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domingo, 19 de agosto de 2012

Caetano versus Chico


Caetano Veloso completa 70 anos e a mídia não perde viagem. Convenhamos, vender notícia é o fim inscrito na natureza do seu funcionamento. Visando alcançá-lo, ela não mede princípio. Essa questão, de nítidas ressonâncias éticas, é tão velha quanto o ovo ou a galinha. Quero dizer, há críticos da mídia que a responsabilizam por alienar o público; outros, notadamente os que fazem a mídia e dela vivem, replicam alegando que vendem o que o público quer. Como não tenho resposta para a questão, nem sei de quem a tenha, retomo o caminho do qual me desviei.

A mídia não perde viagem, como dizia, e assim cuida de reacender uma rivalidade já esquecida. Quem é melhor: Caetano ou Chico? Para início de conversa, a rivalidade é invenção da mídia, não deles. Irrompeu no auge do tropicalismo, quando Caetano, Gilberto Gil e outros anárquicos astutos levaram ou fingiram levar a sério o lema: é proibido proibir. Se na França, de onde proveio o lema, o cassetete baixou sobre os libertários, o que dizer da ditadura brasileira? Bem, deu no que deu. Como todo mundo sabe disso, vou em frente. Antes esclareço a expressão “anárquicos astutos”, que não entrou no parágrafo por acaso. Chamo a atenção dos ingênuos, que ouvem na música apenas música, para o fato de que o tropicalismo foi um investimento astuto dos seus líderes, uma estratégia para converter o mercado da arte de massa em ascensão no Brasil em forma artística e trampolim para o estrelato.

Foi nesse contexto que a mídia e críticos de vanguarda de notável talento (penso antes de tudo em Augusto de Campos) forjaram a rivalidade. Reduzida ao essencial, dizia-se que Caetano simbolizava a vanguarda artística, a música de invenção para a massa. Apostava-se também no célebre trocadilho de Oswald de Andrade, um dos inspiradores do tropicalismo: um dia a massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico. Escrevo sem aspas porque estou citando de memória. Hoje o trocadilho parece hilariante, mas os vanguardistas acreditavam piamente na inteligência e refinamento educável da massa. Não era à toa que eram de vanguarda.

Voltando ao enredo, se Caetano simbolizava o novo (não confundam com novidade, coisa que hoje se forja muito mais do que naqueles tempos ainda relativamente pudicos em termos de ética de mercado), a invenção sintonizada com a montagem de uma sociedade de consumo moderna, Chico, coitado, foi reduzido a símbolo de um passado feito de realejos, serenatas, Carolinas na janela, um Noel Rosa de viaduto, um tocador de cavaquinho num mega show de rock. É claro que a chama alastrou-se chamuscando os astros em competição, até então amigos. As tensões e divisões daí decorrentes afetaram também outros astros já estabelecidos ou em ascensão, como seria de prever, mas Chico e Caetano eram as estrelas maiores do firmamento televisivo. Logo, seria natural que a mídia concentrasse os refletores sobre os dois. A rivalidade tornou-se notícia de vida longa e lucrativa. Os astros se reconciliaram publicamente num célebre show realizado em Salvador, depois do exílio de ambos, mas ainda sob vigilância severa da ditadura.

A ditadura recolheu a dentadura, e outros instrumentos mais atemorizadores, a Globo fez as pazes com Chico, censurado durante anos, e em meados dos anos 1980 produziu uma série de shows sob o título Chico e Caetano. Claro que o sucesso foi imenso (eu, que há anos não vejo televisão, vi e gravei tudo) e um dos programas, pelo menos, mereceria uma edição em DVD: o que teve Tom Jobim e Astor Piazzolla como convidados. Como veem, isso era biscoito fino para a elite do público de massa, o paradoxo é intencional, que alegremente se diluiu em farelo. Se antes Chico ludibriava a censura ditatorial cantando: “hoje você é quem manda / falou tá falado /não tem discussão...”, hoje me queixo em vão do mercado, que fala e vende o que quer à nossa subserviência consumista.

Que faz um astro ético diante da potência diluidora do mercado? Caetano Veloso, com seu talento camaleônico, faz o jogo da mídia e do palco com astúcia refinada pela prática que remonta ao tropicalismo, com seu narcisismo de muitos gumes. Quanto a Chico, de temperamento mais retraído, com um sentido de coerência mais retilíneo, mede à distância a corda bamba na qual Caetano se deleita em fazer malabarismos. Em suma, cada um com seu talento e modo de ser. O que é inegável é a importância da obra que produziram. É esta que importa e por isso não convém rebaixá-la à disputa fútil de um Fla-Flu, pois a isso se reduz a rivalidade promovida pela mídia.

