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quinta-feira, 28 de julho de 2016

Uma reflexão negativa sobre os intelectuais


Cresci num mundo assolado pela incultura intelectual. Um dia, sem que ninguém me guiasse, cheguei por acaso a uma estante de livros e esse fato mudou radicalmente minha vida. Através dos livros, dos autores que li e transfiguraram minha vida infeliz e corroída pela rotina e o tédio, passei a ver o mundo com outros olhos. Graças à literatura, expandi imaginariamente os horizontes de minha vida e a solidão, que até então fora uma fonte de sofrimento e carência, tornou-se um modo intraduzível de convívio simbólico com mundos remotos e sonhados, não obstante reais para o ser extraviado que eu era.
Mais tarde descobri a figura do intelectual como agente de transformação política da realidade e me persuadi de que ele era a consciência de um mundo alienado, um mundo no qual sempre me senti estrangeiro. Os intelectuais que então me pareciam modelares foram combatentes de ditaduras e tiranias, defensores, por conseguinte, da liberdade e de um mundo mais justo, quando não utopicamente além das formas de dominação que têm castigado a história humana através de milênios. No século XX, muitos desses intelectuais foram marxistas militantes, nas suas muitas e variáveis facções, ou pelo menos companheiros de viagem, com perfil ideológico igualmente variável.
Despertei para a política exatamente quando irromperam os anos de chumbo da última ditadura brasileira. Mero companheiro de viagem, eclético e cético por formação e talvez temperamento, nunca aderi ao marxismo. O mundo dividido pela guerra fria enfim desintegrou-se em 1989. Embora há muito fosse crítico com relação ao marxismo, foi depois disso que conheci as formas mais brutais das tiranias impostas em nome do comunismo ao longo do século XX.
Lendo a historiografia mais recente, renovada pela revelação de arquivos até então inacessíveis, notadamente no que foi a União Soviética, tomei consciência mais precisa dos horrores perpetrados em nome de belos ideais utópicos que marcaram de forma profunda a minha geração e algumas precedentes. Esse balanço crítico, também uma revisão de minhas ilusões humanistas, convenceu-me de que os intelectuais são antes cúmplices e agentes da tirania do que a consciência libertária da sociedade. Em suma, não mais me iludo com eles. O que me conforta na minha descrença é saber que são desmascarados também por intelectuais. De tudo resta, portanto, minha percepção do intelectual como figura ambígua.
No momento em que escrevo, assisto no Brasil a mais uma traição dos intelectuais, em especial os acadêmicos. A expressão “traição dos intelectuais” é uma alusão, claro, ao livro famoso de Julien Benda. No meu entender, e sigo aqui parcialmente a noção do intelectual adotada e defendida por Benda, o papel do intelectual é defender os valores universais do espírito orientados para a busca da verdade, ainda que esta seja sempre parcial e até enganosa. Por isso o intelectual sempre trai sua função quando se converte à militância em nome de uma causa ou ideologia particular. O exemplo mais catastrófico dessa traição consistiu na adesão do intelectual ao comunismo no século XX. Iludido pela crença de servir a uma concepção científica da história, ele negou a religião compreendida no seu sentido tradicional e sagrado para converter-se a uma religião secular que nunca ousou dizer o seu nome.
Muitos intelectuais continuam recusando veementemente essa noção de religião secular. Críticos impenitentes das formas tradicionais de religião, que para eles não passam de formas de conformismo político e alienação humana, teimam em defender e adotar teorias sociais teleológicas, ou indissociáveis de um finalismo utópico, como se fossem baseadas em fundamentos científicos e portanto puramente seculares. A matriz dessa concepção é, claro, a obra de Karl Marx. Marx e Engels, e no rastro deles uma infinidade de seguidores intelectualmente admiráveis, presumiam haver descoberto os mecanismos objetivos do desenvolvimento histórico das sociedades, redutíveis a leis científicas. O materialismo histórico e científico, formulado por ambos, seria a expressão da teoria soteriológica que, no frigir das fantasias revolucionárias, é apenas a transposição do céu judaico-cristão para este mundo.
Se esse suposto procedimento científico fosse de fato adotado pelos intelectuais que se supõem seguidores de uma concepção científica da história, seria muito fácil desmenti-la. Bastaria submeter a história do comunismo às leis postuladas por Marx e Engels. A primeira evidência que salta aos olhos é que nenhuma revolução comunista seguiu nem de longe a escrita traçada pela teoria marxista. Se ela se cumprisse, a revolução teria irrompido nas economias mais avançadas do capitalismo (Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos...). Ora, ela irrompeu precisamente na periferia do capitalismo, fato que em nada abalou a fé dos comunistas. Aliás, todos foram profetas malogrados. Marx, Engels, Lenin e Trotsky, entre tantos, nunca se cansaram de profetizar a revolução na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos...
A história humana é tão indissociável da indeterminação e do imprevisível que a revolução alemã, tão ardentemente sonhada por Lenin e todos que comandaram a Revolução Russa, resultou na ascensão de Hitler e do nazismo, graças em parte às lutas autofágicas da esquerda alemã: comunistas, social-democratas e anarquistas. Enquanto se matavam, os primeiros seguindo fielmente a política imposta por Stalin, abriam o caminho para Hitler e suas tropas brutais chegarem ao poder. Enredo semelhante ocorreu na guerra civil espanhola, culminando na vitória de Franco e seus seguidores fascistas, que impuseram à Espanha uma longa ditadura. Também no contexto espanhol se repete o que aconteceu antes na Alemanha sob as ordens de Stalin: os comunistas suprimiram seus aliados anarquistas e socialistas facilitando assim a ascensão de Franco. Quem leu o livro de George Orwell com olhos livres, há muito sabe disso. Por pouco Orwell, combatente do grupo anarquista POUM, não foi assassinado. Desde então tornou-se inimigo intransigente de Stalin e do comunismo.
Em suma, as reviravoltas e desastres da história foram tão imprevisíveis que a teoria marxista da história teria sido completamente descartada, se de fato fosse concebida como formulação científica e submetida à prova dos fatos. Como acima observei, é apenas uma religião secular que não ousa dizer o seu nome. De resto, no Brasil continua fresca e renovável, ironicamente nos segmentos mais intelectualizados, sobretudo na universidade pública. Bastaria considerar a crise política e econômica que no momento sofremos. A esquerda tradicional, nas suas múltiplas facções, inventa narrativas golpistas e toda sorte de explicação delirante para justificar o injustificável. É inútil contrapor-lhe os argumentos racionais do tipo que acima intentei esboçar. Razão e fé são ontologicamente excludentes. Por isso desisti de argumentar.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

