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domingo, 11 de novembro de 2012

Nós e os índios


César Melo (professor de literatura luso-brasileira, Universidade de Chicago)

1.
Em nenhum lugar do Brasil, a invisibilidade do índio talvez seja tão visível quanto na Avenida Paulista, em São Paulo. É ali, em frente ao Parque Trianon, dando de cara com o MASP, no meio de pessoas apressadas falando ao celular, buzinas de carros, barulho de motor e poluições de vários tipos, que fica localizada a estátua de Bartolomeu Bueno Dias, também conhecido como Diabo Velho (Anhanguera). Bartolomeu foi um bandeirante, conhecido matador de índio e saqueador de tribo. No entanto, se formos ao Houaiss e procurarmos o verbete “bandeirante”, nenhum desses significados estará lá – o que diz muito também de nosso silêncio e indiferença em relações aos índios. No dicionário, você descobrirá que “bandeirante” é sinônimo de “paulista”, além de significar “aquele que abre caminho; desbravador; precursor; pioneiro”. Os bandeirantes seriam uma espécie de “vanguarda” da colonização, o que casa bem com um lugar como São Paulo, cujos políticos ainda hoje se utilizam da infeliz metáfora da “locomotiva do Brasil” para definir o estado.
Vanguarda, desbravamento, locomotiva, non ducor duco (que está na bandeira da cidade de São Paulo e quer dizer “não sou conduzido, conduzo”) são signos que fazem parte de um mesmo campo discursivo: o do progresso arrojado. Se houve algum progresso no Brasil, esse foi o progresso da colonização, ou melhor, a progressão bandeirante lenta e contínua para o oeste, escravizando indígenas, apropriando-se dos recursos de sua terra, aniquilando sua cultura. Avançamos na terra e na cultura dos outros. Progresso, progressão, invasão. E continuamos fazendo isso: seja com os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul; seja com os desalojados das construções da Copa do Mundo; seja com os índios da bacia Xingu que serão desterrados pela Usina de Belo Monte. As elites brasileiras continuam progredindo em cima de terras, pessoas e direitos.
Não nos enganemos. Nosso imaginário desenvolvimentista – essa necessidade e desejo de crescer e expandir em moto-contínuo – está calcado no espírito do bandeirantismo, que nada mais é a lógica do colonizador. Bartolomeu Bueno da Silva nos representa mais do que gostaríamos.
2.
Como aprendemos na escola secundária, os romances Iracema (1865) e O Guarani (1857) de José de Alencar são considerados ficções fundacionais da nação. Embora sejam textos fortemente ideológicos – uma vez que deliberadamente escamoteiam a violência genocida do encontro colonial para narrar tal encontro numa moldura conciliatória –, carregam em si um núcleo de verdade: o desejo do letrado brasileiro – o narrador dessa história dos vencedores – de moer qualquer traço de alteridade cultural no moinho da ocidentalização. Nas palavras certeiras de Alfredo Bosi, o indianismo alencarino não passava de um mito sacrificial dos índios, no qual estes só atingiriam a nobreza quando fossem capazes de se auto-imolar. Os índios Peri, de O Guarani, e Iracema, personagem central do romance homônimo, se tornam heróis na medida em que se anulam e se sacrificam em gesto de servidão aos colonizadores portugueses. Peri se converte ao cristianismo para se unir à portuguesa Cecília e, com ela, formar o povo brasileiro. Iracema trai o seu povo tabajara para ficar com o lusitano Martim. Do fruto desse encontro, nasce Moacir, o primeiro brasileiro. Depois de cumprida sua missão no processo civilizatório brasileiro, Iracema morre. O indianismo alencarino foi assim um elogio à submissão do indígena à sabedoria europeia. Bom índio é aquele que se ocidentaliza. Que muda de lado. Que nega seu povo. Que está disposto a aniquilar a sua cultura, e até a vida, para contribuir com a nação.
