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segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Érico Veríssimo, Jorge Amado e Graciliano Ramos


Memórias de um leitor V: E. Veríssimo, J. Amado e G. Ramos

Do ponto de vista cronológico, Érico Veríssimo foi o primeiro autor brasileiro que marcou de forma mais profunda minha formação literária. Li quase toda a sua obra publicada numa coleção de capa-dura da Editora Globo, onde exerceu papel inestimável na tradução e divulgação da literatura inglesa entre nós. Olhai os lírios do campo, provavelmente ainda seu maior sucesso de público, transformou significativamente minha experiência e sensibilidade. Anos mais tarde incorri no erro de o reler, já evidentemente bem mais amadurecido como leitor. Não preciso dizer o quanto me decepcionei. O livro encolheu muito, pareceu-me empobrecido por uma concepção de humanismo sentimental que o próprio autor anos mais tarde também reconheceu. Mas como negar a importância decisiva que exerceu sobre minha vida e minha imaginação quando o li ainda jovem inexperiente, impregnado de fantasias humanistas e sobretudo carente de viver uma vida mais plena de amor e generosidade?

A obra de Érico Veríssimo me deu isso e muito mais. Através dela, dos seus personagens prematuramente fracassados, inábeis para viver, tateando como eu uma direção mais consistente dentro da vida, consegui esboçar um sentido passível de tornar minha juventude confusa mais tolerável. Na obra de Érico Veríssimo, assim como na de Thomas Hardy, as personagens mais impressivas e determinadas, portadoras de extraordinária energia moral, são quase todas femininas. Olívia e Fernanda, notadamente, tornaram-se modelos sonhados e sofridamente desejados na minha imaginação. No tipo arredio de Vasco, com sua introversão de “bicho do mato”, identifiquei com prazer minha própria e confusa introversão. Sentia-me como se encontrasse no espelho da realidade ficcional meu outro que não somente povoava a solidão da minha adolescência intransparente, mas também me reacomodava nas linhas turvas de minhas irresoluções existenciais. Supria ainda por via vicária, voltando às personagens femininas, como é freqüente na nossa experiência imaginativa, a carência de mulheres na minha infância e adolescência. Privado de mãe, de irmãs e outros modelos femininos, sofria em mim a aridez de uma juventude sem amor, o tipo de amor somente concebível na nossa relação com a mulher: o amor da mãe, da avó, da irmã, da namorada... Já nem direi da amiga, pois na atmosfera ainda asperamente patriarcal em que me formei os gêneros somente se associavam amorosamente ou por via parental ou pela via crua da iniciação sexual nos quartos das empregadas domésticas e nos prostíbulos, como foi o meu caso.

Érico Veríssimo acrescentou à literatura brasileira, num momento de grande renovação e difusão da prosa ficcional, uma vertente do romance de ambientação urbana que me marcou bem mais do que a corrente hegemônica da sua geração: o romance regionalista nordestino. Do ponto de vista ideológico, sua obra abre ou alarga um veio do liberalismo humanista com o qual ainda hoje retenho fortes afinidades. Do ponto de vista da técnica, da renovação da forma narrativa, ele incorporou à nossa literatura contribuições significativas do romance inglês que tanto difundiu no Brasil trabalhando como consultor e tradutor da Editora Globo. A técnica do contraponto narrativo, em particular, emprestada do romance Point Counterpoint, de Aldous Huxley, foi por ele admiravelmente empregada na composição de Caminhos Cruzados, um dos seus romances ainda merecedores de releitura.

Nesse momento, o romancista nordestino que mais li e me impressionou foi Jorge Amado. Se minhas leituras e meu indeciso gosto literário dependessem mais diretamente das minhas origens sociais e geográficas, o mais plausível seria tender para a leitura de José Lins do Rego e Graciliano Ramos. O fato, porém, é que nas linhas erráticas do meu itinerário de leitor o acaso foi quase sempre o fator determinante. Cheguei a Jorge Amado, suponho, de algum modo induzido por minha politização tardia, pelo menos para os padrões da minha geração, uma geração eminente e precocemente política. Minha politização foi praticamente sufocada na raiz porque, em termos geracionais relativos, cheguei a ela, a política, um pouco tarde. Comecei a me politizar em fins de 1968, portanto às portas da decretação do AI-5, que bloqueou todas as vias de militância política institucionalizada. Além da sua popularidade indisputável, nem Érico Veríssimo competia com ele em termos de público, Jorge Amado consagrou-se a uma temática literária cuja recepção foi ainda mais favorecida pelo clima de repressão política que passou a vigorar depois do AI-5. Refiro-me mais precisamente à fração da sua obra anterior a Gabriela Cravo e Canela (1958), isto é, à fase da sua militância comunista de franca adesão ao stalinismo e, no plano literário, de idealização romântica e sentimental do herói popular que, curiosamente, nem nessa fase é o proletário. Esse herói idealizado – como Guma, de Mar Morto, e Jubiabá, do romance homônimo – nutriu a imaginação romântica dos jovens de esquerda com quem convivia na universidade.

A necessidade de sobrevivência, mais do que a opção política de trabalhar em contato direto com o povo oprimido, levou-me a trabalhar no Departamento de Pessoal de uma fábrica muito conhecida no Recife. Essa experiência acabou sendo um meio extraordinário e imprevisível de conscientização política. Em contato diário com o operário em todas as esferas da minha atividade profissional (da admissão e demissão de empregados, processos que passavam obrigatoriamente pelo meu birô, até a linha de montagem e o lazer à base de futebol e cachaça), lavei meus olhos e minha consciência ideológica de todas as mitificações engendradas pela militância de classe média baseada em abstrações literárias e literatura panfletária. Trabalhando na fábrica durante dois anos no auge dos anos de chumbo da ditadura militar, conheci o operário real e assim despojei-me de todas as idealizações românticas e populistas, muitas delas assimiladas através da literatura de Jorge Amado publicada durante sua militância stalinista. Foi também nessa época que li Graciliano Ramos. Desde então passei a reconhecer sua supremacia absoluta entre os escritores dessa vertente literária e sinceramente me desinteressei da obra de Jorge Amado.

Como todo grande criador de literatura, Graciliano Ramos não subordina sua obra aos ditames de nenhuma ideologia, ainda quando fora da literatura se declare militante comunista. Sabemos que aderiu ao comunismo e jamais renegou esta ideologia. Pelo contrário, na sua vida tardia empreendeu uma viagem à União Soviética. Dessa experiência resultou seu livro mais vulnerável, relato das suas impressões de viagem publicado sob o título seco e aparentemente neutro de Viagem. Ele, cuja obra é de um rigor realista intransigente, rigor que se estende da obra ficcional para a autobiográfica, ironicamente esboça nas páginas de Viagem uma representação do mundo comunista que de fato não passava de uma completa liquidação da utopia concebida por Marx e Engels.

Sua percepção da realidade soviética foi por certo induzida pelas fontes oficiais que o guiaram através do pesadelo stalinista revelando-lhe tão-só o que convinha revelar. De qualquer modo, ainda hoje me espanta que um espírito tão negativo quanto o de Graciliano Ramos tenha sido traído tão completamente pela máquina da propaganda e as tramas insidiosas da ideologia. Talvez seu engano seja apenas uma reiteração já banalizada da nossa incapacidade de suportar a realidade isentos do véu transfigurador da fantasia, que no caso corresponde à natureza deformadora da ideologia política. Confesso não haver retido nenhuma memória significativa desta obra para aventurar-me a comentá-la. Lembro apenas o que todo leitor de Graciliano Ramos sabe: ele pinta um retrato demasiado favorável da União Soviética e por isso avesso ao escrutínio impiedoso do seu realismo. Daí o espanto das linhas precedentes e a ênfase que confiro ao engano em que incorreu o realista impenitente. O que importa é sublinhar aqui a forma desse realismo que no registro especificamente estético lhe assegura a supremacia acima mencionada nos quadros da literatura de forte inspiração social e política dos anos 1930 e 1940.