No Mural do Facebook XVIII


O Brasil não existe

Antes, bem antes de ser brasileiro, eu já queria nascer no Brasil. Quem não gostaria de viver num país de povo amante da diversidade, isento de preconceitos, festivo como o carnaval, inventivo como o futebol e as escolas de samba, sensual como a mulata que passa requebrando com o pudor de quem anda nua, como disse um dos cultores das nossas virtudes?
Pensei nessas tolices porque ando relendo as memórias de Stefan Zweig, o judeu errante que disse noutras e célebres palavras o que rabisquei acima. Zweig cativou os brasileiros, sempre mais nacionalistas do que outros nacionalistas, quando ventilou profecias paradisíacas sobre o nosso futuro. Brasil, país do futuro, ou coisa parecida. Nasci, tornei-me brasileiro, estou agora bem mais perto da morte do que do futuro e no entanto o futuro paradisíaco nunca chegou. O Brasil que sonhamos, assim como o de Zweig, é sempre o Brasil de amanhã.
O problema do futuro, não importando quanto seja paradisíaco, é este: não é nunca hoje. Hoje é o único tempo real. Portanto, até quando nos consolaremos com um país que será sempre amanhã? Amanhã, já cantava o outro, que acabou cantando o pior do presente, amanhã vai ser outro dia. A frase, que nos apaixona por ser uma metáfora, é sempre uma promessa adiada, sempre uma esperança: o bem que se quer e não se tem. Nenhum país que inventou seu presente precisa consolar-se com um futuro improvável. Como não sabemos o que fazer do que somos coletivamente, conspiramos, insultamos e nos intoleramos (com perdão do dilmês) quando os males que tramamos caem sobre nossas delirantes cabeças. Como não nos sabemos, nem nos queremos como somos, penduramos a consciência na ilha de Marajó, seguindo o exemplo de Macunaíma, herói da nossa gente, e culpamos o outro. O culpado é sempre o outro.
Ah, antes que me esqueça: Stefan Zweig, coitado, não pôde viver o Brasil do futuro porque se suicidou no presente. Aliás, tudo é sempre o presente. Brasileiros, acordem para o presente. Desconfio de que não falei do exclusivismo político que colonizou a vida dos chamados brasileiros conscientes, politicamente esclarecidos e responsáveis. O que subjetivamente sei é que me sinto como Stefan Zweig isento da queda no suicídio. Quero dizer, sinto-me estrangeiro no país do amanhã, solitário no país do hoje. E com franqueza: não acredito nessas maravilhas que vemos espelhadas na imagem nacionalista que cultuamos. Será que algum dia aprenderemos a conjugar nossa realidade (este princípio imperativo, como diria Freud) no presente do indicativo?
(Postado no Facebook, 23 de maio de 2016).


Culto da personalidade:
Quem conhece a história do comunismo, em particular o stalinismo, sabe do que falo. Stálin, um dos maiores tiranos da história, foi objeto de culto, inclusive de intelectuais que se supõem a consciência da humanidade. A verdade, que o próprio PC soviético passou a admitir desde o Congresso de 1956, é ainda ignorada por alguns comunistas retardados, que não suportam o choque doloroso da verdade. Enquanto suprimia ou tiranizava a vida de milhões de soviéticos e inimigos externos, Stálin era celebrado por escritores como Jorge Amado e Pablo Neruda (cito apenas os dois comunistas latino-americanos mais célebres) como pacificador dos povos e benfeitor da humanidade.
Observando a sociedade das massas e o culto desvairado que milhões devotam a ídolos do rock e do futebol, não é difícil compreender porque serem humanos que nada fizeram de humanamente significativo ou não sabem que são poeira da história, antes de tudo por aceitarem essa condição, cultuam delirantemente esses ídolos. Freud estudou as bases psicológicas desse fenômeno cada vez mais corrente na sociedade das massas no seu ensaio "Psicologia das Massas e Análise do Ego" (entre nós erradamente traduzido como Psicologia de Grupo, etc). Embora neste parágrafo refira-me até aqui ao culto dos ídolos da cultura de massas, o fenômeno estende-se igualmente para a esfera da política, tanto que comecei aludindo a Stálin como objeto de culto da personalidade.
Sem nem de longe comparar o culto a Stálin com o culto a Chico Buarque (pois seria uma analogia infame, coisa que leio petista fazendo todos os dias), quero protestar contra blogueiros servis, embora alguns sejam comprovadamente pagos, que diariamente infiltram na minha página posts de culto a Chico Buarque. Como o que acima escrevi já deixa implícito, não cultuo nenhum ídolo. Cultuar ídolos é algo indigno de um homem que luta para ser livre, na medida em que isso é possível. Esta é minha luta e minha ambição. Tenho compromisso com minhas convicções e com a minha consciência. Logo, não cultuo Chico Buarque nem ninguém. Uma coisa é admirá-lo como nosso maior compositor, segundo apenas para Tom Jobim; outra é isso que aqui critico. Ademais, há muito deixei de ter razões objetivas para admirar ética e politicamente o Chico Buarque que já admirei. Por isso tenho removido esses intrusos e intrusas que se enfiam na minha página para cultuar Chico Buarque. Alguns trazem o timbre "Patrocinado". Por quem, é a única coisa que gostaria de saber. Afastem-se de mim todos esses que carregam no lombo de escravo mental e moral todos os santos de pés de barro da política e da cultura de massas.
(Postado no Facebook, 29 de maio de 2016).

