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domingo, 21 de outubro de 2012

A Culpa é dos Iluministas



Acho que tudo começou com aquele idiota chamado Kant. Sérgio Paulo Rouanet e vários professores da pós-graduação encheram minha cabeça com as ideias sedutoras de Kant e dos iluministas. Sapere aude: ousar saber. Pra mim saber é saber antes de tudo o meu corpo, a voz do meu corpo, o insone murmúrio do meu desejo. Foi assim que traduzi na minha vida o discurso iluminista e pós-iluminista da autonomia: ser livre para gozar o desejo latejante no meu corpo.

Minha mãe sempre exercendo a tirania doméstica dentro da família. Prematuramente envelhecida, dependente econômica e emocional do meu pai, vivia remoendo ressentimento contra tudo que não pôde viver. Um nada e lá estava ela repisando mágoas, cobrando dos filhos todos os sacrifícios sofridos durante a vida para nos gestar e criar. Meu pai, alto e belo, imenso na sua beleza, era meu ideal. Meu pai amava a vida, dela usufruindo tudo que eu queria e invejava: a farra com os amigos, o amor à música, que cantava com voz linda e sedutora. Fervi de ódio e ressentimento quando descobri que tinha uma outra família, com filhos ilegítimos da minha idade. Mas cedo o perdoei e continuei amando-o com um amor confuso, pois que contaminado por ressentimento e insofreáveis desejos de agressão.

Ainda adolescente, peguei a onda da liberação e caí na farra. Apesar dos privilégios de que sempre desfrutei na família, a começar pelos econômicos, trabalhei como garçonete num bar onde a garotada desatava os nós de todas as repressões purgadas por nossas mães. Não dava à mínima para o que me pagavam sugando minha mão de obra. Trabalhava somente pelo gosto da aventura, pelo prazer de estar dentro do agito nos fins de semana; trabalhava pelo prazer de provocar os garotos lindos com meu corpo moreno e sensual. Gostava quando um daqueles safados mais atrevidos se esfregava em mim depois de beber além da conveniência. Adorava o jogo que jogava seduzindo, provocando, mas sem dar, sem ir além do desejo provocado sem satisfação. Quero dizer, dei muito, mas só aos garotos que passei a namorar. Foram tantos, confesso, que logo perdi a conta.

Perdi a conta do que amei e dei por aí, errando nas noites de agito e droga. Mas sempre, em algum obscuro lugar, sempre me roía algo que era culpa ou insatisfação insaciável. Os garotos com quem transava logo me cansavam. Eram todos fúteis, todos idiotas, todos medindo num espelho invisível o próprio corpo, o amor vazio orientado para si próprio. Também eu me perdia nesses labirintos do desejo que me atava a mim própria. Mas havia algo além disso. Havia uma carência inapreensível de um grande amor, de um príncipe vindo de esferas insondáveis. Havia ainda medo e a recusa de repetir minha mãe, de acabar como ela: o corpo disforme, a ferocidade doméstica investida contra meu pai e contra os filhos.

Depois da graduação em jornalismo me mandei para São Paulo. Queria fazer pós, mas queria antes de tudo viver mais livremente, viver toda a liberdade a que tenho direito. Era à noite, no anonimato da grande noite paulistana, que o mundo misteriosamente se abria como um mar de possibilidades estonteantes. Eu tudo queria e a quase tudo me entregava. Às vezes, nas manhãs de ressaca, boiando confusa na maré da ressaca, sentia a dor de um vazio tão doloroso, mas tão doloroso, que eu me fechava na solidão do quarto para nem sequer ver as duas meninas com quem dividia apartamento. A sombra opressiva de minha mãe, esbravejando ressentimento e culpa na minha memória insone, servia apenas para empurrar-me mais e mais para a vida de dissipação que verti nas noites de São Paulo.

A meio da pós-graduação casei com Renato. Fui tola ao ponto de pensar que encontrara enfim meu príncipe encantado, aquela figura embaçada e linda, envolvente e dominadora que flutuava nos campos azuis de minhas fantasias consoladoras. Vieram os filhos, um casal, e logo mais tarde a separação. Depois que concluí a pós precisei trabalhar e então dobrei a jornada de trabalho. A partir daí o tempo encurtou, a liberdade infrene também, e logo me vi estressada e retalhada entre os filhos, o desejo de um homem para repartir as tarefas e o peso da família dissolvida entre tantas demandas desencontradas. A renda era polpuda, mas nunca suficiente para nossa sede de consumo, meu e dos filhos já crescendo para cair na vida como antes caí.

