segunda-feira, 28 de junho de 2010

Agnieszka Holland e Christopher Hampton



O nome Agnieszka Holland atraiu minha atenção quando vi Europa Europa (título brasileiro: Filhos da Guerra), talvez o melhor filme que eu conheça sobre ideologias totalitárias (nazismo e comunismo stalinista, especificamente) e o modo complexo como atuaram sobre a consciência de alemães, soviéticos e judeus. Suponho que o tratamento impresso pela diretora polonesa a essa questão tenha mobilizado negativamente o governo alemão, impedindo assim que o filme concorresse ao Oscar. Afinal, o filme será tudo, menos uma reiteração do esquema maniqueísta muitas vezes difundido por Hollywood ao explorar à exaustão a atmosfera ideológica e política associada à Segunda Guerra Mundial.

Entre os muitos problemas propostos pelo filme, sobreleva o da identidade racial de um jovem judeu. Solomon Perel, em cujas memórias se baseiam o roteiro e a direção de Agnieszka Holland, luta para sobreviver num mundo retalhado por ideologias afins, no que segregam de representação totalitária da realidade, embora na prática empenhadas numa guerra de destruição recíproca. Este fato me lembra ecos de 1984, de George Orwell. Perel não se nos apresenta como um pobre diabo inocente ou como expressão do bem passivamente atropelado pelas forças do mal. O que acima de tudo o move a agir e recompor identidades é a necessidade imperiosa da sobrevivência. Assim, troca de lado e de identidade – ora judeu, ora comunista, ora nazista – inevitavelmente espicaçado pela culpa, mas sobretudo atormentado pelo medo de que o desmascarem. Seria nesse sentido, forçando aqui um paralelo, um primo europeu de Macunaíma, nosso emblemático herói sem caráter.

O quadro de representação das consciências e identidades vivas se compõe de modo ainda mais complexo que o sugerido no parágrafo acima. Deslocado para o lado soviético, evidencia os processos através dos quais a ideologia totalitária é introjetada nos jovens sob a ação decisiva de agentes ideológicos tais como educadores e intelectuais militantes. Detendo-se ainda mais na sua negação aparente, o lado nazista, demonstra com fatos perturbadores o funcionamento irracionalista de uma ideologia que celebra um modo de civilização, quando não seu triunfo, inconsciente dos mecanismos de barbárie devastadora intrínsecos à natureza do seu funcionamento. Mas os agentes humanos nos quais essa ideologia se encarna são seres humanos complexos, gente de carne e osso como eu e o leitor. Portanto, também nesse contexto regido por processos totalitários vibram forças humanas contraditórias e transgressoras, assim como cegamente conformistas.

Mas eis que Agnieszka Holland está de volta, agora dirigindo animada pela colaboração fundamental de um outro notável roteirista e diretor de cinema: o inglês Christopher Hampton. Se tem ela a seu crédito esse perturbador Europa Europa, deu-nos ele Carrington, filme decisivo para repor na cena cultural contemporânea o nome de Lytton Strachey (Jonathan Pryce) e sobretudo o da injustamente esquecida Dora Carrington (Emma Thompson). O filme de Hampton, que recria com fina sensibilidade estética a relação amorosa bem pouco convencional entre Lytton e Carrington, pontuada pela permissividade e o caráter excêntrico do círculo de Bloomsbury, concorreu de modo decisivo para imprimir notoriedade à pintura de Carrington. Eu próprio pude ler aqui mesmo em Recife, logo depois de conhecer o filme, um estudo acadêmico de uma feminista inglesa (Jane Hill, The Art of Dora Carrington), maravilhosamente ilustrado com reproduções da sua pintura. O próprio final do filme, aliás, justapõe aos créditos reproduções de suas obras fundamentais.

Agnieszka Holland e Christopher Hampton aliaram-se para dar materialidade fílmica a outra relação amorosa heterodoxa e visceralmente conflituosa: a de Arthur Rimbaud e Paul Verlaine. Tal como ocorrera quando vi Carrington, o filme causou-me tão aguda impressão que voltei a revê-lo dois dias mais tarde. Vou porém antes anotar algo referente ao impacto imediato causado pela obra, no ato mesmo da sua recepção, antes de tratar especificamente do filme.

Se pudesse sugerir um teste puramente intuitivo e sensorial para a recepção de um grande filme, diria que tal ocorre quando, encerrada a sessão, preciso de vários minutos para gradualmente me reacomodar aos limites da realidade cotidiana e banal. Seria curioso ou talvez sintomático registrar que tal ordem de experiência estética raramente me tem ocorrido diante do grosso da produção cinematográfica dos últimos anos. Lembraria aqui casualmente, à deriva da memória involuntária, alguns filmes que em mim induziram a manifestação desse estado psicológico. Por exemplo estes: Dead Poets Society (Sociedade dos Poetas Mortos), Tous le Matins du Monde (Todas as Manhãs do Mundo) Hamlet (de Laurence Olivier) Morangos Silvestres, O Sétimo Selo, Rashomon, Citizen Kane, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Burn (Queimada), The Fixer (O Homem de Kiev), La Femme d´à Côté (A Mulher do Lado), Violência e Paixão, The English Patient (O Paciente Inglês), Amarcord.

Pois não relutaria em acrescentar a esta lista parcial o filme de Agnieszka Holland: Total Eclipse (Eclipse de uma Paixão). Antes de tudo, diria com certa intenção de humor que recria com cenas e diálogos cortantes uma época da história literária em que o próprio amor, a própria experiência passional, era um modo de épater la bourgeoisie. Rimbaud e Verlaine (Leonardo DiCaprio, David Thewlis) antes de tudo o primeiro, são a expressão paradigmática e arrogante da associação umbilical entre a obra criada e a vida vivida como se esta fosse uma tradução existencial da primeira. Rimbaud aspirou a ser na sua obra e ousadamente realizou na sua vida vertiginosa a conjugação entre o eu e o outro. Ao dissolver no plano da expressão estética quanto no plano existencial essa tênue fronteira, entretanto vivamente assinalada nos modos convencionais de relação e identidade social, gestou uma obra explosiva e fez da sua vida um redemoinho no qual eternidade e inferno se fundem e se repelem.
Recife, 14 de janeiro de 1998.
Ler também:
Carrington e o amor romântico.

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