segunda-feira, 18 de abril de 2016

No Mural do Facebook IX


Chico Buarque e a traição dos intelectuais:

Raramente compartilho um post. A razão é simples: criei esta página no Facebook para os links dos artigos e poemas que escrevo, além de posts eventuais relativos a questões que me impelem a opinar publicamente. Compartilho este (Aludo ao post de José Ruy Gandra postado na sua página do Facebook, 2 de abril de 2016) por considerá-lo oportuno e verdadeiro, além de valer como evidência da traição dos intelectuais no momento da mais grave crise da República brasileira.
Não preciso dizer o quanto amo e admiro a obra musical de Chico Buarque. É também por isso que exponho o quanto ele merece ser criticado nos planos ético e político. Millôr Fernandes, o intelectual mais livre deste pais de intelectual servil, sintetizou a grande falha moral de Chico. Disse mais ou menos isto: "Desconfio de todo idealista que lucra com os seus ideais. Chico Buarque lucra com os seus. Ele não pode dizer o mesmo de mim". Isso está documentado na entrevista que Millôr concedeu ao programa Roda Vida, disponível no You Tube. Chico desfigurou ainda sua biografia, que já foi exemplar, quando apoiou um movimento vergonhoso, liderado por Roberto Carlos, visando censurar obras biográficas. É irônico que tantos que o admiram louvem sua integridade ética. Lamento escrever isso contra um artista que tanto admiro.
(postado no Facebook, 2 de abril 2016).

O que farão os que estão com o mal?
Excelente o seu post, Jairo José da Silva (aludo a um post de tema semelhante postado na sua página no Facebook, 31 de março 2016). Também já me perguntei o que farão os que seguem o mal ou o praticam, os que silenciam ou defendem de todos os modos aqueles que elevaram o mal na vida política brasileira a um grau sem precedente, quando a verdade definitiva e irrefutável se impuser? Sempre procurei compreender o funcionamento obscuro e tenebroso da irracionalidade humana nas esferas da religião, da política e do amor. À parte o último, fonte dos momentos de maior beleza, diria até epifania da minha vida, não tenho jeito para as duas primeiras. O que nelas mais me fascina e até atormenta é o modo complexo de manifestação da irracionalidade humana.
Tanto me indago sem resposta satisfatória que chego à seguinte conclusão: o ser humano é em princípio capaz de tudo, capaz de racionalizar, no sentido freudiano do termo, os horrores mais inconcebíveis.
Já tentei empatizar com o ser nazista (mon semblable, mon frère), nas suas zonas mais obscuras, para compreender como ele conseguia mover-se da "rotina do seu trabalho", incinerando judeus, para o seio da família, onde se comportava como um ser humano comum. Aliás, os mais refinados iam tocar Beethoven e Mozart, ler Goethe etc. Os mais afetuosos eram pais amorosos exemplares. Se eram capazes disso, de que não é o canalha brasileiro que hoje se cala ou fecha os olhos, protege corruptos, acoberta criminosos, etc? Ele dará um jeito de continuar vivendo bem com sua consciência repulsiva, Jairo José da Silva. Por isso há muito tento pensar na questão avessa: por que há felizmente os que dizem não, os que se recusam, os que amam quando o amor é aviltado, os que buscam a verdade num mundo corrompido pela mentira?
(Postado no Facebook, 01 de abril 2016).

O Culpado é Sergio Moro:
A guerra ideológica que o PT, sob o comando de Lula e Dilma, está movendo contra os processos de investigação, notadamente a Lava-Jato, está se tornando tão implacável e suja que até parece que o culpado é Sergio Moro, que ele é quem deve ser sumariamente punido. Lula e sobretudo Dilma denunciam de forma sistemática e caluniosa o processo de impeachment. Para eles, ouvimos todos os dias, impeachment é golpe.
As refutações pertinentes e acima de tudo civilizadas de vários dos membros do STF, somadas à voz de muitos juristas e estudiosos, concorrem apenas para reforçar o suposto anti-golpismo do PT. Visando desacreditar as instituições legais que asseguram a estabilidade da democracia amparada nas leis competentes, Lula e Dilma, além de outras lideranças políticas de peso, estão de fato incitando a ilegalidade e, no limite, a violência e a convulsão social.
Recusando-se a reconhecer a autoridade constituída do STF, da Ordem dos Advogados do Brasil, que apoia quase por unanimidade o processo de impeachment, e outras instituições, Lula e Dilma incitam seus seguidores a reagir contra um suposto golpe. Como antes escrevi, são os únicos líderes políticos que promovem ostensiva e reiteradamente a ilegalidade e a rebelião coletiva contra as leis que regem nossa frágil democracia. Operando uma perversa inversão de valores, quem não está com eles é golpista e portanto inimigo da democracia. A julgar pelo trote da carruagem, acabaremos concluindo que os culpados de tudo isso são o Judiciário, Sergio Moro e a Polícia Federal. Direi mais: são também culpados todos os brasileiros que foram às ruas e continuam se manifestando em defesa do livre exercício das atribuições conferidas pela Constituição às instituições mencionadas e o juiz Sergio Moro, que a voz popular converteu em símbolo dos ideais de justiça que encarnam.
(Postado no Facebook, 27 de março 2016).