Contrariamente a Jorge Amado, Graciliano jamais incorre na idealização dos seus miseráveis e oprimidos. Fiel à sua aguda percepção da realidade, expressa em prosa seca e intransigente, ele a reinventa sem deformá-la acrescentando-lhe as tintas idealizadoras e românticas da ideologia, como é o caso patente de Jorge Amado. O trabalhador rural, o flagelado e outros tipos humanos que repontam da obra de Graciliano são profundamente reveladores da consistência ética desse grande romancista que se recusa a dissolver sua força criadora povoando seu mundo árido e atormentado com heróis populares positivos cuja função ideológica consistiria em reduzir a literatura à realização de uma causa ou convicção política professada pelo autor. Fiel a seus ideais estéticos, sempre prevalecentes à ideologia que também não se isenta de revelar, Graciliano dá vida a tipos humanos cuja miséria social os reduz às formas elementares da existência. Seres esmagados pelo império da necessidade, Fabiano, Sinha Vitória, Casimiro e outros personagens da sua obra são impermeáveis ao “estalo mágico” da verdade revolucionária que lemos, por exemplo, em várias obras de Jorge Amado publicadas durante seus anos de dócil militância stalinista, quando textualmente reduziu sua literatura a um mero documento social, instrumento de expressão a serviço de uma causa ideológica.

Embora São Bernardo seja a grande realização literária, de Graciliano Ramos, talvez Vidas secas seja a obra que melhor traduza em termos formais a coerência entre fundo e forma, entre a expressão temática da realidade social do sertão nordestino e a linguagem áspera e precisa reveladora do estado de miséria primitiva em que vivem seres como Fabiano e Sinha Vitória. Em Graciliano Ramos, a literatura é um testemunho intransigente de integridade ética diante da ideologia e dos fatos da realidade, que é decantada pelos processos formais de natureza realista não para servir à representação idealizada de uma ideologia particular, mas para representar de forma radical a realidade apreendida e esteticamente formalizada por todo grande escritor realista. Por isso sua obra constitui uma veemente recusa da mitificação da pobreza, do herói popular revestido de virtudes que não passam de projeção idealizada do autor, não por acaso um membro de camadas sociais que vivem da espoliação dos fabianos da seca ou dos zé ninguém dos canaviais, e por isso nunca provaram da poeira da miséria, do nada ou quase nada que é sobreviver equilibrado sobre a linha tênue da necessidade.

O leitor carente de mudar o mundo, ou dele escapar através das muitas vias de fuga imaginária propiciadas pela literatura e a arte, saía da leitura de romances como Jubiabá e Mar morto transformado pela idealização da pobreza e dos personagens populares que nela encontram alimento revolucionário para abolir a servidão de classe, fundar a utopia passível de reconciliar nossa humanidade dividida e cruelmente regida pela dominação imposta pelos poderosos (evito a expressão marxista mais específica, dominação burguesa, porque o conjunto da obra de Jorge Amado pouco nos revela acerca da burguesia e do seu correspondente antagônico, o proletariado) e portanto transpor o céu ou o paraíso das religiões para o reino da imanência. O leitor da obra de Graciliano Ramos, contrariamente, sai mais esclarecido sobre a necessidade que governa seus personagens, a opressão de classe e outros ingredientes fundamentais que regem o mundo dividido e cruel onde habitamos e sobretudo sofremos. Parece-me enganoso, portanto, ler esse mundo inventado pela força ficcional de Graciliano Ramos como um mundo destinado à redenção ou ao ideal de uma humanidade reconciliada fundado numa ideologia.

Certa vez Drummond assinalou metaforicamente a ambiguidade peculiar da literatura observando que ela é uma casa com duas portas: uma conduz o leitor atormentado pela realidade em direção a uma linha de fuga, um meio de escape dessa realidade que é incapaz de suportar ou mudar; a outra, inversamente, transporta o leitor de volta à realidade franqueando-lhe uma percepção mais aguda do mundo e do que ele é dentro do mundo. Refaço a metáfora com termos muito livres e por certo menos precisos e convincentes. Não importa. Importa apenas ser fiel ao cerne da metáfora expressa por Drummond. Não preciso acrescentar que ele e Graciliano Ramos pertencem à vertente literária associada à segunda porta.


segunda-feira, 2 de maio de 2011

Brasileiros e Universais


“O brasileiro em média soa mesmo expansivo, caloroso, simpático, mas isso no contato superficial. Grandes escritores, como Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos e Nelson Rodrigues, viram que por baixo dessa atmosfera quente havia uma série de problemas existenciais e sociais, de ressentimentos e covardias, o que em geral os turistas não captam. Nações cultivam mitos? Sim, mas nações sérias os revêem constantemente. Como explicar tanta violência e tanto desrespeito num país que se gaba de ser uma alegre democracia racial? Por uma história na qual nunca houve disposição para alterações profundas, estruturais. Consultar Octavio Paz”.

As palavras acima são de Daniel Piza. Recortei-as de uma conversa entre ele e João Pereira Coutinho reproduzida na coluna que este assina para a Folha de S. Paulo. O assunto é de constante interesse para mim e de resto há muito me intriga. Nutrido pela minha leitura continuada dos nossos intérpretes, é ainda reforçado por minhas observações rotineiras relativas ao comportamento do brasileiro. Antes de tudo, ressaltaria concordar com Evaldo Cabral de Mello, que desqualifica as muitas interpretações do Brasil baseadas numa suposta psicologia dos povos. Para ele, tudo isso não passa de impressionismo sociológico. Argumenta ainda lembrando contradições meridianas, como a que nos singulariza pela nossa tristeza (ver Retrato do Brasil, de Paulo Prado) e a que põe o acento na nossa alegria. Esta, sabemos, é a versão dominante.

Mencionei Evaldo Cabral mas poderia mencionar com propriedade ainda maior o livro de Dante Moreira Leite: O Caráter Nacional Brasileiro. A primeira parte do livro, onde Moreira Leite desce às raízes histórico-antropológicas das noções de caráter e nacionalismo para acentuar-lhes a inconsistência científica, constitui a mais aguda crítica que conheço no contexto intelectual brasileiro à tradição dos nossos estudos baseados na psicologia dos povos. Dentro desses limites, endosso ainda as restrições enfáticas que dirige contra Mário de Andrade, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e muitos outros intérpretes do Brasil.

Nossos nacionalistas culturais mais triunfalistas têm inegável culpa em cartório. A eles devemos em larga medida a persistente disseminação de um mito que nos representa como sensuais e alegres, sempre a um passo do passo do frevo ou do samba, quando já não delirantemente por eles possuídos. O mito está de tal modo enraizado na nossa ilusória autopercepção que o ouvimos a todo instante escorrendo da boca de qualquer brasileiro orgulhosamente cotejando nossas virtudes com as qualidades depressivas de alguma cultura hegemônica. Dando nome a alguns bois, citaria Gilberto Freyre e Jorge Amado. É claro que ambos, sobretudo a obra do primeiro, têm méritos independentes da questão que aqui me ocupa. O que intento salientar de passagem é o quanto concorreram para difundir dentro e fora do Brasil uma representação mítica do país e do povo na qual prevalecem valores culturais que tendem a obscurecer ou idealizar o que temos de pior.

