei ralar a paciência do leitor esboçando acima o contexto autobiográfico necessário para adequadamente introduzir a poesia de Drummond nas trepidações que então assaltavam minha vida. Uma noite o telefone toca. Era minha irmã Zuleide ligando do Recife. Deus sabe, já não eu, como conseguira me localizar. Ligou para me dizer que papai estava gravemente enfermo, internado num hospital e tinha provavelmente poucos dias de vida. Até aquele momento me iludira supondo que tecera e emendara em mim os fios entrançados que me prendiam a meu pai. Afinal, remoí e sofri durante anos, nas lutas surdas com a vida e minha memória de família atormentada, tudo que podia retraçar, ordenar e tecer com uma lucidez e capacidade de sofrer e decantar a experiência que tinham muito de ilusório. Os vínculos com o passado, os traumas de família ainda me pesavam tanto que de repente me vi sentado no chão, o telefone ao ouvido, e as lágrimas escorrendo dos meus olhos. O telefonema de Zai, como carinhosamente ainda costumo chamar minha irmã, foi um choque tão grande que perdi a capacidade de dormir. Durante vários dias fiquei sem pregar olho, lutando com meus fantasmas, bebendo, pois então bebia muito, e nada de me pacificar, de me reconciliar com o sono tão necessário.
E eis que de repente o milagre desce sobre mim. Tão próximo, tão íntimo naquelas noites frias e embriagadas sofridas na macota São Paulo, que nem dei por ele nas primeiras linhas do poema. A fonte do milagre foi um poema de Drummond: Os últimos dias, incluído em A rosa do povo. O poema foi gradualmente me penetrando as camadas mais profundas da sensibilidade fatigada pelo peso da insônia. Dele fluíam em ondas líricas os sentidos profundos do fim último da nossa condição, a finitude da matéria “que a terra há de comer”, como diz o verso de abertura do poema. Pela primeira vez lia este poema, Os últimos dias, não mais como um poema neutramente belo e tocante. Naquele momento intraduzível ele vibrou nas camadas mais líricas e íntimas do meu ser. E então vi meu pai, a matéria finita, desdobrando-se no tempo imaginário, atravessando o longo e tumultuoso rio do tempo para afinal dissolver-se na corrente que também a mim um dia me tragará. E uma grande serenidade, uma grande paz desceu sobre a minha noite de insônia e pude enfim, depois de ainda lutar contra a insônia de tantos dias, pude enfim dormir em paz.
Nas noites seguintes, entretanto, a insônia voltou a rondar o quarto. Uma intuição inexplicável, como tantas que irrompem na vida, salvou-me de vez das garras da insônia. Tive a luminosa ideia de gravar minha própria voz lendo uma seleção dos poemas de Drummond eleitos como meus favoritos. Comecei com Os últimos dias e assim gravei uma fita inteira de 60 minutos. Concluída a gravação, acionei a tecla play, apaguei as luzes e me deitei completamente receptivo à audição dos versos de Drummond que me foram acalmando, ajustando as peças soltas do caos interior, remendando fios rompidos, recobrindo meus desertos com a luminosidade lírica de uma beleza, uma luz pacificadora que me transportaram à sonhada e necessária morte momentânea propiciada pelo sono. Assim, graças ao poder milagroso da grande poesia lírica, reacomodei a memória do meu pai em mim, prendi minha mão na sua mão invisível e cansada, tão doce e passivamente sofrida, e no fundo da noite insondável me vi refletido no espelho das águas imaginárias onde também se desenhava a figura comovente do meu pai.  
A poesia, a inútil poesia desprezada pelo burguês sempre pragmático, mesquinhamente reduzido a seus cálculos, que vão das operações elementares da matemática ao saldo bancário acumulado durante uma vida inteira impermeável à poesia, a qualquer experiência de ordem gratuita, a poesia é sem dúvida inútil mensurada segundo esses princípios estreitos. Fazendo justiça ao burguês, que aqui reponta bem mais como uma caricatura, não é ele o único a desprezar a poesia, a simplesmente ignorar-lhe a existência inútil. A maioria das pessoas, aqui incluídos muitos intelectuais demasiado pragmáticos para perder um minuto do seu tempo lendo um soneto ou um poema curto, acha simploriamente que a poesia não tem nenhuma importância. Talvez tenha para seduzir uma mulher, ou para propiciar um momento de brilho narcisista durante um sarau literário. Restrita a essas funções mundanas, contudo, ela está ainda subordinada ao cálculo mesquinho dos pragmáticos.
O que pretendi sugerir relatando as circunstâncias que me levaram a assimilar de forma mais profunda um poema de Drummond foi algo de natureza mais decisiva para nossa condição humana. A poesia, assim como a filosofia, remete no fundo às questões últimas da nossa existência. Abstraídas as especulações mirabolantes dos técnicos, não poucos filósofos profissionais, também alguns poetas que fazem do ensino da poesia um meio de sobrevivência, a poesia e a filosofia constituem, na sua expressão mais radical, uma interrogação sobre a experiência substantiva do ser humano. E essa experiência pode ser resumida nestes termos que identificam nossa experiência essencial e inescapável: o sentido da vida, o amor, o tempo, a perda, o sofrimento e por fim a morte. É claro que poderia acrescentar mais alguns substantivos que em síntese definem nossa condição e passagem por esse mundo. Mas fiquemos com a poesia assim mal formulada. Na voz dos grandes poetas, ela diz tudo que importa.



quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Drummond



Releio Farewell, o último livro de poemas de Drummond. Estou agora vivamente impressionado com o fato de não haver antes concedido a este belo e sofrido livro a atenção merecida. Estava ontem remexendo as prateleiras à procura de uns livros e de repente o vi diante de mim. Abri-o ao acaso e logo o primeiro poema me tocou profundamente. Então deixei-o à cabeceira de minha cama, pois queria ler alguns outros antes de dormir. Foi o que de fato fiz. Novamente senti-me tomado por sensações intensas, como se a voz de Drummond, sussurrando-me segredos provindos do fundo do tempo, misteriosamente ressoasse na madrugada fechada sobre o meu quarto. Lendo os poemas, em muitos, com certeza mais que em qualquer dos livros canônicos de Drummond, retive a dor estoica com que se debruçou sobre a velhice tardia, no fundo de tudo recolhendo a dor do farewell definitivo. Um passo além e me vi retraçando a linha embaçada do niilismo insinuando-se em entrelinhas dolorosas. Por fim me vi a mim próprio lentamente deslizando para a borda do abismo que tragou meu amado Drummond, assim como um dia também me tragará. Foi quando o poema abaixo quase que se fez em mim, pois pouco, bem pouco o trabalhei depois de me sentar à mesa para rabiscar os versos, alterar-lhe duas rimas e acrescentar-lhe a estrofe de fecho.
Drummond
Drummond Drummond
Tão longe vibrava o som
Que o ouvido se confundia
Entre teu nada e teu tom.

Drummond Drummond
Tão perto retinha o som
Que o eco se refazia
E o mundo enfim era bom.

Drummond Drummond
Que trilha percorre o som
Quando o que era poesia
No nada já dissolve?

E nada aqui se resolve
Nada no antes, no além
Pois tudo que o ouvido ouve
Não é Drummond nem ninguém.

