domingo, 29 de dezembro de 2013

A Ceia Imaginária


À família que podia ter sido.

Vi que o grão de tristeza
Rolou sobre a farta mesa
Onde ruidosos jantamos.
Era a mancha da impureza
Entristecendo a beleza
Que a vida mescla e acatamos

O mal traçado dos planos
A suja nudez dos anos
A ceia na festa impura.
Também da vida acolhemos
O triste sinal de menos
Que dura enquanto ela dura.

A vida na mesa posta
(com o que se gosta ou não gosta)
tempera os pratos da ceia:
São frutas, doces, salgados
Peixe, carnes, refogados
Peru, atum, pão, geléia.

Sopro do tempo, memória
Eis que convoca as histórias
Que à mesa querem sentar.
Um trem de gente que passa
Ri, desconversa, disfarça
A dor pulsando no ar.

Vibram os sons nos cristais
Deusas profanas, natais
Sobre a magia da mesa
Onde tem curso essa ceia
Que a fantasia incendeia
Ferindo a garganta presa.

E a ceia assim transcorre
Fundindo o que vive e morre
O mais remoto e o atual.
E tudo atravessa a porta
A vida reta e a torta
Ambas celebram Natal.

E assim se dissolve o dia.
Entre o mar e a serrania
Se eleva a luz sobre a mesa.
Todos à mesa se somam
Os que se odeiam, se amam
O caçador, sua presa.

Lá fora já amanhece
Já sobre o canto uma prece
Silenciosa se espraia.
E todos – que estranho bando!
Já se vão rindo e chorando
Contra o recorte da praia.

Resta na mesa o quinhão
Humano que ainda nos sobra.
Tanto ruído e paixão
Tempera tão parca obra
Contida numa só mão
Nada renova ou transborda.
À mão se dá outra mão
E o tempo por fim repousa.

Fernando da Mota Lima.
Recife, 24/25 dezembro, 2005.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Desejos


“E se tudo isso acontecer
Não tenho mais nada para te desejar”.
(Do poema Desejos, atribuído a Victor Hugo)

Desejo que você ame
E seja feliz no amor.
Mas ame consciente de que o fim do amor
É a perda, o desenlace
No desamparo de uma noite escura.
Amamos sempre para perder
Para a solidão iluminada
Que vive além do amor já esvaído.

Desejo que você tenha amigos
Mas saiba desde já que a amizade
É um grão diluído na areia do deserto
Que é o vil comércio das relações.
A amizade é o mais alto privilégio da intimidade
E poucos os afortunados que a conquistam.

Desejo que você tenha amigos
Que a isentem da necessidade
Dos inimigos honestos
(Aqueles que dizem tudo
Que não gostamos de ouvir
Ou estilhaçam o cristal do espelho
Onde nossa autocomplacência se reflete).
Assim eles a pouparão da lisonja e da hipocrisia
Que lastreiam as falsas amizades.

Desejo que você seja inútil, livremente inútil
Dentro desse ubíquo bazar
Onde tudo se troca.
Seja livre como uma canção cantada na solidão da noite
Como uma criança antes do primeiro clipe publicitário
Como uma carícia no corpo da primeira virgem.

Desejo que você seja jovem, ainda quando já velha.
Mas não confunda a juventude do espírito
Liberto das opressões do corpo
Com a adolescência senil
Ou um produto chamado terceira idade.
Terceira idade é de fato a velhice
A caminho irreversível da morte
Nosso destino definitivo.

Desejo que você tenha a coragem da tristeza
Ainda mais a da solidão voluntária
Sobretudo a coragem da dor.
Desejo que você conquiste a coragem desilusória
De ser como a vida é
E assim realize a felicidade sem comércio
E a lúcida e serena alegria
Dos seres genuinamente livres.

Desejo que você tenha a coragem de me perder
Como preciso da coragem de perdê-la.
Assim nos reconciliaremos numa ordem de permanência
Onde na memória do amor falível
Os amantes afinal se eternizam.