Lá dentro, no mais fundo de mim, o que me atormentava e perseguia já não era a figura tirânica de minha mãe envelhecida e frustrada; também não era o amor confuso e conflituoso que devotava ainda a meu pai, presença cada vez mais remota na minha vida. O que no mais fundo de mim me tiranizava era o espelho. Via-o até quando dele me ausentava. Aliás, logo descobri que se enraizara em mim, que me espelhava e sufocava até no escuro do quarto, deserto de companhia e amor. Não bastasse tanto, minha luta contra a balança tornou-se cada vez mais feroz. Por mais que lutasse, era sempre eu quem perdia. Daí para a academia de musculação o salto foi apenas uma passada. Caí de chofre diante daquele labirinto de espelhos refletindo gente ansiosa e atormentada à procura da medida ideal, da beleza ideal, do Narciso ideal absorto no espelho ideal das águas desenhando na superfície imóvel a beleza irretocável. Mas o que a realidade impiedosa refletia em todos os espelhos era meu corpo se avolumando, as formas dissolvendo-se em gordura inspirando-me um ódio irrefreável contra mim própria. De repente, dei-me conta de que os homens já não me olhavam como antes. Aliás, muitos passaram a me ignorar. Falavam comigo e me olhavam como se olhassem uma parede desbotada, uma porta debruçada sobre o abismo da minha insignificância.

Agora, no meio da madrugada insone, pulo da cama assaltada pela voz difusa de Kant, a voz gaga e gagá dos iluministas que encheram minha cabeça e me consumiram muitas horas de leitura durante meus anos de graduação e pós. Sapere aude: ousar saber. Que merda! Acendo a luz e ando pela casa inquieta. Será que os meninos já voltaram da balada? Encontro apenas o apartamento vazio, as camas e quartos desertos. Meu Deus, e se acontecer alguma coisa: algum crime, algum assalto... se andarem metidos com a turma da droga pesada? Ah, o sonho da autonomia feminina! Que merda! A culpa é daqueles putos do Iluminismo. Quem tem razão é Sandrinha, que renunciou à sua autonomia depois de atravessar os desertos que me assolam e se refugiou na fantasia do patriarcalismo do século xix. Agora Sandrinha se olha no espelho e vê apenas uma respeitável matrona regendo escravos na casa-grande onde sua vontade é lei. Queria ser Robespierre para guilhotinar todos os iluministas...

quinta-feira, 3 de março de 2011

Etnocentrismo, Universalismo e Relativismo




Este artigo compõe ainda a moldura teórico-conceitual necessária para a adequada exposição e desenvolvimento da substância da disciplina cultura brasileira que tem ocupado fração significativa da minha atividade docente. Dentre os três conceitos acima, o primeiro é mais simples e fundamental. Tão fundamental que constitui um dos princípios metodológicos indispensáveis para quem de fato queira compreender sociologicamente qualquer sociedade e sua cultura. Os dois restantes, universalismo e relativismo cultural, são bem mais complexos e polêmicos. Embora tenha isso em mente, preciso abordá-los de algum modo no contexto deste artigo.

Comecemos, portanto, pelo sentido do termo etnocentrismo. Como a composição da palavra já o indica, ser etnocêntrico é adotar como centro sua própria etnia. Dizendo isso de um outro modo, é tomar a nossa cultura, no sentido antes explicitado, como o centro de normalidade e sentido do mundo. Uma pessoa etnocêntrica comporta-se como se a sua cultura, os valores fundamentais da sua cultura, fossem o centro e o critério do que é certo, normal, verdadeiro e portanto melhor. O mais grave é que procedemos desse modo de forma espontânea. Mesmo o sociólogo, o antropólogo treinado pela sua ciência para reconhecer que existe no mundo uma extraordinária diversidade de culturas, algumas dotadas de valores, práticas e sentidos completamente incompatíveis entre si, mesmo este profissional das ciências sociais incorre inconscientemente em atitudes etnocêntricas.