Artistas de múltiplos talentos, Caetano e Chico têm personalidades e formas de expressão muito distintas. O primeiro, justificando seu narcisismo ostensivo, se transfigura no palco, na criação acionada pelo contato vivo com o público. O segundo, contrariamente, é artista cujas pérolas são lapidadas em estado de reclusão. Sendo assim, Chico resiste ao palco, se retrai no contato direto com o público. Para ele a criação estética é o avesso, por exemplo, do happening, tão afim ao estilo irreverente e despachado de Caetano. Prolongando no mais alto sentido a tradição lírica, compreendida tanto literária quanto musicalmente, Chico trairia sua força criadora se embarcasse num movimento como o tropicalismo. O que importa é que se renovou extraordinariamente. Calou assim a crítica que o opôs à rebeldia tropicalista levianamente reduzindo-o à medida de um artista ultrapassado.

Nos anos 1970, ambos amadureceram e renovaram sua obra. Chico associou a música ao teatro, experiência já iniciada na década precedente, também ao cinema. Caetano também compôs música para cinema, mas no geral confinou sua obra à música e à crítica ocasional, sempre exercida em tom inteligente e provocativo. O Chico tardio concentrou-se na paciente elaboração de romances que lhe têm valido o apreço da crítica e sobretudo do leitor. É claro que, apesar do seu talento literário indiscutível, o romancista muito se beneficia da fama do compositor e cantor. Quanto a Caetano, escreveu o melhor livro que temos de memórias da efervescência musical dos anos 1960 relacionada ao contexto social e ideológico. O leitor sabe que me refiro a Verdade Tropical.

Portanto, concluo repisando o que acima escrevi: cuidemos da obra, opinemos sobre ela à margem do espírito barato do Fla-Flu alimentado pela mídia interessada apenas em vender notícia. Um dos grandes privilégios da arte brasileira é ter produzido dois artistas tão extraordinários. Musicalmente, não tenho dúvida, perdem apenas para Tom Jobim. Mas este está acima de comparações e paralelos. Tom é simplesmente o maior compositor popular do século 20. E notem que não usei nenhum qualificativo geográfico, isto é, não afirmei que ele é o maior do Brasil. Tom é simplesmente o maior e ponto.
Recife, 5 de agosto de 2012.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Edu Lobo Bossa Recife


O documentário Vento Bravo (2007) começa com duas cenas muito significativas que, enquanto tal, anunciam duas referências fundamentais para nosso conhecimento da música de Edu Lobo: a premiação de Ponteio, talvez o triunfo supremo da sua carreira; o sentido seminal do Recife, sua cultura e paisagem, na sua formação. No andamento desta cena, com Edu a bordo de um carro transitando contra o fundo da paisagem tropical recortada pelos coqueirais e o mar invisível, mas já insinuado na imaginação do espectador, a tela é invadida pelos sons de Candeias. A cena desdobra-se na projeção da sombra movente de Edu sobre a areia úmida e por fim se alarga no plano geral do mar com seus tons verde-azulados, barcos à vela cortando as águas. Logo Edu é enquadrado no mundo da sua infância, no Recife e suas extensões litorâneas.

A música de Edu e a forma como desde o início ele a situa nas raízes da sua memória e experiência ilustram uma verdade corrente na história da arte: a função seminal da infância na criação estética. Embora nascido no Rio de Janeiro, toda a sua infância significativa foi vivida no Recife, onde passava férias deleitando-se na atmosfera absorvente da família. Esse é de resto um traço profundo da história social recifense, por extensão nordestina: a dominadora presença da família ramificando-se numa rede de parentes, amigos e outras forças humanas agregadas e agregadoras. A isso somaram-se os ruídos dos pregões de rua, um deles aliás incorporado a uma das composições de Edu: Cordão da Saideira, o mais belo e lírico frevo que conheço. O fato é que o menino Edu Lobo impregnou-se dessas vivências da infância mais tarde convertidas em memória afinal recriada em som e arte. Ele as rememora, as vivências, em muitas passagens do documentário: Caruaru e suas ruas ruidosas cortadas pelos sons agudos das bandas de pífanos; Itamaracá e Pontas de Pedra, Candeias e o esplendor da lua cheia espelhada no mar; cirandas e maracatus; frevos e troças, tudo inundou a imaginação encantada do menino nele fermentando o solo onde anos mais tarde teceu seu mar de sons e poesia. Lembrem Cirandeiro (letra de Capinam), pérola injustamente esquecida evocada por Maria Bethânia numa cena do filme.