Recife, 17 de agosto de 2010.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Deus me livre de ser mulher III


Concluo minha série de crônicas sobre as relações entre o homem e a mulher invocando razões sobremodo pessoais para gostar de ser homem. Antes de tudo, é por ser homem que posso amar a mulher num sentido incogitável para uma mulher. Não esqueço de que existe o amor lésbico, cada vez mais corrente. Confesso que sempre achei belo e delicado o amor entre mulheres. Talvez meu modo de figurá-lo seja apenas fantasioso, mas o fato é que sempre me sensibilizou. Nunca me incomodou, pelo contrário, saber que minhas namoradas, quando o amor lésbico era bem mais reprimido, tinham amigas lésbicas. Embora não tenha nenhum preconceito contra o homossexualismo masculino, nunca consegui fantasiá-lo ou simplesmente imaginá-lo revestido dos tons de beleza e lirismo que associo ao amor lésbico.

Já que comecei aludindo ao amor homossexual, aproveito a cadeia associativa (quase sempre meu processo de composição escrita, como ressaltei no segundo texto desta série) para declarar minha posição ética e ideológica acerca do assunto. Sou liberal. Não o confundam com o sentido recentemente adotado em sites de prostituição. Se bem entendo este novo sentido adicionado a um termo tão polissêmico e incompreendido, ser liberal é topar tudo, como antes se dizia nos ambientes de língua solta. Sendo mais preciso, talvez convenha dizer que é topar tudo, em particular sexo anal. Voltando ao sentido que tinha em mente e de resto aqui defendo, sou liberal dentro da tradição do liberalismo anglo-americano. No Brasil, infelizmente, liberal é quase sempre um insulto ideológico, mesmo depois que a hegemonia do pensamento de esquerda ficou confinada na academia, sindicatos e outros nichos da política avessa ao liberalismo e à direita em geral.

Liberalismo e socialismo são linhagens ideológicas que ganharam força na primeira metade do século 19. No decurso desse período eles se afastaram, já que a burguesia triunfante traiu os ideais progressistas contidos no liberalismo. Mas este, tão ou mais ambíguo do que o socialismo, desenvolveu a tendência com a qual me identifico: a que postula a igualdade de gênero, a autonomia do indivíduo perante o Estado, com certeza sua característica essencial, e a democracia social. A direita liberal tende a reduzir a democracia a fundamentos puramente econômicos, isto é, reivindica antes de tudo a autonomia do indivíduo perante o Estado como se tal autonomia se reduzisse à liberdade econômica. Neste sentido, concordo com a crítica curta e seca de marxistas e afins: de que me serve a liberdade para morrer de fome?

Ora, é justamente por lutar pela autonomia do indivíduo não apenas enquanto agente econômico, mas também enquanto cidadão e membro de um gênero, que o liberalismo esteve e está na raiz dos movimentos de liberação hoje mais ativos do que os movimentos políticos convencionais. Refiro-me, noutras palavras, ao feminismo, aos movimentos em defesa dos direitos das minorias etc. É pena que o desenvolvimento do liberalismo no Brasil, associado sobretudo aos movimentos de direita, nos impeça de reconhecer o papel decisivo que a tradição liberal desempenhou no sentido de ampliar a conquista e exercício dos direitos humanos. Por essas e outras, acima de tudo por considerar a representação político-partidária do liberalismo no Brasil, sempre me constrangeu afirmar minha filiação ao liberalismo. Tanto me constrangeu que somente há bem pouco tempo ousei declarar-me liberal. Friso ainda que, em termos de representação política oficial, não seguiria nenhum dos partidos que se declaram baseados em ideais liberais. Noutras palavras, liberalismo para mim é um conceito investido de conotações antes culturais do que políticas.

Retomo o veio do meu argumento relativo ao homossexualismo para salientar que é precisamente por me definir como liberal que me sinto livre para defender os direitos do amor homossexual, os direitos de todas as minorias, em suma, a autonomia do indivíduo perante o Estado. Especificando: autonomia política, econômica, religiosa, sexual etc. Saindo dessas abstrações que por vezes me confundem, pois bem pouco conheço a história das ideias políticas, há muito me espanta o fato de tanta gente ser moralmente tolerante, quando não cúmplice, de políticos comprovadamente corruptos, de criminosos cujas infrações à lei resultam em danos sociais devastadores e todavia ser impiedosa no exercício do preconceito contra o homossexualismo. Ainda que se admita que este é moralmente recriminável, que mal ele causa a mim ou a quem não o pratica? Nesse sentido, acredito que a intolerância encerra um ingrediente inequívoco de insegurança psicológica acerca do que somos. A norma que deveria reger nossa atitude moral perante o homossexualismo parece-me simples: na medida em que não interfira na liberdade do outro, o indivíduo é livre para fazer sexualmente o que quiser.

Dei tantas voltas, errei acima através de tantos becos que acabei perdendo a mulher de vista. Como dizia, preciso ser homem para desfrutar do privilégio de amar a mulher como somente o homem a pode amar. Minha grande ventura foi amar e ser amado pela mulher. É uma experiência indizível que, na medida do que pude e precisei, notadamente quando sofri a dor e a perda, quando precisei limpar a chaminé da minha memória atormentada pelo amor ido e perdido, tentei toscamente traduzir em poema, em prosa lírica, em estados de epifania irredutíveis à palavra. Além disso, senti-me sempre tolhido pela consciência de que trato de uma ordem de experiência privada. Quando falo de amor, implico o outro, a mulher que não me autorizou a identificá-la e despi-la nas linhas da minha crônica. Portanto, além de defender minha própria reserva, minha própria privacidade, importa ainda mais preservar a privacidade de quem amei, de quem mergulhou comigo nos labirintos inconfessáveis da carne, da intimidade inefável.

De resto, é devido às razões acima grosseiramente expostas que detesto a cultura da exposição narcisista dominante no cenário contemporâneo. Repisando um trocadilho preciso, as pessoas se evadem da privacidade com um gozo de ostentação e vulgaridade que me inspira aversão. Não vou, portanto, incorrer nas práticas que reprovo. Sendo assim, encerro minhas três crônicas num tom decerto banal para quem se meteu a levantar tanta poeira nas páginas precedentes. Seguindo com uma distinção que me parece oportuna, critico o discurso sobre o amor e o sexo na medida em que se confunde com a vulgarização que sempre o rebaixa, além de remover seus objetos da esfera privada para a exposição contaminada pelo exibicionismo, a vaidade, a inveja, a ostentação de poder, todos esses modos de ser negativos incompatíveis com o amor e o sexo tal como os entendo e procuro vivê-los.

Esclarecendo a distinção acima proposta, afirmo hoje que o amor precisa manifestar-se em palavra, precisa sempre prodigamente declarar-se ao outro amado. Num poema tardio (“Quero”, incluído em As impurezas do branco), Drummond enfatiza o quanto precisa do amor declarado, o amor traduzido em palavra à exaustão repetida. Somente assim, frisa o poema, o poeta se sente amado. Lendo um dia esse poema, lembrei-me do quanto durante muito tempo me deixei trair pelo engano de que o amor deveria manifestar-se em ato, não em palavra. A palavra é fácil e frequentemente falsa. Isso todavia não anula a necessidade que temos de acreditar no amor do outro porque ele o declara. Talvez precisemos desse tipo de certeza precária ou confirmação simplesmente porque somos demasiado vulneráveis à incerteza, duvidamos demais do amor, duvidamos ainda da medida em que o merecemos. Além do mais, não bastasse a dúvida latejando na raiz do ser, duvidamos da sua duração quando o acreditamos real. Ele é hoje, mas será também amanhã? Essa insensatez corrói o amor, chega com frequência a ameaçá-lo, mas é com toda essa fragilidade insensata que no geral amamos.

