sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Pasárgada e o Espírito de Província




O leitor acaso atento à precária e desequilibrada produção cultural que flui à margem do eixo hegemônico Rio-São Paulo sem dúvida acolherá com entusiasmo o espírito polivalente que enforma a recém-lançada revista Pasárgada. Como foi já observado no editorial da revista, tem sido invariavelmente incerto o destino dos periódicos culturais no Brasil, sejam eles sustentados ou não por organismos oficiais. Este fato sugeriria aos mais pessimistas a necessidade de se encarar Pasárgada como raridade também no sentido quantitativo.

Mas o que aqui desejo enfatizar é a dimensão qualitativa da publicação. E tal dimensão poderia ser resumida no espírito polivalente acima indicado. Grosseiramente explicitado, esse espírito se traduz no modo como certos articulistas acentuam vínculos entre a cultura brasileira, a nordestina em particular, e o movimento intelectual europeu; entre a correção factual e a mais que discutível reivindicação de prioridades e excelências; entre a citação iluminadora, fundada no justo cotejo dos textos, e a referência pedante, ciosa de exibir provas de elevada ilustração; entre a celebração dos valores da província, tantos deles vazios, e a necessária revisão crítica tingida de irreverência e iconoclastia.

Apesar do que comportava de superficial, atitude da qual nunca se libertaram diluidores e propagandistas irrelevantes como Joaquim Inojosa, o espírito imediato do modernismo derivante da Semana de Arte Moderna foi eminentemente irreverente e iconoclasta. Esse espírito sobrevive, como sabemos, à evolução mais reflexiva e pesquisadora do movimento na investida primitivista dos antropófagos no fim da década de 1920. Não obstante sua curta vigência, ele foi e continua sendo objeto de grosseiras incompreensões. É grosseira incompreensão, por exemplo, identificá-lo como sendo o espírito predominante do modernismo paulista, como o fizeram José Lins do Rego e Gilberto Freyre no livro do último intitulado Região e Tradição.
Movidos pelo propósito de reacender velhas disputas bairristas, não resistem os celebrantes das excelências regionalistas à tentação de torcer e retorcer fatos da historiografia literária e cultural brasileiras movidos pelo vão, duplo senso, propósito de afirmar prioridades. É curioso como nisso se aproximam as atitudes dos vanguardistas em geral e dos provincianos idem. Movidos os primeiros pela busca obsessiva, mas sempre inalcançável, do marco zero e os segundos pelo ressentimento diante dos centros hegemônicos que justa ou injustamente os removem para o fundo da cena, persistem ambos nessa luta sem fim em torno de prioridades e excelências. Isso decerto explicaria, ainda que por alto, a recorrência de embates tantas vezes fúteis entre oswaldianos “marco zero” e mariandradinos “nacionalistas”, entre “vanguardistas” paulistas e “revolucionários-tradicionalistas” nordestinos a modos de casa-grande ou de senzala. Que assim sobrevivam eternamente desentendidos. Isso, confesso, é o que eu faria, se essa briga sem fim entre eles se esgotasse. Infelizmente, não é o caso. Como brigam na arena pública onde por definição se desenvolve a história cultural, parte do que torcem e retorcem, excluído o que se dissolve em anedotário e vaga contingência, corre o risco de converter-se em história.

Como não é minha intenção trocar em miúdos o que acima discutivelmente expus sem diretamente fundamentar minha apreciação num confronto direto com os textos que compõem o número inaugural de Pasárgada, decidi-me pela escolha de um artigo que me parece conter muitas das insuficiências que venho intentando criticar. Trata-se de “O Significado do Modernismo no Brasil”, de César Leal. Francamente inspirado pelo espírito de província que na figura intelectual de Gilberto Freyre concentrou suas melhores e piores características, o articulista, que dizem ser poeta e teórico respeitado no ambiente intelectual do Recife, reescreve a seu gosto e desgosto fatos e interpretações concernentes à história do modernismo. E nisso tanto se esmera que chega a produzir verdadeiros primores de leitura subjetivista, senão meramente grosseira desinformação.

Vamos portanto aos fatos. Dele e meus. Ou melhor, dele e da historiografia correntemente acessível ao estudioso movido por propósitos analíticos quanto possível isentos. Celebrando virtudes de Manuel Bandeira, como justa e injustamente o fazem outros articulistas, César Leal afirma que Manuel Bandeira orientou intelectualmente Mário de Andrade. Grande poeta, sim; grande estudioso da literatura também, mas não convém abusar do espírito de província. Sabe-se da grande amizade que os uniu desde o início dos anos vinte e do quanto mutuamente se respeitavam no plano da criação poética. Daí à afirmação de César Leal a passada é longa. Bastaria uma leitura atenta, descuidada de fúteis reivindicações provincianas, das cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira para que se verificasse a inconsistência da afirmação. Se Mário não foi orientado por Bandeira nem mesmo em matéria de teoria e técnica poéticas, terreno no qual o último era inegavelmente notável, muito menos o foi em outros domínios de realização intelectual nos quais se distinguiu como artista e estudioso muitas vezes pioneiro.