Um pouco mais de cem anos depois, João Guimarães Rosa, no conto “Meu tio o iauaretê”, se propõe a questionar essa relação colonial, evocando uma outra lógica. Se os mestiços “alencarinos” são cristianizados e ocidentalizados, o que aconteceria se o mestiço escolhesse o outro lado da mistura que o compõe?
“Meu tio o iauaretê” conta a história de Tonho Tigreiro, caçador de onças, contratado por um fazendeiro, Nhô Nhuão Guede, para desonçar um certo território. Em outras palavras, o caçador é chamado para livrar o terreno das onças, permitindo que aquele pedaço de terra possa ganhar uma utilidade econômica. Desonçar a terra faz parte de uma operação bandeirante (sem trocadilhos). No entanto, de tanto viver isolado dos homens, o caçador começa a ter mais simpatia pelas onças do que por gente, e passa a defendê-las. O caçador escolhe claramente um lado: o das onças, da natureza, dos animais, enfim, o lado da terra onde vive. É o mesmo “lado” que os índios defendem no seu esforço de resistência aos (neo)bandeirantes que invadem sua terra. Daí a conclusão da leitura que antropólogo Eduardo Viveiros de Castro faz do conto rosiano:
Não é um texto sobre o devir-animal, é um texto sobre o devir-índio. Ele descreve como é que um mestiço revira índio, e como é que todo mestiço, quando vira índio – isto é, quando se desmestiça– o branco mata. Essa é que é a moral da história. Muito cuidado quando você inverter a marcha inexorável do progresso que vai do índio ao branco passando pelo mestiço. Quando você procura voltar de mestiço para índio como faz o onceiro do conto, você termina morto por uma bala disparada por um revólver de branco.
Tudo que foge da lógica da anexação, da incorporação, da integração, é eliminado. Brasileiro gosta de mistura, desde que ninguém ameace a nossa cosmovisão e epistemologia ocidentais.
3.
Em Tristes trópicos, Claude Levi-Strauss lembra de uma conversa que teve com o embaixador do Brasil na França, Luís de Sousa Dantas, ocorrida em 1934, na qual o diplomata brasileiro havia comunicado a Levi-Strauss que não existiam mais índios no Brasil. Haviam sido todos eles dizimados pelos portugueses, lamentava Sousa Dantas. E assim concluía: o Brasil seria interessante para um sociólogo, mas não para um antropólogo, pois Levi-Strauss não encontraria em nosso país um índio sequer. Nós não sabemos se Sousa Dantas nega a existência dos índios por ignorância, ou simplesmente para ocultar um aspecto do país que o diplomata brasileiro certamente considerava “arcaico”, uma vez que a existência de “primitivos” não bendizia os padrões civilizatórios da nação diante de um estudioso europeu.
Mas quem de nós nunca agiu como Sousa Dantas? Qual foi o brasileiro que, no exterior, nunca se indignou com uma pergunta de um gringo mal-informado que sugeria que nós tivéssemos hábitos próximos ao dos índios? Eis o motivo de nossa indignação: como podem nos confundir com tupiniquins (palavra usada pejorativamente por nós brasileiros para nos definirmos como povo atrasado), se nós somos industrializados, urbanizados, temos carros, trânsito infernal, sofremos com poluição e tomamos Prozac para resolver nossos problemas emocionais? Em outras palavras, como podem nos acusar de “primitivos” se desfrutamos de todas estas maravilhas da civilização moderna?
Se por um lado, hoje, os brasileiros sabemos da existência empírica dos índios, por outro lado, negamos sua existência como nossos contemporâneos, e essa é a raíz da indignação diante de uma possível confusão entre nós, brasileiros, e um povo que, na cabeça de tantos, ainda não evoluiu. Ora, de todos os esforços pedagógicos para descolonizar o imaginário brasileiro, talvez esse seja o mais importante: de mostrar como nós precisamos urgentemente do diálogo com os índios. Devemos abandonar a ótica paternalista (do Estado brasileiro) que infantiliza o índio, enxergando-o como artefato do antiquário nacional, que para alguns deve ser incorporado à nação, enquanto para outros deve ser preservado tal como está. Esse é um falso dilema, pois reifica o índio. Devemos, sim, estabelecer com os índios uma relação de interlocução, com a qual temos muito que aprender.
