quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Alain Finkielkraut


Um coração inteligente

Alain Finkielkraut, de origem polonesa, é um ensaísta e professor que se distingue na França por ser o que noutros tempos se conhecia como intelectual público. Atualizando a expressão, diríamos que é hoje um intelectual midiático, assim como no Brasil são ou foram Paulo Francis, Marilena Chauí (entre parêntesis: onde andará a grande profetisa da ética petista na polícia? Perdão, quis dizer política. Lula explica. Se o mensalão tem uma vítima, e mais que merecida, diria ser ela.) Jurandir Freire Costa, Maria Rita Kehl, Contardo Calligaris, Marcelo Coelho e tantos outros. Finkielkraut é também um dos rebentos da geração conhecida como os novos filósofos, um grupo barulhento de jovens pós-sartreanos que fez muito barulho, como é de praxe na inteligência francesa, e bem pouca filosofia que sobreviva.

Finkielkraut reaparece na cena intelectual brasileira com um livro surpreendentemente consagrado à literatura. Começo pelo melhor, pelo que de pronto me atraiu no livro: o título. Eis um belo título: Um coração inteligente. Finkielkraut introduz seu título e a devida obra evocando a súplica que o rei Salomão fez a Deus: que Deus lhe desse um coração inteligente. A julgar pela tradição bíblica, Deus lhe deu, sim, um coração inteligente. Como há muito já não existe rei ou governante do feitio de Salomão, até porque o Deus e a política da modernidade são definitivamente entidades de ordem secular, é compreensível e até sábio o fato de Finkielkraut debruçar-se sobre as fontes da literatura tocado pela esperança de fazer do seu um coração inteligente, além de intentar comunicá-lo ao coração dividido do leitor.

Por que afirmei eu que o coração do leitor, o nosso, é um coração dividido? Porque penso que essa bela unidade expressa no titulo da obra foi cindida por forças e movimentos de ideias típicos da modernidade. Rousseau, pai fundador da filosofia e da literatura romântica, elevou a sensibilidade (isto é, o coração) à condição de ideal supremo. No outro lado do canal, na Inglaterra, Jeremy Bentham e sobretudo James Mill e seu filho John Stuart Mill expulsaram o coração do reino da inteligência ao consagrarem o princípio da utilidade como fundamento da filosofia utilitarista. Claro que simplifico a história moderna das relações entre o coração e a inteligência na modernidade. Mas o enredo geral bem pode ser assim esboçado. Esta é a cisão que percorre o espírito do livro de Finkielkraut e portanto cuidarei de a retomar mais abaixo.

Entendo que o coração inteligente é aquele que conjuga a emoção e a inteligência, a sensibilidade e o intelecto. Se é possível imaginar uma razão absolutamente fria e um coração puramente cego, temos aí o primeiro motor ou a fonte suprema da catástrofe, seja num extremo, seja no outro. É essa a consequência da cisão entre os pares complementares que são a sensibilidade e a inteligência. Como ressalta Finkielkraut, o possesso e o burocrata são perversões atuais desses pares complementares. Pervertem-nos não apenas porque os dividem, mas sobretudo porque, assim procedendo, dão um passo adiante e convertem um dos polos em ideal absoluto ou norma suprema de vida.

O possesso, sabe o leitor, é uma alusão implícita ao romance Os possessos (também traduzido como Os demônios), de Dostoiévski. Estes convertem a paixão revolucionária, ou o coração fanatizado, no absoluto que, na história política, produziu insanidades como o reinado do terror, durante a revolução francesa, o stalinismo e o nazismo. O burocrata, esse funcionário sem alma, é o carcereiro da modernidade, daquilo que Max Weber, teórico supremo da burocracia e dos processos de racionalização da modernidade, designou como a jaula de aço (iron cage) do mundo em que vivemos. Se querem um exemplo extremo desse burocrata sem alma, lembrem-se de Eichmann, julgado e condenado em Jerusalém e objeto de um livro momentoso e definitivo da filosofia política do século vinte escrito pela grande Hannah Arendt.

Penso que o eixo do livro de Finkielkraut consiste nas linhas de força e tensão que procurei esboçar nos parágrafos precedentes. Mas saiba o leitor que ele não o expõe, o eixo a que me refiro, com a clareza que intentei verter sobre esta resenha. Ele acredita, assim como eu, que é na literatura que tecemos o coração inteligente. Não em Deus, como acreditava Salomão, pois Deus, imerso no seu silêncio, é indiferente à nossa súplica. De resto, introduzindo aqui um travo de mordacidade, quem hoje suplica a Deus um coração inteligente? Os fiéis suplicantes que de ordinário encontro e ocasionalmente ouço suplicam a Deus as benesses do bezerro de ouro que é a nossa sociedade de consumo. Portanto, dou razão a Finkielkraut: é na literatura que podemos talvez identificar essa unidade rompida entre a sensibilidade e a inteligência.