O que sei é que aprendi, decerto tardiamente, porém ainda a tempo, aprendi a dizer o amor. Quando doravante voltar a vivê-lo, pois há ainda tempo para amar e amar com a maturidade serena que em mim tenho lavrado, direi o amor sempre que possível e necessário, sempre até quando prescindível. Nossa experiência do amor, nossa carência dele, tudo isso é incerto demais, precário demais para que a gente se contente simplesmente em vivê-lo enquanto ato. O poeta tem razão: é preciso dizer sempre o amor, dizê-lo todos os dias, quando de fato amamos. Contudo, é preciso antes encontrar o amor. E a verdade que antes a mim me toca, que antes em mim me fere, além da que observo à minha volta, é que andamos pobres de amor, andamos desavindos do amor. Assim, como tem sido difícil valer-me do privilégio de ser homem para amar a mulher num sentido somente concebível para quem é homem!

Já que acima aludi a Drummond, que até em matéria de amor é mais meu poeta do que românticos extremos como Vinícius de Moraes, concluo citando a quadra inicial de um dos seus poemas que não me canso de ler:
“Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva”.
Recife, 7 de agosto de 2012.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Literatura e Inconformismo


A sociedade encara a literatura regida por um princípio de ambiguidade inconsciente que me parece digno de algumas reflexões. Num mundo regulado pelo princípio da utilidade, é compreensível, senão lógico, que seja encarada com suspeita, ou pura e simples rejeição. Afinal, salvo exceções facilmente assinaláveis, bem poucos vivem profissionalmente da literatura. Pensando melhor, essa não me parece uma razão suficiente para a suspeita ou rejeição que acabo de registrar. Bem antes da montagem de uma sociedade regida pelo capitalismo mais estreitamente utilitário, a literatura era já castigada pela rejeição social. Portanto, as razões não seriam apenas de fundo prioritariamente econômico. Além destas, recai sobre a literatura a rejeição movida pelo espírito pragmático compreendido numa dimensão mais ampla. Quero dizer, não é apenas o pragmatismo econômico que a ela se opõe, mas também o pragmatismo mais geral que se arrepia em face da mentira, que reivindica diante da realidade uma atitude... realista.

Outra razão adicional, igualmente fundamental, reside no inconformismo gerado pela literatura. Imaginar uma outra vida, figurar através da literatura a experiência do outro, também a de ser o outro, isso constitui uma poderosa força de inconformismo. Buscamos viver na literatura outro modo imaginário de vida, identificamo-nos com o outro nessa experiência porque a vida que vivemos não nos contenta. Viver dentro do horizonte apertado da vida real, da vida empiricamente apreensível, é algo que nos oprime. Queremos ser outro porque somos inconformados com a vida tal como é.

É precisamente aqui que se insinua a ambiguidade assinalada na abertura deste artigo. A mesma sociedade que rejeita a literatura por ser o avesso da realidade, por ser produto da imaginação ficcional, é a mesma que não suporta viver amordaçada pelo princípio exclusivo da realidade. A evidência apreensível nos estudos de sociologia e antropologia da arte demonstra como toda sociedade necessita do seu quinhão, ponhamos quinhão nesse saco, de fantasia, de reinvenção imaginária da realidade. A explicação para esse fato me parece residir na necessidade que temos de viver imaginariamente uma outra vida, na necessidade irreprimível de ser outro.
É nesse sentido que ouso afirmar a verdade seguinte: a necessidade de literatura, aqui compreendida no sentido genérico de expressão imaginária da vida, traduz o inconformismo entranhado na condição humana, o inconformismo que nos impele a viver imaginariamente uma outra vida. É isso o que move todo ser humano à busca do seu quinhão de fantasia manifesto numa infinidade de ações e formas de recepção humana. Bastaria pensarmos no consumo massivo de telenovelas, de enredos imaginários de todo tipo. A fantasia intervém de forma tão onipresente na nossa existência que somente um positivista caturra, um insuportável coletor de fatos ou mensurador de evidências palpáveis, ousaria afirmar categoricamente a distinção entre fato e ficção, entre vida factualmente vivida e vida imaginária.

É por atuar como um poderoso estímulo à imaginação transformadora da realidade que a literatura tem sido sempre perseguida, controlada, em último caso proibida. Nas sociedades reguladas por padrões repressivos da imaginação e da prática erótica, por exemplo, o Estado, a religião, a educação e todo o sistema de controle do imaginário impunham antes de tudo à mulher, pensemos nas sociedades patriarcais como as que se formaram no conjunto da América Latina, a proibição dos livros de ficção. Até às vésperas da revolução dos costumes que abalou as sociedades ocidentais na segunda metade do século passado, muitas obras perigosas, devido a seu alto teor erótico, eram vedadas aos olhos da mulher, quando não vetadas no mercado editorial. Pensemos, por exemplo, no Ulisses, de James Joyce, e n´O Amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence. Eu próprio, na minha juventude, assisti ao controle moral imposto às mulheres de minha geração diante das obras de Henry Miller, Anais Nin e do pernambucano Hermilo Borba Filho, seguidor confesso do veio literário aberto ou renovado por Henry Miller.

Drummond observou certa vez que, contraposta à realidade, a literatura pode ser metaforicamente compreendida como se tivesse duas portas: uma que fosse via de fuga da realidade, outra uma via de penetração mais profunda na própria realidade. Somente as pessoas bem pouco letradas figuram a literatura como sendo, em bloco, o avesso indesejável da realidade, um mal que deveria ser sempre evitado. Noutras palavras, reiterando a distinção proposta por Drummond, uma simples via de fuga ou alienação da realidade.

Drummond, aliás, ilustra de forma admirável essa representação metafórica da literatura como um percurso existencial de mão dupla. Foi provavelmente ela, a literatura, quem o salvou da acomodação alienante dentro da máquina burocrática que lhe assegurava sustento material provavelmente ao preço de muito conflito moral e ideológico. Bem o podemos imaginar como um ser duplo, como Machado de Assis e tantos outros burocratas brasileiros que fizeram da literatura sua expressão de inconformismo e fuga da vida besta, um intelectual cindido entre a repartição pública e a reinvenção imaginária do real. O homem que durante o dia despachava como chefe de gabinete do Ministro de Estado Capanema era o mesmo que à noite, ou nas folgas da rotina burocrática, escrevia as obras-primas de A Rosa do Povo e outras obras definitivas da poesia brasileira.

O exemplo famoso de Freud e da psicanálise valem como refutação veemente dessa tolice. Como sabemos, Freud estava confessadamente longe de ser um pensador modesto ou pouco ambicioso. Orgulhoso de se definir como um “conquistador”, um intelectual decidido a abrir novas sendas na história do pensamento humano, não poupou energia nem gênio criador para inscrever seu nome no Olimpo da cultura moderna. No entanto, teve a humildade de reconhecer a precedência da grande tradição literária na revelação do inconsciente humano, das nossas pulsões secretas, quando, ao lhe outorgarem o prêmio Goethe de Literatura, foi saudado como o descobridor do inconsciente. Ele bem sabia, como o sabe todo leitor crítico, que a grande tradição literária ilumina e revela as camadas mais profundas da realidade, ao invés de ocultá-las, revesti-las de consoladoras ilusões ou simplesmente evadir-se das suas verdades mais indesejáveis e dolorosas.