Nossa civilização criou formas de vida que beiram a inviabilidade. Emporcalhamos nossas cidades; poluímos nosso mar, nossos rios, nosso ar; destruímos nossa natureza; criamos necessidades que nunca serão preenchidas a contento, gerando inúmeras frustrações, tamanha é a roda-viva do consumismo que determina nosso estilo de vida. Segundo Celso Furtado (que hoje, graças a Dilma Rousseff, dá nome a um petroleiro), no seu O mito do desenvolvimento econômico, “[o] custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana.” Quanto mais universalizamos nosso consumismo predador, mais rápido destruímos nosso ambiente e planeta. O que teríamos a aprender, afinal, com os índios?
O que dizer de um povo que vive há milênios em co-adaptação com o ecossistema amazônico, tirando da floresta o sustento da vida, em vez de tirar a floresta de sua vida (uso aqui o jogo de palavras do próprio texto de Viveiros de Castro)? Os índios são radicalmente cosmopolitas. A palavra “cosmopolita” quer dizer “cidadão do mundo”. Cosmos, na filosofia grega significa “universo organizado de maneira regular e integrada”. Se permanecermos fiéis à etimologia da palavra, cosmopolita seria então o cidadão de um universo harmonioso (cosmo é o antônimo de caos). Por anos, filósofos antigos e modernos têm pensado o termo “cosmopolitismo” como uma técnica de convivência entre povos. O cosmopolitismo radical dos índios nada mais é que uma técnica de convivência e co-adaptação com o cosmo – o universo, o ambiente, o planeta. A destruição do planeta hoje parece mais plausível em decorrência da falta do cosmopolitismo radical dos índios do que do cosmopolitismo dos filósofos. O que teríamos a aprender com os índios? Algo muito simples e complexo: aprender a habitar o planeta.
4.
Pensar o índio no Brasil é particularmente difícil, pois as representações que temos do índio o colocam além da alteridade. O “outro” da cultura brasileira – narrada, claro, da posição do letrado urbano euro-brasileiro – é, com o perdão da redundância, outro. Ou melhor, são outros: o sertanejo, o retirante, o negro, o favelado.
Investigando sobre os motivos que levaram a esquerda brasileira a negligenciar o índio, Pádua Fernandes lembra que a esquerda revolucionária dos anos 70 – de onde saiu boa parte do Partido dos Trabalhadores – discutia a relação entre cidade e campo, mas era incapaz de pensar a floresta. Em parte, isso se deve à importação direta das categorias euromarxistas (e, claro, graças ao abismo das Tordesilhas, que separa o Brasil da América Hispânica; a esquerda brasileira nunca deu muita bola para o indo-socialismo do peruano José Carlos Mariátegui). No entanto, mais do que ser um problema de cegueira por parte de segmentos da esquerda, a invisibilidade do índio talvez remeta à maneira como pensamos o “povo” brasileiro, dentro do paradigma nacional-popular.
De acordo com esse paradigma, que estruturou a imaginação brasileira durante o século 20, o povo é o sertanejo de Os sertões, “rocha da nacionalidade”; o negro de Casa-grande & senzala e da vasta bibliografia sociológica e historiográfica que veio a seguir; os retirantes desesperados Manuel e Rosa de Deus e o diabo na terra do sol; o ingênuo Fabiano de Vidas Secas; a comovente Macabéa de A hora da estrela, além de tantos outros personagens e temas das nossas produções culturais. A consciência social do letrado urbano brasileiro foi construída a partir da ideia de que o povo brasileiro – na sua imensa maioria pobre, desassistido, negromestiço – necessita ser integrado à modernidade, à cidadania plena, a um sistema educacional justo e ao conforto material.