Daniel Piza tem razão ao ressaltar como na linha dos contatos epidérmicos projetamos essa imagem lisonjeira de um povo expansivo e caloroso e simpático. Como no entanto compatibilizar tal imagem com uma realidade social retalhada pela violência, a incivilidade, a grosseria corrente do brasileiro, o atraso social rançoso que explica tantos dos nossos horrores cotidianos? Se há para isso alguma explicação convincente, é preciso escavar bem mais além dos sintomas encontradiços, bem mais além da superfície recoberta por uma alegria enganadora. Piza indica o caminho das pedras, ou da mina desmitificadora, quando alude a escritores como Machado de Assis e Lima Barreto, que sem dúvida retratam um outro modo de ser brasileiro. Graciliano Ramos constitui talvez exemplo bem mais corrosivo de contraparte da nossa propalada alegria, já que o oposto desta se espelha não apenas na sua obra áspera e rabugenta, mas na sua própria personalidade. Aliás, se queremos acentuar o dado objetivamente aferível da nossa diversidade enquanto povo, conviria lembrar a imagem típica do sertanejo bem concentrada no perfil em demasia conhecido de Graciliano Ramos.

Saltando para o plano de minha experiência pessoal, cansei-me e me canso ainda de observar o contraste gritante entre os modos aparentes do brasileiro gregário e ruidoso e os desse mesmo brasileiro entretendo uma conversa íntima. De início o contraste intrigava-me e em alguns casos memoráveis chegava mesmo a chocar-me. Mas precisaria agora prender-me ao convívio mais íntimo para melhor justificar os termos em que acima propus os contrastes e contradições observáveis no comportamento do brasileiro. Vivi muitas vezes a experiência de freqüentar o ambiente de família de muitos amigos. Também os bares naquela hora sombria e semideserta propícia ao jogo das confissões e desabafos. Em suma, toda a variedade de contextos assinalados pelo convívio à margem das convenções hipócritas, da simulação de papéis e identidades aderentes de forma até inconsciente às máscaras que vestimos. A discrição, todavia, retém a mão que estendo para descerrar a cortina do palco onde poderia verter uma corrente infinda de expressões íntimas em tudo opostas a essa representação mítica de um Brasil festeiro, feliz e esperançoso.

Aliás, aqui no Recife é praticamente impossível dissociar o convívio com um determinado indivíduo do convívio com a sua família. Em grupo, predominam as manifestações de alegria ruidosa e afetividade derramada. Quando no entanto a relação é transposta para a atmosfera íntima, propícia aos tons confessionais mais reveladores do que subjaz à aparência ilusória, tenho com freqüência a surpresa de mergulhar em paisagens sombrias, visões atormentadas, cenas como que extraídas das páginas mais sofridas compostas pela pena de um Machado de Assis, um Lima Barreto, um Graciliano Ramos. De repente, o amigo risonho e galhofeiro, sempre desatado nos gestos de alegria contagiante, revela-se presa de angústias e ansiedades cuidadosamente abafadas. A mulher sempre sorridente e sensual, facilmente contagiada pela música e a dança, dissimula nas linhas do corpo desfrutável o travo de inconfessável tristeza, a infelicidade revestida em cores alegres. E assim constato que alegria e tristeza se acotovelam e até se irmanam no brasileiro como de resto em qualquer outro povo, pois somos humanos antes de brasileiros.

O argumento geral acima exposto poderia ser desdobrado com mais fortes evidências se deslocado para o campo da expressão musical. Além da importância cultural ocupada pela música no Brasil, provavelmente nenhuma outra forma de arte espelha de modo mais nítido nossas tradições populares, traços bem diferenciados da totalidade do povo brasileiro. Sempre que querem destacar nossa alegria, nosso esfuziante prazer de viver, estudiosos e observadores do assunto recorrem à música e ao carnaval, à sensualidade do samba ou à vibração do frevo e outros ritmos enérgicos e ruidosos. Esquecem todavia de considerar que na outra dobra do ritmo pulsam valores opostos. Se o carnaval sem dúvida manifesta num grau delirante nosso prazer de viver e celebrar desmedidamente a vida, também se impregna de tristeza e melancolia, de saudade e dor. Por isso há quem acertadamente o interprete como uma linha de fuga da realidade. Chico Buarque traduz bem esse fenômeno: “Carnaval desengano / deixei a dor em casa me esperando / E brinquei e gritei / e fui vestido de rei / Quarta-feira sempre desce o pano”. Poderia lembrar uma infinidade de canções compostas nessa clave para melhor esclarecer a natureza contraditória das expressões humanas.

No caso do frevo pernambucano, abundam exemplos de tristeza e saudade, dor e perda. O frevo de bloco transpira saudade e melancolia, pesar diante de um passado irreversivelmente perdido. A marcha lenta constitui outra evidência em defesa do meu argumento. Basta que se lembre e cante a Marcha da Quarta-feira de Cinzas, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. Não vou nem perder tempo citando-a, já que sua atmosfera emocional está inteiramente impregnada de dor e perda, saudade e melancolia. Lembraria ainda o Cordão da Saideira, de Edu Lobo. E os belos frevos de Antonio Maria.

Reiterando algo que acima de passagem registrei, parece-me que uma das mais graves inconsistências desses mitos ou representações idealizadoras de povos e culturas reside no desapreço pelo fato de que somos antes de tudo humanos. Sei que isso soa um tanto descabido numa época de nítida depreciação dos valores universalistas. Ainda assim, ou talvez por isso, insisto em ressaltar que antes de sermos ingleses, brasileiros, franceses, nigerianos, iranianos ou membros de qualquer outra nacionalidade, compartilhamos traços de humanidade comum. Acima de todas as nossas singularidades irrecusáveis, somos humanos e como tal portadores dos sentimentos fundamentais da alegria e da tristeza, do amor e do ódio, da euforia e da depressão. O resto é idealização mítica de discutíveis virtudes nacionais. Mas não me iludo presumindo que os mitos não estejam investidos de força poderosa. A história da humanidade está empapada de glória e devastação decorrentes de ações humanas inspiradas em mitos e representações míticas de grandezas e misérias. Melhor batucar agora um samba desses bem vibrantes e alegres e sensuais. Quero ver a mulata quebrando as cadeiras...
02 de dezembro 2008

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Entrevistando Luciano Oliveira


Fernando – Luciano, você é conhecido nos círculos acadêmicos antes de tudo como sociólogo do direito. No entanto, seu interesse por literatura e cinema é também evidente, já que você publicou artigos ocasionais sobre esses assuntos e acaba de dedicar um volume integral a um paralelo crítico entre Machado de Assis e Graciliano Ramos. Sei também que você nada faz no sentido de melhor administrar sua carreira acadêmica. Diante disso, por que não escreve mais sobre esses assuntos que são objeto de sua paixão?

Luciano - Porque, retomando o título daquele livro de Orígenes Lessa, existe o feijão e o sonho, e esses assuntos, que são objeto de minha paixão, como diz você, não são meu ganha-pão! Dito isso, deixe-me reparar uma possível injustiça que minha resposta um tanto brincalhona contém: também gosto de muitas das coisas que faço dentro da sociologia jurídica, porque tenho também uma paixão, um engajamento com um tema ao qual tenho dedicado boa parte da minha vida acadêmica: o problema dos direitos humanos no Brasil. Mas realmente a literatura foi, intelectualmente falando, o meu primeiro amor, e o primeiro amor ninguém esquece! Gostaria, sim, de escrever sobre outros autores que amo além de Machado e Graciliano.