Também Freud incorreu em muita ambiguidade ao ler psicanaliticamente a literatura. Se de um lado reconheceu-a como fonte inspiradora de alguns dos conceitos e argumentos fundamentais que forjou para dar corpo teórico à sua criação, de outro tendeu por vezes a figurá-la como expressão pura e simples do princípio do prazer. Essa apreciação tão limitada da literatura decorria em larga medida, acredito, de sua filiação ao cientificismo que tão fortemente marcou a atmosfera intelectual dentro da qual se formou. Outro fato sintomático de sua aproximação bem parcial da literatura é a apreensão restritamente psicológica de suas análises de textos literários. A Gradiva, de Jensen, ilustra isso muito bem, assim como sua análise, em muito pontos admirável, da literatura como expressão do devaneio. Quando analisa uma obra de grande poder literário, como é o caso de Os Irmãos Karamazov, evita explicitamente abordá-la em termos estéticos ou formais. Prendendo-se à leitura de fundo analítico, ou psicológico, ressalta na obra, assim como na biografia de Dostoiévski, exclusivamente a questão do parricídio.

Retomando mais diretamente a relação entre literatura e inconformismo, parece-me que já deixei acima evidente a extensão do conceito de inconformismo aqui adotado. Quero dizer que ele vai bem além dos seus limites políticos, tão enfaticamente evidenciados na crítica e na teoria politicamente engajada. Essa perspectiva redutora encontra-se na raiz da apreciação estreita, por vezes intolerante e vesga, da obra de Machado de Assis. Ela explicaria ainda, a preferência por escritores incomparavelmente menores que Machado quando com este cotejados, ou a este deliberadamente contrapostos. Foi o caso da preferência de alguns críticos de esquerda pela obra de Lima Barreto. Aliás, o próprio Lima Barreto, indo diretamente a uma das fontes da apreciação deformadora da grande obra de Machado de Assis, valeu-se de argumentos e preconceitos semelhantes para negar a excelência única da obra do Bruxo do Cosme Velho.

Embora longe de qualquer radicalismo ou intolerância política, Mário de Andrade traduz na sua apreciação de Machado sua aproximação cindida entre a exigência de cunho participante, expressão de seu nacionalismo ideologicamente utilitário e engajado, e o reconhecimento de sua mestria estética. Sendo um grande artista, armado de fina sensibilidade estética, Mário não poderia deixar de reconhecer a grandeza da obra de Machado, ainda quando o criticasse, como de fato procede no seu ensaio famoso, por sua omissão diante do que entendia seres os deveres éticos do artista. É por isso que ressalta o Machado socialmente conformista, o Machado funcionalmente comandado pela mirada pragmática do mulato que joga o jogo certo e sem riscos para sua reputação e acolhimento privilegiado numa sociedade regida por valores escravocratas.

Ora, considerado de uma perspectiva mais complexa - ou mais dialética, diria talvez um crítico que fosse ou se desejasse dialético na apreciação dos fatores complexos que articulam o campo onde se movem e interagem formas, temas, injunções do meio e da época, aí também compreendida a biografia do autor - Machado nos desconcerta e confunde precisamente por produzir uma obra tão devastadora e corrosiva sob as vestes enganadoras da aderência às formas sociais e ideológicas consagradas no seu tempo. É de fato espantoso que um homem na aparência tão afinado com os valores dominantes no seu tempo tenha sido capaz de escrever uma obra tão impiedosamente crítica. É por isso que Machado de Assis ilustra talvez mais do que qualquer outro escritor que me ocorra lembrar, ao me propor a relação entre literatura e inconformismo, o argumento que intentei desenhar nas linhas deste artigo.
Recife, 20 de janeiro de 2011.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Pasárgada e o Espírito de Província




O leitor acaso atento à precária e desequilibrada produção cultural que flui à margem do eixo hegemônico Rio-São Paulo sem dúvida acolherá com entusiasmo o espírito polivalente que enforma a recém-lançada revista Pasárgada. Como foi já observado no editorial da revista, tem sido invariavelmente incerto o destino dos periódicos culturais no Brasil, sejam eles sustentados ou não por organismos oficiais. Este fato sugeriria aos mais pessimistas a necessidade de se encarar Pasárgada como raridade também no sentido quantitativo.

Mas o que aqui desejo enfatizar é a dimensão qualitativa da publicação. E tal dimensão poderia ser resumida no espírito polivalente acima indicado. Grosseiramente explicitado, esse espírito se traduz no modo como certos articulistas acentuam vínculos entre a cultura brasileira, a nordestina em particular, e o movimento intelectual europeu; entre a correção factual e a mais que discutível reivindicação de prioridades e excelências; entre a citação iluminadora, fundada no justo cotejo dos textos, e a referência pedante, ciosa de exibir provas de elevada ilustração; entre a celebração dos valores da província, tantos deles vazios, e a necessária revisão crítica tingida de irreverência e iconoclastia.

Apesar do que comportava de superficial, atitude da qual nunca se libertaram diluidores e propagandistas irrelevantes como Joaquim Inojosa, o espírito imediato do modernismo derivante da Semana de Arte Moderna foi eminentemente irreverente e iconoclasta. Esse espírito sobrevive, como sabemos, à evolução mais reflexiva e pesquisadora do movimento na investida primitivista dos antropófagos no fim da década de 1920. Não obstante sua curta vigência, ele foi e continua sendo objeto de grosseiras incompreensões. É grosseira incompreensão, por exemplo, identificá-lo como sendo o espírito predominante do modernismo paulista, como o fizeram José Lins do Rego e Gilberto Freyre no livro do último intitulado Região e Tradição.
Movidos pelo propósito de reacender velhas disputas bairristas, não resistem os celebrantes das excelências regionalistas à tentação de torcer e retorcer fatos da historiografia literária e cultural brasileiras movidos pelo vão, duplo senso, propósito de afirmar prioridades. É curioso como nisso se aproximam as atitudes dos vanguardistas em geral e dos provincianos idem. Movidos os primeiros pela busca obsessiva, mas sempre inalcançável, do marco zero e os segundos pelo ressentimento diante dos centros hegemônicos que justa ou injustamente os removem para o fundo da cena, persistem ambos nessa luta sem fim em torno de prioridades e excelências. Isso decerto explicaria, ainda que por alto, a recorrência de embates tantas vezes fúteis entre oswaldianos “marco zero” e mariandradinos “nacionalistas”, entre “vanguardistas” paulistas e “revolucionários-tradicionalistas” nordestinos a modos de casa-grande ou de senzala. Que assim sobrevivam eternamente desentendidos. Isso, confesso, é o que eu faria, se essa briga sem fim entre eles se esgotasse. Infelizmente, não é o caso. Como brigam na arena pública onde por definição se desenvolve a história cultural, parte do que torcem e retorcem, excluído o que se dissolve em anedotário e vaga contingência, corre o risco de converter-se em história.

Como não é minha intenção trocar em miúdos o que acima discutivelmente expus sem diretamente fundamentar minha apreciação num confronto direto com os textos que compõem o número inaugural de Pasárgada, decidi-me pela escolha de um artigo que me parece conter muitas das insuficiências que venho intentando criticar. Trata-se de “O Significado do Modernismo no Brasil”, de César Leal. Francamente inspirado pelo espírito de província que na figura intelectual de Gilberto Freyre concentrou suas melhores e piores características, o articulista, que dizem ser poeta e teórico respeitado no ambiente intelectual do Recife, reescreve a seu gosto e desgosto fatos e interpretações concernentes à história do modernismo. E nisso tanto se esmera que chega a produzir verdadeiros primores de leitura subjetivista, senão meramente grosseira desinformação.