A eleição do presidente Lula em 2002 talvez tenha sido o evento mais importante de nossa democracia exatamente porque mexeu profundamente com nossa imaginação nacional-popular: pela primeira vez, o povo assumia o poder. Fabiano, Macabéa, Manuel e Rosa estavam todos representados na figura carismática de Lula. E não se pode negar que o governo Lula muito melhorou a vida do “povo brasileiro”, garantindo acesso a bens e direitos antes impensáveis. O progresso finalmente havia chegado ao andar de baixo, que agora podia comprar televisão, andar de avião e até passear de cruzeiro. Nunca antes na história desse país, o povo esteve mais integrado aos padrões de consumo do mundo civilizado.
O mesmo governo que tanto fez para tanta gente (e atuou como uma força descolonizadora no tocante às ações afirmativas e na introdução de história africana no ensino médio), é aquele que age como um poder colonizador na Amazônia, e aliado objetivo dos fazendeiros do agronegócio no Mato Grosso do Sul. Desse modo, o Estado e seus sócios ocupam a terra com prerrogativa desenvolvimentista, como se fosse um território vazio, pronto para o usufruto dos agentes econômicos. Nada muito diferente dos bandeirantes. O que antes vinha coberto com retórica de missão civilizatória cristã, agora é celebrado como a chegada do progresso. Nos dois tipos de bandeirantismo, a destruição vem justificada por um discurso de salvação. O índio que habita nessas terras é tratado simplesmente como obstáculo que deve ser removido em nome do progresso da nação (progresso no caso representa: carne de gado no Mato Grosso e energia elétrica para indústrias do alumínio na Amazônia).
O índio apresenta um desafio para o pensamento da esquerda no Brasil. Um desafio que ainda não foi pensado como desafio, pois a esquerda ainda enxerga a “questão indígena” como um problema que deve ser resolvido. O desafio, ao contrário do problema, não exige uma resolução, mas uma autorreflexão. Os índios nos fazem repensar nosso modo de vida, e até mesmo o conceito de nação. Como salientei, o índio não se insere na matriz nacional-popular que mobiliza tanto a nossa imaginação. E não se insere nela pois, ao contrário do retirante, do favelado, do pobre, do negro, o índio não está buscando integração à modernidade (a grande promessa do lulismo às massas). Os índios parecem querer reconhecimento do seu modo de vida (como se pode ver nessa entrevista de Davi Kopenawa). E, para viver do jeito que sabem viver, é necessário garantir as condições mínimas de possibilidade para sua vida: terra e rios que não sejam dizimados pela usina de Belo Monte, nem pelo garimpo; segurança e tranquilidade para não serem acossados pelos capangas do agronegócio, como no Mato Grosso do Sul. Essas são as grandes lutas hoje.
A luta pelos direitos indígenas vai muito além de uma quitação da nossa dívida histórica. Mais do que um acerto de contas com nosso passado, a garantia dos direitos constitucionais dos índios é imprescindível para o nosso futuro. Precisamos cada dia mais da sabedoria desses cosmopolitas radicais, se quisermos repensar e refundar os pressupostos de nossa existência planetária.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Claude Lévi-Strauss


Claude Lévi-Strauss é reconhecido como o pai da antropologia moderna até em orelhas de livro. Para os brasileiros importaria pelo menos saber que o Brasil desempenhou um papel fundamental na formação desse homem que revolucionou a antropologia. Aliás, ele afirma categoricamente que a ciência antropológica, assim como as ciências humanas em geral, de ciência tem apenas o nome. Isso já de início sugere que esse homem extremamente reservado, no fim da vida conservador e até nostálgico, além de sombrio na sua apreciação anti-humanista do mundo, não era de meias palavras. Outros dos seus juízos controvertidos referem-se ao racismo, ao multiculturalismo, à arte contemporânea, ao suposto caráter revolucionário do 1968 francês, cujos efeitos alastraram-se por grande parte do mundo, e outras questões polêmicas. Mais abaixo considerarei devidamente sua relação com o Brasil, que neste parágrafo me limito a indicar em termos sumários.