Guiado pelo princípio acima exposto, Finkielkraut seleciona algumas obras da literatura escritas entre os séculos 19 e 20 para ilustrar seu argumento. Dentre os autores que estuda, há dois que desconheço completamente e, até onde sei, são praticamente desconhecidos no Brasil. Refiro-me a Vassili Grossman e Sebastian Haffner. Os demais são autores canônicos da literatura moderna: Dostoiévski, Joseph Conrad, Henry James, Karen Blixen (também conhecida como Isak Dinesen, seu pseudônimo literário), Albert Camus, Milan Kundera e Philip Roth. De cada um desses autores, Finkielkraut seleciona uma obra específica e daí se empenha antes em descrever do que demonstrar o coração inteligente que esses grandes ficcionistas narram.

A insuficiência do livro me parece consistir precisamente nisso: na prevalência da descrição sobre a demonstração. Quero noutras palavras dizer que Finkielkraut, ao estudar uma obra determinada de cada um dos ficcionistas acima mencionados, limita-se quase sempre a parafrasear ou transpor em estilo próprio as narrativas que no seu entender justamente traduzem no plano do imaginário ficcional a experiência do coração inteligente. O livro seria com certeza bem melhor se ele se aventurasse a melhor demonstrar seu argumento em defesa da literatura contra a filosofia e as ciências sociais.

Na página de abertura do capítulo dedicado a um conto de Karen Blixen, A festa de Babette, Finkielkraut opõe francamente a literatura à filosofia e às ciências sociais tomando o partido da primeira. Ele acredita que o sentido do conto de Karen Blixen consiste em nos revelar na forma de uma narrativa, ou de uma história, o que significam grandes valores humanos como a civilização, a arte, o ideal e a graça. Quando se propõem questões dessa natureza, o filósofo e o cientista social recorrem ao pensamento especulativo, no caso do primeiro, e aos métodos indutivo e comparativo, no caso do segundo. O narrador ficcional, por sua vez, simplesmente inventa uma história, traduz na forma de uma narrativa as abstrações mentais do filósofo e do cientista social. Assim procedendo, e essa é na verdade a natureza do seu ofício, ele reconcilia a sensibilidade e a razão.
Traduzindo no plano do imaginário ficcional as questões fundamentais da experiência humana, o narrador converte a atividade especulativa e os conceitos abstratos em ação humana reinventada num enredo vivido por personagens portadores das qualidades sensíveis características de todo ser humano. Assim procedendo, ele reconcilia na obra de arte o coração e a inteligência, a sensibilidade e a razão. Em suma, ousaria afirmar que ser um grande criador literário, assim como ser um grande leitor, é ter o privilégio de possuir um coração esclarecido.

Alain Finkielkraut. Um coração inteligente.
Tradução: Marcos de Castro.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Bella e o mito de Ulisses



Ai, velas da caravela
Onde me querem levar?
Nos mares de Arabella
Um dia vou naufragar.

Beijo nos olhos, cabelo
Solto na brisa do mar
De Olinda até Cabedelo
Teu cheiro sopra no ar.

Tua beleza morena
Baila no vídeo, na tela
Tanto mimada e pequena
Tanto teu jeito de Bella.

No mastro da caravela
Meu corpo vou amarrar
O canto de amor de Bella
Nas ondas vem me afogar.

Dirão depois o que eu disse
Ou antes tentei falar:
Bella, a sereia de Ulisses
Bella, sereia do mar

Devora as noites de lua
Os barcos ermos do mar
Com dengues de deusa nua
Domando as forças do ar.

Ai de Ulisses, dos gregos
Conquistadores do mar
No encanto de Bella presos
Quem há de vê-los voltar?

Fernando da Mota Lima.
Recife, 20 de setembro de 2006

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Fatos da vida



Fatos da Vida - I

O amor nascente brincava
Alheio aos fatos da vida
E à lei da matéria fria.
Brincava e amor prometia
Tudo vertendo em poesia
Enquanto a matéria austera
Ria de lado e à vera
Se espreguiçava e dormia.

O amor criança, tão belo
Solta no ar os cabelos
E o juízo também.
E brinca da pele ao pelo
Rezando com casto zelo
Jurando em total desvelo:
Sou teu e de mais ninguém.

E ia e se repetia
E a cada jura dizia
A eternidade do bem.
Até que a matéria fria
Cônscia das regras do dia
Sorriu enquanto dizia:
O amor não dura, meu bem
Embora enquanto dure
Seja o mais alto dos bens.
Nada ou ninguém recrimine.
A culpa é de ninguém.


Fatos da Vida – II

Maravilhada e despida
Ao mudo espelho ela indaga:
Diga-me lá do mais fundo
Onde a verdade palpita:
Existirá neste mundo
Mulher mais que eu bonita?
Que criatura de Deus
Humilde, vaidosa ou rica
Na linha entre a praia e o céu
É mais que eu, mais bonita?

E o espelho calado fica
A irradiar no reflexo
Toda a cegueira do sexo
Que vê o que nunca vira.
Tão certa supõe estar
Que ela se veste e um olhar
Último lança ao partir
Pra onde a espera o amado
Que crê fiel, dedicado
Qual um espelho curvado
Para a incensar, refletir.