Carioca cuja juventude foi vivida à sombra imperiosa da Bossa Nova e de Tom Jobim, expressão suprema das duas gerações musicalmente mais importantes da música brasileira, a da Bossa Nova e da MPB desmamada nos festivais de música e no clima turbulentamente criativo de resistência cultural à ditadura militar, Edu admite que não teria chance de se afirmar como artista diante de Tom, Baden Powell, Carlos Lyra e outros valendo-se dos recursos de criação musical que estes dominavam. Assim, a via de expressão estética que emprega, a regressão ao mundo da sua infância recifense, foi também uma estratégia de sobrevivência num clima de extraordinária competitividade. A propósito, o crítico Tárik de Souza lembra que Edu entra na atmosfera musical da sua juventude através de Luiz Gonzaga e do acordeon. Outros, como Eumir Deodato, trilharam caminho semelhante.

Edu se afirma, portanto, integrando à sua música duas linhas de influência diferenciadoras e aparentemente antagônicas: a Bossa Nova, de extração carioca, urbana e visada internacionalista, e a música de procedência pernambucana impregnada de tradição rural, regional, e forte sentido de participação social. Foi esta, em síntese, a assinatura que acrescentou ao clima musical da época concorrendo de forma decisiva para desenhar o ponto de ruptura entre a Bossa Nova e a música que passa a ser sumariamente identificada como MPB: a música que explode nos festivais assaltados pelo espírito de competição estética e ideológica exacerbada pela inserção da música popular na máquina de consumo de massa que reponta na cena cultural brasileira em meados da década de 1960.

Edu representa de forma singular a cultura migrante que tanto vincou a formação cultural brasileira. Filho de Fernando Lobo, jornalista pernambucano que migrou para o Rio de Janeiro como tantos outros pernambucanos e nordestinos de talento, engrossou a corrente que desdobra no terreno musical uma tradição enraizada na literatura desde o século 19. Bastaria pensar em José de Alencar, Joaquim Nabuco, Franklin Távora, Sílvio Romero, Aluísio de Azevedo e muitos outros. No século 20 a corrente cresceu transportando sobretudo para o Rio de Janeiro, capital cultural e política do país, quase todos os talentos destacáveis na arte e na literatura.
Edu Lobo ouviu Chega de Saudade pela primeira vez quando de uma de suas férias em Recife. Acentua no documentário o sentido de choque estético que isso representou na sua vida. Passados já tantos anos, é difícil para um jovem de hoje avaliar o sentido radicalmente inovador desta música. Afinal, depois que o novo se rotiniza perde-se a dimensão de ruptura estética que introduz nos códigos dominantes. Ao evocar esse fato Edu reitera o sentido geracional simbolizado na primeira audição de Chega de Saudade. Quando tiveram a oportunidade de pronunciar-se sobre este assunto, também Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque reiteraram o sentido de choque estético expresso no depoimento de Edu. É provável que outros companheiros de geração, se acaso também se pronunciassem, repetissem a mesma história com as variações de ênfase e forma inevitáveis.

Outra experiência de cunho geracional liga-se ao fenômeno das casas abertas, pontos de agregação musical característicos da época em que Edu e seus contemporâneos ingressaram profissionalmente na música. Há quem diga que o símbolo maior dessa forma de associação artística era a casa de Vinícius de Moraes. Edu procura traduzir, também seu parceiro Paulo César Pinheiro, o que isso representou para seu acelerado desenvolvimento como músico. Antes de tudo, prevalecia naqueles grupos livremente compostos um sentido de gentileza, outros em contexto semelhante empregam o termo delicadeza, que definitivamente desapareceu do horizonte da nossa experiência social hodierna. Além de uma intensa e fecunda interação de artistas provenientes de diferentes formas de expressão artística, o convívio era pautado por um espírito de generosidade e senso comunitário impensáveis nos quadros do capitalismo ferozmente competitivo em que passamos a viver, competitividade exasperada pelo narcisismo que permeia todas as nossas relações sociais.