Mas César Leal vai ainda mais longe ao afirmar que Mário e Oswald de Andrade eram portadores de verdadeira indigência intelectual. O juízo é de tal natureza subjetiva, para servir-me aqui de delicado eufemismo, que parece dispensar argumentação. Nem mesmo a Oswald de Andrade, que era reconhecidamente um improvisador, não obstante tantas vezes genial, movido mais pelo gosto das intuições desordenadas que pelo estudo consistente e metódico, nem mesmo a ele pode-se com justiça chamar de artista intelectualmente indigente.

Mais adiante, recorrendo ao velho artifício retórico do elogio contra o outro, César Leal declara que, comparado ao modernismo “o movimento concretista apresentou muito maior solidez”. O argumento é mais do que discutível, embora não me detenha aqui para discuti-lo. Por isso vou ao fim do mesmo parágrafo onde ele adiciona às virtudes dos concretistas o fato de não terem entrado em luta com os nordestinos e de elevarem João Cabral à categoria de “uma de suas divindades tutelares”. A expressão soa um tanto pomposa, mas talvez traduza algo do orfismo para o qual tenderam alguns oficiantes do “marco zero” da estética teológica. Se se pode deduzir um valor estético do fato de não se entrar em luta contra os nordestinos, César Leal deveria lembrar que Mário de Andrade, para ficar restrito ao exemplo que mais importa, nunca entrou em luta contra nossa nordestinidade, ou contra os nordestinos.
Limito-me à menção de dois exemplos. Embora tantas vezes injustamente considerado por José Lins do Rego, que neste campo polêmico conduziu-se sempre como um discípulo provincianamente deslumbrado de Gilberto Freyre, Mário criticou a obra do nordestino em tom de alto apreço e reconhecimento das suas melhores qualidades de romancista. Tanto isso é verdadeiro que chegou a afirmar, aí por volta de 1940, que Lins do Rego era o mais importante romancista brasileiro contemporâneo. Poucas vezes Mário de Andrade esteve tão errado. Talvez porque lhe faltasse um pouco mais de espírito de província.

Segundo exemplo: qualquer leitor corrente da nossa historiografia literária sabe do profundo amor que Mário de Andrade devotava à cultura nordestina. Isso é tão evidente, tanto matéria factual, que me parece desnecessário expor aqui provas do que afirmo.

Passemos a Blaise Cendrars. Acho duvidoso que Cendrars seja a fonte mais recomendável para uma apreciação crítica do modernismo, a não ser que o propósito do articulista seja o de depreciar o último. Se é este o caso, o Prof. César Leal não precisaria ir tão longe. Sem sair do ambiente intelectual do Recife, ele teria à mão apreciações assinadas por Gilberto Freyre e discípulos maiores e menores tão pouco isentas e tanto inspiradas por interesses estreitamente bairristas quanto os que informam o artigo de César Leal.

Sem pretender negar a influência de Blaise Cendrars sobre os modernistas, e vice-versa, que foi considerável, parece-me evidente que ele não é um observador significante do modernismo brasileiro, menos ainda da nossa realidade cultural mais ampla. Como César Leal se declara familiarizado com a grande poesia ocidental de Baudelaire, senão de Dante, a João Cabral, ele decerto não ignora que a experiência brasileira de Cendrars, limitada demais, não pode ser tomada como referência para uma apreciação consistente do modernismo.

Embora fosse um homem de vivência cosmopolita e fascinante vagabundo das estradas, Cendrars observou o Brasil, como o fizeram e ainda o fazem intelectuais europeus em geral, fixado no que este lhe sugeria de pitoresco e exótico. Sua ignorância da nossa cultura chegava ao ponto de sequer grafar corretamente nomes de intelectuais paulistas com os quais conviveu e aos quais dedicou um dos seus livros mais celebrados.

Como intento provar o que afirmo, e talvez impressionar o leitor que louva articulistas familiarizados com a grande tradição poética ocidental em cinco ou seis línguas de alta cultura, cito aqui uma edição bilíngue (francês-inglês) cuja tradução para o inglês se deve a Monique Chefdor: Complete Postcards from the Americas. O volume reúne Documentaires, Feiulles de Route e Sud-Américaines. O segundo, Feiulles de Route, foi dedicado aos amigos paulistas de Cendrars cujos nomes estão assim grafados: Mário Andrade, Serge Millet, Jasto de Almeida, Conto de Barros, Rubens de Mosaes, Luiz Aranhas, Graza Aranha, Guillermo de Almeida, Américo Faco. A dedicatória é extensiva a outros intelectuais, mas limito-me a reproduzir apenas os nomes erradamente grafados. Talvez convenha frisar para o leitor mais cético que reproduzo a própria dedicatória manuscrita de Cendrars cujo fac-simile a
obra acima citada estampa na página 116.
Outra prova da grosseira ignorância de Cendrars é fornecida pelo próprio César Leal quando assim o cita: “Mário de Andrade morreu em 1938, eu acho”. Se o propósito do articulista era desmerecer Mário de Andrade, provando com isso o quanto este era irrelevante para o poeta suíço-francês que hesitantemente o mata no ano de 1938, o que ele de fato prova é o quanto Cendrars estava pouco qualificado para ajuizar acerca do modernismo e seu desdobramento histórico.