Exponho um exemplo histórico que ilustra essa questão melhor do que qualquer exposição puramente conceitual e teórica. Quando o colonizador português e o jesuíta aportaram na costa brasileira, defrontaram-se com um povo e uma cultura radicalmente diferentes da sua. O que fizeram eles, com sua cultura técnica e sua religião mais poderosas? Impuseram ao indígena uma cultura que representou para este um verdadeiro processo de extermínio e supressão da sua identidade. Foi o que hoje chamaríamos de lavagem cerebral. Além de vestirem o índio e lhe imporem uma religião completamente incompatível com a sua, impuseram-lhe valores econômicos e culturais baseados numa noção de individualismo e propriedade privada que eram o avesso da cultura tribal ou comunitária dos grupos indígenas.

Como hoje perfeitamente sabemos, valores psicossociais típicos de uma pessoa moldada pela economia capitalista, como aqueles associados à economia privada, ao lucro, à exploração econômica do outro, ao espírito de acumulação material etc, eram totalmente estranhos às culturas indígenas. Também a noção de individualismo, inscrita no cerne dos valores psicossociais acima referidos era totalmente alheia ao mundo primitivo que o português ocupou e depois passou a colonizar no início do século XVI. Raciocício semelhante aplica-se aos valores religiosos e outros que são fundamentais para a articulação do que entendemos como identidade cultural.
Devido aos motivos acima esboçados, o etnocentrismo é mais que um conceito; ele é, na verdade, um dos fundamentos metodológicos da investigação da realidade cultural. Sabemos que o termo método quer simplesmente dizer caminho ou conjunto de meios que o estudioso adota para chegar ao alvo do seu estudo ou investigação. Portanto, o etnocentrismo é um obstáculo tão grave que na prática anula qualquer possibilidade de conhecermos efetivamente a realidade que estudamos.

Como já observei, somos espontaneamente etnocêntricos. Por que isso acontece? A razão provável reside no fato de que assimilamos ou internalizamos a cultura na qual nascemos e nos formamos, através do que antes designei como processo de socialização, como se ela fosse o centro do mundo, a expressão do que há de certo, aceitável e verdadeiro em termos culturais. A cultura torna-se para nós algo que nos molda, que se converte numa espécie de segunda natureza para nossa vida. É por isso que pensamos com a nossa língua, expressamo-nos com a nossa língua de modo tão espontâneo que ela passa a funcionar na gente como se fosse algo de natureza inconsciente. É por isso que não conseguimos compreender verdadeiramente outra cultura, sobretudo quando é profundamente diferente da nossa, se não pusermos nossa cultura entre parênteses. É também por isso que se pode com certeza afirmar que essa disposição espontaneamente etnocêntrica é um dado universal, isto é, manifesta-se em todo e qualquer grupo humano, em toda e qualquer cultura.

Acredito que essa operação mental necessária à superação do etnocentrismo não é totalmente possível, mas é possível o suficiente para que a gente se coloque na perspectiva do outro, na cultura do outro. Este é o único meio possível de compreendermos a realidade de uma outra cultura. É também por isso, e por ter consciência do quanto sua percepção da realidade é etnocêntrica, que o antropólogo pratica pesquisa de campo, vai viver no meio de uma tribo durante tempo suficiente para ser aceito e assimilar os valores e percepções daquela cultura até sentir-se em condições de traduzi-la de algum modo para os códigos da sua cultura de origem.

Gilberto Freyre designou o processo mental e metodológico acima descrito com o termo empatia. Mas do que um esforço espontâneo ou deliberado de identificação com o outro, o estranho, o que não é parte da nossa cultura e dos nossos valores fundamentais, a empatia significa tornar-se o outro. Gilberto Freyre procurou exemplificar esse fenômeno indicando seu próprio exemplo, a maneira como procurou compreender sociológica e antropologicamente o processo de formação da cultural brasileira baseado nas três matrizes que adiante estudaremos: a indígena, a lusa e a africana. Ele observa então que para escrever Casa-Grande & Senzala tornou-se empaticamente o índio, o colonizador luso, o escravo africano, o homem patriarcal, a mulher, a escrava, o menino da casa-grande e toda a galeria impressionante de tipos sociais que desfilam nas páginas da sua obra-prima.

É no sentido acima que é justo dizermos que, como método de investigação, o relativismo cultural é uma necessidade. É preciso, noutras palavras, partirmos do pressuposto da infinita variedade das culturas e da singularidade de cada uma delas. O problema com o conceito de relativismo, sobretudo no seu uso corrente, é que muita gente salta deste fato metodologicamente adotado pelas ciências sociais para afirmar que cada cultura é única e portanto intraduzível numa outra. Afirmam ainda que não podemos julgar nenhuma cultura, pois cada uma, sendo única, é intraduzível fora de si própria.