Recife, 1 de janeiro de 2010.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O Inferno na Tarde


A casa vazia.
A vida vazia.
Queimou todas as cartas de amor
As fotos, as roupas, tudo
que fosse matéria portadora de símbolo
Da sua presença que em vão tentou apagar
durante anos de perda e desolação.

A sombra severa e punitiva dos pais.
Nunca um gesto de amor
Um vinco de ternura
Dentro da casa sombria.
As paredes úmidas recobertas
Por imagens impenitentes.

Tudo negro e mórbido à sua volta.
Desde a infância mais remota
Impregnou-se de imagens e sons
Recortados pela Inquisição
O catolicismo sádico, a supressão
De tudo que acaso pudesse inspirar-lhe
Um sopro de graça, a luz
De uma divindade amorosa.

Na sua imaginação longe
De tudo a Espanha queimava
Como uma fogueira eterna.
Via sempre uma mulher de preto
Arrastada para o patíbulo
Ardendo nas chamas do inferno.
O rosto da mulher pregado
Na cruz do pesadelo era
O seu e o céu ausente
Fechava-lhe todas as portas.

O fantasma onipresente de Franco.
Uma vida inteira policiada
Pelo pecado, o pavor de pecar, arder
Na eternidade do inferno.
Queimou as cartas de amor que denunciavam
Seus desejos imperdoáveis.
Embora tanto se punisse, a culpa
Nada cedia, nada perdoava
Consumindo-lhe as forças vacilantes
Cada vez mais vulneráveis.

O quarto vazio.
A vida vazia.
Saltou no vazio
Numa tarde de sol inglesa.
Por que numa tarde assim
Numa iluminada paisagem inglesa?

Dizem os amigos presentes que agonizou
Durante cerca de uma hora.
O que mais me atormentou quando
À noite regressei de Londres
Foi a imaginação da sua agonia.
Dizem que seus olhos ardentes murmuravam:
Pilar é o inferno.

Recife, 12 de dezembro 2013.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Ler


Para Ci, que ama os livros.

Ler por prazer
É como amar
O que se quer.
É ser e ter
O que se dá
Tal qual se é.
II
Quem ama ler
Nunca está só
Na solidão.
Livro é o amigo
Que escolho e abrigo
No coração.
III
Quem ama sabe
Que o céu se abre
Na escuridão.
Quem lê inventa
O ser que aumenta
O coração.
IV
Ler é viver
Um outro modo
De companhia.
É saber ser
Além do engodo
A poesia.
V
Quando eu morrer
Não farei falta
À luz do dia
Que é o que é
Antes e sempre
Passasseria.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Entrevista sobre Gilberto Freyre


Fellipe Torres - Em Casa-grande & Senzala, Gilberto Freyre traça um paralelo entre a arquitetura da Casa-grande e o patriarcalismo. Seria possível atualizar a comparação ao observar a arquitetura moderna de arranha-céus, de apartamentos minúsculos onde impera o individualismo? O quanto do patriarcalismo enxergado por Freyre permanece em vigor na sociedade? Com que outros elementos ele coexiste?
Resposta - A pergunta é muito pertinente e infelizmente apoiada por muitas evidências. A força da tradição em Pernambuco, diria que no Brasil em geral, é extraordinária. Isso quer dizer que muitos traços nocivos do patriarcalismo e do escravismo dentro do qual fomos formados continuam bem vivos no presente. Gilberto Freyre (também Joaquim Nabuco, que antecipou muitas das intuições críticas de Freyre) teve olhar agudo para discernir esses traços. Basta conferir a obra de ambos. Essa herança me parece tão negativa que não posso opinar sobre o processo de acelerada expansão urbana do Recife sem qualificá-lo como simplesmente predatório. Incorporamos a modernidade e o capitalismo globalizado retendo algumas das piores forças do passado opressivo que herdamos. As evidências estão nas ruas e na nossa relação com os espaços público e privado; na arquitetura e na expansão comandada por políticos e empresários de mentalidade ainda senhorial. No fundo, são ainda coronéis dissimulados sob a aparência da nossa modernidade perversa. O exercício da democracia nestes trópicos autoritários e festeiros é ainda um grande mal-entendido, não obstante os avanços inegáveis.