Claude Lévi-Strauss: O poeta no laboratório, objeto desta resenha, é uma biografia ricamente documentada e informativa, além de escrita com clareza e precisão exemplares. Alerto o leitor ocasional das biografias que tenho resenhado neste blog para o fato de que, se me repito nesse tipo de elogio, a culpa, melhor diria mérito, é atribuível aos excelentes biógrafos que tenho resenhado: Ron Rosenbaum, Stephen Greenblatt e agora Patrick Wilcken. Pois um mérito que em todos identifico e tenho ressaltado é a clareza da exposição, mesmo quando o biografado, é o caso de Lévi-Strauss, é autor de obra teoricamente complexa e portanto pouco acessível ao leitor privado de formação especializada.
Mas o próprio Wilcken apropriadamente nos informa, numa das seções do “Epílogo” (ver “Leituras Adicionais”, pp. 367-370), que Lévi-Strauss muito facilitou o acesso do leitor à sua obra através de entrevistas, documentários e transmissões radiofônicas muito esclarecedoras, dada sua facilidade expressiva. Efetivamente, quem acaso tenha lido De perto e de longe, série de conversas gravadas entre Lévi-Strauss e Didier Eribon, pode confirmar esta qualidade também salientada por Wilcken. Este livro, também traduzido no Brasil, desdobra-se tendo como objeto a vida e a obra de Lévi-Strauss. Precisando ainda os créditos e méritos do biógrafo, acrescentaria que é também um estudioso do Brasil, fato que sem dúvida concorreu para acentuar o valor e exatidão das páginas que consagra ao papel crucial que o Brasil desempenhou na biografia e na obra de Lévi-Strauss. A maior evidência consiste no fato de ele ser autor de um livro inteiramente consagrado ao Brasil: Império à deriva: A corte portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821, também publicado pela Editora Objetiva.
Expondo o plano geral da obra, Wilcken divide-a em duas partes: a primeira, relativa à formação e treinamento de campo do biografado, tem o Brasil como referência seminal, prolonga-se no exílio vivido por Lévi-Strauss nos Estados Unidos, quando o avanço do nazismo o força a deixar a França, e se completa com a publicação de Tristes Trópicos, em 1955. A propósito, tentou inicialmente exilar-se no Brasil. É portanto um fato lamentável saber que a embaixada brasileira lhe negou o visto solicitado. Esse episódio, que Wilcken relata, foi antes registrado pelo próprio Lévi-Strauss no livro resultante de suas conversas com Didier Eribon. A segunda parte imprime relevo à elaboração e difusão das ideias do antropólogo que alcança converter-se em objeto de reverência, notadamente na França e no Brasil. Além do impacto que teve a partir da publicação do já citado Tristes Trópicos, o estruturalismo inspirado pela obra de Lévi-Strauss tornou-se uma autêntica moda acadêmica beneficiada pela crise profunda que se abateu sobre o marxismo e o existencialismo identificado com a figura legendária de Jean-Paul Sartre. A partir dessa crise, Sartre é suplantado por Lévi-Strauss no Olimpo intelectual francês, também por teóricos como Roland Barthes e Michel Foucault. Muitos dos que se diziam seguidores de Lévi-Strauss foram desmentidos pelo próprio, que com frequência queixou-se de ser incompreendido. A julgar por algumas de suas declarações tardias e pessimistas, a escola de pensamento que fundou não teve prolongamentos. Melhor dizendo, não teve seguidores que reconhecesse como fiéis ao espírito das suas ideias.