O ódio dos idealistas:
Freud, que conheceu como poucos o mal constitutivo da natureza humana, perguntou sabiamente o que os revolucionários russos fariam depois que matassem todos os burgueses. Vocês acaso já pensaram o quanto é sintomático que a ideologia (o comunismo) que prega a redenção da humanidade (abolição das classes sociais, justiça social universal etc) sempre agiu movida pela convicção de que a história humana é a história das lutas de classe? Já pensaram no fato de que sua ética autoriza o uso de qualquer meio (desde a calúnia e a difamação até a supressão de quem não está do lado dela) para que se atinja o ideal supremo: a revolução redentora?
Quem sabe um pouco de história (não é o caso da chamada esquerda brasileira) conhece o enredo dessa revolução redentora: o Estado "proletário" regido pelo partido único, a supressão de todas as garantias individuais (isso não passa de liberdade burguesa) e por fim a instituição do totalitarismo em nome dos mais belos ideais humanos.
Transpondo essa moldura ideológica para a crise política que vivemos, o PT vive clamando contra a intolerância, o golpismo, o Estado policial imposto pelo Judiciário. Faz isso e muito mais acionando um movimento de permanente guerra ideológica. Não ia mais perder tempo tentando discutir política civilizada neste mural. Sucede, porém, que acabo de ler um post denunciando a ação intolerante dos que impediram o juiz Sergio Moro de dar aula na Universidade Federal do Paraná. Pouco antes, como bem protestou Helga Hoffmann, José de Souza Martins, um dos mais ilustres sociólogos brasileiros, foi impedido de dar aula na USP. Ele incorreu no crime de conceder uma entrevista à revista Veja na qual procede a uma síntese analítica da história do PT e sua gradual dissolução ética. De passagem, esclareceu por que nunca se filiou ao PT, nem mesmo nos bons tempos: o intelectual crítico e o intelectual militante são incompatíveis. Correto.
Sei que meu protesto terá o destino habitual: o apoio de quem já pensa como eu e a indiferença ou o desprezo dos que aqui denuncio. Concluo afirmando que vivemos um momento de traição dos intelectuais, lembrando a obra-marco de Julien Benda, sem precedente na história intelectual brasileira. Os maiores responsáveis pelo silêncio cúmplice ou a defesa cega dos corruptos são os intelectuais acadêmicos. Essa casta não tem e nunca teve ideias; tem abstrações ideológicas na cabeça. Mas não esqueçam de que é ela quem educa os jovens. Isso também ajuda a explicar, pela primeira vez na história política do Brasil, o silêncio das universidades. Os poucos que se pronunciam o fazem em defesa do que precisa ser combatido. Concluindo, a corrupção não está apenas nos palácios e partidos. Ela corrói o conjunto da sociedade brasileira.
(Postado no Facebook, 23 de março 2016).

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A Onda


O filme A Onda é baseado num experimento pedagógico ocorrido na Califórnia em 1967. Transposto para a Alemanha contemporânea, berço do nazismo, resulta num precioso e inquietante documento psicossocial que desce às entranhas das potencialidades destrutivas do gênero humano. Compreendido enquanto cinema, esteticamente falando, A Onda é rasa, mas importa muitíssimo pela idéia recriada para iluminar questões do presente. É isso o que intento explorar um pouco na minha crítica.

Embora incapaz de ajustar-me a qualquer movimento ou disciplina partidária, acredito que ninguém pode, a rigor, ser indiferente à política. Como disse alguém, não importa que não nos importemos com ela; ela se importará conosco. Talvez um sintoma da minha descrença na ação política se expresse na preocupação de compreendê-la em termos puramente teóricos – compreender a mais terrível onda bárbara que foi o nazismo, por exemplo. Lendo Freud, Bertrand Russell e Erich Fromm, depois vieram outros, julgo haver compreendido melhor o papel que determinados componentes psicossociais exercem na ação política.

Vamos ao filme. Rainer é um professor anarquista que ironicamente se defronta com o desafio de dar um curso sobre autocracia e regimes políticos similares (ditadura, nazismo, fascismo) para uma turma de jovens estudantes. Os jovens têm muitos dos traços psicossociais comuns à juventude do mundo ocidental e suas derivações periféricas. Esses traços decorrem, em suma, da cultura narcisista e consumista cujo solo e circuitos de manifestação contínua bem conhecemos. Incerto sobre o que fazer diante do desafio pedagógico que tem pela frente, Rainer procede a um experimento nazi-fascista em plena sala de aula. As reações dos alunos e as transformações perturbadoras que neles se processam apontam para as fontes psíquicas e sociais geradoras dos regimes políticos de extrema direita.

À exceção de Karo e outra aluna que a segue, toda a turma adere entusiasmada à formação de um grupo inspirado pelos valores e práticas do nazismo. A motivação psicológica decisiva para a adesão reside no desejo obscuro de dissolver a individualidade e a liberdade individual, bem mais penosas do que supomos, numa unidade mística e grupal. Essa unidade supõe gestos, rituais e símbolos lastreados na disciplina cega e na força forjada pelo grupo. A figura do líder é a fonte de autoridade e poder com a qual os jovens seguidores cegamente se identificam. Essa identificação liberta os jovens de pensarem e decidirem por si próprios. Pouca gente se dá conta do quanto a liberdade assim compreendida (implicando autonomia, liberdade de escolha e conseqüente responsabilidade em face do que escolhemos) é difícil e mesmo penosa.

É desse peso que os jovens participantes do experimento fascista se liberam. O líder ordena e eles disciplinadamente agem. Não ser parte dessa unidade cega e intolerante é uma ameaça à unidade conquistada que precisa crescer na sua força expansiva. É aí que a jovem Karo se torna uma ameaça que precisa ser excluída do grupo. Ela representa os valores da liberdade individual aos quais todos renunciaram. O exemplo extremo dessa renúncia cega e radical é Tim, o jovem que no desfecho do filme se suicida. Quando o professor renuncia ao papel de líder, impondo ao grupo um retorno à situação inicial, ele se revela incapaz de reverter o jogo perigoso proposto pelo professor. Sua renúncia à liberdade individual tocou o extremo passível de o impelir para a destruição completa, que no caso resulta em autodestruição.