E entanto chega o carteiro
Que lhe traz novas do amado.
Tão ávida abre o envelope
Quão célere se põe a ler:
“Amor,
O tempo em rude galope
Num passo muda tua sorte
Teu esplendor no espelho.
Mudamos de corpo e porte
E és velha como o teu velho.
Se queres o meu conselho
Sem preço, custo ou diária
E um bom bocado de sorte:
Encomenda à funerária
Teu leito de amor com a morte.


Fatos da Vida – III

Que mais eu posso fazer
Pra minorar a pobreza
Que me enriquece e cultua
Com luxo, prazer, mulher
Quando mal anda de pé
Comendo entre o chão e a mesa
Erma no esgoto da rua?
Que afinal posso eu
Ex-delinquente e plebeu
Alçado aos tronos do céu
Só porque sei bater bola?

Façamos uma campanha,
Disse o empresário ao atleta
Para abrandar seus pruridos
De Diva casta ou poeta.
A Brahma e a Parmalat
Trarão consolo à pobreza
E outro quinhão de riqueza
À tua, que já é tanta.
Se o cão não morde nem late
Se o calouro não canta
Nem sabe a bola chutar
Melhor o teu que o deles
O rabo de Carla Perez
Bem poucos podem comprar.


Epílogo

É a vida que é brutal, não o poeta
Que fere pra sanar sua ferida
Cerzindo sob a pele lacerada
A carne mais humana e repartida.

E aspira (ou aspirava) a um outro mundo
Um outro redivivo ou recriado.
Medindo sempre o raso contra o fundo
Vê hoje o quanto estava enganado.

Se a vida afinal sempre transborda
A linha em que a retêm nossos conceitos
Falar pro enforcado em forca e corda
É insensato ou pura falta de respeito.

A vida é que é brutal, não o poeta
Que a sonha iluminada e redimida
Mas se é fato que rima com profeta
A rima é mero som, não muda a vida.

O poema é apenas um poema
E a dor me dói privada e impressentida.
O mais não vale a pena e entanto pesa
O peso que é viver sofrendo a vida.

Porto de Galinhas, 23 a 28 de junho de 1998.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Marco teórico



Marcos, o teórico

Marcos era um verboso nato, um ser vocacionado para a fala. Se nordestino fala pelos cotovelos, no geral sem juntar coisa com coisa, Marcos falava bonito, altissonante e, milagre dos milagres no reino do discurso vazio, ainda cometia a façanha de juntar coisa com coisa. Pelo menos era o que pensava e seus ouvintes extasiados confirmavam.

Não bastasse a vocação, também sobreveio a ocasião que, como bem dizem, faz o ladrão. Além do seu talento verbal, Marcos teve a fortuna de ser aluno e afilhado do promotor Valêncio Costa. Só aqueles raros que conheceram Valêncio Costa na intimidade podem melhor ajuizar sobre seus dotes verbais, sobre o preciosismo e os primores de um discurso que vertia neve no sertão e ensolarava os invernos russos, pintava revoluções sem sangue e ensurdecia os mosteiros com sua verve carnavalesca. Valêncio Costa, dizia-me seu biógrafo César Melo, era o fenômeno supremo da arte retórica. Aliás, reza a lenda que César Melo é também afilhado do insuperável Valêncio Costa.

Marcos cresceu nos bancos escolares imitando a verve e os Alpes verbais de Valêncio Costa, que foi seu professor de português. Marcos aprendeu de cor os cantos dos Lusíadas, que afoitamente recitava nos bares e festas de amigos. Ninguém os entendia, nem o léxico nem o conteúdo épico, mas todos babavam deslumbrados diante daquela torrente sem pausa. Valêncio mirava o discípulo e vaidosamente pontuava: “esse menino vai longe”, com o semblante heroico de quem fosse o transporte que elevaria Marcos ao cume dos Alpes verbais.

Confiante no seu talento verbal, Marcos cedo aprendeu a teorizar sobre tudo. Se era Copa do Mundo e ia torcer com os amigos nos bares coloridos por bandeiras brasileiras, tingidas no delírio das celebrações por bandeiras de clubes nacionais e regionais, não resistia à tentação de teorizar sobre táticas e estratégias das seleções concorrentes, sobre futebol e identidade cultural, futebol e alienação das massas, futebol e fascismo, futebol e homossexualismo, futebol e globalização, futebol e escolha racional, futebol e religião... Ninguém o ouvia, nem ele ouvia a si próprio engolido pelo furor das massas exaltadas, mas seguia teorizando no vazio, teorizando o vazio.

Marcos precisou apenas de uma hiperbólica pirueta acadêmica para saltar dos cantos dos Lusíadas para os bancos da venerável Faculdade de Direito do Recife. Depois de tudo encarar e vencer com brilho, arrancando dos mestres os mais sonoros elogios, Marcos chegou bem mais perto dos Alpes verbais ao ingressar na pós-graduação. Lá repetiu e refinou ainda mais todas as suas façanhas verbais. Transportado pelo foguete de Valêncio Costa, quando deu por si, ou por ele deram, estava plantando sua bandeira fulgurante no cume dos Alpes. Tornou-se teórico supremo da pós-graduação durante a vigência da ditadura que ironicamente fundou e promoveu programas de excelência acadêmica votados precisamente à sua contestação.