Fernando – No seu livro sobre Machado de Assis e Graciliano Ramos você dá ênfase a temas pouco explorados na obra do segundo. Penso antes de tudo no tema do humor. Aliás, adianto que essa é uma das singularidades do seu livro. No entanto, é curioso que um crítico de formação sociológica, como é o seu caso, não proceda centralmente a uma leitura sociológica de Graciliano, sobretudo nas condições culturais do presente, onde se observa a franca subordinação da literatura às ciências sociais. O que você diria sobre isso?

Luciano - Eu diria que estive menos interessado numa leitura sociológica de Graciliano, ou mesmo de Machado, e mais na leitura sociológica que esses autores fazem da realidade brasileira! É o inverso da questão. De resto, a subordinação da literatura às ciências sociais, a que você se refere, não é muito minha praia. Nem a sua, pelo que conheço de você. No fundo acho que não há sociologia que explique fenômenos literários. Entenda: o fenômeno propriamente literário! É lógico que é possível analisar sociologicamente a recepção favorável do chamado "romance nordestino" nos anos 30 do século passado. Mas explicar como e por que um sujeito como Graciliano, praticamente um autodidata, dono de loja de tecidos numa cidade inexpressiva do interior de Alagoas, escreve uma obra-prima como "São Bernardo"... Aí a sociologia tem que ter a modéstia de reconhecer que está diante de um mistério da criação que escapa às suas categorias explicativas.

Fernando – O Bruxo e o Rabugento não é um livro de concepção orgânica. Explicando melhor, é composto de um conjunto de ensaios autônomos, embora confiram ao livro certa unidade na medida em que reiteram um tema comum: um paralelo, feito de muitas variações, entre Machado de Assis e Graciliano Ramos. Apesar do que acabo de observar, pergunto se você acaso traçou algum projeto geral para guiar sua composição do livro.


Luciano – Na verdade, no começo a ideia era a de um artigo sobre Graciliano, apenas. Mas o artigo foi crescendo e, num determinado tópico, introduzi Machado, a partir de uma ideia que colhi em Roberto Schwarz, a de que Machado teria praticado o que ele chamou de "exercício da abjeção", que era falar da classe senhorial brasileira do seu tempo a partir dela própria, da sua visão do mundo terrivelmente malvada e insensível ao drama da escravidão, por exemplo. Achei que em "São Bernardo" Graciliano fazia isso, adotando a voz de Paulo Honório, um ser humano terrível, como a voz do narrador. Foi a partir desse primeiro insight que comecei a procurar outras aproximações. Por exemplo, a metalinguagem. Machado, como Graciliano, está o tempo todo refletindo sobre o próprio texto que escreve, mostrando como os dois eram grandes escritores conscientes do seu ofício. Depois cheguei ao humor. No caso de Graciliano, ao mau humor, que é também uma forma de humor. E como os assuntos foram se atropelando, se agregando, em determinado instante tinha muita coisa escrita da qual achei mais interessante fazer artigos separados e relativamente independentes do que um livro, que, como livro, ficaria meio mambembe...

Fernando – A resposta acima, referente ao processo de composição de O Bruxo e o Rabugento, levou-me a ponderar um pouco a produção corrente no âmbito das ciências sociais e a nossa tradição ensaística. Sabemos que esta está diretamente associada ao desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Bastaria pensar em Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e outros. Aludo a este fato por identificar no seu estilo de composição traços nítidos dessa tradição. Talvez isso lhe desagrade, já que sei do seu apreço pela empiria, do rigor com que você pesquisa e se documenta antes de mergulhar na redação dos seus livros e ensaios. Apesar disso, insisto na observação acima e adicionalmente pergunto se você se reconhece em algum grau herdeiro dessa tradição. Perguntaria ainda se você não acha possível conciliar a escrita ensaística com o rigor compositivo dos autores fiéis ao primado do objeto empírico que estudam.


Luciano - Quem dera! Sentir-me herdeiro da tradição de Euclides e Gilberto... Ok! À condição, porém, de considerar-me um herdeiro bem menor, daqueles para quem o testamenteiro deixa generosamente um pequeno pecúlio. É verdade que fico lisonjeado com a ideia de inserir-me na tradição ensaística da qual fazem parte esses autores. Bem, indo à questão do rigor empírico, é verdade que o ensaísmo é um terreno perigoso, permite muitas derrapagens, porque a subjetividade daquele que escreve está toda lá, sem enganações. Mas eu ousaria dizer que isso não exclui o rigor, o cuidado com a competência empírica, como gosto de dizer. Observo que livros como Os Sertões e Casa-Grande & Senzala têm uma riqueza empírica muito grande. Euclides, nesse sentido, fez um esforço de objetividade enorme. Lembre-se de que as teorias racistas, que eram a moda na época, e com as quais ele foi a Canudos, diziam que aqueles sertanejos eram uns degenerados, uma sub-raça degradada pela miscigenação. E o que ele vê? Ele vê um povo bravio, forte, astuto, resistindo a três expedições armadas. E a cabeça de Euclides pira! Daí ele ter escrito, n´Os Sertões, aquele capítulo tão estranho e até um tanto negligenciado a que chamou de "um parêntese irritante", no qual confessa que os dados não batiam com a teoria! Não sei o que lhe faltou para assumir que aquelas teorias racistas eram empulhação. Esse passo vai ser dado por Gilberto, que em Casa-Grande estabelece aquela famosa distinção entre raça e cultura, e que essa, a cultura, era mais explicativa do que a raça. Ou seja: ainda que sem os cuidados metodológicos dos estudos monográficos que se tornaram moeda corrente na sociologia contemporânea, a tradição ensaística pode, sim, combinar intuição e rigor, e essa é a melhor tradição da sociologia, aliás. Tenho procurado fazer isso nos meus trabalhos. O meu livro, O Bruxo e o Rabugento, tem muita liberdade, mas tem também muito trabalho de composição. É porque o leitor não sabe. Mas às vezes uma frase, uma mísera frase num texto, demanda, para ser escrita, uma semana de pesquisa! Quando em determinado instante, por exemplo, desenvolvi a hipótese de que o "segundo Machado", aquele da ironia permanente de Brás Cubas, já está em embrião no "primeiro Machado", o da fase romântica, para escrever isso foi necessário parar o que estava fazendo e reler, com atenção, Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia... Isso é uma semana de trabalho. Que, lógico, em se tratando de Machado, mesmo do "primeiro Machado", foi um trabalho prazeroso!

Fernando – Parece-me que sua resposta relativa à nossa tradição ensaística confirma a existência de uma linha de nítida conciliação entre o gênero ensaístico, tão próximo do estilo literário e especulativo, e a fundamentação empírica do argumento ou interpretação. Quando me ocorreu propor-lhe esta questão, pensava no traço diferenciador do seu estilo, nesse sentido tão divergente da produção acadêmica que habitualmente leio. Você poderia acrescentar alguma observação relativa ao estilo acadêmico corrente contraposto a seu estilo de composição? Sugerindo uma comparação provocativa, por que entre Antonio Candido e Florestan Fernandes prevaleceu o estilo do último como norma de composição acadêmica do texto sociológico?