F. T. - Em uma época em que a eugenia ganhava força com o nazismo, Freyre surgiu defendendo a miscigenação como uma forma de enriquecimento cultural e racial. Quais as mais relevantes heranças (dos índios, negros e portugueses) que vivenciamos até hoje como parte da cultura nacional?
R- Penso que a herança mais relevante consiste na revalorização da nossa condição de povo racial e culturalmente miscigenado. Ninguém concorreu mais para a reconciliação do brasileiro com sua real condição sócio-antropológica do que Gilberto Freyre. Mas importa reconhecer que a interpretação proposta por Freyre, e adotada até oficialmente, exerce funções ambíguas. Se de um lado ela realça uma integração social efetiva, de outro também mascara o vinco cortante de autoritarismo, racismo e profunda desigualdade social inerentes às nossas relações sociais.
Gilberto Freyre foi uma pessoa singularmente contraditória. Ele próprio tinha consciência disso. Aliás, ninguém explicou melhor Gilberto Freyre do que ele próprio nos muitos textos em que se debruçou sobre si próprio com uma obsessão narcisista sem precedente na nossa cultura. A deleitação narcisista com que falava de si próprio não anulava o olhar aguçado com que tantas vezes iluminou sua própria obra e personalidade. Na obra tardia, no entanto, o vinco do olhar autocomplacente prevalece e daí a tensão crítica e autocrítica baixa drasticamente. Mas o que queria acentuar ao derivar para essa linha de consideração era o fato de que ele foi um conservador otimista. Isso é raro e diria até contraditório. Sua interpretação otimista do Brasil tem sido infelizmente desmentida pelo próprio desdobramento de muitas das nossas características culturais tão louvadas na sua obra. Nossa expansão urbana, por exemplo, acima brevemente considerada, tende a criar zonas crescentes de segregação, fato que contraria sua visão integradora da nossa cultura. Basta observar a fronteira que isola o shopping Center da rua e das moradias tingidas de pobreza e miséria; o automóvel versus o transporte coletivo; os condomínios isolados da rua por altos muros, segurança privada e até cerca elétrica versus as favelas e mocambos onde os pobres se espremem entre o mangue e o esgoto a céu aberto. Enfim, depois de 125 anos de abolição formal da escravidão, uma paisagem urbana bem longe do otimismo pintado pela tradição mais otimista do nacionalismo cultural cujo representante mais ilustre é precisamente Gilberto Freyre.

F. T. - Gilberto Freyre exerceu forte influência na literatura, em autores como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Hermilo Borba Filho, Osman Lins... Na cultura contemporânea de modo geral (incluindo-se a literatura), ainda enxergamos traços de influência de Casa Grande & Senzala? Filmes como O som ao redor atualizam a temática?
R - Com certeza. A visão dominante de nacionalismo cultural, manifesta nas expressões artísticas e noutras formas de discurso sobre o Brasil, e aqui incluo ainda o discurso oficial e publicitário, é muito poderosa e portanto permeia o conjunto da nossa sociedade. Muitos dos nossos intelectuais e artistas contribuíram para a consolidação desse imaginário, desde modernistas como Mário de Andrade até o regionalista Ariano Suassuna. Mas não há dúvida de que o articulador supremo desse nacionalismo cultural foi Gilberto Freyre. Seu correspondente na literatura é Jorge Amado, cuja penetração no mercado literário internacional generalizou uma visão mítica e até folclórica do Brasil. Nesse sentido, Jorge Amado é mais uma criação de Gilberto Freyre do que o próprio José Lins do Rego. Quanto ao filme O som ao redor, confirma o que acabo de observar. Um dos grandes méritos do filme é precisamente atualizar na expressão fílmica a interpretação de Gilberto Freyre.