Se levamos o relativismo a esse extremo – algo traduzível no lugar comum: cada cabeça, cada sentença, pensemos ainda no célebre postulado do filósofo grego Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas” – então ficamos de mãos atadas para julgar qualquer valor, costume ou prática de outra cultura. Propondo um exemplo concreto: dentro dessa moldura não temos como julgar horrores como o nazismo ou culturas onde a mulher é sujeita a formas brutais de opressão. Neste último caso, bastaria lembrarmos o caso recente, de repercussão mundial, da iraniana Sakineh, acusada de adultério e portanto condenada, segundo as leis e práticas culturais do seu país, à morte por apedrejamento público.

Mas eis que aqui entra em cena o outro conceito chave, o conceito de universalismo cultural. Ele constitui o oposto ou avesso do relativismo. A primeira vista, parece insensato falar de universalismo quando observamos a extraordinária diversidade e até antagonismo das culturas humanas. Além disso, estamos vivendo numa atmosfera cultural baseada na defesa intransigente do relativismo e da infinita variedade de particularismos culturais. Cada cultura, sentindo-se ameaçada pela presença dominadora dos processos econômicos e culturais da globalização, reivindica sua singularidade, sua autonomia ilusoriamente separada da rede de intercâmbios de todo tipo que atravessa nossa realidade cotidiana. Os movimentos das minorias (aqui incluído o da mulher, que estatisticamente não é minoria), também clamam pela singularidade da sua cultura ou subcultura.

Diante do quadro acima, que poderia descrever com maior amplitude de exemplos, qualquer defesa de uma perspectiva universalista é não raro desqualificada como dominação mascarada do Ocidente ou das forças culturais dominantes. Isso sem dúvida ocorre em muitos casos. Mas importa lembrar que, privados de critérios universalistas, ficamos de mãos atadas para tomar posição, para julgar situações de opressão ou horror concretos, como é o caso da iraniana Sakineh, acima mencionado. Que posição tomar diante de ditaduras brutais que desprezam os direitos humanos mais elementares? Denunciar essas violações é simplesmente fazer o jogo do imperialismo ocidental, que inventou o código dos direitos humanos?

Outra questão. Ou melhor, falo agora de uma evidência. Todos nós, seres humanos, compartilhamos certas características fundamentais, não obstante a diversidade de costumes e valores culturais que nos separam. Nosso aparelho biológico, nossas emoções fundamentais, nossas necessidades primárias apontam para um sentido de universalidade que me parecem transcender as inegáveis e desconcertantes diferenças constatáveis na face dos hábitos, práticas e valores culturais. É isso, de resto, o que nos autoriza a falar de uma espécie humana comum, apesar da sua pluralidade espantosa.

O crítico relativista pode objetar às ponderações universalistas acima afirmando que o conceito universalista não passa de uma abstração, no caso generosa, desmentida pela observação mais elementar da clamorosa variedade das culturas humanas. Essa variedade é um fato, como já assinalei. Quanto ao caráter abstrato do conceito de universal, ela é também constatável nos conceitos que a ele se opõem, como os de identidade, singularidade cultural etc. Aliás, qualquer operação conceitual supõe um processo de abstração constitutivo da própria atividade cognitiva. Além disso, conceitos dessa natureza implicam construções mentais e imaginárias características da representação mítica da realidade. Quero dizer, não só o conceito de universal encerra componentes míticos, mas também os de cultura e seus qualificativos. Nada de mais mítico, por exemplo, do que a noção corrente de cultura brasileira, assim como a de identidade cultural.

Por isso concluo que, mito por mito, antes o universal que fornece parâmetros éticos passíveis de transcenderem os limites da singularidade cultural por definição fechados sobre si próprios. Se queremos e precisamos estabelecer comparações éticas, comparações entre valores culturais, não há como assim proceder sem explícita ou implicitamente adotar valores transcendentes aos fatores comparativos em questão. Mesmo o crítico ou estudioso relativista incorre nesse tipo de precedente, quer o admita limpidamente ou não. Todos os nossos grandes nacionalistas culturais, portanto relativistas em maior ou menor grau, adotaram procedimento semelhante e traçaram nas suas obras relações de comparação entre culturas. É fácil verificar esse procedimento comparativo nas obras de Gilberto Freyre, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro...