A Onda sugeriu-me um paralelo com Sociedade dos Poetas Mortos. Este filme, talvez já esquecido, poderia ser interpretado como o oposto simétrico daquele. Também aqui nos vemos diante de um professor, Mr. Keating, cuja personalidade magnética seduz um grupo de jovens estudantes da elite americana. A pedagogia que propõe a seus alunos, inspirado pela tradição romântica libertária, baseia-se em tudo que a ideologia nazista intenta suprimir: a educação compreendida como a realização da singularidade irredutível de cada indivíduo. Faça seu próprio caminho, cante sua própria canção, realize a vida extraordinária que lateja em cada indivíduo. O desfecho de Sociedade dos Poetas Mortos também envolve um suicídio. Neil, o jovem suicida, mata-se por não poder suportar um sentido de repressão imposto pela família e a escola que suprime sua individualidade. É portanto a contraface de Tim, que se mata porque renunciou completamente à possibilidade de se realizar como indivíduo.

Anotei no parágrafo acima um paralelo grosseiro entre dois filmes de sentido antagônico com o propósito de sugerir a complexidade da realidade cultural em que vivemos. Ambas as tendências conflitantes ou inconciliáveis se manifestam de muitos modos. Meu coração e minha mente estão totalmente identificados com os valores propostos por Sociedade dos Poetas Mortos. Mas nunca me esqueço, talvez precisamente por escolher o que escolhi, que as forças profundas geradoras do fascismo estão sempre entre nós. Seriam elas acaso passíveis de produzirem um fascismo à brasileira, como aliás tivemos disso um arremedo nos anos trinta com o movimento integralista? Acredito que não. Afinal, concordando com Luciano Oliveira, que tem escrito sobre esta e questões conexas observáveis na nossa sociedade, estamos longe do modelo de sociedade disciplinar proposto por Michel Foucault na sua obra. O nazismo foi um movimento baseado em formas de organização militarista somente concebíveis numa sociedade disciplinar. Nossas formas supremas de mobilização coletiva, o futebol e o carnaval, constituem a evidência de que tendemos mais para a anomia, como diria Durkheim, do que para a arregimentação disciplinar das massas. Eis um caso, talvez o único, em que nossa incurável bagunça é social e politicamente saudável.

Créditos:
Título: A Onda (Die Welle)
Direção: Dennis Gansel
Roteiro: Todd Strasser (romance), Dennis Gansel e Peter Thorwarth
Ano de produção: 2008 (Alemanha).
Elenco: Rainer Wenger - Jürgen Vogel
Tim - Frederick Lau
Marco – Max Riemelt
Karo - Jennifer Ulrich

Recife, 9 de dezembro de 2009

sábado, 18 de setembro de 2010

A Vitória de Orwell


George Orwell é um desses raros escritores que se tornam parte de todo um clima de opinião. Aviso o leitor que esta expressão é traduzida de um poema de Auden: “In Memory of Sigmund Freud”. Talvez a maior evidência de tão elevado status consista no fato de que escritores dessa natureza influenciam a linguagem usada até pelos que nunca os leram, até por aqueles inconscientes de uma obra como 1984, e de personagens e conceitos como Big Brother, Polícia do Pensamento, Pensamento Duplo etc. Aviso novamente o leitor que traduzo aqui livremente conceitos fundamentais de 1984 sem cotejá-los com a tradução brasileira deste livro emblemático do pensamento antiutópico. Melhor diria se usasse a expressão pensamento antitotalitário, pois Orwell nunca renunciou ao seu ideal de socialismo libertário, que é ainda um modo de ser utópico. Em suma, você fala de Orwell mesmo sem saber quem é ele, mesmo ignorando sua obra que exerceu e exerce ainda um papel decisivo no clima de opinião dominante na história contemporânea assaltada de modo catastrófico por totalitarismos de esquerda e direita.

Orwell é talvez a mais alta expressão do intelectual independente que conheço. Não me esqueço de que alguns leitores puxaram minha orelha quando usei o conceito de intelectual independente para criticar a conivência de José Saramago com regimes totalitários ou ditatoriais de esquerda. Há quem considere a relação do intelectual com o partido, ou mais amplamente com a realidade política, e conclua em termos simplistas que não existe tal coisa, isto é, você é sempre contra ou a favor, está com o partido x ou com o partido y. Essa linha de argumentação é claramente maniqueísta e assim estamos conversados. Você está com o bem ou com o mal e assim qualquer nuance, qualquer possibilidade de inserção entre os dois extremos excludentes é automaticamente suprimida.

A grandeza ética e política de Orwell – ou sua vitória, assim traduzo o sentido do livro que Christopher Hitchens lhe dedica – reside na sua capacidade extraordinária de denunciar o totalitarismo gestado pelos ideais utópicos da esquerda, o nome mais simples desse Big Brother é Stálin, sem renunciar a suas convicções socialistas e libertárias. É claro que este fato foi refutado por seus críticos à esquerda e à direita. Os primeiros o perseguiram e caluniaram por supostamente trair a esquerda, ou fazer o jogo do inimigo; os segundos tentaram apropriar-se de Animal Farm (A Revolução dos Bichos) e 1984 como se fossem simplesmente obras anticomunistas. O fato ilustra admiravelmente o quanto é difícil ser independente, mas não anula a possibilidade da independência ideológica do intelectual. Orwell converte a possibilidade em fato.

Um dos grandes méritos do livro de Christopher Hitchens, herdeiro do jornalismo libertário patente na obra de Orwell, consiste precisamente em demonstrar como Orwell foi incompreendido ou mesmo caluniado por grandes intelectuais de esquerda. O exemplo mais documentado no livro é o de Raymond Williams, que ocupa no Olimpo da esquerda inglesa papel semelhante ao de Antonio Candido na esquerda brasileira. Lembro-me ainda, introduzindo aqui um grão de memória pessoal, de um ano remoto, talvez 1990, quando compareci a um seminário marxista na Universidade de Londres. Assistindo aos debates acalorados em torno da figura de Orwell, notei o quanto ele ainda dividia os marxistas e outras correntes do pensamento de esquerda.

