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segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Érico Veríssimo, Jorge Amado e Graciliano Ramos


Memórias de um leitor V: E. Veríssimo, J. Amado e G. Ramos

Do ponto de vista cronológico, Érico Veríssimo foi o primeiro autor brasileiro que marcou de forma mais profunda minha formação literária. Li quase toda a sua obra publicada numa coleção de capa-dura da Editora Globo, onde exerceu papel inestimável na tradução e divulgação da literatura inglesa entre nós. Olhai os lírios do campo, provavelmente ainda seu maior sucesso de público, transformou significativamente minha experiência e sensibilidade. Anos mais tarde incorri no erro de o reler, já evidentemente bem mais amadurecido como leitor. Não preciso dizer o quanto me decepcionei. O livro encolheu muito, pareceu-me empobrecido por uma concepção de humanismo sentimental que o próprio autor anos mais tarde também reconheceu. Mas como negar a importância decisiva que exerceu sobre minha vida e minha imaginação quando o li ainda jovem inexperiente, impregnado de fantasias humanistas e sobretudo carente de viver uma vida mais plena de amor e generosidade?

A obra de Érico Veríssimo me deu isso e muito mais. Através dela, dos seus personagens prematuramente fracassados, inábeis para viver, tateando como eu uma direção mais consistente dentro da vida, consegui esboçar um sentido passível de tornar minha juventude confusa mais tolerável. Na obra de Érico Veríssimo, assim como na de Thomas Hardy, as personagens mais impressivas e determinadas, portadoras de extraordinária energia moral, são quase todas femininas. Olívia e Fernanda, notadamente, tornaram-se modelos sonhados e sofridamente desejados na minha imaginação. No tipo arredio de Vasco, com sua introversão de “bicho do mato”, identifiquei com prazer minha própria e confusa introversão. Sentia-me como se encontrasse no espelho da realidade ficcional meu outro que não somente povoava a solidão da minha adolescência intransparente, mas também me reacomodava nas linhas turvas de minhas irresoluções existenciais. Supria ainda por via vicária, voltando às personagens femininas, como é freqüente na nossa experiência imaginativa, a carência de mulheres na minha infância e adolescência. Privado de mãe, de irmãs e outros modelos femininos, sofria em mim a aridez de uma juventude sem amor, o tipo de amor somente concebível na nossa relação com a mulher: o amor da mãe, da avó, da irmã, da namorada... Já nem direi da amiga, pois na atmosfera ainda asperamente patriarcal em que me formei os gêneros somente se associavam amorosamente ou por via parental ou pela via crua da iniciação sexual nos quartos das empregadas domésticas e nos prostíbulos, como foi o meu caso.

Érico Veríssimo acrescentou à literatura brasileira, num momento de grande renovação e difusão da prosa ficcional, uma vertente do romance de ambientação urbana que me marcou bem mais do que a corrente hegemônica da sua geração: o romance regionalista nordestino. Do ponto de vista ideológico, sua obra abre ou alarga um veio do liberalismo humanista com o qual ainda hoje retenho fortes afinidades. Do ponto de vista da técnica, da renovação da forma narrativa, ele incorporou à nossa literatura contribuições significativas do romance inglês que tanto difundiu no Brasil trabalhando como consultor e tradutor da Editora Globo. A técnica do contraponto narrativo, em particular, emprestada do romance Point Counterpoint, de Aldous Huxley, foi por ele admiravelmente empregada na composição de Caminhos Cruzados, um dos seus romances ainda merecedores de releitura.

Nesse momento, o romancista nordestino que mais li e me impressionou foi Jorge Amado. Se minhas leituras e meu indeciso gosto literário dependessem mais diretamente das minhas origens sociais e geográficas, o mais plausível seria tender para a leitura de José Lins do Rego e Graciliano Ramos. O fato, porém, é que nas linhas erráticas do meu itinerário de leitor o acaso foi quase sempre o fator determinante. Cheguei a Jorge Amado, suponho, de algum modo induzido por minha politização tardia, pelo menos para os padrões da minha geração, uma geração eminente e precocemente política. Minha politização foi praticamente sufocada na raiz porque, em termos geracionais relativos, cheguei a ela, a política, um pouco tarde. Comecei a me politizar em fins de 1968, portanto às portas da decretação do AI-5, que bloqueou todas as vias de militância política institucionalizada. Além da sua popularidade indisputável, nem Érico Veríssimo competia com ele em termos de público, Jorge Amado consagrou-se a uma temática literária cuja recepção foi ainda mais favorecida pelo clima de repressão política que passou a vigorar depois do AI-5. Refiro-me mais precisamente à fração da sua obra anterior a Gabriela Cravo e Canela (1958), isto é, à fase da sua militância comunista de franca adesão ao stalinismo e, no plano literário, de idealização romântica e sentimental do herói popular que, curiosamente, nem nessa fase é o proletário. Esse herói idealizado – como Guma, de Mar Morto, e Jubiabá, do romance homônimo – nutriu a imaginação romântica dos jovens de esquerda com quem convivia na universidade.