Essas ponderações finais constituem antes pontos necessários de reflexão e debate do que verdades objetivamente sustentáveis. Como antes observei, estas questões da cultura são objeto de debates acalorados e polêmicas aparentemente insolúveis. Sugiro para quem queira apreciar mais amplamente estas questões dois livros muito importantes de Sérgio Paulo Rouanet. Sua abordagem é apaixonadamente universalista e portanto seu tom é às vezes muito polêmico. Mas a leitura dos dois livros que abaixo indico é muito proveitosa, seja você um adepto da perspectiva universalista, seja relativista.
Sérgio Paulo Rouanet – As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Idem – Mal-estar na Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Ver também:
http://fmlima.blogspot.com/2010/09/robinson-crusoe.html
http://fmlima.blogspot.com/2010/11/o-preconceito-do-preconceito.html
http://fmlima.blogspot.com/2010/09/robinson-crusoe.html
Recife, 1 de março de 2011.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Rouanet e Machado de Assis



Releio Riso e Melancolia, de Sérgio Paulo Rouanet, com o propósito de esboçar algumas notas ainda relativas a Machado de Assis. Antes de tudo, leio sempre com prazer e esclarecimento tudo que Rouanet escreve. Há muito, desde provavelmente minha leitura de As Razões do Iluminismo, passei a distingui-lo como um dos mais notáveis ensaístas de língua portuguesa. Ele assimila e prolonga de um modo feliz e bem incomum no nosso cenário intelectual o melhor da tradição iluminista e mais amplamente racionalista. Numa época desgraçadamente caracterizada pelo ataque sistemático a essa tradição, tem ele demonstrado uma atitude de admirável coerência e coragem na defesa intransigente de valores racionais e universalistas. Se dele discordo, é exatamente por pretender aplicar à realidade brasileira um projeto iluminista que me parece simplesmente inviável.

Às vezes, lendo muito do que reuniu em finos e eruditos ensaios, tenho a impressão de que escreve para um país e um público irreais. Penso ser isso sintoma de desenraizamento mental. Antes diriam, notadamente os nacionalistas culturais mais empenhados, que sua obra ilustraria um caso típico de alienação intelectual; sintoma, noutras palavras, de colonialismo mental. Poderia ainda apropriadamente lembrar uma expressão cunhada por Mário de Andrade com franca intenção pejorativa: doença de Nabuco. Joaquim Nabuco foi um intelectual tão enraizadamente europeu quanto Rouanet. Aliás, além da formação nitidamente européia, ambos foram diplomatas e consequentemente viveram muitos anos ausentes do Brasil. É claro que todo intelectual brasileiro que se preze, mesmo alguns incuravelmente provincianos na sua expressão de nacionalismo militante, é formado dentro de matrizes européias. Em tempos mais recentes nossa matriz formadora deslocou-se para os Estados Unidos. Mas tal deslocamento, no sentido em que o compreendo, não passa de um prolongamento da mais alta tradição intelectual européia.

Parece-me um tanto intrigante o desapreço com que nossos círculos acadêmicos tratam a obra de Rouanet. Cheguei momentaneamente a supor que a razão disso consistisse na independência da sua identidade de intelectual de esquerda. Embora se declare um iluminista bem próximo da esquerda de corte marxista, esteve sempre muito próximo do liberalismo postulado por Merquior, com justiça um dos seus modelos intelectuais. Como Merquior foi um intelectual muito hostilizado pela esquerda acadêmica, sobretudo a partir do momento em que publicamente assumiu posições nitidamente liberais, além de comprometer-se com o governo de Fernando Collor, presumi que a rejeição poderia chamuscar igualmente Rouanet.

Mais tarde concluí, em termos puramente hipotéticos, que talvez seu desprestígio junto aos intelectuais acadêmicos derivasse da circunstância de haver traçado um percurso largamente dissociado dos círculos universitários. Embora ensine ou tenha ensinado na Universidade de Brasília, ignoro dentro de que vínculos institucionais, sua obra é fundamentalmente a obra de um ensaísta ambíguo em termos institucionais. Digo ambíguo por considerar sua condição de membro da Academia Brasileira de Letras, o jornalismo cultural que regularmente pratica, além de suas incursões na esfera universitária. Não obstante todas essas evidências, seu estilo ensaístico e a independência de suas interpelações críticas não me parecem facilmente acomodáveis em qualquer desses nichos institucionais.