Outro tema interessante introduzido no documentário é o da relação entre Edu Lobo e a Tropicália, a grande explosão inovadora que sucedeu a Bossa Nova provocando reações de perplexidade e conflito nos círculos da MPB. Edu afirma que nunca brigou com a Tropicália. Enfatiza seu ponto de vista esclarecendo que gostava de tudo que Caetano Veloso e Gilberto Gil faziam desde que passou a conhecer o trabalho de ambos. Ressalta, no entanto, seu desagrado diante do caráter teatral do movimento, que na verdade traduzia a astúcia com que Caetano e Gil, narcisistas consumados, souberam explorar os novos recursos de projeção e sucesso forjados pela cultura de massa. É fácil imaginar que Edu, até por força de seu temperamento, do seu modo de aparecer como artista, não teria nenhuma afinidade com o que os baianos faziam na mídia, que então era outra coisa. Edu acrescenta – com razão, assim penso – que o grupo mineiro conhecido como Clube da Esquina tinha importância musical muito superior à Tropicália. Entretanto, pouco se fala disso, pouco se reconhece esta verdade nos estudos históricos relativos à música brasileira das décadas de 1960 e 1970.

Talvez nada melhor traduza a diferença de temperamento e modo de manifestação pública da atividade artística entre Edu e os baianos da Tropicália do que sua renúncia deliberada a ser um grande astro da música brasileira ou um pop star. No auge da sua fama como compositor e intérprete, depois de vencer dois dos festivais de música da época, sobretudo o de 1967, sem dúvida o mais importante dentro deste importante capítulo da história da música popular brasileira, Edu larga tudo e vai estudar música em Los Angeles com Albert Harris. Esta é uma das evidências da superioridade de sua formação técnica e estética se o comparamos à maioria dos grandes compositores brasileiros. As cenas relacionadas à longa temporada de estudos em Los Angeles são pontuadas por uma de suas mais belas composições: a jobiniana Quase Memória. Sugiro ao leitor que a ouça com o outro ouvido sintonizado em Saudade do Brasil, do nosso maestro soberano.

Edu renunciou à fama já consolidada para fazer de si próprio um músico de formação refinada e exigente, um artesão supremo das formas musicais. Nesse sentido, é também sintomático seu reconhecimento de Tom Jobim como nosso compositor supremo. Como bem lembrou, Tom, assim como Villa-Lobos, é o tipo de compositor que obriga seus pares, ainda quando não o queiram ou saibam, a trabalhar, a fazer melhor. Se a memória não me trai, numa outra ocasião, falando de Tom em escala universal, distinguiu-o como um dos cinco maiores compositores populares do século 20. Isento de qualquer viés nacionalista, diria que é talvez o melhor. Comparáveis a ele são George Gershwin e Cole Porter, cito apenas os que primeiro me vêm à mente, mas penso que Tom é ainda melhor que ambos.

Espanta-me que o autor de letras como as de Cordão da Saideira e Candeias tão pouco se tenha aventurado a escrever a letra de suas próprias composições. Talvez o excesso de rigor, o perfeccionismo do artista consciente de que arte é antes transpiração do que inspiração, tenha refreado o letrista de talento lírico notável que é Edu Lobo. O fato é que teve muitos parceiros. Alguns, como Paulo César Pinheiro e Joyce depõem no documentário. Sabemos que seu parceiro mais constante e sem dúvida supremo é Chico Buarque. Como seria previsível e justo, Chico contracena com Edu em boa parte do filme. Talvez apenas a parceria Tom Jobim e Vinícius supere a de Edu e Chico. De certo modo, isso afeta negativamente a grandeza musical de Edu em termos de reconhecimento público. Afinal, que parceiro poderia competir com Chico? Edu fica injustamente rebaixado a um plano tão secundário que ouço gente de bom gosto e bem formada aludindo a Beatriz e outras composições de ambos como se fossem de autoria exclusiva de Chico. Dando a Edu o que de justiça cabe a Edu, tenhamos a consciência de reconhecer que, dentre todos os seus companheiros de geração, nenhum manteve o alto nível de qualidade criativa que ele manifestou dos anos 1990 para cá, exatamente quando alguns dos seus competidores mais talentosos começaram a dar sinal de perda de força criativa.