Acredito que hoje, diluídos os embates ideológicos que incendiaram as lutas políticas durante tantas décadas sangrentas, a obra de Orwell já não provoque reações maiores, divisões do tipo a que assisti no Brasil e na Inglaterra. Mas lembro ao leitor jovem que no Brasil sua obra foi implacavelmente rejeitada e caluniada. Friso que me refiro mais precisamente às duas obras acima citadas, pois é nelas que Orwell concentra sua força satírica contra o totalitarismo, é nelas que investe contra a opressão exercida em nome de ideais libertários. Assim como a direita procurou apropriar-se dessas obras como se fossem simplesmente anticomunistas, confundindo assim de forma desonesta sua crítica ao stalinismo com uma crítica à esquerda em geral, a esquerda identificada com o stalinismo tudo fez para rejeitar e suprimir sua crítica ao totalitarismo. Aliás, conviria lembrar que o totalitarismo não se esgota nas suas mais extremas e terríveis materializações na história do século 20: o nazismo, à direita, e o stalinismo, à esquerda. Resumindo, o intelectual que ousa ser independente leva pancada de todos os lados.

Como acabo de observar, a crítica de Orwell ao totalitarismo não se esgota nos alvos que prioritariamente visou: o nazismo e o stalinismo. Sem querer banalizar o conceito, alerto para o fato de que a tentação totalitária está sempre presente no imaginário dos extremistas e dogmáticos, nos fundamentalistas de qualquer natureza, assim como nas forças de reificação inerentes ao capitalismo. Somente um tolo ou inconsciente suporia que essas forças desapareceram do mundo em que vivemos simplesmente porque o triunfo do capitalismo de consumo e da cultura narcisista pulverizaram qualquer possibilidade de pensamento totalitário. Aliás, bastaria imaginar o que Orwell diria sobre a forma como seu símbolo supremo da sociedade totalitária, o Big Brother, foi apropriado pela cultura de massas do presente. Quanto ao conceito de Newspeak, ou Novilíngua, tão engenhosamente ilustrado em 1984, bastaria pensar em expressões hoje correntes como “fogo amigo”, “terceira idade”, “boa idade”, “Brasil, um país de todos” e “sorria, você está sendo filmado”. Estes poucos exemplos da Novilíngua que irrefletidamente reproduzimos constituem algumas evidências exemplares do uso corruptor da língua, da mentira e da alienação disseminadas através da indústria publicitária e marqueteira administrada como o ópio da cultura de massas. Portanto, a vitória de Orwell é apenas parcial, já que a possibilidade ou mesmo o risco da tentação totalitária nunca desaparecem do horizonte da história humana. Acredito que esta era a convicção de Orwell, até porque ele foi um pessimista impenitente. Ele é a prova viva, talvez pouco comum, do pessimista ativo ou militante, do pessimista superado pela vontade de ação sobre o mundo incompatível com qualquer ideal utópico.

Christopher Hitchens descreve e analisa no seu livro múltiplos aspectos da obra de Orwell além do que centralmente me ocupou neste texto que é antes um breve artigo inspirado pela leitura de sua obra do que propriamente uma resenha. Sendo assim, contempla não apenas traços relevantes da biografia de Orwell, mas também sua relação com o imperialismo inglês, temperado por sua discutida anglicidade, com os Estados Unidos, com as feministas, os pós-modernistas etc. Convém todavia ressaltar que o livro de Hitchens é antes de tudo uma consistente apreciação da obra de Orwell centrada na sua dimensão intelectual e ideológica. Para o leitor que lê fluentemente inglês, recomendaria as biografias escritas por Bernard Crick e Michael Shelden. O melhor de Orwell, na minha opinião, está nos seus ensaios postumamente reunidos e publicados pela Penguin Book. Também sua obra de jornalista e suas cartas foram reunidas e publicadas pela mesma editora.

No Brasil, a Companhia das Letras publicou uma seleção que abriga praticamente seus melhores ensaios. Salvo engano, cito de memória, a seleção e o prefácio do volume foram obra de Daniel Piza. Acrescentaria, como indicação para o leitor curioso, que em 1986 Ken Loach dirigiu o filme Terra e Liberdade, baseado em Homage to Catalonia (Homenagem à Catalunha, traduzido no Brasil sob o título Lutando na Espanha). Esta é uma das obras fundamentais de Orwell, diretamente inspirada na sua participação na Guerra Civil Espanhola. Ele se alistou como combatente do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), corrente de tendência trotskista que acabou esmagada pelos franquistas, de um lado, e pelos stalinistas, de outro. Foi aí que Orwell sentiu na própria pele o que de fato significava stalinismo. Indicaria ainda o último capítulo de A History of Britain, de Simon Schama, também lançado em DVD no mercado brasileiro. O título do capítulo é “Os dois Winstons”, alusão a Winston Churchill e a Winston Smith, protagonista de 1984.

Concluindo, se você quer ter sucesso na vida, sobretudo na vida política, não incorra na insensatez de seguir o exemplo de George Orwell. Ele rompeu com o imperialismo inglês, dentro do qual foi educado para agir no mundo como um instrumento dócil da dominação imposta a povos colonizados; mergulhou no mundo da miséria e da marginalidade social para escrever de forma honesta e documentada sobre párias e trabalhadores esfolados pela espoliação capitalista; foi perseguido e caluniado por ousar denunciar o totalitarismo de esquerda numa época em que a maioria dos intelectuais de esquerda se aliavam ao stalinismo ou eram usados como inocentes úteis e por fim morreu relativamente pobre e jovem. Tudo que nos transmite como legado ético através de sua obra é a convicção e a coragem com que lutou em defesa das coisas em que acreditava e uma noção de integridade rara entre intelectuais. Como notamos, o legado de Orwell não é nada atrativo para os tempos em que vivemos.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Agnieszka Holland e Christopher Hampton



O nome Agnieszka Holland atraiu minha atenção quando vi Europa Europa (título brasileiro: Filhos da Guerra), talvez o melhor filme que eu conheça sobre ideologias totalitárias (nazismo e comunismo stalinista, especificamente) e o modo complexo como atuaram sobre a consciência de alemães, soviéticos e judeus. Suponho que o tratamento impresso pela diretora polonesa a essa questão tenha mobilizado negativamente o governo alemão, impedindo assim que o filme concorresse ao Oscar. Afinal, o filme será tudo, menos uma reiteração do esquema maniqueísta muitas vezes difundido por Hollywood ao explorar à exaustão a atmosfera ideológica e política associada à Segunda Guerra Mundial.