Uma evidência louvável de sua independência crítica encontra-se assaz documentada nos seus livros mais fortes e polemicamente empenhados. Refiro-me a As Razões do Iluminismo e Mal-estar na Modernidade. Argumentando em defesa de um universalismo de raiz iluminista, investe com singular brilho polêmico contra todas as tendências irracionalistas do nosso tempo, especialmente aquelas distinguidas por alta recepção nos círculos de esquerda, acadêmicos e extra-acadêmicos. Os ensaios reunidos nestas duas obras são de fato admiráveis. Embora cético quanto à propriedade do aparato conceitual que emprega para analisar nossas pequenas e grandes misérias, como é o caso dos ensaios que abrem Mal-estar na Modernidade (Iluminismo ou barbárie e A coruja e o sambódromo), reconheço serem de grande penetração e esclarecimento para qualquer leitor interessado no debate relativo a polaridades como racionalismo versus irracionalismo, civilização versus barbárie, universalismo versus nacionalismo.

O fato de uma obra intelectualmente tão empenhada e consistente na força de sua argumentação não provocar qualquer repercussão crítica significativa constitui evidência inegável do esvaziamento do debate cultural e ideológico no Brasil. O que sobrevive como arremedo mesquinho de um efetivo clima de debate intelectual é o que o leitor ávido de pasquinadas encontra em colunistas do tipo de Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo, Arnaldo Jabor, João Pereira Coutinho e, alguns degraus acima, Paulo Arantes, Jurandir Freire Costa e Olavo Carvalho. Este, assim como Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo, é em certos termos um direitista intratável, mas não lhe posso negar méritos intelectuais que com certeza nego a Mainardi e Azevedo. Não obstante as diferenças nítidas observáveis nesse insólito grupo, prezo em todos a combatividade opinativa que em algum grau imprime um arremedo de debate intelectual à estropiada cena cultural brasileira.

Mas é tempo de entrar na matéria que desejo anotar baseado na minha releitura de Riso e Melancolia. Antes de tudo, é um belo ensaio que se desdobra num campo movediço: o da literatura comparada atinente às relações de influência. Rouanet explora uma pista, ou já evidência, fornecida por Machado de Assis, linha terminal num trajeto que parte de Laurence Sterne passando por Diderot, Xavier de Maistre e Almeida Garrett. Ciente da falácia contida em elos superficiais observáveis no paralelo entre dois ou mais autores, em coincidências temáticas e leituras cujo grau de aderência à fonte citada carece de apreciação metódica, o crítico justifica seu argumento apenas quando alcança apreender uma forma passível de unificar os autores compreendidos na sua investigação.

É o caso da forma shandiana. Trata-se precisamente de uma forma literária cuja matriz é o romance Tristram Shandy, de Laurence Sterne. Não foi este, todavia, quem a definiu, mas um dos seus seguidores confessos: Machado de Assis. A evidência está inscrita no prólogo acrescido à terceira edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas e no intróito da narrativa sob o título Ao Leitor. É aí que Machado de Assis expressamente reconhece a filiação do seu romance ao modelo procedente de Sterne e prolongado em Xavier de Maistre e Almeida Garrett. Ao mesmo tempo, alega com razão acrescentar à forma que adota um ingrediente de pessimismo fundido em ironia e humor, em troça e melancolia condensadas neste passo à exaustão repetido e glosado pelos críticos: “Escrevi-a com a tinta da galhofa e a pena da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio”.

O passo seguinte dado por Rouanet consiste na especificação das “características estruturais da forma shandiana: hipertropia da subjetividade, digressividade e fragmentação, subjetivação do tempo e do espaço e interpenetração do riso e da melancolia” (p. 33). A partir dessas discriminações preliminares o autor dedica capítulos individuais a cada uma das características acima referidas. A obra culmina na composição do capítulo A taça e o vinho, onde Rouanet examina a contribuição original de Machado acrescentada à forma shandiana procedendo entretanto a uma correção. Embora Machado distinga sua obra da dos seus predecessores opondo ao tom risonho destes suas “rabugens de pessimismo”, Rouanet argumenta que o binômio riso e melancolia encontra-se dialeticamente entrançado em todos os autores shandianos.