P - O universo acadêmico sempre foi bastante crítico em relação à produção freyriana, chegando a rejeitá-la em vários momentos. Como Casa Grande & Senzala é vista hoje pela academia? É uma obra estudada? Quais são as principais contribuições para a formação de novos profissionais e pesquisadores das ciências humanas?
R – A obra de Gilberto Freyre foi praticamente silenciada na academia durante a vigência da ditadura militar. Atenuado e diria hoje dissolvido o clima de antagonismo ideológico marcado pela intolerância mútua, a obra de Freyre passou por um processo de revalorização crescente. Hoje voltou a ser quase uma unanimidade. A obra dele está com certeza acima desses embates ideológicos e dos traços negativos da sua biografia, de resto bastante deploráveis e conhecidos. A crítica esclarecida e isenta sabe que é preciso distinguir obra e autor, obra e biografia. Duvido porém que ela esteja sendo estudada tanto quanto aparenta. Voltamos a falar muito elogiosamente da obra de Gilberto Freyre, mas muitos que se pronunciam sobre ela na academia baseiam-se nos comentadores e em apreciações muito parciais. O mais grave é observar que muitos dos que radicalmente o negavam sem o lerem passaram a louvá-lo com a mesma leviandade corrente nos círculos acadêmicos brasileiros.
Talvez a contribuição maior de Gilberto Freyre consista na forma como assimilou com muito discernimento crítico e criativo as teorias e métodos estrangeiros, a articulação complexa entre o nacional e o universal, a tradição e a modernidade. Foi explorando de forma genial essas vias complexas que Gilberto Freyre se tornou provavelmente o maior inventor do Brasil. O melhor livro já publicado sobre a formação intelectual de Freyre, refiro-me a Um Vitoriano dos Trópicos, de Maria Lúcia Pallhares-Burke, demonstra com rigor crítico e documental impecáveis isso que sumariamente assinalo.
Nota: Concedi a entrevista acima a Fellipe Torres, do Diário de Pernambuco. Tudo se processou através de e-mail. Fiz apenas uma exigência: que ele me enviasse o texto editado antes da publicação no jornal. Ele concordou. Para minha surpresa, descobri por acaso que publicou uma reportagem na edição de hoje, 2 de dezembro, sobre os 80 anos de publicação de Casa-Grande & Senzala e a realidade presente da expansão urbana do Recife. Cita algumas frases recortadas da entrevista que lhe concedi. Aparentemente, o jornal publicará no decorrer desta semana outras reportagens baseadas num paralelo entre a obra de Gilberto Freyre e outros aspectos da nossa realidade sócio-cultural. Em suma, Fellipe Torres não cumpriu os termos do nossos acordo informal. Mais uma razão, portanto, para que me sinta à vontade para postar a íntegra da entrevista no meu blog. Em tempo: tomei a liberdade de acrescentar um parágrafo ao texto antes enviado para ele.