Eis que um dia Marcos, já nomeado chefe supremo da pós-graduação nacional, defrontou-se com a noite de trevas na sua travessia épica através dos reinos da epistemologia. Ia pelo campus posto em sossego, parafusando mais um discurso que à noite proferiria em louvor do Ministro da Educação, quando ouviu os clamores dos mestres e discípulos da pós empenhados numa guerra titânica. Foi quando se apercebeu de que muitas teorias lutavam pelo exercício da hegemonia acadêmica: marxista, funcionalista, estruturalista, pós-estruturalista, positivista, estrutural-funcionalista, histórico-estrutural, estrutural-histórica, anarco-conteudista, formalista, psicanalítica, carnavalesca... Simplifiquemos tudo na infalível metáfora da Torre de Babel.

Ninguém mais se entendia nas castálias da teoria acadêmica. Múltiplas e antagônicas teorias lutavam sem trégua não apenas por fundos institucionais, legitimação epistemológica e política, mas também por questões de ordem institucional rotineira, isto é, critérios de avaliação e recrutamento dos alunos, estratégias de competição e prestígio entre pares, uma luta de ordinário estendida à composição de seitas que se entredevoravam nos rituais de exame e seleção, titulação e avaliação.

Quando a crise epistemológica contaminou toda a rede das instituições pós-graduadas, o Chefe Supremo concluiu que era necessário agir com pressa e eficácia em face da pressão crescente. Convocou então Marcos, nacionalmente aclamado por seus dotes verbais, e os três gênios supremos da publicidade brasileira. Era preciso, dizia o Chefe Supremo apreensivo, dar banho no bebê salvando ambos, a água suja e o bebê. O Chefe Supremo viera do sertão, que nunca virou mar, e portanto sabia do valor precioso da água, ainda quando suja. Traduzindo o entrevero em jargão publicitário, para entendimento de todos os néscios e gênios da academia, era preciso salvar a ninhada de teorias sem todavia suprimi-la. Afinal, estamos numa democracia, certo que à moda brasileira, mas é tudo o que temos.

Foi nesse exato momento que Marcos teve um dos seus luminosos acessos verbais. Depois de falar durante uma hora sem juntar coisa com coisa, mas tudo confundindo num foguetório de causar inveja às festas de Ano Novo na praia de Copacabana, logrou acionar as turbinas intuitivas de Lúcio Siqueira, neto do venerável major Siqueira e membro maior da tríade publicitária convocada pelo Chefe Supremo. “Eureka”!, exclamou exultante Lúcio Siqueira. “Batizemos o bebê e a água suja, com o devido respeito, inspirados na genial ejaculação verbal do grande Marcos. Quero dizer, doravante o bebê e a água suja serão universalmente conhecidos no jargão acadêmico como marco teórico. Por quê? Porque singularizando Marcos expressaremos abstratamente todas as teorias concorrentes conferindo-lhes legitimidade institucional. Assim, todas serão acolhidas e reconhecidas na usina ideológica da pós-graduação. Evidentemente são moedas de valor corrente variável, isto é, umas valem mais, outras menos. Por fim, inspirados no gênio verbal de Marcos, prestar-lhe-emos o voto de imortalidade que bem merece. Eis que Marcos, o teórico, será doravante marco teórico”.

E assim nasceu marco teórico, essa figura sagrada da academia que ninguém sabe o que é. Como diria um pragmático cínico, o que importa é a função, não o ser. Importa é saber para que serve o marco teórico, embora não se saiba o que é ou ainda se funcionalmente explica alguma coisa. Se ninguém sabe o que é marco teórico, pior para ninguém. Como observou Luciano Oliveira parafraseando Ferreira Gullar, o marco teórico não foi feito para humilhar ninguém. Foi feito para imortalizar Marcos, o teórico, e sobretudo introduzir a concórdia nas seitas teóricas da academia, que podem agora guerrear em paz.

sábado, 8 de outubro de 2011

O aposentado



Quis esse tempo de sombra
De exílio e recolhimento
Tempo em que tudo me sobra
E ouço o murmúrio do vento
A solidão que me acolhe
E refigura o que penso.

Quis esse tempo vadio
Vazio e entanto tão pleno
Que a mim me ocupo no frio
Na solidão do sereno
E ouço o mais longe no fio
Suspenso entre o som e o feno.

Quis a ração, esse feno
Em mim nutrindo o animal
Antes tão só obsceno
Entre civil natural
Buscando no céu mais pleno
O ser do ciclo vital.

Quis o que agora persigo
E entanto mal se anuncia
Mescla de paz e perigo
De treva no meio-dia
Do que me turva o que sigo
Do que é falta e poesia.