Já que esta anotação não pretende constituir um resumo do ensaio de Rouanet, importaria concluir ressaltando que, ao adotar a forma shandiana, Machado torna-se exemplo singular da narrativa ficcional no momento em que a literatura européia e latino-americana baseavam-se numa noção de estreita aderência à realidade social. Em plena vigência das estéticas objetivas, realismo e naturalismo, Machado emprega deliberadamente uma forma que a todo momento constrange o leitor à quebra do vínculo ilusório que o prende ao texto como se este fosse investido de existência ontologicamente autônoma. Era esse um dos fundamentos do realismo e do naturalismo: o do tratamento objetivo da realidade incorporada à esfera ficcional. Inspirado na forma shandiana, Machado força o leitor constantemente a perceber que o texto literário é um artefato ilusório, uma convenção normativa que desvenda o real sendo ela própria irreal.

O narrador caprichoso, volúvel e opinativo minuciosamente escrutinado por Roberto Schwarz, Rouanet e críticos menores, funciona também no corpo da narrativa machadiana como esse freio de mão que repetidamente arranca o leitor do seu assento ilusoriamente acomodado à atmosfera de uma realidade de segundo grau, supostamente uma representação especular da realidade propriamente dita, para lançá-lo numa outra ordem de representação: a da ficção fruída como instância conscientemente ficcional. É como se Machado a todo instante nos advertisse para o fato de que o que lemos, a esfera imaginativa em que imergimos, é apenas ficção, apenas recriação intencionalmente artificial da realidade.

Vale a pena, neste passo, voltar a um excelente ensaio que Carlos Fuentes dedica a Machado de Assis. Fuentes ressalta que Machado reaviva no Brasil a tradição narrativa cuja matriz, bem anterior a Laurence Sterne, é Cervantes. Até porque Sterne alude expressamente a este como modelo do seu Tristram Shandy. Seria Machado o caso único na América Latina de um escritor que adere à forma criada por Cervantes, já que os demais se integram às vertentes realista e naturalista. Como bem assinala John Gledson no título original de um dos seus primeiros livros dedicados à obra de Machado, The Deceptive Realism of Machado de Assis, a forma de romance realista que este pratica é bem distinta do modelo canônico estabelecido por Stendhal e Flaubert. Daí o qualificativo “deceptive” inscrito no título do livro assinado pelo crítico inglês.

Segundo Carlos Fuentes, o espírito de reação ao colonizador espanhol, sob os influxos dos movimentos de independência, induziu os ficcionistas hispano-americanos ao erro de romper com a tradição pretendendo adotar um modelo de modernidade diretamente haurido nas fontes anglo-saxônicas e francesas. Por razões distintas, a própria narrativa européia abafa a tradição cervantina para seguir o veio hegemônico que se instaura com o romance de Balzac e dos realistas acima mencionados, também por Tolstói e Émile Zola. Quem traça um excelente painel crítico-histórico dessas duas vertentes, a cervantina e a realista-naturalista triunfante na Europa e em todas as literaturas dela dependentes, é Milan Kundera em The Art of the Novel, obra apropriadamente citada por Carlos Fuentes no seu ensaio. É compreensível que Kundera se debruce sobre essa questão estética concernente à tradição narrativa procedente de Cervantes. Afinal, seu objetivo é retomar a tradição cervantina no cenário da ficção européia do século 20, assim como Machado procedeu no Brasil do tempo de José de Alencar e Aluísio de Azevedo.

22 a 25 de novembro 2008

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Machado e alguns críticos




Leio no avião, voando de Recife a Salvador, o livrinho sobre Machado de Assis que Alfredo Bosi escreveu para a coleção Folha Explica. Com elegância e estilo, traços que distinguem os grandes intelectuais uspianos, ele introduz duas fortes objeções: uma contra o método crítico de Antonio Candido sintetizado na sabida fórmula: conversão do fator externo (ou sociológico) em interno (ou estético); a outra, contra o famoso esquema do descompasso entre base escravista e ideologia liberal proposto por Roberto Schwarz para analisar o conjunto dos romances de Machado.

Retomo a anotação precedente iniciada em pleno voo. Bosi estica a primeira objeção ao extremo de caracterizar o método crítico de Antonio Candido como determinista. Não bastasse tanto, associa os fundamentos do sociologismo crítico deste a Louis de Bonald, o notório pensador reacionário francês. Bosi não se detém uma linha sequer na demonstração do vínculo ideológico entre os dois autores, deixando assim no ar a suspeita de um tom de maledicência crítica. Diz isso e vai adiante como que insinuando que o estilo e a elegância uspiana consistem na leviandade da crítica que morde soprando, ou atinge o alvo evitando nomeá-lo.