domingo, 1 de dezembro de 2013

A Rebeldia da Juventude


A doença infantil da juventude é a rebeldia. O jovem rebela-se, antes de tudo, por causa da sua insegurança e da necessidade de afirmar sua individualidade. Esta supõe a negação dos pais ou de quem simbólica ou literalmente representa os papéis que assim os definem. Chovendo no molhado, os pais são nossos modelos primários. Mais do que isso, portamos no nosso corpo e no nosso psiquismo, na nossa condição genética, as marcas indeléveis que nos transmitem. Por isso precisamos viver nessa fase da nossa vida essa relação negativa contra eles. Precisamos negá-los como meio necessário para afirmar nossa diferença, nossa singularidade diante deles e da vida. Além disso, o jovem também se rebela contra a vida, contra a realidade que o oprime. Quem já não ouviu ou disse este lugar comum: apagamos na maturidade os incêndios que ateamos na juventude? Sei que os termos do lugar comum não são estes, apenas limito-me a traduzi-los sem lhes comprometer o sentido substancial.
Na minha juventude, a fração mais consciente da minha geração rebelou-se contra a ditadura militar. Considerada a totalidade dos jovens da época, éramos uma minoria insignificante. Mais reduzida ainda era a fração dos radicais que optaram pela luta armada para enfrentar a ditadura. O exemplo genérico sugere a imprecisão do conceito de geração, tão correntemente usado nos estudos historiográficos. Como a oposição ativa e institucionalmente organizada foi suprimida (daí a ditadura), opositores do meu tipo negavam o poder político migrando para dentro de si próprios. Era uma forma de oposição de raiz subjetiva, à margem da esfera pública, que provavelmente punia apenas o opositor. Pelo menos na instância imediata ou empiricamente apreensível. Afinal, o opositor se tornava um desajustado vivendo na contracorrente dos valores dominantes.
Foi por me tornar um opositor da ditadura que passei a me identificar como um crítico e inimigo intransigente dos valores dominantes. Essa oposição se estendia à esfera da família (daí detestar na minha família o que identificava como valores típicos da pequena burguesia), da religião (que não passava de ópio do povo), do capitalismo compreendido como sistema regulador da nossa existência material. Para além da mera contestação política, os anos 1960 e 1970 acabaram ultrapassando em muito o marco da política para se transformarem numa era de autêntica revolução dos costumes. De fato, a contestação que então irrompeu transbordou dos marcos da política compreendida no seu sentido convencional espraiando-se para os costumes gerais da sociedade. A própria disseminação de regimes ditatoriais em praticamente toda a América do Sul acabou concorrendo para deslocar a rebeldia da juventude para o âmbito dos costumes. Isso grosseiramente explica a explosão das formas de comportamento e das modas que na prática representaram uma força de erosão da família tradicional, dos papéis pertinentes aos gêneros, à sexualidade, ao conjunto das normas de regulação ética da sociedade.
O fato é que, bem ou mal, minha geração, compreendida no sentido acima sugerido, orientava sua rebeldia contra alvos bem definidos. Provavelmente bem poucos sabiam o que precisamente queriam, mas quase todos sabiam o que não queriam. Tínhamos um objeto de ódio contra o qual podíamos em graus variáveis desfechar nossa energia agressiva, nossa rebeldia carente de válvulas de escape e vias de afirmação da nossa individualidade. Um dia, porém, dei-me conta chocado de que me imaginava mudando o mundo, um sistema de poder que me reduzia à insignificância de um grão de areia na imensidão da orla marítima, quando não tinha autonomia nem para viver por conta e risco próprio. Filho de um pai cuja privação de autoridade e comando tornava-o um autêntico pai permissivo avant la lettre, típico da cultura em que hoje vivemos, tinha medo do mundo e estava com certeza totalmente despreparado para enfrentá-lo. Foi aí que, com muito medo, decidi sair de casa para aprender a viver por conta própria. Apreciando retrospectivamente minha vida, não tenho dúvida de que esta foi a decisão mais importante que ousei tomar sem então ter noção clara do seu alcance. Se não a tomasse e seguisse, apesar do medo e de todas as tribulações que daí advieram, teria provavelmente fracassado de forma absoluta.