Nota: direção e o roteiro do documentário: Regina Zappa e Beatriz Thielmann.
Recife, 25 de janeiro de 2011.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Chico Buarque do Brasil


Chico Buarque do Brasil, volume publicado em 2004 e organizado por Rinaldo de Fernandes, é um dentre muitos títulos que celebram em tom consensual a trajetória artística e biográfica de Chico Buarque. Se ligeiramente consideramos a importância extraordinária de Chico Buarque na cultura brasileira desde meados dos anos 1960, torna-se dispensável reconhecer o significado de obras dessa natureza. Começo no entanto por ressaltar esse aspecto dominante da obra precisamente por acreditar que a atividade crítica deve ser sempre crítica, mesmo quando sua função é apreciar artistas em torno dos quais se articula a rede consensual apreensível na fortuna crítica de Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano Veloso e outras raras e definitivas expressões da música e da cultura brasileira.

Embora contenha pouca documentação original, o volume tem o mérito de reunir dados biográficos e críticos relevantes e talvez ainda desconhecidos dos que pouco leem sobre música brasileira. É muito interessante, por exemplo, a documentação reunida na Cronologia. Penso em particular na matéria de uma entrevista que Chico concedeu a Augusto Massi. Nela ele revela fontes preciosas para que melhor se aprecie sua iniciação literária. De início, lê exclusivamente autores franceses sob sugestão do próprio pai, Sérgio Buarque. Pelo que se sabe, a partir de declarações do próprio Chico, Sérgio era um estudioso incansável e metódico. Certamente a mais forte evidência disso está contida na obra de historiografia que produziu, talvez a melhor que temos, também na sua fina erudição crítica espelhada na produção jornalística reunida em livro por Antonio Arnoni Prado. Embora tivesse família numerosa, sua biblioteca era pouco acessível à intrusão dos filhos, provavelmente controlados pela sombra eficazmente protetora de Maria Amélia, sua mulher.

O próprio Chico confessa que sua iniciação literária foi uma tentativa de encontrar uma via de aproximação com o pai demasiado imerso no seu mundo de livros e símbolos. É de certo modo curioso, ou mesmo incompreensível, o fato de Chico aportar afinal na literatura brasileira não através do pai, fonte capital de conhecimento histórico e cultural sobre o Brasil, mas através de um amigo que o reprovou por viver discutindo literatura... em francês. Diante do que sei de Sérgio Buarque através de sua própria obra, causa-me estranheza saber que ele afastou o filho da literatura brasileira, quando o mais razoável seria aproximá-lo. Afinal, ele foi um dos grandes participantes do mais importante movimento literário que já tivemos na história da nossa literatura. O modernismo, dando nome ao boi, teve abrangência infinitamente maior que a literária, ainda que compreendida aqui em sentido elástico. Sérgio confirma de resto, quando consideramos sua trajetória intelectual, este fato que vai aqui brevemente mencionado e melhor expus num artigo já postado no meu blog: Modernismo e Ciências Sociais.

A opção de artistas literariamente privilegiados como Chico Buarque e Caetano Veloso pela música constitui evidência do status intelectual que nossa música popular conquista a partir da bossa nova e sobretudo da contribuição estética e intelectual fundamentais que Vinícius de Moraes e Tom Jobim transportaram para o seu curso tão admiravelmente renovado e elevado a partir de meados dos anos 1950. O primeiro, como se sabe, procedia da tradição poética canônica, portanto restrita a um público altamente letrado, enquanto o segundo era portador de uma sofisticada formação musical erudita, embora vivesse catando moeda como pianista nos inferninhos da noite carioca para sobreviver. Além disso, o pai de Tom, assim como o de Vinícius, era poeta, ainda que retardatariamente parnasiano. Este fato sugere o quanto é lenta a difusão dos grandes movimentos de renovação literária, mesmo no círculo das camadas letradas do qual ambos faziam parte.

Não fosse a mutação profunda sofrida pela música popular a partir desse período, jovens de formação privilegiada como Chico e Caetano teriam provavelmente derivado para outros campos de expressão cultural. O próprio Caetano sublinha bem essa circunstância. Como Chico, embora de extrato social inferior e preso na adolescência ao ambiente provinciano de Santo Amaro da Purificação, ele já lia autores literários de importância, já manifestava interesse pela filosofia e também já esboçara alguns passos de iniciação na crítica de cinema. Como ele próprio reconhece, foi a descoberta da bossa nova, antes de tudo da revolução estética introduzida por João Gilberto no cenário musical brasileiro, o que o atraiu para a música. A tudo isso se soma um fator de ordem sociológica importante, a expansão dos meios de comunicação de massa no momento em que a geração de Chico e Caetano ingressa no território musical.

