segunda-feira, 21 de junho de 2010
José Saramago: Literatura e Ideologia
José Saramago tornou-se um escritor celebrado pela mídia desde quando recebeu o Nobel de Literatura. É certo que antes disso já conquistara um amplo público, inclusive no Brasil. Aliás, a recepção da sua obra no Brasil é um fenômeno literário inusitado, já que desde o advento do modernismo a literatura portuguesa ficou reduzida a uma faixa de circulação muito restrita entre nós. Sem dúvida, caberia lembrar o fenômeno Fernando Pessoa, escritor português de maior repercussão no Brasil no decorrer do século 20. Mas o reconhecimento da sua obra, do seu gênio único, foi tardio mesmo em Portugal. Em suma, diferentemente de Saramago, que gozou em vida de prestígio literário único no Brasil e em muitos outros países, Fernando Pessoa é um gênio de reconhecimento e fama póstumos.
A obra de Saramago importa por seu valor intrínseco, pelos valores irredutivelmente literários ou estéticos que são de resto os que asseguram imortalidade a uma obra. E esta, a imortalidade ou permanência no veio da tradição literária, esta é decidida por um juiz supremo e infalível: o tempo. Portanto, somente nossos pósteros poderão avaliar se a obra de Saramago sobreviverá ao juízo do tempo. Isso evidentemente não anula algumas evidências aferíveis no presente. A melhor crítica ainda em atividade aparenta endossar o consenso segundo o qual fração significativa da obra de Saramago sobreviverá à passagem do tempo. Como pouco a conheço, não seria honesto de minha parte propor apreciações que se sustentam na leitura de uma ou duas obras. Aliás, esclareço que foi esse declarado conhecimento restrito da obra de Saramago que me fez relutar em aceitar o convite de Daniel Lopes para registrar num artigo a morte recente do grande romancista português. Diante disso, conviria desdobrar o artigo retendo-o na franja de aspectos externos à obra. De resto, é isso o que a maioria dos artigos e notas correntes na mídia tem feito.
Saramago foi um autor deliberadamente polêmico. Sempre que solicitado a se pronunciar sobre seus pontos de vista, deu ênfase maior, senão quase exclusiva, a temas de natureza política e religiosa. O homem público, investido de um sentido de militância política e ideológica raro na atmosfera cultural em que passamos a viver depois do patente esgotamento dos ideais e utopias gestados pelos movimentos de esquerda, valeu-se sempre de sua fama literária para opinar, por vezes em tom áspero, contra o capitalismo, a religião, as formas correntes de opressão observáveis sob a hegemonia universal do capitalismo. Embora implacável na sua crítica recorrente ao capitalismo, raramente se pronunciou contra os horrores do chamado socialismo de Estado imposto pela União Soviética a grande parte do mundo. Aliás, leia-se totalitarismo onde escrevi socialismo de Estado. Embora sinceramente votado à causa dos oprimidos, dos levantados do chão, assim como daqueles impotentes para levantar-se em face de formas impiedosas de dominação, Saramago praticamente silenciou diante das tiranias impostas em nome dos ideais utópicos que abraçou e sempre defendeu.
Penso que essa é a restrição ideológica e moral mais grave que se deve fazer à militância intelectual de Saramago. Nisso, infelizmente, ele reitera o itinerário de muitos dos maiores intelectuais do Ocidente. Movidos por ideias de justiça e igualdade cuja sinceridade admito, o fato é que findaram sempre na prática silenciando sobre a opressão praticada em nome da ideologia que abraçaram. Falo nestes termos de Saramago assim como poderia falar da maioria dos intelectuais de esquerda que li e noutras circunstâncias inspiraram minhas convicções, assim como as de milhões que através do mundo lhes deram crédito. Falo de Saramago assim como poderia falar de Sartre, Georg Lukács, García Márquez, uma infinidade de comunistas e socialistas democráticos (designação que quase sempre significa comunismo isento de estalinismo) que curiosamente nunca criticaram o estalinismo com a veemência que imprimiram à crítica das ditaduras de direita.
Transpondo esta questão para a realidade ideológica brasileira, ainda hoje intelectuais e artistas silenciam sobre a ditadura cubana, último baluarte da tirania produzida pela utopia comunista. Intelectuais e artistas que profundamente admiro, como Antonio Candido, Chico Buarque e alguns dos mais importantes intelectuais acadêmicos da Universidade de São Paulo, teimam em silenciar diante da ditadura cubana. Esse silêncio cúmplice é de ordinário justificado em nome de uma noção pragmática da luta pelo poder, isto é, mesmo admitindo a tirania praticada pelo partido que adotam, esses intelectuais acreditam fazer em termos efetivos o jogo do inimigo quando a força da verdade ou o horror em face da injustiça se sobrepõe à parcialidade não raro criminosa da ação pragmática ou estreitamente partidária. Sendo assim, não apenas silenciam diante da opressão imposta pelo partido ou ideologia que abraçam, mas também atacam sem clemência os liberais ou ex-companheiros de militância que ousam denunciar a opressão exercida em nome das utopias de esquerda. Bastaria pensar nos ataques e na intolerância desfechados contra intelectuais corajosamente independentes como George Orwell, Arthur Koestler, Camus, Mario Vargas Llosa, Octavio Paz, José Guilherme Merquior, Paulo Francis, Millôr Fernandes...
No plano que acima considero, o grande saldo da militância ideológica de Saramago consiste no combate que travou contra a religião no que esta encerra de superstição e intolerância. Não é sem razão que o "L'Osservatore Romano", jornal oficial do Vaticano, desfecha dura crítica contra a posição que publicamente adotou em matéria de religião. A voz oficial do Vaticano acusa-o por recusar qualquer forma de metafísica e consequentemente pautar sua ação fundado nos valores de uma ética secular e materialista. Este é o Saramago ideólogo com quem simpatizo. Quanto à permanência da sua obra, que é de resto o que importa para a história literária, esta é uma tarefa que devemos humildemente entregar ao juízo infalível do tempo.
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