Esclarecendo um pouco o subtítulo da obra – “O poeta no laboratório” -, ele traduz uma frustração confessa do próprio Lévi-Strauss. Artista manqué, ou artista fracassado, seu sonho era ser pintor ou músico. Também sonhou ser escritor literário, e aqui chegou a tentativas efetivas, todavia malogradas. Queria ser dramaturgo ou poeta. A fotografia, que muitas vezes praticou como parte do seu ofício de etnólogo, também trai o seu gosto pela arte e seus méritos como fotógrafo foram reconhecidos, embora no fim da vida tenha depreciado o próprio alcance estético da fotografia. Além disso, denotando ainda suas inclinações e influências artísticas, na juventude demonstrou vivo interesse pelo surrealismo e outras correntes artísticas. Sua amizade com André Breton, fruto de um encontro acidental no navio que os transportou para o exílio nos Estados Unidos, também concorreu para reforçar seus vínculos com a arte. Como observa Patrick Wilcken,
“Ambos eram estetas intelectuais sérios, ambos sóbrios e um tanto formais na maneira de abordar o mundo, porém tomados pela paixão modernista da época pelo primitivo e pelo subconsciente. Sem livros, os dois passaram o resto da viagem conversando no tombadilho, mostrando um ao outro longas notas densamente teóricas, trocando ideias sobre a arte, o surrealismo, o juízo estético” (p. 127).
Lévi-Strauss chegou ao Brasil em 1935 acompanhado por sua primeira mulher, Dina Dreyfus. Vieram com a segunda corrente da missão francesa encarregada de formar a primeira geração de estudantes da Universidade de São Paulo. Derrotado pelo poder central em 1932, na guerra conhecida como a Revolução Constitucionalista, São Paulo se mobiliza tomado por seu espírito pioneiro para lançar as bases da universidade que se tornou a mais importante do Brasil e de toda a América Latina. A missão francesa, convocada pelo psicólogo Georges Dumas, em acordo com a elite paulista, chegou ao estado a partir de 1934 com a função de estabelecer nos trópicos – ou tristes trópicos, se queremos evocar a obra de Lévi-Strauss inspirada por essa experiência – as bases de uma autêntica universidade moderna, já que o Brasil era praticamente desprovido de tradição universitária.
A hegemonia da cultura francesa era à época tão indisputada que os cursos eram ministrados em francês. Foi nessas circunstâncias que em São Paulo floresceram as carreiras acadêmicas de grandes nomes da cultura francesa como Lévi-Strauss, Fernand Braudel (este já mais velho e adiantado, com obra em curso quando chegou a São Paulo), Roger Bastide e outros que, não obstante menos famosos, exerceram papel decisivo na formação da primeira geração de professores nativos da USP. Bastaria acrescentar que os dois intelectuais uspianos mais renomados, Antonio Candido e Florestan Fernandes, pertenceram a esta geração, além de outros igualmente importantes como Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Gilda de Mello e Souza, Ruy Coelho e Lourival Gomes Machado.
Além de atuarem como mestres dessa geração, os franceses prontamente se associaram à elite intelectual paulista, sobretudo aos modernistas já então empenhados em funções institucionais das quais resultou o triunfo do modernismo, que na década precedente irrompera como um movimento de vanguarda tomando de assalto a cultura estabelecida. O mais destacável, como é sabido, era Mário de Andrade. Desempenhando a função de diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Mário realizou um trabalho de política cultura sem precedente, ousaria afirmar que também ainda sem sucessor à altura da obra extraordinária que comandou assistido por intelectuais qualificados e devotados como Sérgio Milliet, Paulo Duarte, Rubens Borba de Moraes, Oneyda Alvarenga, Luís Saia e vários outros.
Mário de Andrade aliou-se antes a Dina do que a Lévi-Strauss. Mulher de notável talento e capacidade de trabalho, ela ministrou, a convite de Mário, o primeiro curso de etnografia na cidade de São Paulo. Além disso, exerceu papel chave na Sociedade de Etnografia e Folclore, criada por Mário de Andrade através do Departamento de Cultura. Wilcken nos revela que essa amizade e trabalho colaborativo provocaram ciúmes em Lévi-Strauss. Já depois de separar-se de Dina, queixou-se este das cartas carinhosas que Mário escrevia para ela. Quem conhece a correspondência de Mário, caso singular na história da literatura brasileira, pode bem imaginar o tom não raro demasiado afetuoso das suas cartas, notadamente quando destinadas a mulheres. As que escreveu para Stella, primeira mulher de Ascenso Ferreira, são sentimentalmente tão derramadas, ou desmedidas, que bem poderiam dar margem a leituras dúbias.