Quis o que há muito entrevia
Na pressa da juventude
O que a natura anuncia
Enquanto a idade se ilude
O que a morte irradia
No cerne da solitude.

Recife, 03 de outubro de 2011.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Naturidade



Se hoje culpas o mundo
Antes, bem antes a ti
Te culpas lá no mais fundo
E a vida não é mais aqui.

A que viveste moeu
O tempo irreversível.
E assim não és, nem sou eu.
Tudo se vai e é falível.

O amor que restava era
A hera e lodo do muro.
Tudo que foi nada espera
Salvo o engano no escuro

Em que mergulhas e escondes
A culpa da vida errada
E já não sabes aonde
Irá findar tua estrada.

A clepsidra lunar
Fechou-te o ciclo do dia.
Suspensa, tonta no ar
Ela tritura a poesia

Da vida ida e errante
Que te supunhas colher
Cego, caindo adiante
Fundindo amar e sofrer.

É isso então o que sobra
O acaso, o mal-entendido
Lear soprando sua obra
O caos no fundo do abismo?

Que som no sopro da pauta
Vibra no céu que se esvai?
Quem salta na noite alta?
Que vida no abismo cai?
Recife, 23 de agosto de 2011.

sábado, 1 de outubro de 2011

Bertrand Russell



Leitor viciado em releitura, como prazerosamente me confesso, volto a incorrer em mais uma: Retratos de Memória e outros ensaios, de Bertrand Russell. Acho que é a terceira ou quarta vez que o releio. Gosto imensamente deste livro de Russell, notadamente dos retratos de memória que dão título à obra. Nestes se evidenciam traços fundamentais da sua personalidade, como é de resto comum na escrita ensaística. A pretexto de falar de outros, ou de matéria alheia, o ensaísta se denuncia e se analisa, ainda quando não o declare. Mas voltarei mais adiante a esses retratos. Quero antes ressaltar outros aspectos da obra. O primeiro que me ocorre é na verdade uma frustração: gostaria de ler esse conjunto de ensaios e artigos na língua nativa do autor. Infelizmente, nunca consegui encontrar esses retratos em edição inglesa. Admirador do estilo penetrante, espirituoso e não raro mordente de Russell, preferiria ler esses escritos liberto da mediação importuna, embora inevitável, de Brenno Silveira, o tradutor. Já que me refiro às qualidades estilísticas de Russell, o melhor é dar a palavra ao próprio, que numa breve passagem, modelo de economia e precisão, exprime de modo incomparável o que não alcanço adequadamente parafrasear. Dando um exemplo de como escrever bem, eis o que diz:
“Tomemos uma frase como a seguinte, que poderia ocorrer numa obra de sociologia: ´As criaturas humanas só se acham completamente isentas de certos padrões de comportamento indesejáveis quando determinados pré-requisitos, não satisfeitos salvo numa pequena porcentagem de casos concretos, se combinam, mediante o concurso fortuito de circunstâncias favoráveis, congênitas ou ambientais, para produzir um indivíduo em quem muitos fatores se afastam, de maneira socialmente vantajosa, da norma geral`. Vejamos se podemos verter essa sentença para a nossa língua. Sugiro a seguinte tradução: ´Todos os homens são patifes, ou pelo menos quase todos. Os homens que não o são devem ter tido uma sorte pouco comum, tanto em seu nascimento quanto em sua educação`.” (p. 192).

A primeira versão, vertida em estilo abominável, é a dominante, quando não imperativa, na produção acadêmica que conheço. Se nossas universidades educassem de fato, deveriam submeter os estudantes, tantos já diplomados como mestres, doutores e outros enfeites, a um treinamento estilístico baseado em textos de Russell, Lewis Coser, Edmund Wilson, Shaw, Isaiah Berlin, Machado de Assis, Mário de Andrade, Gilberto Freyre (estes, Mário e Gilberto, com reservas) Antonio Candido, gente desse calibre. O resto é poeira acadêmica.

Vários ensaios de Russell, sobretudo os de tom mais autobiográfico, acentuam a solidão e isolamento que viveu em momentos cruciais de sua longa e admirável existência. A julgar por certas indicações que fornece – ora implícita, ora explicitamente – a infância e boa parte da juventude foram etapas de solidão atormentada. Na raiz de tudo pulsa surdamente um ambiente familiar de corte puritano e austero. O metro de tais opressões, puritanismo e austeridade, pareceria hoje absolutamente inconcebível se ligeiramente ponderasse o abismo que opõe a infância vitoriana de um rebento da alta aristocracia inglesa à permissividade narcisista do presente.