Luciano - Curto e grosso, porque acho que produção em série desse tipo de trabalho é mais fácil! Na verdade, é fácil. Pelo menos na forma como as dissertações e teses passaram a ser armadas, com capítulos-padrão que terminam na maioria dos casos sendo capítulos-chavão! Pode ver, geralmente os projetos são assim: Objeto, Marco Teórico, Objetivos (tem sempre um principal e vários secundários), Metodologia, Cronograma e pronto. O negócio é você eleger um marco teórico, que é sempre um ou vários autores estrangeiros, e depois faz uma pesquisa empírica que "enquadra" naquele marco teórico. Digo enquadra no sentido quase jurídico do termo: você tem uma definição legal e colhe nos vários e complexos elementos da realidade aqueles que confirmam o que cabe na definição. Tem vezes que você vê as coisas sendo meio forçadas para se ajustarem ao modelo forçado... Bom, mas aí já é um problema de competência ou não de quem faz o trabalho, porque há trabalhos dentro desse modelo que são de ótima qualidade, entende? O que eu digo é que um modelo assim é mais reprodutível do que um trabalho ensaístico, que exige do seu autor, pra começo de assunto, um estilo particular, erudição (não a erudição pedante), poder de criatividade... É um tipo de trabalho em que não faltam elementos de composição artística. Nesse caso, como diria Noel, "ninguém aprende samba no colégio"... No colégio você aprende os segredos da partitura, o que é outra coisa. Então, há isso no meu modo de ver: no momento em que se constituiu no país uma pós-graduação em bases regulares, com exigências de prazos, produtividade, cientificidade dos trabalhos etc., lá pelos anos 70, e foi um momento de forte influência do modelo acadêmico americano de se fazer ciência, avesso ao ensaísmo tipicamente europeu, o "modelo Florestan", chamemos assim para simplificar, presta-se a isso que estou chamando de reprodução fácil. Mas deixe-me fazer uma pequena observação para não sermos injustos com o pobre do Florestan. A ciência brasileira deve-lhe muito. Muito mesmo. E, aliás, por ser um marxista de verdade e certamente estar mais ligado intelectualmente, doutrinariamente, ao mundo de Marx, Durkheim e Weber do que o do empiricismo americano, muitas vezes ingênuo, a designação "modelo Florestan" que usei precisa ser matizada. O que existe de Florestan no modelo é a exigência com o rigor metodológico, o cuidado com o embasamento empírico das afirmações etc. A eventualidade disso terminar gerando trabalhos acadêmicos medíocres, por parecerem a aplicação de uma receita de bolo, não tem nada com Florestan, que foi um dos maiores sociólogos brasileiros. Veja a contribuição enorme que deu para a fortuna bibliográfica de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto. No caso, uma fortuna crítica. Criticíssima! Na verdade Florestan, nome incontornável no modelo USP de sociologia, foi um dos grandes responsáveis pela ojeriza que boa parte da intelectualidade brasileira desenvolveu durante muito tempo em relação à obra-prima de Gilberto. (Num breve parêntese, observo que Florestan nunca escreveu uma obra-prima...). Gilberto, mesmo não tendo sido o autor da expressão, é verdade que deu munição teórica à tese da "democracia racial" brasileira, que hoje qualquer conhecedor de Brasil não hesita em considerar um "mito". Pois bem. Foi a produção uspiana, inclusive de Florestan, com o seu importante "A Integração do Negro na Sociedade de Classes" que erodiu o mito. E essa erosão se deu a partir de trabalhos sociológicos dotados de um rigor metodológico que a produção ensaística, pelo menos a princípio e a olho nu, não tem. Então, que fique bem claro que sou intransigente em relação ao rigor do sociólogo. Agora, se ele puder embalar esse rigor numa roupagem ensaística (que não se confunde com o mero discurso ideológico, note bem), ótimo! Ótimo sobretudo para o leitor, que vai saborear, e não estudar, a sociologia... Digamos que o ideal é o famoso dístico de Barthes, do saber com sabor. Não é fácil...


Fernando – Refletindo um pouco sobre os paralelos que você traça entre o bruxo Machado e o rabugento Graciliano, retenho a impressão, não sei se equivocada, de que você se inclina mais para o segundo. Fale-me um pouco, muito livremente, sobre sua leitura de Machado e de Graciliano.

Luciano - Machado, literariamente falando, é insuperável.Os seus textos, pelo menos a partir de um certo momento (digamos, o "segundo Machado"), são tão graciosos, tão engraçados, tão elegantes, que às vezes faço como o crente que abre a Bíblia em qualquer página e começa a ler. Dela ele sempre extrairá algo para o seu senso ético e estético. Pois bem, de qualquer página de Machado sempre extraio qualquer coisa que causa prazer ao meu senso estético. Mas Machado como pessoa é uma figura completamente desinteressante! Foi um funcionário exemplar, deferente, um mulato que subiu na vida graças ao próprio gênio e apagou os rastros da origem pobre, da qual se envergonhava. Foi um dissimulado. Vingou-se escrevendo uma obra tão corrosiva que não conheço autor que, como ele, deixe pedra sobre pedra da suposta grandeza do homem. Já Graciliano, como procuro sustentar no ensaio "O Caçador de Hinos", que é o último do livro, foi um herói brasileiro. Somos um país com uma vocação tão grande para a molecagem, ao mesmo tempo tão aferrados a um incrível bacharelismo oco em que ninguém acredita, que você falar em herói brasileiro já parece que está de gozação. Mas, não! Graciliano foi isso. Além de ter sido o extraordinário escritor que foi, o velho Graça era um sujeito de uma integridade moral tão grande que nem parece ter existido um sujeito assim num país como o Brasil. Célebre e amigo do ministro da educação Capanema, poderia ter sido um sinecurista de primeira, sobretudo depois que saiu da prisão e virou uma celebridade que todo mundo queria reverenciar... Pois só conseguiu empobrecer ao longo da vida. Terminou seus dias vivendo como copy-desk de jornais e inspetor de ensino secundário no Rio de Janeiro, onde passava as tardes pegando ônibus e gastando a sola do sapato para visitar as escolas que devia fiscalizar... Dos onze meses no inferno que passou nos cárceres da ditadura de Getúlio, extraiu uma obra-prima da literatura mundial, "Memórias do Cárcere", um livro que todo brasileiro deveria ler. Enfim, entre Machado e Graciliano, minha razão balança. Mas se for escutar o coração, um carinho especial vai para o alagoano, sem dúvida. Que escritor! Aquela primeira página de "São Bernardo", acho a melhor primeira página de toda a literatura brasileira... Ih, estou me deixando levar pelo entusiasmo. Digo isso porque me lembro que uma vez lhe disse isso e você, muito maliciosamente, perguntou: "Mas você já leu toda a literatura brasileira?..." Lembra da risada que demos?

domingo, 6 de junho de 2010

Mário de Andrade e alguns contemporâneos


Mário, G. Freyre, Graciliano...

Durante anos fui leitor apaixonado e acrítico de Mário de Andrade. Somente bem mais tarde me dei conta de que a paixão, fundada em altas motivações intelectuais e humanas, praticamente anulara em mim a percepção crítica de algumas insuficiências flagrantes no caráter e na prática intelectual de Mário. Poderia hoje com segurança assinalar alguns exemplos. Foi lendo com maior escrutínio crítico a obra de escritores como Gilberto Freyre e Graciliano Ramos que me apercebi do silêncio aparentemente inexplicável com que Mário tratou a ambos. Poderia ainda acrescentar, ocorre-me agora, Monteiro Lobato, além da corrente introspectiva e metafísica das décadas de 1930 e 1940 , na qual sobrelevam nomes como Lúcio Cardoso, Cornélio Pena e Clarice Lispector.

