quinta-feira, 9 de setembro de 2010
Rouanet e Machado de Assis
Releio Riso e Melancolia, de Sérgio Paulo Rouanet, com o propósito de esboçar algumas notas ainda relativas a Machado de Assis. Antes de tudo, leio sempre com prazer e esclarecimento tudo que Rouanet escreve. Há muito, desde provavelmente minha leitura de As Razões do Iluminismo, passei a distingui-lo como um dos mais notáveis ensaístas de língua portuguesa. Ele assimila e prolonga de um modo feliz e bem incomum no nosso cenário intelectual o melhor da tradição iluminista e mais amplamente racionalista. Numa época desgraçadamente caracterizada pelo ataque sistemático a essa tradição, tem ele demonstrado uma atitude de admirável coerência e coragem na defesa intransigente de valores racionais e universalistas. Se dele discordo, é exatamente por pretender aplicar à realidade brasileira um projeto iluminista que me parece simplesmente inviável.
Às vezes, lendo muito do que reuniu em finos e eruditos ensaios, tenho a impressão de que escreve para um país e um público irreais. Penso ser isso sintoma de desenraizamento mental. Antes diriam, notadamente os nacionalistas culturais mais empenhados, que sua obra ilustraria um caso típico de alienação intelectual; sintoma, noutras palavras, de colonialismo mental. Poderia ainda apropriadamente lembrar uma expressão cunhada por Mário de Andrade com franca intenção pejorativa: doença de Nabuco. Joaquim Nabuco foi um intelectual tão enraizadamente europeu quanto Rouanet. Aliás, além da formação nitidamente européia, ambos foram diplomatas e consequentemente viveram muitos anos ausentes do Brasil. É claro que todo intelectual brasileiro que se preze, mesmo alguns incuravelmente provincianos na sua expressão de nacionalismo militante, é formado dentro de matrizes européias. Em tempos mais recentes nossa matriz formadora deslocou-se para os Estados Unidos. Mas tal deslocamento, no sentido em que o compreendo, não passa de um prolongamento da mais alta tradição intelectual européia.
Parece-me um tanto intrigante o desapreço com que nossos círculos acadêmicos tratam a obra de Rouanet. Cheguei momentaneamente a supor que a razão disso consistisse na independência da sua identidade de intelectual de esquerda. Embora se declare um iluminista bem próximo da esquerda de corte marxista, esteve sempre muito próximo do liberalismo postulado por Merquior, com justiça um dos seus modelos intelectuais. Como Merquior foi um intelectual muito hostilizado pela esquerda acadêmica, sobretudo a partir do momento em que publicamente assumiu posições nitidamente liberais, além de comprometer-se com o governo de Fernando Collor, presumi que a rejeição poderia chamuscar igualmente Rouanet.
Mais tarde concluí, em termos puramente hipotéticos, que talvez seu desprestígio junto aos intelectuais acadêmicos derivasse da circunstância de haver traçado um percurso largamente dissociado dos círculos universitários. Embora ensine ou tenha ensinado na Universidade de Brasília, ignoro dentro de que vínculos institucionais, sua obra é fundamentalmente a obra de um ensaísta ambíguo em termos institucionais. Digo ambíguo por considerar sua condição de membro da Academia Brasileira de Letras, o jornalismo cultural que regularmente pratica, além de suas incursões na esfera universitária. Não obstante todas essas evidências, seu estilo ensaístico e a independência de suas interpelações críticas não me parecem facilmente acomodáveis em qualquer desses nichos institucionais.
Uma evidência louvável de sua independência crítica encontra-se assaz documentada nos seus livros mais fortes e polemicamente empenhados. Refiro-me a As Razões do Iluminismo e Mal-estar na Modernidade. Argumentando em defesa de um universalismo de raiz iluminista, investe com singular brilho polêmico contra todas as tendências irracionalistas do nosso tempo, especialmente aquelas distinguidas por alta recepção nos círculos de esquerda, acadêmicos e extra-acadêmicos. Os ensaios reunidos nestas duas obras são de fato admiráveis. Embora cético quanto à propriedade do aparato conceitual que emprega para analisar nossas pequenas e grandes misérias, como é o caso dos ensaios que abrem Mal-estar na Modernidade (Iluminismo ou barbárie e A coruja e o sambódromo), reconheço serem de grande penetração e esclarecimento para qualquer leitor interessado no debate relativo a polaridades como racionalismo versus irracionalismo, civilização versus barbárie, universalismo versus nacionalismo.