No ensaio de abertura, intitulado “Adaptação – uma síntese autobiográfica”, ele começa precisamente ressaltando a profunda diferença de valores observável entre o mundo anterior à Primeira Guerra, do qual fazia parte, e o posterior. Se já então era flagrante o abismo entre uma época e outra, o que dizer da vitoriana confrontada com a atual? A eclosão da Guerra, ponto de ruptura entre dois séculos e expressões de vida e mentalidade, impele Russell a uma decisão ética e política de grande risco e coragem: a militância pacifista dentro do país que era então a maior potência mundial. Isso lhe custou não apenas provações excepcionais, como o risco de linchamento e prisão efetiva, mas também um novo mergulho na solidão e isolamento. Como em toda guerra, seja justa ou injusta, a audácia de se pronunciar publicamente como pacifista forçou-o à perda de grandes amizades feitas durante seus anos de formação filosófica e científica em Cambridge.
É de fato extraordinário considerar que interveio dramaticamente na cena política numa idade, próxima dos quarenta, em que muitos estão já se recolhendo ao cultivo de seus jardins. Pois importa salientar que até então sua vida ativa, para não dizer mental, se concentrara em estudos de alta abstração lógica e matemática. Noutras palavras, Russell vivia numa espécie de mundo à parte, imerso numa atmosfera que se rompe bruscamente ao impacto brutal da Primeira Guerra.

Contrariando a experiência corrente, o esgotamento histórico do mundo em que se formou não o converteu em um nostálgico paralisado em face da hostilidade do presente. Sua personalidade combativa e generosa moveu-o para dentro do mundo que tanto o horrorizava numa sucessão de tumultos destrutivos sem paralelo. Mas é de se notar o quanto a apreciação nua e profunda da realidade humana tingiu sua perspectiva com linhas de sombra que ora beiram o desespero, ora a futilidade da condição humana.

Russell empenha-se na ação coletiva produzindo a partir daí uma obra de inspiração social, ou de filosofia social, distanciando-se assim das pesquisas e estudos abstratos que definiram a orientação fundamental da primeira etapa de sua obra. Não penso porém que seu alinhamento militante tenha abolido sua solidão, sequer afetado substancialmente seu individualismo irredutível. Sendo um produto intelectual do liberalismo inglês da era vitoriana, portanto de uma expressão de liberalismo jamais imaginável no Brasil, antes como ainda hoje, e por isso de ordinário incompreendido, Russell encarnou os valores fundamentais do indivíduo. Tal filiação e coerência, levadas ao extremo de suas consequências, concorreu para que se tornasse um dos primeiros e mais impenitentes críticos de Marx e do comunismo numa época em que o conjunto da intelligentsia ocidental era no mínimo simpatizante ou companheira de viagem desta ideologia que tão poderosamente marcou o século vinte.

Isso novamente custou-lhe muito combate, incompreensão e antipatia. Lembro-me de que quando morreu em 1970, plenamente lúcido e militante, apesar dos 98 anos de idade, Luiz Carlos Maciel, então guru supremo da contracultura tupiniquim, saudou-o como o último liberal. O tom do necrológio era de confessada admiração. Não obstante, valia supostamente como um atestado de óbito do liberalismo e da mais alta tradição racionalista. Argumentos ideológicos à parte, basta apreciar superficialmente onde acabaram a contracultura e seu guru tropicalista supremo.
Penso que não seria inexato condensar a obra de filosofia social de Russell no binômio racionalismo e liberalismo. Fiel a essa orientação substancial, procedeu como crítico impenitente e destemido das diversas ideologias e movimentos que tingiram de luta e sangue seu longo processo de vida. Já observei acima sua condição de crítico pioneiro de Marx – além de Hegel, inspirador idealista do materialismo marxista – e do comunismo.

Embora reformador libertário no campo da pedagogia, teve sempre a lucidez de se opor a delírios românticos direta ou indiretamente vinculados ao ideário de Rousseau. Como reformador pedagógico, Russell também amargou muita incompreensão repressiva. Opondo-se à tradição puritana em que se formou, pois sentiu na própria pele os danos que os excessos repressivos produzem, abraçou de início ideais libertários extremos na escola que fundou em parceria com sua segunda mulher. A experiência, todavia, logo lhe revelou o quanto se enganara acerca das virtudes humanas espelhadas no comportamento das crianças que educava. O resultado prático de tal experiência consistiu na adoção de normas pedagógicas baseadas no reconhecimento da necessidade de autoridade e disciplina ou, noutras palavras, na prescrição de limites ao exercício da liberdade. Que pedagogia atual postula e aplica de fato os princípios da autoridade e da disciplina? O que hoje prevalece é a pedagogia orientada para a formação de consumidores servilmente atados aos padrões narcisistas e hedonistas correntes. O mais grave é que essa pedagogia desastrosa é inoculada nas crianças e adolescentes em nome da liberdade e de uma aprendizagem baseada nos métodos do prazer e do mínimo esforço. Olhem dentro e fora das escolas o mundo que estamos criando.

Quanto à sua convicção racionalista, importa antes de tudo sublinhar que jamais concebeu o racionalista como um indivíduo isento de ou avesso à paixão. Circula por aí uma compreensão estreita e deformante do racionalista como um ser sem sangue e paixão. O racionalismo professado por Russell, assim como por todo racionalista autêntico, nada tem a ver com essa representação grosseira. Razão e paixão não são termos excludentes, mas complementares porque integram a substância do humanismo verdadeiro. O diferenciador racionalista desta combinação consiste na prioridade ontológica e cognitiva conferida à razão. A ela cabe a função reitora e esclarecedora da realidade e da experiência humana, que é indissociável da nossa natureza afetiva.