Vamos portanto aos fatos. Dele e meus. Ou melhor, dele e da historiografia correntemente acessível ao estudioso movido por propósitos analíticos quanto possível isentos. Celebrando virtudes de Manuel Bandeira, como justa e injustamente o fazem outros articulistas, César Leal afirma que Manuel Bandeira orientou intelectualmente Mário de Andrade. Grande poeta, sim; grande estudioso da literatura também, mas não convém abusar do espírito de província. Sabe-se da grande amizade que os uniu desde o início dos anos vinte e do quanto mutuamente se respeitavam no plano da criação poética. Daí à afirmação de César Leal a passada é longa. Bastaria uma leitura atenta, descuidada de fúteis reivindicações provincianas, das cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira para que se verificasse a inconsistência da afirmação. Se Mário não foi orientado por Bandeira nem mesmo em matéria de teoria e técnica poéticas, terreno no qual o último era inegavelmente notável, muito menos o foi em outros domínios de realização intelectual nos quais se distinguiu como artista e estudioso muitas vezes pioneiro.

Mas César Leal vai ainda mais longe ao afirmar que Mário e Oswald de Andrade eram portadores de verdadeira indigência intelectual. O juízo é de tal natureza subjetiva, para servir-me aqui de delicado eufemismo, que parece dispensar argumentação. Nem mesmo a Oswald de Andrade, que era reconhecidamente um improvisador, não obstante tantas vezes genial, movido mais pelo gosto das intuições desordenadas que pelo estudo consistente e metódico, nem mesmo a ele pode-se com justiça chamar de artista intelectualmente indigente.

Mais adiante, recorrendo ao velho artifício retórico do elogio contra o outro, César Leal declara que, comparado ao modernismo “o movimento concretista apresentou muito maior solidez”. O argumento é mais do que discutível, embora não me detenha aqui para discuti-lo. Por isso vou ao fim do mesmo parágrafo onde ele adiciona às virtudes dos concretistas o fato de não terem entrado em luta com os nordestinos e de elevarem João Cabral à categoria de “uma de suas divindades tutelares”. A expressão soa um tanto pomposa, mas talvez traduza algo do orfismo para o qual tenderam alguns oficiantes do “marco zero” da estética teológica. Se se pode deduzir um valor estético do fato de não se entrar em luta contra os nordestinos, César Leal deveria lembrar que Mário de Andrade, para ficar restrito ao exemplo que mais importa, nunca entrou em luta contra nossa nordestinidade, ou contra os nordestinos.
Limito-me à menção de dois exemplos. Embora tantas vezes injustamente considerado por José Lins do Rego, que neste campo polêmico conduziu-se sempre como um discípulo provincianamente deslumbrado de Gilberto Freyre, Mário criticou a obra do nordestino em tom de alto apreço e reconhecimento das suas melhores qualidades de romancista. Tanto isso é verdadeiro que chegou a afirmar, aí por volta de 1940, que Lins do Rego era o mais importante romancista brasileiro contemporâneo. Poucas vezes Mário de Andrade esteve tão errado. Talvez porque lhe faltasse um pouco mais de espírito de província.

Segundo exemplo: qualquer leitor corrente da nossa historiografia literária sabe do profundo amor que Mário de Andrade devotava à cultura nordestina. Isso é tão evidente, tanto matéria factual, que me parece desnecessário expor aqui provas do que afirmo.

Passemos a Blaise Cendrars. Acho duvidoso que Cendrars seja a fonte mais recomendável para uma apreciação crítica do modernismo, a não ser que o propósito do articulista seja o de depreciar o último. Se é este o caso, o Prof. César Leal não precisaria ir tão longe. Sem sair do ambiente intelectual do Recife, ele teria à mão apreciações assinadas por Gilberto Freyre e discípulos maiores e menores tão pouco isentas e tanto inspiradas por interesses estreitamente bairristas quanto os que informam o artigo de César Leal.

Sem pretender negar a influência de Blaise Cendrars sobre os modernistas, e vice-versa, que foi considerável, parece-me evidente que ele não é um observador significante do modernismo brasileiro, menos ainda da nossa realidade cultural mais ampla. Como César Leal se declara familiarizado com a grande poesia ocidental de Baudelaire, senão de Dante, a João Cabral, ele decerto não ignora que a experiência brasileira de Cendrars, limitada demais, não pode ser tomada como referência para uma apreciação consistente do modernismo.

Embora fosse um homem de vivência cosmopolita e fascinante vagabundo das estradas, Cendrars observou o Brasil, como o fizeram e ainda o fazem intelectuais europeus em geral, fixado no que este lhe sugeria de pitoresco e exótico. Sua ignorância da nossa cultura chegava ao ponto de sequer grafar corretamente nomes de intelectuais paulistas com os quais conviveu e aos quais dedicou um dos seus livros mais celebrados.

Como intento provar o que afirmo, e talvez impressionar o leitor que louva articulistas familiarizados com a grande tradição poética ocidental em cinco ou seis línguas de alta cultura, cito aqui uma edição bilíngue (francês-inglês) cuja tradução para o inglês se deve a Monique Chefdor: Complete Postcards from the Americas. O volume reúne Documentaires, Feiulles de Route e Sud-Américaines. O segundo, Feiulles de Route, foi dedicado aos amigos paulistas de Cendrars cujos nomes estão assim grafados: Mário Andrade, Serge Millet, Jasto de Almeida, Conto de Barros, Rubens de Mosaes, Luiz Aranhas, Graza Aranha, Guillermo de Almeida, Américo Faco. A dedicatória é extensiva a outros intelectuais, mas limito-me a reproduzir apenas os nomes erradamente grafados. Talvez convenha frisar para o leitor mais cético que reproduzo a própria dedicatória manuscrita de Cendrars cujo fac-simile a
obra acima citada estampa na página 116.
Outra prova da grosseira ignorância de Cendrars é fornecida pelo próprio César Leal quando assim o cita: “Mário de Andrade morreu em 1938, eu acho”. Se o propósito do articulista era desmerecer Mário de Andrade, provando com isso o quanto este era irrelevante para o poeta suíço-francês que hesitantemente o mata no ano de 1938, o que ele de fato prova é o quanto Cendrars estava pouco qualificado para ajuizar acerca do modernismo e seu desdobramento histórico.

A propósito de estudiosos e comentaristas estrangeiros da literatura brasileira, o artigo assinado por Mário Hélio, “Enganos e Omissões”, fornece exemplo ainda mais convincente do que tudo que venho observando acerca de Blaise Cendrars. Mencionando o historiador Harri Meier, a quem atribui a autoria de um resumo sobre a história da literatura brasileira incorporado à obra História das Literaturas Universais, o articulista denuncia erros grosseiros de informação cometidos pelo autor.
Gostaria apenas de sugerir que tipo de tratamento intelectuais e acadêmicos provenientes dos centros hegemônicos de cultura dariam a um estudioso brasileiro que incorresse em erros de natureza semelhante com relação às literaturas de que eles são parte. Aliás, nem precisariam disso tomar conhecimento. Antes que se dessem a tal trabalho, não faltariam intelectuais brasileiros ávidos por dar lições ao ignorante que a tais vexames se expusesse.