Entre os muitos problemas propostos pelo filme, sobreleva o da identidade racial de um jovem judeu. Solomon Perel, em cujas memórias se baseiam o roteiro e a direção de Agnieszka Holland, luta para sobreviver num mundo retalhado por ideologias afins, no que segregam de representação totalitária da realidade, embora na prática empenhadas numa guerra de destruição recíproca. Este fato me lembra ecos de 1984, de George Orwell. Perel não se nos apresenta como um pobre diabo inocente ou como expressão do bem passivamente atropelado pelas forças do mal. O que acima de tudo o move a agir e recompor identidades é a necessidade imperiosa da sobrevivência. Assim, troca de lado e de identidade – ora judeu, ora comunista, ora nazista – inevitavelmente espicaçado pela culpa, mas sobretudo atormentado pelo medo de que o desmascarem. Seria nesse sentido, forçando aqui um paralelo, um primo europeu de Macunaíma, nosso emblemático herói sem caráter.

O quadro de representação das consciências e identidades vivas se compõe de modo ainda mais complexo que o sugerido no parágrafo acima. Deslocado para o lado soviético, evidencia os processos através dos quais a ideologia totalitária é introjetada nos jovens sob a ação decisiva de agentes ideológicos tais como educadores e intelectuais militantes. Detendo-se ainda mais na sua negação aparente, o lado nazista, demonstra com fatos perturbadores o funcionamento irracionalista de uma ideologia que celebra um modo de civilização, quando não seu triunfo, inconsciente dos mecanismos de barbárie devastadora intrínsecos à natureza do seu funcionamento. Mas os agentes humanos nos quais essa ideologia se encarna são seres humanos complexos, gente de carne e osso como eu e o leitor. Portanto, também nesse contexto regido por processos totalitários vibram forças humanas contraditórias e transgressoras, assim como cegamente conformistas.

Mas eis que Agnieszka Holland está de volta, agora dirigindo animada pela colaboração fundamental de um outro notável roteirista e diretor de cinema: o inglês Christopher Hampton. Se tem ela a seu crédito esse perturbador Europa Europa, deu-nos ele Carrington, filme decisivo para repor na cena cultural contemporânea o nome de Lytton Strachey (Jonathan Pryce) e sobretudo o da injustamente esquecida Dora Carrington (Emma Thompson). O filme de Hampton, que recria com fina sensibilidade estética a relação amorosa bem pouco convencional entre Lytton e Carrington, pontuada pela permissividade e o caráter excêntrico do círculo de Bloomsbury, concorreu de modo decisivo para imprimir notoriedade à pintura de Carrington. Eu próprio pude ler aqui mesmo em Recife, logo depois de conhecer o filme, um estudo acadêmico de uma feminista inglesa (Jane Hill, The Art of Dora Carrington), maravilhosamente ilustrado com reproduções da sua pintura. O próprio final do filme, aliás, justapõe aos créditos reproduções de suas obras fundamentais.

Agnieszka Holland e Christopher Hampton aliaram-se para dar materialidade fílmica a outra relação amorosa heterodoxa e visceralmente conflituosa: a de Arthur Rimbaud e Paul Verlaine. Tal como ocorrera quando vi Carrington, o filme causou-me tão aguda impressão que voltei a revê-lo dois dias mais tarde. Vou porém antes anotar algo referente ao impacto imediato causado pela obra, no ato mesmo da sua recepção, antes de tratar especificamente do filme.

Se pudesse sugerir um teste puramente intuitivo e sensorial para a recepção de um grande filme, diria que tal ocorre quando, encerrada a sessão, preciso de vários minutos para gradualmente me reacomodar aos limites da realidade cotidiana e banal. Seria curioso ou talvez sintomático registrar que tal ordem de experiência estética raramente me tem ocorrido diante do grosso da produção cinematográfica dos últimos anos. Lembraria aqui casualmente, à deriva da memória involuntária, alguns filmes que em mim induziram a manifestação desse estado psicológico. Por exemplo estes: Dead Poets Society (Sociedade dos Poetas Mortos), Tous le Matins du Monde (Todas as Manhãs do Mundo) Hamlet (de Laurence Olivier) Morangos Silvestres, O Sétimo Selo, Rashomon, Citizen Kane, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Burn (Queimada), The Fixer (O Homem de Kiev), La Femme d´à Côté (A Mulher do Lado), Violência e Paixão, The English Patient (O Paciente Inglês), Amarcord.

Pois não relutaria em acrescentar a esta lista parcial o filme de Agnieszka Holland: Total Eclipse (Eclipse de uma Paixão). Antes de tudo, diria com certa intenção de humor que recria com cenas e diálogos cortantes uma época da história literária em que o próprio amor, a própria experiência passional, era um modo de épater la bourgeoisie. Rimbaud e Verlaine (Leonardo DiCaprio, David Thewlis) antes de tudo o primeiro, são a expressão paradigmática e arrogante da associação umbilical entre a obra criada e a vida vivida como se esta fosse uma tradução existencial da primeira. Rimbaud aspirou a ser na sua obra e ousadamente realizou na sua vida vertiginosa a conjugação entre o eu e o outro. Ao dissolver no plano da expressão estética quanto no plano existencial essa tênue fronteira, entretanto vivamente assinalada nos modos convencionais de relação e identidade social, gestou uma obra explosiva e fez da sua vida um redemoinho no qual eternidade e inferno se fundem e se repelem.
Recife, 14 de janeiro de 1998.
Ler também:
Carrington e o amor romântico.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Elogio da Inutilidade