A propósito de estudiosos e comentaristas estrangeiros da literatura brasileira, o artigo assinado por Mário Hélio, “Enganos e Omissões”, fornece exemplo ainda mais convincente do que tudo que venho observando acerca de Blaise Cendrars. Mencionando o historiador Harri Meier, a quem atribui a autoria de um resumo sobre a história da literatura brasileira incorporado à obra História das Literaturas Universais, o articulista denuncia erros grosseiros de informação cometidos pelo autor.
Gostaria apenas de sugerir que tipo de tratamento intelectuais e acadêmicos provenientes dos centros hegemônicos de cultura dariam a um estudioso brasileiro que incorresse em erros de natureza semelhante com relação às literaturas de que eles são parte. Aliás, nem precisariam disso tomar conhecimento. Antes que se dessem a tal trabalho, não faltariam intelectuais brasileiros ávidos por dar lições ao ignorante que a tais vexames se expusesse.

Não resisto à tentação de encerrar estas notas ligeiras sobre nosso deplorável estado de subserviência mental aludindo a uma prática de uso generalizado que a experiência fora do Brasil me permitiu mais amplamente observar. Qualquer brasileiro, não importa de que categoria intelectual, que fale um inglês ou francês razoável, a troco de tudo, ou de nada, espinafra o compatriota que nisso lhe seja inferior. O nome dessa prática corrente entre brasileiros é colonialismo mental. Observem, porém, que não é meu propósito extrair dos exemplos acima nenhuma justificação da ignorância baseado no princípio, que irrestritamente louvo, da independência mental.

Como o leitor pode deduzir, quando convém reivindicar valores e interesses de fundo nacionalista ou regionalista, ou ainda mesquinhamente local, acusamos como alienados os intelectuais que se inspiram em fontes norte-americanas ou europeias. Se é porém o caso de desmerecer um movimento brasileiro em favor de reivindicações provincianas ou grupais, toma-se como justificado recorrer a uma fonte europeia desprovida de efetiva familiaridade com nosso ambiente cultural.

César Leal conclui afirmando que a literatura brasileira pouco deve ao modernismo, embora tenha antes reconhecido que Carlos Drummond de Andrade, “o mais completo poeta da língua portuguesa no século”, é um produto espiritual do movimento que procurou do início ao fim desmerecer movido pelo espírito de província contra o qual venho argumentando. Na própria revista Pasárgada o leitor pode verificar que outro grande poeta, para muitos maior ainda que Drummond, confessou dever muitíssimo ao modernismo. Refiro-me, claro, a Manuel Bandeira. Embora os atos de modéstia por ele praticados, sobretudo o cansativo “sou poeta menor, perdoai”, fossem com frequência mero artifício retórico, aqui ele alcança uma medida de isenção e humildade diante do movimento estético coletivo que lastimavelmente não mereceu no artigo de César Leal tratamento semelhante. No mais, encarar a literatura brasileira como produto direto do intercâmbio internacional, como o faz o articulista, é desprezar o que foi precisamente uma das grandes conquistas do modernismo: o movimento de atualização intelectual e artística do Brasil. Noutras palavras, a causa assinalada por César Leal com o objetivo de depreciar o sentido de renovação e atualização do modernismo é nada mais que um efeito deste mesmo movimento.

Poderia também aqui alinhar provas em defesa da minha tese. É porém bem mais recomendável relembrar ao leitor a justamente celebrada conferência de Mário de Andrade, “O movimento modernista”. Embora apresentada no distante ano de 1942, prova factual de que Mário sobreviveu à ignorância hesitante com que Cendrars o matou em 1938, é ainda o mais importante documento de interpretação deste movimento que inspira ainda, setenta anos mais tarde, celebrações e ataques, preconceitos e reverências, que são de resto formas de preconceito. Pessoalmente, prefiro a atitude crítica na revista proposta, ou praticada, por Roberto Martins, Marcelo Coelho e Mário Hélio. Não obstante as atitudes que aqui declaradamente combato, servem ao menos para sugerir o quanto o legado do modernismo inscreveu-se na memória coletiva de um país tantas vezes justamente criticado por sua falta de memória coletiva. Não será isso uma prova de permanência e vitalidade do melhor espírito de um movimento que tantas vezes tropeçou no mito bandeirantista do “marco zero” nisso confundindo-se com o suposto antagonismo do “espírito de província”?
Colchester, Inglaterra, junho de 1992.
Nota: este artigo de corte polêmico foi publicado na revista Pasárgada, Ano II, nos. 2 e 3, setembro de 1993, pp. 4-6.

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