Chico e Caetano tornaram-se amigos no início de suas carreiras. Mas logo a amizade foi estremecida pela própria turbulência estética e política que tão profundamente caracterizou a década de 1960, talvez a mais rica do século 20 brasileiro. É provável que somente a de 1920, desdobrada na década seguinte, lhe possa fazer páreo. A amizade foi abalada quando o tropicalismo irrompeu na cena musical em meio a uma extraordinária atmosfera de turbulência e radicalismo ideológico. A corrente dominante nos movimentos de esquerda era o nacionalismo cultural. Sua radicalização foi tão notável que mesmo representantes da bossa nova como Vinícius de Moraes e Carlos Lyra acabaram atraídos pela música engajada, pela regressão a temas que punham a música e a arte em geral na linha de frente do combate político à realidade social sustentada pelo regime militar. À parte Tom Jobim e João Gilberto, praticamente todos aderem a um movimento de regressão às fontes tradicionais da música e da cultura brasileira afastando-se assim da sofisticação camerística e liricamente apolítica da bossa nova. A pesquisa das fontes folclóricas e nordestinas, de braço dado com o sentido de engajamento político, prevalece na atmosfera agitada dos festivais de música que irrompem somando a celebração coletiva ao embate ideológico nas salas de espetáculo.

O tropicalismo provocou um autêntico curto circuito nas esquerdas, notadamente, por razões óbvias, na esfera musical. Como movimento que alimentou ambições muito amplas, é difícil traçar num artigo ligeiro suas linhas fundamentais. Ressalto aqui, tendo em vista minhas intenções específicas, sua associação com a vanguarda erudita identificável no movimento da arte concreta, liderado pelos irmãos Campos, Augusto e Haroldo, e por Décio Pignatari. Augusto, o mais afinado com a música, tanto a de vanguarda erudita quanto a popular, escreveu naquele momento uma série de artigos polêmicos, de alta tensão crítica, em defesa do tropicalismo. Esses artigos, acrescidos de outros assinados por Júlio Medaglia e Gilberto Mendes, seus companheiros de armas dentro da vanguarda erudita, visavam a defesa radical das mudanças introduzidas por Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Os artigos, que compreendem ainda uma ótima apreciação geral da bossa nova escrita por Brasil Rocha Brito e entrevistas com Caetano Veloso e Gilberto Gil, foram mais tarde reunidos no volume Balanço da Bossa. Este volume foi mais tarde ampliado e reeditado com o acréscimo de um subtítulo “e outras bossas”. Mesmo o leitor que dele em muitos pontos discorda, é o meu caso, curva-se à força dos fatos para reconhecer que é a melhor avaliação crítica da música à época produzida. Falando da minha experiência de leitor e amante da música brasileira, friso que muito aprendi com esse livro, decisivo para modificar e aprimorar um pouco minha percepção da música popular e das íntimas conexões que a atavam à realidade política e social daquele momento extraordinariamente turbulento e criativo.

Como é típico das vanguardas, o elogio da ruptura estética era indissociável do ataque às correntes opostas. Foi nesse contexto que Augusto de Campos identificou na música de Chico Buarque uma expressão conservadora que precisaria ser criticada sem complacência. Sendo assim, propõe uma relação de antagonismo personalizada em Caetano e Chico. Ampliando o elo das relações antagônicas para melhor definir as linhas de força da cultura brasileira a partir do modernismo, opõe Oswald de Andrade a Mário de Andrade. Estes constituíram as matrizes de um embate renovado na década de 1960 no tropicalismo liderado por Caetano em oposição ao nacionalismo conservador apreensível na música de Chico povoada por bandas, Carolinas e ecos nostálgicos do passado brasileiro.

Oswald de Andrade, que ficara confinado ao quase esquecimento durante duas décadas, é reposto na linha de frente dos movimentos artísticos que agitam a cena cultural nos anos 1960. Além do papel decisivo desempenhado pelos irmãos Campos, Haroldo e Augusto, outros focos de radicalização estética desencavam sua obra para acirrar o clima de irreverência, rebeldia e ruptura anárquica dos códigos dominantes. É o caso do Teatro Oficina, liderado por José Celso Correa, de Glauber Rocha na esfera do cinema novo, sobretudo do tropicalismo capitaneado por Caetano Veloso, que num certo sentido articula todas essas correntes contestadoras não apenas da cultura oficial guarnecida pela ditadura militar, mas também do nacionalismo de esquerda.