O fato de uma obra intelectualmente tão empenhada e consistente na força de sua argumentação não provocar qualquer repercussão crítica significativa constitui evidência inegável do esvaziamento do debate cultural e ideológico no Brasil. O que sobrevive como arremedo mesquinho de um efetivo clima de debate intelectual é o que o leitor ávido de pasquinadas encontra em colunistas do tipo de Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo, Arnaldo Jabor, João Pereira Coutinho e, alguns degraus acima, Paulo Arantes, Jurandir Freire Costa e Olavo Carvalho. Este, assim como Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo, é em certos termos um direitista intratável, mas não lhe posso negar méritos intelectuais que com certeza nego a Mainardi e Azevedo. Não obstante as diferenças nítidas observáveis nesse insólito grupo, prezo em todos a combatividade opinativa que em algum grau imprime um arremedo de debate intelectual à estropiada cena cultural brasileira.
Mas é tempo de entrar na matéria que desejo anotar baseado na minha releitura de Riso e Melancolia. Antes de tudo, é um belo ensaio que se desdobra num campo movediço: o da literatura comparada atinente às relações de influência. Rouanet explora uma pista, ou já evidência, fornecida por Machado de Assis, linha terminal num trajeto que parte de Laurence Sterne passando por Diderot, Xavier de Maistre e Almeida Garrett. Ciente da falácia contida em elos superficiais observáveis no paralelo entre dois ou mais autores, em coincidências temáticas e leituras cujo grau de aderência à fonte citada carece de apreciação metódica, o crítico justifica seu argumento apenas quando alcança apreender uma forma passível de unificar os autores compreendidos na sua investigação.
É o caso da forma shandiana. Trata-se precisamente de uma forma literária cuja matriz é o romance Tristram Shandy, de Laurence Sterne. Não foi este, todavia, quem a definiu, mas um dos seus seguidores confessos: Machado de Assis. A evidência está inscrita no prólogo acrescido à terceira edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas e no intróito da narrativa sob o título Ao Leitor. É aí que Machado de Assis expressamente reconhece a filiação do seu romance ao modelo procedente de Sterne e prolongado em Xavier de Maistre e Almeida Garrett. Ao mesmo tempo, alega com razão acrescentar à forma que adota um ingrediente de pessimismo fundido em ironia e humor, em troça e melancolia condensadas neste passo à exaustão repetido e glosado pelos críticos: “Escrevi-a com a tinta da galhofa e a pena da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio”.
O passo seguinte dado por Rouanet consiste na especificação das “características estruturais da forma shandiana: hipertropia da subjetividade, digressividade e fragmentação, subjetivação do tempo e do espaço e interpenetração do riso e da melancolia” (p. 33). A partir dessas discriminações preliminares o autor dedica capítulos individuais a cada uma das características acima referidas. A obra culmina na composição do capítulo A taça e o vinho, onde Rouanet examina a contribuição original de Machado acrescentada à forma shandiana procedendo entretanto a uma correção. Embora Machado distinga sua obra da dos seus predecessores opondo ao tom risonho destes suas “rabugens de pessimismo”, Rouanet argumenta que o binômio riso e melancolia encontra-se dialeticamente entrançado em todos os autores shandianos.
Já que esta anotação não pretende constituir um resumo do ensaio de Rouanet, importaria concluir ressaltando que, ao adotar a forma shandiana, Machado torna-se exemplo singular da narrativa ficcional no momento em que a literatura européia e latino-americana baseavam-se numa noção de estreita aderência à realidade social. Em plena vigência das estéticas objetivas, realismo e naturalismo, Machado emprega deliberadamente uma forma que a todo momento constrange o leitor à quebra do vínculo ilusório que o prende ao texto como se este fosse investido de existência ontologicamente autônoma. Era esse um dos fundamentos do realismo e do naturalismo: o do tratamento objetivo da realidade incorporada à esfera ficcional. Inspirado na forma shandiana, Machado força o leitor constantemente a perceber que o texto literário é um artefato ilusório, uma convenção normativa que desvenda o real sendo ela própria irreal.