Não resisto à tentação de encerrar estas notas ligeiras sobre nosso deplorável estado de subserviência mental aludindo a uma prática de uso generalizado que a experiência fora do Brasil me permitiu mais amplamente observar. Qualquer brasileiro, não importa de que categoria intelectual, que fale um inglês ou francês razoável, a troco de tudo, ou de nada, espinafra o compatriota que nisso lhe seja inferior. O nome dessa prática corrente entre brasileiros é colonialismo mental. Observem, porém, que não é meu propósito extrair dos exemplos acima nenhuma justificação da ignorância baseado no princípio, que irrestritamente louvo, da independência mental.

Como o leitor pode deduzir, quando convém reivindicar valores e interesses de fundo nacionalista ou regionalista, ou ainda mesquinhamente local, acusamos como alienados os intelectuais que se inspiram em fontes norte-americanas ou europeias. Se é porém o caso de desmerecer um movimento brasileiro em favor de reivindicações provincianas ou grupais, toma-se como justificado recorrer a uma fonte europeia desprovida de efetiva familiaridade com nosso ambiente cultural.

César Leal conclui afirmando que a literatura brasileira pouco deve ao modernismo, embora tenha antes reconhecido que Carlos Drummond de Andrade, “o mais completo poeta da língua portuguesa no século”, é um produto espiritual do movimento que procurou do início ao fim desmerecer movido pelo espírito de província contra o qual venho argumentando. Na própria revista Pasárgada o leitor pode verificar que outro grande poeta, para muitos maior ainda que Drummond, confessou dever muitíssimo ao modernismo. Refiro-me, claro, a Manuel Bandeira. Embora os atos de modéstia por ele praticados, sobretudo o cansativo “sou poeta menor, perdoai”, fossem com frequência mero artifício retórico, aqui ele alcança uma medida de isenção e humildade diante do movimento estético coletivo que lastimavelmente não mereceu no artigo de César Leal tratamento semelhante. No mais, encarar a literatura brasileira como produto direto do intercâmbio internacional, como o faz o articulista, é desprezar o que foi precisamente uma das grandes conquistas do modernismo: o movimento de atualização intelectual e artística do Brasil. Noutras palavras, a causa assinalada por César Leal com o objetivo de depreciar o sentido de renovação e atualização do modernismo é nada mais que um efeito deste mesmo movimento.

Poderia também aqui alinhar provas em defesa da minha tese. É porém bem mais recomendável relembrar ao leitor a justamente celebrada conferência de Mário de Andrade, “O movimento modernista”. Embora apresentada no distante ano de 1942, prova factual de que Mário sobreviveu à ignorância hesitante com que Cendrars o matou em 1938, é ainda o mais importante documento de interpretação deste movimento que inspira ainda, setenta anos mais tarde, celebrações e ataques, preconceitos e reverências, que são de resto formas de preconceito. Pessoalmente, prefiro a atitude crítica na revista proposta, ou praticada, por Roberto Martins, Marcelo Coelho e Mário Hélio. Não obstante as atitudes que aqui declaradamente combato, servem ao menos para sugerir o quanto o legado do modernismo inscreveu-se na memória coletiva de um país tantas vezes justamente criticado por sua falta de memória coletiva. Não será isso uma prova de permanência e vitalidade do melhor espírito de um movimento que tantas vezes tropeçou no mito bandeirantista do “marco zero” nisso confundindo-se com o suposto antagonismo do “espírito de província”?
Colchester, Inglaterra, junho de 1992.
Nota: este artigo de corte polêmico foi publicado na revista Pasárgada, Ano II, nos. 2 e 3, setembro de 1993, pp. 4-6.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Vinícius de Moraes




Vinícius é um documentário que encanta, diverte e sobretudo comove o espectador. Esses efeitos decorrem antes de tudo do personagem que se move no centro da trama. Se a tradição romântica, datemo-la a partir de Rousseau e Herder, elevou o artista à condição de polo da realização estética, tão ou até mais importante do que a própria obra de arte, Vinícius cedo se destacou como um poeta cuja força narcisista converteu a obra que produziu numa derivação ou projeção da sua personalidade. Mário de Andrade, valendo-se de outras palavras, acentua esta verdade ao criticar em 1939 a poesia de Vinícius num artigo mais tarde enfeixado no volume O Empalhador de Passarinho. E logo comprova seu argumento citando estes versos exemplares:
“Homem sou belo
Macho sou forte, poeta sou altíssimo
E só a pureza me ama e ela é em mim uma cidade e tem mil e uma portas”.

Os versos acima são extraídos do “Poema para todas as mulheres”. Não bastasse o tom afoito, ou até arrogante, ele demonstra, como romântico impenitente que sempre foi, o quanto a obra é antes de tudo uma expressão da sua individualidade soberana. E o fato é que isso é ainda bem pouco, se consideramos, no desdobramento da sua vida e obra, o quanto espraiou esse tom afoito em tudo que viveu e poeticamente realizou, uma coisa sendo na verdade indissociável da outra. O documentário que doravante acompanho constitui prova cabal do que acabo de afirmar.

O documentário começa nos bastidores do teatro que serve de palco para a encenação da vida e da obra de Vinícius. Os atores que o interpretam, Camila Morgado e Ricardo Blat, mesclam ao longo da obra a leitura de fragmentos de poemas de Vinícius, infelizmente vários carecem de identificação, e matéria de cunho biográfico e histórico alternada com a interpretação de canções compostas pelo próprio Vinícius e seus parceiros mais frequentes: Tom Jobim, Baden Powell, Carlos Lyra, Edu Lobo, Francis Hime, Toquinho.

Não bastasse a excelência dessa amostra da história recente da música brasileira, comparecem ainda, como depoentes e comentadores, nomes definitivos da nossa cultura como Antonio Candido, Tom Jobim, Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Maria Bethânia e vários outros. Dentre os poemas cujos fragmentos são declamados sem a devida identificação, menciono três que de resto figuram entre os melhores que escreveu: “Poema de Natal”, “O haver” e o também longo e comovente “Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão”. Aproveito a deixa para aqui enfiar uma nota de espanto e protesto diante do fato de que o segundo poema citado, “O haver”, não consta da minha edição da Poesia Completa & Prosa de Vinícius de Moraes, editora Aguilar. Friso que minha edição é de 1986, lançada portanto 6 anos depois da morte do poeta.

Da infância à idade tardia, apesar das muitas ausências impostas pela vida de diplomata e outras circunstâncias, Vinícius acompanhou as transformações do século que profundamente alteraram a paisagem urbana do Rio de Janeiro, além de ser personagem de muitas delas. Nascido ainda quando as luzes da belle époque já se apagavam no horizonte de modo catastrófico, cedo impregnou-se da cultura francesa que tão nitidamente desenhou o perfil de várias gerações da elite carioca. Mas esse processo de impregnação foi sempre impuro, notadamente no seu caso. Quero noutros termos ressaltar o caráter da mestiçagem que no conjunto da nossa história cultural sempre entreteceu a tradição cultural de corte europeu, antes de tudo francês, com os ingredientes africanos e indígenas que tão singularmente nos diferenciam da Europa e do conjunto da tradição ocidental.

O pai de Vinícius, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, a quem dedicou o poema acima mencionado, foi poeta anônimo de extração erudita, enquanto a família da mãe era muito achegada à boêmia e à música popular de tão viva presença no universo social do Rio de Janeiro. Já aí se nota como o ambiente que enquadrou a sua infância livremente conciliou na origem dos seus próprios ancestrais traços culturais divergentes. A isso importaria acrescentar seus estudos, desde pequeno, no Santo Inácio, colégio jesuíta intimamente associado à formação da elite carioca.