Para além das motivações negativas - negar a família de que era parte e na qual fui progressivamente deixando de me reconhecer; negar valores morais relativos à sexualidade, à religião, às ambições de futuro e de vida bem sucedida etc – sentia-me também impelido por motivações positivas. Por exemplo: conquistar a liberdade de dormir com minha namorada; viver uma vida regida por valores sexuais e afetivos mais livres; contribuir dentro dos meus limites individuais para a fundação de uma sociedade mais livre e portanto menos repressiva. Assim, saí pelo mundo decidido a não repetir a história do meu pai, fortalecido pela crença de que viveria uma vida muito melhor do que aquela possível nos marcos do mundo em que me formei - e sobretudo deformei, assim ponderava ao cotejar o real com o desejável, o mundo que herdei contra minha vontade com o que me acreditava capaz de conquistar. Não preciso dizer que apanhei muito da vida, que fiquei muito aquém do que ingenuamente me supunha capaz de alcançar. De qualquer forma, continuo acreditando que minha rebeldia, a coragem relutante com que larguei a família para fazer de mim um indivíduo no sentido moderno do termo, tudo isso valeu a pena e me franqueou uma forma de vida melhor do que antes vivi.
Anos mais tarde, já acomodado na fase em que deixamos de ser incendiários para apagar o fogo das paixões juvenis, muitas vezes repassei perplexo na memória coisas que fiz e simplesmente não me podia mais imaginar fazendo. Lembro-me com mais nitidez que essas rememorações perplexas se amiudaram nas minhas noites de solidão inglesa. Cheguei à Inglaterra no dia preciso em que completei 40 anos. Se há uma idade da razão, comigo muito duvido, diria que a minha inaugurou-se no mundo inglês. Se fosse o caso de indicar uma data precisa, escolheria a data da minha chegada, quando pus as pernas trêmulas (uma delas aliás literalmente enferma devido a uma cirurgia para curar uma ruptura de menisco interno) num solo e mundo absolutamente estrangeiros. Ali, naquele exato momento, iniciei um estágio completamente novo na minha vida. Algum tempo depois, curtindo uma solidão prolongada e indizível, no entanto também estranhamente sólida e serena, surpreendi-me no silêncio e no frio repassando na memória os incêndios ateados no Brasil durante minha juventude. Pensava então, completamente perplexo, por vezes entre risadas de espanto e incredulidade, como fui capaz de fazer aquelas coisas nas quais já não me reconhecia, coisas que com certeza não mais sequer cogitaria fazer novamente. Isso traduz, de forma um tanto simplista, minha passagem da juventude para a maturidade.
O que hoje move a rebeldia da juventude? Uma coisa me parece certa: ela não tem um alvo de negação definido. Nisso diria que é radicalmente diferente da minha geração. Na medida em que precariamente o percebo, o jovem de hoje, o típico jovem de família classe média brasileira, não tem contra o que se rebelar. A despolitização do espaço publico privou-o da capacidade de contestar, por exemplo, os valores do capitalismo globalizado. O que Marx designava como fetiche da mercadoria tornou-se uma força tão onipresente no mundo em que hoje vivemos que precisamos de algo que negue nossa humanidade mais elementar para nos compenetrarmos de nossa diferença do reino da mercadoria. Narro um exemplo preciso que acabo de ver no Jornal Nacional da rede Globo. Uma reportagem sobre o tratamento reificante (quem ainda usa este termo que tanto se entranhou na minha consciência antiburguesa?) imposto pelos planos de saúde aos usuários ou pacientes (estes termos de resto suprimem nossa humanidade individual) mostra o que acontece a muitos cujo tratamento urgente e inadiável é suspenso por irresponsabilidade criminosa da operadora do plano. Um pai, cuja filha foi vítima desse crime corrente e impune neste Brasil de códigos legais de ordinário reduzidos a letra morta, declarou ao repórter: “Minha filha não é um carro que levamos de uma oficina para outra”.
Com ou sem juventude, ninguém se rebela contra essas afrontas a nossos direitos humanos que são todos os dias espezinhados pelo tipo de capitalismo estabelecido no Brasil. Precisamos de exemplos da natureza do que acima descrevi para nos dar conta de que há um fator humano diferenciador da nossa condição. Noutras palavras, nossa humanidade falível não deve ser tratada como tratamos um carro avariado. Abstraída essa circunstância excepcional, no entanto, qual é nossa percepção ética e existencial do carro dentro da natureza técnica e instrumental que rege nossa chamada civilização? Vivemos em cidades desumanas cujo funcionamento está dirigido para a supremacia do automóvel. O ideal de todo indivíduo típico, dentro dessa civilização, é comprar um carro para em seguida mergulhar nos labirintos congelados do nosso trânsito que não mais transita. A máquina publicitária, expressão dos valores que movem a ação e a consciência alienada do presente, satura nossas fantasias de consumo com automóveis e uma rede de símbolos de aquisição que, no limite, reduzem nossa humanidade àquilo que os planos de saúde executam e ocasionalmente se revela numa reportagem de noticiário televisivo: somos apenas máquinas degradáveis e descartáveis. Por isso os planos de saúde tratam-nos como os carros avariados são tratados: atiram-nos em qualquer oficina, quando não nos reduzem pura e simplesmente a ferro velho.