Um aspecto do racionalismo de Russell que no entanto me parece inconsistente, ou inviável, radica na sua presunção, ou convicção, de que seres humanos podem ser reformados mediante artifícios lógico-racionais. Para ser mais exato, há aí antes de tudo uma contradição flagrante, se se considera que ele é um homem muito cético sobre os limites positivos da nossa natureza. Essa contradição recorre em muitos dos seus ensaios, particularmente naqueles de intenção reformadora de nossos hábitos e costumes vinculados a questões como a felicidade, o casamento e a moral, as normas de condução da nossa existência rotineira. Friso esse dado contraditório por observar a frequência de uma argumentação redutível aos termos seguintes: somos infelizes e cruéis porque nos conduzimos de modo irracional, porque somos incapazes de aplicar meios lógicos à desordem da nossa vida afetiva. Depois de diagnosticar esses males humanos aparentemente insanáveis, prescreve normas de conduta baseadas na presunção de que seria possível induzir um quinhão ponderável de lógica à nossa irracionalidade que me parece lamentavelmente constitutiva. Quanto a isso, confesso concordar bem mais com pessimistas como Schopenhauer e Machado de Assis, com céticos como Montaigne, ou pessimistas reformadores como Freud.

Volto à questão do estilo, ou às normas regentes da boa escrita, porque escapou-me um dado que muito prezo ser de concordância com suas indicações. Aludindo à influência que quando muito jovem sofreu de Logan Pearsall Smith, frisa que o conselho mais enérgico deste consistia na recomendação de que sempre reescrevesse seus textos. Embora procurasse obedientemente segui-lo, logo a experiência alertou-o para o fato de que sua primeira redação era sempre a melhor. Sorte dele, que assim foi poupado dos tormentos de uma escrita laboriosa, como o reconhecem e confessam escritores de composição pautada pela letra atribulada. Sorte igualmente minha, que também me contento com a primeira redação. Embora privado de conselho alheio na idade em que precisei de modelos, cedo constatei que digo o que quero ou preciso já na primeira redação. Pena que seja tão preguiçoso, ou tão pouco dotado para produzir obra de real qualidade.

Outro aspecto da obra de Russell com o qual integralmente me identifico é o atinente a sua crítica do nacionalismo. Contemporâneo combatente e horrorizado das duas mais terríveis guerras da história, ambas deflagradas em nome de uma concepção insana de nacionalismo, tinha motivos ideológicos suficientes para hostilizá-lo. Preciso admitir que outros homens tão lúcidos quanto ele os tiveram e todavia adotaram argumentos opostos. Russell acreditava, com absoluta razão, que o nacionalismo constituía uma ideologia insidiosa de hostilidade e luta constante entre os povos. Na medida em que funciona como agente legitimador da agressividade humana, atua como uma força ideológica poderosa demais para ser ignorada por um autêntico aspirante à paz entre as nações, ou como o reformador pedagógico que foi.

Em Retratos de Memória, assim como em outras obras, ele afronta o inimigo. A esse propósito, expõe um argumento lógico e ideológico que adapto para uso de um exemplo próprio. Se alguém afirma que o Brasil tem oito milhões e meio de área territorial, está apenas enunciando um fato objetivo, portanto isento de implicação ideológica. Se todavia altera o enunciado, declarando que a área territorial brasileira é a quinta maior do mundo, salta do terreno dos fatos para o dos enunciados ideológicos. Infelizmente, no tempo em que lutou por reformas pedagógicas e políticas, talvez ainda mais no presente, somos desde crianças treinados pela mídia e pelo sistema educacional a apreender a realidade de acordo com o segundo enunciado, não com o primeiro. Como razoavelmente pretender que as nações do mundo se relacionem de acordo com os ideais pacíficos que contraditoriamente alegamos desejar?

Ideólogos do nacionalismo, atuantes em países periféricos como o Brasil, tendem a nele acentuar traços de uma ideologia positiva, e mesmo necessária para que tais países realizem sua integral autonomia econômica e cultural contra a hegemonia dos países centrais. Este aspecto do nacionalismo não é de fato contemplado por Russell, que aparenta concebê-lo exclusivamente como uma força a serviço da agressão entre os povos. Foi por isso que coerentemente empenhou-se pela criação de organismos reguladores, como a ONU, de composição e funcionamento internacional, ou transcendentes aos limites e interesses de cada nação individualmente considerada. Organismos de natureza semelhante foram efetivamente criados. Mas sabemos que neles prevalecem os argumentos de poder, não raro de força, acionados pelas nações hegemônicas. Em suma, dando um salto para dentro do presente, pouco progredimos no que se refere à condução das disputas e conflitos entre as nações. Talvez o problema tenha de fato se agravado, já que é irrecusável o imenso avanço objetivo dos processos globalizantes, sobretudo na esfera das relações econômicas e comunicacionais. Noutras palavras, enquanto de um lado assistimos à aceleração irreversível de tais processos, de outro persistimos no cultivo de ideais particulares, e especificamente nacionalistas, nos modos de compreender e conceituar as relações entre povos e culturas.