George Steiner ressalta num dos seus ensaios extraordinários a força corruptora que um regime totalitário – o nazismo, no caso – exerce sobre a língua que falamos. Antes de tudo, ele corrompe a possibilidade de a utilizarmos para expressar a verdade. Embora não exista felizmente nenhum regime totalitário regendo nosso presente, há no entanto certas características dele rondando obscuramente nossas vidas. Consideremos novamente o problema da linguagem. Vivemos numa época dominada pelo discurso publicitário, cujo objetivo maior é vender tudo, não raro ao preço de ilusões completamente infundadas, mentiras que não resistem a um minuto de análise sensata. O discurso publicitário contamina a mídia em geral, que por sua vez atua sobre nossas consciências incautas, ou simplesmente carentes de auto-engano. Assim, passamos a empregar livre e correntemente palavras e conceitos que servem antes de tudo para embaçar nossa relação com a realidade, representá-la turvada por uma rede de mentiras e ilusões nesse sentido afins ao discurso totalitário. Bastaria pensarmos no sentido verdadeiro de expressões correntes como fogo amigo, bala perdida (digam isso a quem foi atingido por uma, ou a quem perdeu uma pessoa amada atingida por uma) ou terceira idade. Pensemos ainda nos clipes publicitários que a toda hora, a todo minuto, representam o consumidor como um ser investido de onipotência. O limite é o nosso desejo. Se tomo uma coca-cola, converto-me milagrosamente num super-herói; se tomo uma Skol, o prazer desce redondo milagrosamente convertendo-me num Casanova de botequim...
Mas meu objetivo é concentrar a matéria deste artigo em algumas das implicações submersas na expressão terceira idade e variantes como boa idade e adultescente. Este talvez seja um neologismo que eu possa humildemente reivindicar como sendo de minha autoria, pelo menos no sentido em que o emprego. Para mim, o adultescente é apenas um adulador da adolescência. Esta idade, a adolescência, elevada pelo discurso publicitário a ideal de vida, converte a velhice (usei enfim a palavra obscena, o termo impronunciável) em autêntico pavor, espécie de assombração do processo biológico que precisa ser a todo custo abafada. Isso nos leva de volta ao uso da linguagem como exercício de uma forma de vida mentirosa, uma forma de vida baseada na ilusão e na mentira. O mais grave é que, no caso, lidamos com experiências humanas inescapáveis, modos de ser que são constitutivos do processo biológico que todos fatalmente vivemos. Trocando em miúdos, qualquer pessoa que tenha o privilégio (ou desgraça, depende sempre do ponto de vista de quem fala e vive) de viver uma vida longa inevitavelmente atravessa os ciclos da infância, da juventude e da velhice. Mas parece que agora, possuídos pela cultura narcisista e hedonista, refizemos o processo da seguinte maneira: infância, adolescência, juventude e adultescência (agora no sentido de regressão ao irregressível, já que desconheço o milagre do velho efetivamente adolescente). Em suma, abolimos a velhice e estamos a caminho de abolir a morte, obscenidade ainda mais impronunciável. Como todavia a realidade é sempre imperativa, não há como suprimir a velhice. E já que é impossível suprimi-la, resta-nos criar uma linguagem que a recusa, uma linguagem que a representa como se não fosse, ou fosse outra coisa. É aí que o publicitário entra em cena e cunha expressões do tipo terceira idade, ou boa idade. Outro recurso empregado pela ideologia corrente consiste em representar o idoso (perdão, quis dizer o membro da terceira idade) como um ser útil ou como um consumidor feliz. Observem a felicidade combalida dos idosos filmados em bailes da terceira idade. Observem ainda as reportagens onde aposentados falam orgulhosamente do que fazem para conservar-se ativos como parafusos lubrificados a serviço da grande e monstruosa máquina do consumo.
Diante do quadro feliz e harmonioso acima esquematicamente esboçado, incorro agora na atitude herética de reivindicar para mim próprio o direito de envelhecer e morrer conscientemente, envelhecer e morrer liberto do peso dessas ilusões lucrativas... para os publicitários e comerciantes que nelas investem. Falando baixinho, para não escandalizar os jovens que têm pavor da velhice e os velhos que se refugiam no espelho de uma juventude esgotada, um dos meus grandes sonhos é aposentar-me para me entregar luxuriosamente, para me entregar deliciosamente à minha inutilidade. Como dizia Mário de Andrade, ele que ironicamente trabalhou feito um mouro, quero desfrutar da divina preguiça. Quero ser um aposentado para enfim conquistar a liberdade de ser inútil, de não precisar mover-me como um parafuso disciplinado dentro da cadeia imperativa que move a sociedade. Quero ser um velho aposentado liberto para desfrutar de prazeres suprimidos pela mentalidade utilitária que vê em cada poema uma evasão criminosa da realidade, em cada canção um desperdício de desocupado, em cada leitura de romance uma rendição à mentira ou ao faz de conta. Melhor dizendo, quero ser um velhinho. Quero que minha namorada e meus amigos me chamem velhinho. Se a tanto posso aspirar, quero que me amem como amamos um velhinho, que em mim considerem a dignidade e o respeito que devemos a um velhinho humilde e humanamente vivo. Quero ser um aposentado para ler e reler todos os livros que requerem um tempo incogitável nesse mundo regulado pelo tempo útil, o tempo dinheiro, o tempo competitivo, o tempo a serviço de alguma finalidade alheia a quem o vive. Quero o tempo do aposentado inclusive para encarar minha velhice sem falsas ilusões, como essas que a mascaram sob a face neutra de termos como terceira idade e boa idade. Quero enfim conquistar na velhice um privilégio suprimido pelo mundo mesquinhamente utilitário em que vivemos: quero viver o privilégio da inutilidade que pulsa na poesia de Drummond, num romance de Machado de Assis, numa sonata de Beethoven, na música sublime de Bach, numa caminhada à beira mar quando a noite desce com seus sortilégios e promessas inefáveis...