O narrador caprichoso, volúvel e opinativo minuciosamente escrutinado por Roberto Schwarz, Rouanet e críticos menores, funciona também no corpo da narrativa machadiana como esse freio de mão que repetidamente arranca o leitor do seu assento ilusoriamente acomodado à atmosfera de uma realidade de segundo grau, supostamente uma representação especular da realidade propriamente dita, para lançá-lo numa outra ordem de representação: a da ficção fruída como instância conscientemente ficcional. É como se Machado a todo instante nos advertisse para o fato de que o que lemos, a esfera imaginativa em que imergimos, é apenas ficção, apenas recriação intencionalmente artificial da realidade.
Vale a pena, neste passo, voltar a um excelente ensaio que Carlos Fuentes dedica a Machado de Assis. Fuentes ressalta que Machado reaviva no Brasil a tradição narrativa cuja matriz, bem anterior a Laurence Sterne, é Cervantes. Até porque Sterne alude expressamente a este como modelo do seu Tristram Shandy. Seria Machado o caso único na América Latina de um escritor que adere à forma criada por Cervantes, já que os demais se integram às vertentes realista e naturalista. Como bem assinala John Gledson no título original de um dos seus primeiros livros dedicados à obra de Machado, The Deceptive Realism of Machado de Assis, a forma de romance realista que este pratica é bem distinta do modelo canônico estabelecido por Stendhal e Flaubert. Daí o qualificativo “deceptive” inscrito no título do livro assinado pelo crítico inglês.
Segundo Carlos Fuentes, o espírito de reação ao colonizador espanhol, sob os influxos dos movimentos de independência, induziu os ficcionistas hispano-americanos ao erro de romper com a tradição pretendendo adotar um modelo de modernidade diretamente haurido nas fontes anglo-saxônicas e francesas. Por razões distintas, a própria narrativa européia abafa a tradição cervantina para seguir o veio hegemônico que se instaura com o romance de Balzac e dos realistas acima mencionados, também por Tolstói e Émile Zola. Quem traça um excelente painel crítico-histórico dessas duas vertentes, a cervantina e a realista-naturalista triunfante na Europa e em todas as literaturas dela dependentes, é Milan Kundera em The Art of the Novel, obra apropriadamente citada por Carlos Fuentes no seu ensaio. É compreensível que Kundera se debruce sobre essa questão estética concernente à tradição narrativa procedente de Cervantes. Afinal, seu objetivo é retomar a tradição cervantina no cenário da ficção européia do século 20, assim como Machado procedeu no Brasil do tempo de José de Alencar e Aluísio de Azevedo.
22 a 25 de novembro 2008
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É interessante notar como Rouanet, a bem da verdade, não é uma figura nada marginal na cultura brasileira, pois publica na principal editora do país, é membro da ABL e era, até pouco tempo, professor de sociologia da UnB. O que torna a inexistência de debate em torno a sua obra ainda mais preocupante.
ResponderExcluirCésar:
ResponderExcluirVocê tem razão. Note que não forneço nenhuma explicação precisa para nossa carência de debate público das ideais. Com certeza, reitero dando-lhe razão, Rouanet não é uma figura marginal na cultura brasileira. Talvez a explicação mais profunda, que de resto não ficaria restrita à cultura brasileira, resida na extinção do intelectual público. Nesse sentido, conviria lembrar o livro de Russell Jacobi (the last intellectuals?. Penso que Rouanet é ainda um eco desse intelectual público que está em vias de extinção. Merquior e Carpeaux foram expressões distintas desse tipo de intelectual. Mais perto do presente, lembraria um Jurandir Freire Costa. Mas esse tipo de intelectual tem infelizmente seus dias contados.
Fernando
Bom dia, Fernando
ResponderExcluirRecebi hoje um e.mail com um texto seu: Variações sobre a solidáo. Tive entao o privilégio de saber de sua existencia, procurei no google e achei seu blog.
Escrevo rapidamente - visto estar de saída para mais um dia de trabalho - apenas para registrar a satisfaçao em ler o texto sobre a solidao. Voltarei a este blog para leitura e comentários pertinentes.
Um ótimo dia e um grande abraço!
Lidia Narcisa
marques.lidia@uol.com.br
Lídia:
ResponderExcluirMuito grato pela leitura e comentário. Tive a curiosidade de descobrir seu blog, que é muito bom e portanto merece ser melhor cuidado por você e mais conhecido. Grande abraço de volta,
Fernando.