Cedendo à tentação de uma outra digressão que não figura no livro de Patrick Wilcken, talvez o leitor demasiado etnocêntrico ou estreitamente crítico da nossa formação colonizada erradamente conclua que a missão francesa foi apenas um outro capítulo na história da nossa subserviência à cultura francesa. Na verdade, as relações entre culturas são muito mais complexas. Esse episódio, o do papel formador dos franceses na história da USP, ilustra extraordinariamente essa questão. Como o demonstram depoimentos de alguns dos mais renomados rebentos da universidade e dessa experiência formadora, os franceses foram decisivos para despertar-lhes dimensões do Brasil que eles por si sós seriam incapazes de enxergar. Isso foi possível porque os franceses vieram também para aprender sobre o Brasil, transportavam com seu olhar de estrangeiro potencialidades perceptivas e desejos de descoberta adormecidos na percepção familiar do brasileiro. Em suma, renova-se aqui o costumeiro jogo dialético entre o familiar e o estranho, parte da formação de qualquer antropólogo, raiz metodológica de todo saber antropológico e por extensão humanístico. Os franceses nos ensinaram porque também queriam aprender. Assim, estabeleceu-se essa via de mão dupla tão fecunda na interação entre culturas. Ganharam eles e ganhamos nós. Quem perde é o etnocentrismo e variantes provincianas como o nacionalismo e o regionalismo. Sempre que estes ganham, perdemos nós na nossa capacidade de ampliar nossa compreensão do mundo, de apreender o mundo em viva e fecunda interação com a alteridade das culturas.
Quando Lévi-Strauss chegou ao Brasil, São Paulo tinha cerca de um milhão de habitantes. Sua febre expansiva, da qual a grande leva imigratória que acolheu era uma das manifestações mais extraordinárias, fascinou Lévi-Strauss, que aqui aportou com pré-concepções e expectativas largamente infundadas. Num curto intervalo do espaço urbano da macota cidade, como diria Macunaíma, acotovelavam-se tempos sociais e extremos culturais que iam dos resquícios coloniais ao espírito do capitalismo observável em Chicago, do rural mais rústico ao urbano mais requintado. Variando os termos de acordo com o jargão sociológico, o pré-moderno e o moderno se justapunham de forma complexa na medida em que tanto envolviam processos integradores quanto conflituosos. Como seus colegas formadores da universidade recém fundada, Lévi-Strauss documentou e estudou com seus alunos esse processo de profundas mudanças culturais e urbanas fixando-o empiricamente em monografias sobre a formação e desenvolvimento de bairros da cidade.
Depois disso embrenhou-se nas paisagens do interior explorando regiões do Mato Grosso onde efetivamente realizou seu grande trabalho de campo como antropólogo. Essa experiência embasa um dos seus livros fundamentais, o já citado Tristes Trópicos. Em 1985, passados muitos anos, revisitou São Paulo como membro da comitiva oficial do então presidente François Mitterrand. Melhor dar a palavra ao biógrafo:
“Quando estava em São Paulo, Lévi-Strauss conseguiu escapar um dia de manhã, pegou um táxi e foi até a avenida Paulista, procurando sua velha casa na Cincinato Braga. A cidade que ele tinha conhecido e amado na juventude, com suas ladeiras e casas de arquitetura colonial, tinha praticamente desaparecido. (...) Lévi-Strauss acabou ficando preso num congestionamento e foi obrigado a voltar.” (p. 319).