Arremato estas notas improvisadas com um comentário referente aos retratos de memória que emprestam título à obra. Antes de tudo, são o ponto alto deste variado e instrutivo conjunto de ensaios e artigos . Ocupando a parte central do volume, compreendem nove capítulos onde se perfilam intelectuais acadêmicos de Cambridge, com farta matéria ilustrativa da legendária excentricidade britânica, e grandes personalidades do mundo cultural como Shaw, H. G. Wells, George Santayana, Whitehead, Sidney e Beatrice Webb, Joseph Conrad e D. H. Lawrence. Embora sejam todos merecedores de um registro crítico acurado, o que não o é caso destas notas, seleciono o que julgo mais condizente com os limites do meu interesse e a relevância da matéria considerada pelo ensaísta: Conrad. As páginas que Russell lhe dedica são de admiração comovida. Apesar de se confessar admirador da obra de Conrad - da cabeça aos pés um gentleman polonês, nas palavras do próprio Russell, ou um gentleman anglo-polaco, no dizer mais preciso de outros – Russell veio a conhecê-lo tardiamente graças à intermediação de Lady Ottoline Morrell, amiga de ambos.

Abro parêntese oportuno para dedicar algumas palavras a essa dama ilustre das letras inglesas famosa não por dotes literários, mas por privar do convívio privilegiado dos contemporâneos londrinos mais ilustres. Em suma, importa não como autora de uma obra, mas como expressão de uma personalidade. A julgar pelo testemunho de Stephen Spender e Michael Holroyd – biógrafo de Lytton Strachey, do Grupo de Bloomsbury e por conseguinte dos contemporâneos aqui considerados – distinguia-se por ser mais excêntrica que a média da excentricidade inglesa. Mais que amiga de Russell, corrigindo a discreta identificação a que procede no ensaio que comento, foi sua amante. E não uma qualquer, mas aquela que lhe transformou a vida.

Viveram uma relação amorosa tão intensa que Russell, no auge da paixão, lhe escrevia diariamente. Lady Morrell figura como personagem de certo destaque no belo e pungente filme que Christopher Hampton escreveu e dirigiu sobre Carrington, que dá título ao filme, e Lytton Strachey. Numa cena imperdível, de típico humor inglês, ela, interpretada por Penelope Wilton, empenha-se de todos os modos em persuadir Carrington a ceder ao tenaz assédio sexual do pintor Mark Gertler renunciando assim à virgindade. Sendo, ela e Lytton, bem mais velhos que Carrington, este sensatamente observa que ambos viveram drama semelhante quando mais jovens. Lady Morrell retruca (com palavras minhas, pois cito de memória gasta): But that is precisely my point. One must believe in some progress. Num outro filme, Tom and Viv, sobre as relações atormentadas entre T. S. Eliot e sua primeira esposa, Vivienne Haigh-Wood, agravadas pela participação do sedutor Bertrand Russell, Lady Morrell participa discretamente do enredo.
Mas concluo voltando a Conrad. Além de ressaltar o moralismo severo e o conservadorismo político de Conrad, Russell observa que a maioria das suas opiniões eram divergentes. Concordavam porém acerca de um ponto fundamental, que se refere à concepção da vida e do destino humanos. Foi isso o que produziu um vínculo profundo entre ambos. Aqui é o momento em que sei que pela segunda vez devo passar a palavra a Russell, pois não saberia parafraseá-lo à altura do que escreve:
“Senti, embora não saiba se ele teria aceitado tal imagem, que ele achava a vida humana tolerável moralmente como sendo uma caminhada perigosa sobre fina crosta de lava recém arrefecida que poderia, a qualquer momento, partir-se e fazer com que os descuidados mergulhassem em abismos incandescentes. Tinha plena consciência das várias formas de ardente loucura a que os homens estão sujeitos, e era isso que lhe dava uma crença tão profunda na importância da disciplina. Talvez se pudesse dizer que o seu ponto de vista era a antítese do de Rousseau: O homem nasce acorrentado, mas pode libertar-se. Libertar-se, como creio que Conrad o teria dito, não por dar rédeas aos seus impulsos, não por ser casual e descontrolado, mas subjugando seus impulsos exteriores e dirigindo-os para um propósito predominante” (p. 76).

Poucos escritores mergulharam tão profundamente quanto Conrad nos abismos humanos para deles retornarem com essa visão atormentada e estoicamente vivida e refletida. Quem conhece sua obra, notadamente O coração das trevas, sabe o que aqui vai apenas sugerido. Russell com certeza o sabia, pois a experiência apaixonada, mas isenta de complacência, com certeza iluminou também na sua consciência verdades penosas semelhantes àquelas espelhadas na biografia e na obra de Conrad.