Como explicar que um crítico e leitor tão generoso e onívoro tenha ignorado de público ou considerado muito parcialmente a obra de contemporâneos tão importantes? No que se refere a Monteiro Lobato, é claro que o affair Anita Malfatti, inscrito nas origens remotas do movimento que Mário desde cedo liderou identificando-se confessadamente com seus ideais mais profundos, desempenhou papel decisivo. É compreensível que a luta por hegemonia estética e intelectual tenha dividido ambos em campos convencionalmente opostos. Digo convencionalmente opostos por ter hoje nítida consciência de que Lobato não era um pré-modernista, para ficar numa distinção superficial consagrada pela historiografia oficial do modernismo. É portanto compreensível que se tenham enfrentado nestes termos; não é porém aceitável o fato de Mário não haver nunca reconhecido de público os méritos literários e intelectuais do seu adversário, que de resto supera boa parte da corte medíocre que cercou o autor de Macunaíma. Mais que isso, os méritos do grande agente modernizador do Brasil que foi Monteiro Lobato. A omissão é ainda mais intrigante se consideramos o quanto a prática pública de ambos convergia.

A omissão de Gilberto Freyre na obra de Mário é uma injustiça ainda mais grave, indigna de um intelectual que pelejou por ser isento de paixões mesquinhas no trato das questões culturais. Decerto afetado pela antipatia recíproca que desde cedo os separou, é também compreensível, dentro destes limites, a reserva e frieza com que tratou o pernambucano. Quando porém Casa-Grande & Senzala vem a público, já não há como objetivamente silenciar sobre a grandeza do feito de Gilberto Freyre. Se a isso acrescentarmos o fato de que compartilhavam ideais nacionalistas convergentes, como explicar que Mário jamais tenha escrito e publicado sequer uma nota crítica reconhecendo os méritos extraordinários da obra marco de Freyre?

Ocorre-me neste passo evocar dois fatos provindos de fontes insuspeitas para evidenciar a parcialidade crítica de Mário e sua vulnerabilidade à ação ressentida contrária a tudo que de público pregou em nome do seu humanismo cristão. O primeiro está contido em Ramais e Caminho, ensaio de biografia intelectual assinado por Telê Ancona Lopez, zeladora fiel da obra e do acervo de Mário. A pesquisa em que o livro se apóia deixa claro não somente o fato de que Mário leu cuidadosa e anotadamente Casa-Grande & Senzala, mas que também distinguiu a obra como uma das fontes do seu projeto cultural em defesa dos valores nacionalistas.

O segundo fato provém de uma longa conversa com Antonio Candido e Gilda de Melo e Souza, que em 1995 franquearam-me o privilégio de uma demorada visita à sua casa. Conversamos livremente sobre muitos assuntos. Por motivos óbvios, os dominantes foram Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Confesso que me retirei levando comigo algumas grandes revelações e surpresas ouvidas do nosso grande crítico. Registrei um tanto extensamente a visita e a conversa no diário que então escrevia em São Paulo, onde provisoriamente residi, pela última vez, no primeiro semestre de 1995. Dada a oportunidade do assunto, aqui registro de memória o que importa para os argumentos desta entrada.

Ouvi de Antonio Candido a revelação de que Casa-Grande & Senzala era o livro que gostaria de ter escrito. Embora tenha feito severas restrições a Gilberto Freyre e a seu comportamento ideológico, sobretudo nos anos tardios deste, restrições que substancialmente endosso, foi de isenção exemplar no reconhecimento dos méritos da obra na medida em que independem da biografia do autor. Pena que de público tenha sido omisso por tanto tempo, o que novamente prova que o juízo e a ação de nenhum intelectual se manifestam integralmente a salvo do ressentimento e até das paixões mesquinhas.

Mas o que desejo observar a propósito de Mário é o fato de que, ainda segundo Antonio Candido, lá pelos idos em que Gilberto sofreu tenaz perseguição do interventor do Estado Novo em Pernambuco, Agamenon Magalhães, Sérgio Buarque de Holanda tomou a iniciativa louvável de mobilizar publicamente a opinião intelectual paulista em defesa do escritor pernambucano. Teve então a idéia de circular um abaixo-assinado recolhendo assinaturas ilustres como ato de denúncia contra o arbítrio do interventor. Mário de Andrade recusou-se a assinar o documento, recusou-se a assumir qualquer posição pública em defesa de Freyre.

Quanto a Graciliano Ramos o juízo do tempo o confirma como a expressão máxima da corrente literária hegemônica a partir dos anos trinta: o Romance Social do Nordeste. É certo que à época era bem maior o prestígio de José Lins do Rego, prestígio confirmado e reforçado pela apreciação crítica de Mário que chegou ao extremo de nele identificar o maior romancista brasileiro. Isso está explicitamente anotado num artigo que dedicou à obra de Lins do Rego, como qualquer interessado poderia comprovar lendo O Empalhador de Passarinho. Que eu saiba, Mário nunca escreveu qualquer artigo sobre Graciliano Ramos. É um outro fato de difícil explicação. Seus contemporâneos de mais alto valor crítico (como Carpeaux, Álvaro Lins, Antonio Candido, para ficar na menção dos mais notáveis) foram unânimes em reconhecer o valor da obra de Graciliano. O juízo do tempo, como acima ressaltei, veio apenas confirmar a melhor apreciação literária brasileira. Hoje pode-se com segurança afirmar que o prestígio de Lins do Rego encolheu um pouco. O de um outro concorrente de peso, Jorge Amado, encolheu ainda mais, pelo menos aos olhos da crítica especializada. Eu mesmo há muito me desinteressei pela obra do baiano, que hoje releria muito seletivamente.

Dado o fato de que a orientação crítico-ideológica fundamental de Mário estava associada a esta corrente hegemônica da literatura brasileira, não há como explicar por aí sua resistência ou silêncio perante a obra de Graciliano. Embora dissentindo da orientação dos nordestinos quando estes tendiam a sobrepor a ideologia regionalista e política aos valores prioritariamente estéticos da obra, Mário alinhou-se substancialmente a esta tendência, tanto que foi talvez o crítico mais entusiasta da obra de Lins do Rego. Ora, dentre todos os nordestinos Graciliano foi o mais coerentemente literário no sentido de que sempre se recusou a subordinar a obra a interesses ideológicos. Qualquer leitor corrente da nossa literatura sabe que foi único entre seus pares na prioridade que sempre conferiu aos valores estéticos da obra, único no rigor ideológico e formal com que construiu sua obra sem qualquer concessão às pressões políticas do tempo. Seria um motivo adicional para Mário reconhecer-lhe a superioridade perante os outros, já que este era um dos critérios inegociáveis da crítica militante que exerceu no período. Como então explicar o fato de que nunca dedicou qualquer estudo ou artigo à apreciação do romancista alagoano?
Era por identificar-se com as tendências e valores expressos na corrente do romance nordestino, assim como na literatura compreendida em geral como uma complexa articulação de valores estéticos e pragmatismo social, que Mário fazia reservas ao romance socialmente desinteressado. Isso explicaria, presumo, suas restrições – às vezes asperamente injustas, como foi o caso da sua apreciação de Lúcio Cardoso – ao romance de corte psicológico e metafísico. Que eu saiba, não registrou de público, com o entusiasmo devido, a extraordinária estréia de Clarice Lispector. Outros contemporâneos, igualmente sensíveis aos valores ideológicos da obra, souberam identificar em Perto do Coração Selvagem um sopro surpreendente e renovador da ficção brasileira. Foi o caso de Sérgio Milliet – acho que também Álvaro Lins, não lembro agora com certeza – e sobretudo o então jovem crítico Antonio Candido, que soube perceber os méritos extraordinários da estreante. Mário, entretanto, passou ao largo de Clarice e de um outro importante romancista de orientação artística similar: Lúcio Cardoso.