Sua poesia da primeira fase, de nítido viés metafísico, transpira a atmosfera mística assimilada no contexto católico que vincou a maior parte da sua juventude. A isso se soma a poderosa influência que sofreu de Octávio de Faria, notável romancista católico politicamente reacionário, o que quase soava como truísmo no clima ideológico e cultural do Brasil da década de 1930. Mais tarde, já na Faculdade de Direito, aproximou-se do integralismo, a ideologia de corte direitista hegemônica à época. Evidentemente sua íntima ligação com Octávio de Faria tinha muito a ver com esses traços ideológicos dos quais mais tarde se dissociará.

Ferreira Gullar observa com irreprimível humor que Vinícius traçou na vida uma trajetória singular. Poeta de marcada aprendizagem erudita e francesa na juventude - mais tarde acrescida da literatura inglesa, antes de tudo romântica, assimilada durante seus estudos em Oxford - à medida que amadurece vai progressivamente se despojando de toda essa herança pesada e asfixiante. O peso maior, em termos de tradição opressiva e conservadorismo político, procede de sua já referida formação católica. Entretanto, mesmo quando católico confesso e praticante já vivia uma vida dupla, aliás comum à religiosidade tingida de tradição patriarcal, que tendia a isolar e comprimir a mulher no recesso da casa enquanto tecia com rédea frouxa, para não dizer desatada, uma ética masculina no geral pontuada pelo desmando e a duplicidade hipócrita. Como era de conveniência corrente para os homens, Vinícius pagou farto tributo a essa divisão injusta atribuível aos gêneros bem característica das culturas de raiz patriarcal.

Depois dos livros ancorados na metafísica de intensa impregnação católica, reponta na poesia de Vinícius a influência de Manuel Bandeira. Também da sua primeira mulher, Tati, de ideias políticas e estéticas avançadas. Ele próprio reconhecia o quanto foi transformado pela intimidade amorosa com Tati. Sua amizade com o socialista americano Waldo Frank, lavada na água suja da miséria nordestina que vieram conhecer de perto, também decisivamente concorreu para mudar sua visão da realidade. Isso se traduzirá na sua poesia que, sobretudo a partir de A Saudade do Cotidiano e O Encontro do Cotidiano, ata as matrizes eruditas à matéria impura e até sórdida da vida tal como já expressa nos títulos que acabo de indicar. É a partir daí que dominam na sua poesia a matéria carnal do cotidiano, os bordéis sórdidos da Lapa, a paixão erótica elevada a expressões de lirismo saturadas pela realidade sem máscaras e isentas de transfigurações religiosamente idealizadas. Assim grosseiramente descrevo o processo através do qual Vinícius se desprende das amarras conservadoras do catolicismo e dos vínculos tradicionais que lhe abafaram a infância e a juventude.

Antonio Candido, sempre agudo e preciso, projeta mais alguma luz sobre as linhas incertas desse quadro quando ressalta que Vinícius soube, mais que qualquer outro poeta modernista, harmonizar sua fidelidade às formas poéticas da tradição com o mergulho no cotidiano, a imersão na corrente da vida isenta dos artificialismos que tanto recobrem a tradição erudita. Vinícius consolidou, em suma, a ponte entre a tradição erudita e a matéria do cotidiano postulada e também largamente praticada desde os primeiros ecos do modernismo por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e nossos poetas mais sólidos e renovadores. Mas ninguém avançou tanto nessa linha quanto Vinícius, notadamente a partir do momento em que definitivamente se desgarra da poesia canônica e impressa e todo se entrega à poesia posta a serviço da música popular num momento de extraordinária inflexão qualitativa no veio fecundo e democratizante da cultura brasileira das décadas de 1950 e 1960.
Drummond confessou com tocante franqueza e generosidade a inveja que a vida de Vinícius lhe inspirava. Segundo ele, Vinícius foi o único poeta que viveu integralmente como poeta, aquele que teve a coragem de converter a paixão antes em matéria de vida do que de poesia. Sem dúvida, um personagem desse porte constitui um prato cheio, ou já feito, para um bom documentário ou uma boa biografia, como é a que José Castello escreveu.

A vida passionalmente vivida se traduz antes de tudo na sua fome infrene de amor, na sua determinação de viver desgovernado pelo princípio da paixão. Daí resultaram nove casamentos, reviravoltas mirabolantes e loucuras que raros ousariam cometer em nome da paixão carnal e do amor incendiado por uma intensidade romântica que requeima de inveja os românticos frustrados e inspira estranheza ou reserva ao racionalista regulado por seu senso de conveniência e medida. Vinícius casou tanto quanto Oswald de Andrade, outra figura lendária que, como tal, também sobrepôs a vida vivida à obra realizada, que, também como é de praxe, resultou muito imperfeita.

No que se refere a esse ponto, há quem tenda a depreciar essa verdade na obra de Vinícius. É um fato marcante no documentário. Todos que se pronunciam sobre a obra, antes de tudo sobre o autor, silenciam ou são incapazes de reconhecer o quanto há de imperfeição e fragilidade no romantismo exaltado que sustenta e move a poesia de Vinícius. O erro de apreciação é parcialmente compreensível, se se considera que o documentário objetiva antes de tudo realçar em tom de encantamento e paixão a grandeza singularmente humana do personagem. Mas cabe ao crítico consistente e isento também assinalar o quanto a obra de Vinícius está complacentemente saturada de lugares comuns típicos do romantismo desregrado, que privilegia antes a expressão da subjetividade criadora do que a realização formal da ideia ou daquilo que Mário de Andrade, também contaminado pelo fascínio das forças líricas inconscientes, louvava enquanto impulso desgovernado da criação poética.

Vinícius era passional demais para se contentar em reter a vida ardentemente consumida nos limites convencionais do amor conjugal e da família. Viveu sempre possuído por uma sede de presença, de vida passionalmente movente que o impelia a abrir literalmente as portas de sua casa para a festa e a música e a farra sem hora ou medida. Daí o cortejo de amigos que foi arrebanhando ao longo da vida. Daí a paixão pelo cinema e pelo jazz, em especial durante os anos em que viveu em Los Angeles como diplomata. Daí as viagens que se repetiam e renovavam devido à profissão de diplomata, mas também à margem dela. A vida em trânsito contínuo levou-o do Rio a Oxford, de Paris a Los Angeles, de algum lugar a Montevidéu, daí aos candomblés da Bahia, da Itália à Argentina, de São Paulo ao deus dará... Toda essa viagem trepidante dentro da vida era acelerada pelo álcool, do qual se tornou dependente e ao qual foi fiel até a morte. Se foi fiel a alguma coisa, digamos que o foi ao uísque. Como disse numa de suas definições definitivas, o uísque é o cachorro engarrafado, isto é, o verdadeiro amigo do homem. Sem deixar de acrescentar que nunca viu amizade nenhuma germinar em leiteria.

Tudo isso visto e sorvido num documentário é belo, sedutor e estonteante. Os amigos celebram Vinícius, sua vida de desgoverno e paixão, e se rendem deliciados a seu narcisismo generoso e absorvente. As mulheres imagino, e o invejo, o quanto não se entregaram enlouquecidas à sua fome de carne e amor, carícias, gozo e outros inefáveis da intimidade amorosa. E o que dizer das incontáveis que antes e ainda no presente e por tempos improváveis se abandonaram, ouvindo seus poemas musicados, às fantasias mais indizíveis e extremas? Evocando os versos modelares de Chico Buarque: “O que não tem governo / nem nunca terá / o que não tem vergonha / nem nunca terá / o que não tem juízo”.