É curioso observar como os parâmetros da crítica literária de fundamentação sociológica propostos por Antonio Candido tem suscitado mal-entendidos. Enquanto uns erradamente, no meu entender, confundem sua concepção da crítica ao identificarem-na com uma forma espúria de formalismo sociológico, outros, é o caso de Bosi, criticam-no por subordinar os valores estéticos da obra aos sociológicos. Que me lembre, todavia, nenhum dos que se colocam na última categoria chega ao extremo de qualificar a obra crítica de Candido como determinista.

Pessoalmente sustento minha convicção de que Antonio Candido é a mais alta realização da crítica literária e cultural formada nos quadros da nossa ainda rala tradição acadêmica. Além dos seus dotes extraordinários de crítico, já evidentes no perfil precocemente sólido espelhado na crítica de rodapé que escreveu ainda quando estudante, seus ensaios de fundamentação metodológica, reunidos no volume Literatura e Sociedade, encerram a mais lúcida, penetrante e flexível reflexão teórica de que dispomos sobre o assunto. Nos ensaios aos quais aludo, notadamente os dois primeiros – Crítica e sociologia e A literatura na vida social – não encontro formulações que justifiquem as duas deduções acima assinaladas, isto é, o formalismo sociológico e, menos ainda, a crítica de base sociológica de cunho determinista.

Passando a Roberto Schwarz, o mais distinto discípulo de Antonio Candido, aqui Alfredo Bosi tem o zelo de proceder de modo mais criterioso. Depois de ressaltar o argumento do descompasso entre base econômica escravista e adoção do ideário liberal europeu no Brasil imperial, suporte teórico da obra de Schwarz sobre Machado de Assis, observa a ausência de tratamento dialético da antítese proposta. No entender de Bosi, Schwarz é incapaz de captar as expressões diferenciadas do liberalismo brasileiro, o que põe em xeque o argumento da desfaçatez e volubilidade das elites, dado estrutural da análise desenvolvida por Schwarz. Ademais, refutando o esquema deste, baseado no pressuposto da homologia entre forma estética e estrutura social como uma peculiaridade da formação sócio-econômica brasileira, ressalta que a conjunção liberal-escravista é identificável em “todas as formações da monocultura exportadora pós-coloniais, como o Brasil do açúcar e do café, as Antilhas do açúcar, particularmente Cuba e Jamaica, e todo o Velho Sul algodoeiro dos Estados Unidos” (p. 21). Acrescenta que em todos os casos mencionados a economia e a ideologia de base liberal conciliaram-se com o tráfico e o trabalho escravista. Restaria então indagar sobre a pertinência e eficácia teórica do esquema formulado por Roberto Schwarz, por muitos distinguido como a melhor contribuição ao estudo da obra de Machado de Assis.
O assunto me lembra, a propósito, um ensaio de Sérgio Paulo Rouanet incorporado ao volume O Mal-estar na Modernidade. Trata-se de “Contribuição, salvo engano, para uma dialética da volubilidade”, apreciação geral de Um Mestre na Periferia do Capitalismo, segundo livro de Schwarz dedicado ao romance de Machado. Que eu saiba, o extraordinário ensaio de Rouanet não teve maior repercussão entre os especialistas, incluído o próprio Schwarz. Aparentemente, sobretudo nas páginas de abertura e fecho, é uma peça de alto louvor crítico ao livro do grande machadiano da USP. Todavia, à medida que avança na leitura, o leitor perspicaz se vai dando conta de que o desdobramento da argumentação obedece a um princípio irônico similar a tantas das armadilhas irônicas que o sutil Machado interpõe na linha entre a aparência e o fundo, entre o ato e a intenção, ou ainda entre o fato apreendido em sua mera exterioridade e sua significação profunda. Pois o fato é que Rouanet – na abertura e na conclusão, como já frisei – não poupa elogios à obra e a à fina inteligência crítica de Schwarz. Contudo, à proporção que subordina o método elogiado ao crivo da recepção crítica, vai o leitor gradualmente se apercebendo de que, no conjunto, o ensaio é uma admirável operação de desmonte de toda a obra a princípio louvada. Em suma, Rouanet aprofunda com argumentação mais sólida e ampla as objeções condensadas no livrinho de Bosi que é objeto destas anotações. Sublinho, porém, uma diferença crucial: o ensaio dele é em tudo superior ao de Bosi, diria que superior a toda a crítica que conheço contra ou a favor da obra de Roberto Schwarz relativa a Machado de Assis.

Salvador, 13 de agosto de 2004.