Durante muito tempo, como principiei assinalando nesta entrada já extensa, não me apercebi destas insuficiências de Mário, algumas comprovadamente indignas do grande homem e escritor que foi. Não as percebia devido a minhas limitações intelectuais. Mas pondero haver um outro fator concorrente, talvez mais decisivo. É que li Mário com grande paixão desde que tomei contato com sua obra. Admito que a influência que exerceu sobre mim foi imensa, provavelmente maior que a exercida por qualquer outro escritor. Hoje conscientemente dou prioridade a vários outros, tanto brasileiros quanto estrangeiros. A importância e influência da obra e da vida de Mário persistem em mim, claro, pois é em muitos sentidos um escritor definitivo na nossa cultura e literatura. Mas posso hoje medi-lo com uma isenção e uma consciência crítica que sem dúvida pesam no sentido de encurtar sua medida. Noutras palavras, acredito ler hoje mais a medida real e falível, como de resto a de qualquer indivíduo criador, do que a ideal nutrida por um leitor inexperiente, menos cultivado intelectualmente e demasiado apaixonado pelas virtudes humanas do escritor. Por isso já escrevi, e repito, que Mário de Andrade é um dos raros escritores que gostaria de ter conhecido. Segundo minha experiência, antes lida do que vivida, a maioria dos escritores importa pela obra que realiza, não a vida que viveram. Aliás, esta é com frequência decepcionante do ponto de vista ético e amplamente humano. Por isso há muito aprendi que o que verdadeiramente importa é a obra. É ela quem salva o melhor da nossa humanidade, a começar pela dos próprios que a inventam.

A paixão a que aludo deriva em particular da humanidade generosa que Mário de Andrade imprimiu a tudo que criou e escreveu. Neste sentido, diria ainda que é um artista único. Apesar de hoje pôr o dedo em algumas das suas insuficiências mais evidentes, acima grosseiramente indicadas, continuo distinguindo-o como nosso escritor mais generoso, como um artista tocado por valores humanistas palpitantes na obra quanto na biografia. É esta associação que me parece excepcional na maioria dos artistas. Até onde minha experiência de leitor e minha experiência de convívio intelectual (esta bem mais modesta) me autorizam ajuizar sobre o assunto, afirmo hoje com serena convicção que me desinteressei largamente das possibilidades de convívio com intelectuais. A razão disso, como acima salientei e não me poupo de repetir, radica na consciência de que o melhor deles está contido na obra produzida, não na biografia, não no convívio convencional com seus pares ou com o semelhante em geral. Vistos e vividos de perto, os artistas denunciam no que são e fazem as mesmas imperfeições da nossa humanidade pouco atraente ou edificante, se a despimos das idealizações narcisistas com que a vemos e nos vemos.

Mário de Andrade é talvez o único exemplo de artista cuja vida no sentido acima proposto é passível de ombrear com os méritos da obra, senão mesmo superá-la. Esta verdade é aferível antes de tudo na leitura da sua correspondência e no depoimento muitas vezes comovente dos que tiveram o privilégio de merecer sua amizade e dedicação. Sua correspondência, documento único na cultura brasileira, está aí para quem queira verificar o quanto imprimiu de humanidade generosa a tudo que criou e sobretudo às amizades que soube conquistar e manter. É esta para mim a grandeza maior da obra de Mário de Andrade. A ela devo, quando ainda mais jovem e carente de um sopro de humanidade substitutiva na minha solidão amargada no meio em que vivi, uma inesquecível experiência de beleza e generosidade simbolicamente compartilhada.

31 de julho de 2004.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Machado e Graciliano por Luciano Oliveira