Mas o documentário abafa os danos decorrentes da paixão infrene, silencia ainda sobre o que meu amigo Luciano Oliveira chama de os anexos do amor ou ainda as agruras do amor casado e atado a filhos que, como escreveu o próprio Vinícius, é bem melhor não tê-los. E complementa: sem tê-los, como sabê-los? Ora, não é preciso ir a tanto para avaliar o quanto nos custam e o quanto lhes custamos. O que intento melhor salientar é que o filme compõe um retrato puramente sedutor e deslumbrante de Vinícius, um retrato que nos faz espontaneamente cair de riso enlevados diante da própria loucura inconsequente, diante da porra louquice que com certeza muito vincou a vida aventurosa e passional de Vinícius. Noutras palavras, ao silenciar sobre os danos e anexos da vida passionalmente desgovernada, o documentário suprime a dimensão ética da nossa experiência amorosa. Essa dimensão poderia ser menos vagamente sugerida se formulasse a seguinte questão: até onde posso ir na minha fome de amor e sexo, de desejo e realização do desejo?

Todos sabemos, salvo os ingênuos e omissos diante da vida, que é impossível amar sem causar algum dano ao outro. Mas isso não nos isenta desta interrogação angustiante: até onde posso em nome do meu desejo e do meu amor causar dano ao outro que me ama e sobretudo amo? Ninguém pode em sã consciência legislar sobre isso, determinar a priori o limite arbitrário entre a busca do amor e as consequências dessa busca. Mas a questão de fundo ético é real, ainda quando, por pura cegueira egoísta ou compreensível prevalência do princípio do prazer, convenha empurrá-la para debaixo do tapete e entregar-se ao impulso do gozo imediato da vida. Como afirmei, esse problema ético é central na vida aventurosa de um homem como Vinícius e não penso que propô-lo consista em incorrer em simples interpelação moralista.

Como todo grande sedutor, como todo romântico que escolheu viver a vida para além das convenções que nem sempre podem ser descartadas como artificialismos atravancadores da liberdade humana, do empenho em realizar uma vida autêntica, como tanto prezavam sustentar os existencialistas sartreanos, Vinícius aparentemente nunca perdeu o sono atormentado por esses obstáculos éticos inscritos na esfera da intimidade amorosa. Que me lembre, nenhum grande sedutor relutou entre a mulher desejada, não importa a que preço, e os limites éticos da realização do desejo. Tônia Carrero, que foi grande amiga de Vinícius desde o primeiro casamento deste, afirma sem nenhuma reprovação moral aparente que ele era capaz de qualquer baixeza para conquistar uma mulher.

De Casanova a Vinícius, traçando um limite temporal arbitrário, não sei de nenhum grande sedutor que tenha refreado sua sede de conquista cerceado pela questão ética que aqui proponho. Portanto, fechando ou abrindo as pernas, a alternativa fica a critério ético de quem me leia, é fato que a sedução colide com a ética, quando não simplesmente a ignora. Esticando ainda mais a corda, para que essa digressão não se exceda em ponderações morais que de ordinário descambam para o leito apertado do moralismo, convenhamos que o desapreço pelo limite ético convém tanto ao sedutor quanto ao seduzido, tanto a quem vive e realiza a vida na linha do excesso descrito pela biografia de Vinícius quanto ao sedutor comprimido malgré-lui que foi, por exemplo, Drummond. O fato é que a ética, em assuntos dessa natureza, constitui sempre um constrangimento ou impedimento que agride nossa natureza indomavelmente egoísta. É por isso que tantas vezes adoecemos quando renunciamos a desejos e tentações demasiado desejáveis. Ninguém precisaria ler Freud ou deitar num divã para ter consciência dessa banalidade recorrente na nossa economia erótica e moral.

O fato é que, reitero e amplio, caímos no laço da sedução que pontua a trajetória biográfica de Vinícius. É isso o que pulsa no cerne da recepção encantatória e deleitosa com que viajamos deslumbrados no bojo dessa cadeia de imagens e sons, de fantasias e pulsões que compõem a tessitura do documentário. O receptor generoso, na linha de Drummond, admira ou inveja Vinícius no melhor sentido da inveja ao reconhecer que ele foi o único poeta investido do desejo e da coragem de fazer de sua vida um largo e absorvente poema passional. O invejoso, pelo contrário, vê o filme roendo a corda de suas frustrações e na inveja ressentida com que abarca a vida e a obra do poeta projeta no que ele viveu tudo o que gostaria de ter vivido. É uma prova variável, convenhamos, do desejo de ser Vinícius.

Saindo um pouco das ponderações éticas insolúveis que acima esbocei, salvo em alguma medida a ética e Vinícius ao introduzir neste ponto um outro comentário de Ferreira Gullar. Rememorando Vinícius, afirma não conseguir lembrá-lo senão rindo, senão entregue ao prazer do riso, da atitude afirmativa e gozosa diante da vida. O próprio Gullar se ilumina na moldura de um riso espontâneo ao exprimir o sentimento com que evoca o amigo morto. Vislumbra-o sempre no avesso do desespero, sempre na faixa iluminada da vida. Indo adiante, afirma que esta é uma invenção, isto é, depende da atitude positiva ou negativa com que a encaramos e vivemos. Por conseguinte, é inútil e mesmo indesejável procurar no fundo da nossa experiência o sentido de uma verdade objetiva e universal relativa à vida. Isso é coisa de chatos como Beckett, citado literalmente por Gullar, ou intelectuais sombrios que se enredam e se atormentam – pior ainda, nos atormentam – buscando ou mesmo traçando na obra que criam um hipotético e de resto improvável sentido para a vida. Somos nós que a cavaleiro de nossa subjetividade arbitrária propomos um sentido para a vida e vivemos movidos pela determinação de realizá-lo. Vinícius teria feito isso ao decidir-se pela vida que viveu comunicando aos amigos e a todos tocados por sua vida um sentido de vida alegre e prazerosa.

Não que tenha sido feliz, como Chico Buarque certeiramente observa. Afinal, reiterando o óbvio, Vinícius foi romântico por temperamento, convicção e diria até determinação. Ora, um dos traços definitivos do romântico radica precisamente na busca intransigente do ideal: a mulher ideal, o amor ideal e outros ideais que são por definição inalcançáveis na vida. É isso, em suma, o que me assegura na convicção de que Vinícius não foi nunca feliz. De resto, felicidade é sempre um estado provisório, nunca uma fortuna confundível com a duração que seria permanência. A propósito, ele inventa a quadratura do círculo ao conciliar a duração provisória e o infinito nos dois versos que são talvez os melhores que escreveu e fecham seu mais belo e mais citado soneto: “Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”.
Ficha técnica:
Direção: Miguel Faria Jr.
Elenco: Camila Morgado e Ricardo Blat.
Roteiro: Miguel Faria Jr. e Diana Vasconcelos
Colaboração de Eucanaã Ferraz.
Texto final: Eric Nepomuceno.
Fotografia: Lauro Escorel.
Direção musical: Luiz Cláudio Ramos
Direção de arte: Marcos Flaksman
Montagem: Diana Vasconcelos.
Recife, 14 de outubro de 2010.