Como é notável, minha resenha enfatiza os vínculos de Lévi-Strauss com São Paulo e o início de sua vida e carreira associadas a esse tempo. Evidentemente, a biografia se espraia por outros tempos e lugares, circunstâncias e experiências: seu exílio nos Estados Unidos, ligeiramente anotado acima, seu retorno à França, seu encontro e sua amizade com Roman Jakobson, a elaboração da obra que firmou sua reputação como intelectual e muita coisa que me vejo forçado a omitir no meu roteiro demasiado seletivo. Sua amizade com Jakobson merece um registro mínimo, pois foi decisiva para a orientação da sua obra e a elaboração teórica do estruturalismo, como ele próprio reconhecia. Linguista e poliglota de extraordinária erudição e formação teórica, Jakobson o introduziu nos meandros da linguística estrutural. Através dele, Lévi-Strauss descobriu, entre outras coisas, o Curso de linguística geral, de Ferdinand de Saussure.
No parágrafo inicial desta resenha, aludindo ao tom polêmico de certas declarações de Lévi-Strauss, mencionei de passagem o racismo, o multiculturalismo, a arte contemporânea e o 1968 francês, que muitos interpretam ainda como um ano revolucionário, senão mesmo uma década revolucionária. No Brasil, assim como em muitas outras extensões periféricas da cultura europeia, seu impacto foi inegável. O que é discutível é a sua natureza. Seria de fato revolucionária? O ponto de vista de Lévi-Strauss é francamente contrário. Esta frase diz tudo: “Achei o maio de 1968 repugnante” (p. 301). Segundo Greimas, Lévi-Strauss teria declarado durante uma conversa entre eles: “Acabou. Todos os projetos científicos vão retroceder vinte anos” (idem, ibidem).
Acerca do racismo ele também incorreu em declarações públicas no mínimo embaraçosas para a Unesco, que o convidou para proferir a conferência inaugural do Ano Internacional do Combate ao Racismo. Segundo Wilcken, suas declarações polêmicas puseram René Maheu, diretor-geral da Unesco, em pânico. No essencial, o que argumentava era que a política antirracista, tal como proposta pela Unesco, tenderia a alimentar um processo de decadência cultural, já que ameaçaria anular a força do individualismo que move os processos de renovação estética e os valores espirituais necessários à dignidade e valorização da vida. Também não poupou o multiculturalismo, que hoje, pelo menos no Brasil, foi reduzido a clichê da democracia cultural e palavrório vazio da publicidade oficial. O multiculturalismo que vivenciou durante seu exílio em Nova York passou a ser visto na velhice como uma ameaça à sua cultura.
Na velhice, como frisa seu biógrafo, seu pessimismo se acentuou, assim como sua adesão a uma visão conservadora, portanto oposta ao socialismo militante da sua juventude. As evidências mais fortes do seu pessimismo manifestam-se na sua preocupação relativa à explosão demográfica, à devastação da natureza provocada pela expansão da civilização técnica e as tendências dominantes na arte contemporânea, incompatíveis com seus ideais estéticos. A esse propósito, Patrick Wilcken cita passagens bem impressivas de um artigo que escreveu para a revista Time:
“Não acredito em Deus, mas tampouco acredito no homem. O humanismo fracassou. Não impediu as ações monstruosas de nossa geração. Ele tem se prestado a desculpar e justificar todas as espécies de horrores. Ele entendeu mal o homem. Tentou separá-lo de todas as outras manifestações da natureza”(p. 310).
A esse diagnóstico sombrio, mas talvez irretocável no essencial, não poderia deixar de acrescentar a longa e devastadora experiência do colonialismo imposto pela Europa a países como o Brasil, o fascismo e acima de tudo o nazismo cujos horrores excederam as mais tenebrosas figurações da imaginação humana.
E por aí foi ele de mal a pior para quem acredita ou precisa acreditar em visões de mundo consoladoras ou francamente otimistas. Quando morreu, já centenário, Lévi-Strauss deixou palavras ainda mais negativas para legar àqueles que o celebraram e ainda o celebram. Mas encurto o enredo, que de resto não recomendo ao leitor impressionável, sobretudo se incorrer na insensatez de ler este desfecho da resenha na hora de dormir. “O mundo começou sem o homem e terminará sem ele”, é outra frase sombria que escreveu e nada de animador promete à posteridade.