Entre humor, rabugice e alguns entretons

Uma sucessão de acasos afortunados cruzou minha vida com a de Luciano Oliveira e desde então temos nos divertido imensamente juntos. Não vou reconstituir tais acasos apertado nos limites de um breve prefácio de resto singular. Digo singular por estar absolutamente convencido de que, pela primeira vez na história editorial do Brasil - ou do mundo, corrigiria de pronto Julião Tavares entrançando as pernas sob a cadeira rangente – o prefaciador é que se beneficia do prefaciado. Importaria ainda ressaltar que Luciano é um verbo que costumo conjugar no plural, melhor diria no gerúndio: Lucianando. Pois sua mobilidade, antes de tudo imaginativa e sempre impregnada de humor, vela e desvela múltiplas camadas de personalidade e prática da vida. Antes de ir adiante, conviria piscar o olho para o leitor de Manuel Bandeira alertando-o para o fato de que estou apenas parafraseando um poema mínimo consagrado a Teodora.
Agora vou adiante. Condensando num parágrafo o que intento acentuar na minha memória dos acasos felizes que me associam a Luciano, frisaria que de imediato me acerquei do sociólogo autor de um artigo sobre Cidadão Kane, celebrando assim sua cinefilia. Acerquei-me ainda mais do autor de Brasil via Paris, um imaginoso e penetrante ensaio, por isso infelizmente inédito, no qual ele traça alguns paralelos entre a cultura brasileira, em particular nordestina, e a francesa. O outro sociológico de Luciano, o que lhe rendeu notoriedade intra e extra-acadêmica como autor de livros e ensaios embasados em investigações empíricas e outros ossos do ofício, este ocupa lugar bem mais discreto na nossa amizade e na linha dos interesses intelectuais que prioritariamente compartilhamos. Mas mesmo nesta parte de sua obra o leitor atento tem pronta ciência de que não lê um autor de estilo convencionalmente acadêmico. Pois o fato é que ele, dotado de virtudes literárias irreprimíveis, reveste com forma inventiva e singularmente sua os assuntos mais áridos catalogados nos escaninhos acadêmicos como sociologia do direito, ciência política, criminologia, jurisprudência e outras especialidades solenes.
Um dia Luciano me trouxe das margens do Sena uma frase assinada por Alphonse Allais. Veio enquadrada em uma moldura que conservo em lugar visível de minha sala.A frase: “Les gens qui ne rient jamais ne sont pas des gens sérieux”. Se Allais tem razão, de minha parte não duvido, Luciano é um autor muito sério. Recolheu num vasto registro da expressão humana, que vai da chanchada brasileira a Machado de Assis - ele cruza rotineiramente esses extremos da cultura isento de qualquer preconceito - a sábia lição de que a existência humana seria intolerável apartada do riso que a reinventa e lhe alivia o fardo. Mas presumo ser esta uma lição enraizada na própria disposição temperamental espontaneamente encaminhando-o para o humor e o riso que tudo transfiguram e iluminam a realidade e suas materializações mais sisudas com tons e entretons antes neutralizados ou obscurecidos. Penso que é bem essa disposição temperamental, evidentemente somada a seu olhar de leitor penetrante e interrogante, que explica algumas das vias através das quais aproxima dois escritores na aparência tão divergentes.
Depois de muito debruçar-se sobre a obra do Bruxo do Cosme Velho e a do Rabugento de Palmeira dos Índios, eis que um dia se dá conta de que obscuras linhas convergentes aproximam autores tão na aparência canonicamente separados. E o que mais surpreende é o fato de empenhar-se na tarefa de extrair ou trazer à luz a componente de humor subtraída das leituras correntes de Graciliano Ramos. Talvez a primeira pista que lhe tenha ocorrido se prenda à figura sórdida de Julião Tavares. Julião, bem sabem os leitores do velho Graça, é o sedutor vulgar que finda por subtrair Marina das garras devaneantes de Luís da Silva, o atormentado narrador de Angústia, tão exasperado e corrosivo quanto o protagonista de Notas do Subsolo, de Dostoiévski.
Com seu olhar clinicamente cômico, também por vezes cinicamente cômico, imagino Luciano relendo Angústia dentro de uma certa manhã ensolarada de Recife. De repente, uma luz insofreável rebrilha no centro do seu olhar matreiro. Eis que defronta Julião Tavares, com as pernas entrançadas sob a cadeira, vertendo disparates sobre as grandezas ilusórias de Maceió. O tom aparente do narrador – Luís da Silva, evidentemente – é de pura e áspera rabugice. Muitos leitores decerto atravessaram essa passagem retendo sua percepção na linha crua da entonação ácida que percorre o conjunto da narrativa. Talvez tenham ido além, talvez tenham figurado na persona de Luís da Silva uma projeção da rabugice do próprio autor reiteradamente enfatizada em testemunhos e anedotas de contemporâneos e críticos demasiado aderentes às chaves biográficas da obra literária.
Em mais de uma passagem do seu livro Luciano argumenta com propriedade em defesa de linhas convergentes observáveis na obra de Machado de Assis e na de Graciliano Ramos. Sua argumentação é sólida e ademais necessária, já que é sabida a resistência do segundo à obra e antes de tudo à biografia do primeiro. Diria que esta contamina a apreciação criticamente isenta daquela. Luciano vai antes de tudo à obra, que é o que de fato importa para a atividade crítica, e aí destaca e ilumina aproximações bem fortes entre ambos. Importaria ainda acentuar que a resistência de Graciliano a Machado encobre sentidos bem mais abrangentes. Quero dizer, outros escritores contemporâneos do Rabugento, igualmente importantes e reconhecíveis pela penetração com que apreciaram muito da nossa literatura, incorreram em reservas semelhantes que ao cabo comprometem o apreciador, eles, não o apreciado, Machado.
É o caso ainda mais significante do famoso ensaio de Mário de Andrade igualmente considerado por Luciano. Seria ainda o caso de lembrarmos Gilberto Freyre, sobrepondo José de Alencar, Euclides da Cunha e José Lins do Rego ao mestre supremo do Cosme Velho; também Jorge Amado, que reparte nossa tradição narrativa em duas vertentes, uma representada por José de Alencar, outra por Machado, para em seguida coerentemente alinhar-se com a primeira. Há certamente outros que omito, pois não é minha intenção recensear o assunto numa breve consideração espremida nas linhas de um prefácio. A menção a este fato parece-me todavia importar na medida em que aponta para um reconhecimento mais sólido e consensual da singularidade estética de Machado no conjunto da nossa história literária.
Presumo que atualmente nenhum crítico, salvo a fração residualmente provinciana dos que lhe medem a excelência indiscutível, erra na avaliação substancial de sua universalidade tantas vezes no passado incompreendida por estudiosos ora turvados por nossa renitente tradição atada ao par romantismo e nacionalismo cultural - doença crônica e camaleônica da cultura brasileira, como observou Sérgio Paulo Rouanet em tom polêmico - ora por outras formas de estreiteza ideológica ou ainda psicológica, como aparenta ser o caso de Lima Barreto e a resistência de Graciliano Ramos já acima sublinhada. Resumindo, o fato imperativo é que a recepção da obra de Machado de Assis vale hoje como medida de sensibilidade e inteligência literária. No Brasil, como no estrangeiro, sucedem-se estudos de qualidade unânime no reconhecimento de valores artísticos que elevam Machado à altura dos seus melhores contemporâneos e pósteros. Luciano tem ciência disso. Essa é uma das razões de em vários pontos da sua obra centrar o foco argumentativo em críticos como Augusto Meyer, Roberto Schwarz, John Gledson, Sérgio Paulo Rouanet, José Guilherme Merquior, Alfredo Bosi e outros que tanto concorreram para consolidar um ponto de consenso em torno da obra de Machado.
Sem querer abusar da elasticidade do conceito de obra aberta, acredito que muitas leituras, mesmo aquelas mais aderentes às linhas de sentido objetivamente aferíveis na obra do autor analisado, projetam em graus variáveis algo da personalidade e até diria das idiossincrasias do crítico. Desconfio de que isso efetivamente ocorre no modo como Luciano Oliveira nos devolve sua recriação de Graciliano Ramos. O aspecto dessa recriação ou releitura que objetivo salientar prende-se aos elementos de humor acaso espelhados na obra do Rabugento. Este designativo já por si trai o vinco de humor intencionado pelo crítico. Visando melhor articular meu argumento, valho-me da longa intimidade que tenho o privilégio de compartilhar com Luciano para sugerir em linhas menos turvas a medida em que um traço decisivo da sua personalidade incide sobre as camadas de humor supostamente inscritas na obra do Rabugento.
Esperando ainda não incorrer numa chave psicologicamente redutora, ressalto o fato de que Luciano é um dos seres mais entranhadamente engraçados que conheço. Seu senso de humor – o termo vai aqui compreendido também na sua acepção inglesa, cuja expressão brasileira mais plena está contida na obra do Bruxo do Cosme Velho – tende sempre a desatar-se ao estímulo do primeiro contato. Mais que senso de humor, nele se somam e sobrepõem o galhofeiro, o palhaço de picadeiro (ele de resto deplora não ser na vida efetivamente um deles), o menino trocista rebelde às convenções impostas pela sociedade e a experiência acumulada pelo profissional maduro. Se Oswald de Andrade perdia um amigo para não perder uma piada, Luciano perde ambos, amigo e piada, contanto que ele e os circunstantes riam. Ora, essa matizada e irrefreável força de humor e galhofa pulsa no centro da vida e da personalidade do nosso crítico. É assim compreensível que a projete num estudo de apreciação literária. O que de certo modo desorienta o leitor mais austero é a circunstância de Luciano, operando num quadro no qual livremente se mesclam os sentidos objetivamente dados pela obra e sua indócil personalidade de crítico, ressaltar no velho Graça precisamente essa tão inesperada componente de humor e riso inscrita no cerne de alguns dos ensaios aqui reunidos. A tudo adicionaria, tanto em defesa do meu argumento quanto em defesa das pérolas que recolhe e exibe ao cabo de sua jornada, que eu próprio aprendi com ele a enxergar nas pernas entrançadas de Julião Tavares uma irresistível cena de humor. Foi lendo e ouvindo Luciano, sobretudo acompanhando sua alegre e ao mesmo tempo angustiada tarefa de composição do livro, que passei a reler Julião Tavares, assim como outros personagens e cenas descritas na obra do Rabugento, que enfim assimilei à minha leitura de uma obra sempre apreciada como áspera e opressiva esse ingrediente de humor tão original e desconcertante inscrito nas linhas de O Bruxo e o Rabugento.
O que Luciano acrescenta às leituras correntes no paralelo que ensaia entre Machado de Assis e Graciliano Ramos é precisamente essa camada de sentido dentro da qual subitamente irrompe uma gargalhada inusitada. Que o leitor confira por si próprio. No caso de concordar com o autor, atestando que somente as pessoas sérias gozam do privilégio de rir dos disparates de Julião Tavares narrados por Luís da Silva, concluirá assim que fora antes traído pelas aparências quando opunha Machado de Assis a Graciliano Ramos preso a incompatibilidades sem dúvida aferíveis, mas nunca substantivas. De humor e de riso já se disse muito quando a obra em questão era a de Machado de Assis. Luciano Oliveira sem dúvida altera e enriquece a fortuna crítica de Graciliano Ramos, a quem isento de qualquer cerimônia trata como o velho Graça, quando nela ilumina uma sombra que nenhum rabugento ou leitor inocente antes notara. Acrescentaria que nem mesmo o velho Graça, dizem que rabugento demais para fazer humor e provocar riso à custa do que odiava ou desprezava. Se for o caso, mais uma vez estaremos diante de um autor traduzido a contrapelo de si próprio. Espero, por fim, que o leitor se divirta, que ria muito como rimos Luciano Oliveira e eu. Afinal, somos gente séria demais.