Os representantes da arte concreta, adestrados na polêmica e no combate agressivo a tudo que lhes parecesse conservador, reiteravam assim o sentido mais definidor da vanguarda. Na sua obsessão pelo novo sempre contraposto ao velho, da ruptura no avesso da rotina ou da repetição, viam novidade até onde ela não existia. Apostando no caráter potencialmente renovador dos meios de massa, que poderiam ser agenciados em defesa da ruptura estética e política, associaram-se não apenas ao tropicalismo, mas também à jovem guarda de Roberto e Erasmo Carlos, também de Vanderléa. Eles, os concretistas, que tanto combateram em prol da radicalidade da arte contemporânea, acabaram fabricando aliados inexistentes quando festivamente se integraram à corrente da arte de consumo promovida pelos novos meios de massa. E o fizeram batendo de frente contra o nacionalismo cultural de esquerda e de direita, aí incluída a figura consensual de Chico Buarque e sua música que, sem dúvida, soava conservadora se apreciada pelo metro formal e temático da tropicália.

Outro artifício de que Augusto de Campos se valeu foi o de adotar a tipologia procedente de Ezra Pound, que opõe os inventores, ou a radicalidade vanguardista, aos mestres e por fim aos diluidores. É fácil concluir que identifica Caetano e Gilberto Gil com a invenção, deprecia Chico como um mestre e silencia sobre os diluidores, salvo se os identifica com o grupo impreciso que repisa e dilui os clichês do nacionalismo cultural. Augusto de Campos tem certa margem de razão, mas muito do que combate, assim como muito do que prega, transborda da sua receita polarizadora e intransigente. Em suma, o senso de mediação crítica sai bastante chamuscado pelo ardor vanguardista que singulariza sua ação no âmbito da crítica da música popular.

Dando provas de grande vitalidade criativa, Chico se renovou de forma extraordinária sem abrir mão de sua coerência e fidelidade substancial à melhor e mais viva tradição cultural do Brasil. Quando isso se tornou evidente, o próprio Augusto de Campos voltou à cena do crime em tom mais contemporizador observando que Chico “é ainda um mestre mas se contaminou de invenção” Como seria previsível, atribui o ingrediente de invenção à influência saudavelmente contaminadora de Caetano Veloso. O artifício crítico constitui apenas uma variação da leitura que ele e seu irmão Haroldo fazem de Macunaíma quando subordinam a obra inventiva de Mário de Andrade ao espírito da antropofagia ideado por Oswald de Andrade.

Assentada a poeira da polêmica, logo ficou claro que a aposta dos vanguardistas no caráter de radicalidade da música integrada ao circuito do consumo de massa não passava de canoa furada. É certo que a jovem guarda continha elementos de inegável renovação cultural, à revelia da consciência ingênua dos seus líderes. O exemplo dos Beatles, repetidas vezes invocado por Augusto de Campos, é ainda mais forte. Eles sem dúvida renovaram a música de massa, o pop internacional de modo extraordinário. Mas tudo não passou de um episódio isolado no cerne de um sistema de produção e consumo de massa cuja dominante é a repetição, a diluição que tanta hostilidade inspira àqueles identificados com a vanguarda.

Quanto a Chico e Caetano, felizmente se reencontraram em termos pessoais acima dessas polarizações artificiais propostas por Augusto de Campos. A evidência maior da inconsistência desses antagonismos infundados, tão frequentemente promovidos pelos que personificam a rebeldia estética e a radicalidade das vanguardas, está inscrita antes de tudo na própria qualidade da obra musical que produziram dos anos 1960 ao presente. Um dos grandes méritos do tropicalismo consistiu precisamente no combate que moveu contra a intolerância estética e política traduzida em preconceitos contra a jovem guarda, o baião simbolizado em Luiz Gonzaga e até a nossa tradição brega, o mau gosto em geral, para usar aqui uma expressão bem vaga. Como todavia não vivemos isentos de preconceitos e apreciações duvidosas, o próprio tropicalismo entronizou na cena cultural um outro modo de preconceito, o que visa o nacionalismo cultural sem as discriminações devidas, o que opõe arbitrariamente a tradição à ruptura. Felizmente há muito foi superada a necessidade de os grupos de criação e recepção musical oporem esquematicamente Chico Buarque a Caetano Veloso.