A necessidade de sobrevivência, mais do que a opção política de trabalhar em contato direto com o povo oprimido, levou-me a trabalhar no Departamento de Pessoal de uma fábrica muito conhecida no Recife. Essa experiência acabou sendo um meio extraordinário e imprevisível de conscientização política. Em contato diário com o operário em todas as esferas da minha atividade profissional (da admissão e demissão de empregados, processos que passavam obrigatoriamente pelo meu birô, até a linha de montagem e o lazer à base de futebol e cachaça), lavei meus olhos e minha consciência ideológica de todas as mitificações engendradas pela militância de classe média baseada em abstrações literárias e literatura panfletária. Trabalhando na fábrica durante dois anos no auge dos anos de chumbo da ditadura militar, conheci o operário real e assim despojei-me de todas as idealizações românticas e populistas, muitas delas assimiladas através da literatura de Jorge Amado publicada durante sua militância stalinista. Foi também nessa época que li Graciliano Ramos. Desde então passei a reconhecer sua supremacia absoluta entre os escritores dessa vertente literária e sinceramente me desinteressei da obra de Jorge Amado.

Como todo grande criador de literatura, Graciliano Ramos não subordina sua obra aos ditames de nenhuma ideologia, ainda quando fora da literatura se declare militante comunista. Sabemos que aderiu ao comunismo e jamais renegou esta ideologia. Pelo contrário, na sua vida tardia empreendeu uma viagem à União Soviética. Dessa experiência resultou seu livro mais vulnerável, relato das suas impressões de viagem publicado sob o título seco e aparentemente neutro de Viagem. Ele, cuja obra é de um rigor realista intransigente, rigor que se estende da obra ficcional para a autobiográfica, ironicamente esboça nas páginas de Viagem uma representação do mundo comunista que de fato não passava de uma completa liquidação da utopia concebida por Marx e Engels.

Sua percepção da realidade soviética foi por certo induzida pelas fontes oficiais que o guiaram através do pesadelo stalinista revelando-lhe tão-só o que convinha revelar. De qualquer modo, ainda hoje me espanta que um espírito tão negativo quanto o de Graciliano Ramos tenha sido traído tão completamente pela máquina da propaganda e as tramas insidiosas da ideologia. Talvez seu engano seja apenas uma reiteração já banalizada da nossa incapacidade de suportar a realidade isentos do véu transfigurador da fantasia, que no caso corresponde à natureza deformadora da ideologia política. Confesso não haver retido nenhuma memória significativa desta obra para aventurar-me a comentá-la. Lembro apenas o que todo leitor de Graciliano Ramos sabe: ele pinta um retrato demasiado favorável da União Soviética e por isso avesso ao escrutínio impiedoso do seu realismo. Daí o espanto das linhas precedentes e a ênfase que confiro ao engano em que incorreu o realista impenitente. O que importa é sublinhar aqui a forma desse realismo que no registro especificamente estético lhe assegura a supremacia acima mencionada nos quadros da literatura de forte inspiração social e política dos anos 1930 e 1940.

Contrariamente a Jorge Amado, Graciliano jamais incorre na idealização dos seus miseráveis e oprimidos. Fiel à sua aguda percepção da realidade, expressa em prosa seca e intransigente, ele a reinventa sem deformá-la acrescentando-lhe as tintas idealizadoras e românticas da ideologia, como é o caso patente de Jorge Amado. O trabalhador rural, o flagelado e outros tipos humanos que repontam da obra de Graciliano são profundamente reveladores da consistência ética desse grande romancista que se recusa a dissolver sua força criadora povoando seu mundo árido e atormentado com heróis populares positivos cuja função ideológica consistiria em reduzir a literatura à realização de uma causa ou convicção política professada pelo autor. Fiel a seus ideais estéticos, sempre prevalecentes à ideologia que também não se isenta de revelar, Graciliano dá vida a tipos humanos cuja miséria social os reduz às formas elementares da existência. Seres esmagados pelo império da necessidade, Fabiano, Sinha Vitória, Casimiro e outros personagens da sua obra são impermeáveis ao “estalo mágico” da verdade revolucionária que lemos, por exemplo, em várias obras de Jorge Amado publicadas durante seus anos de dócil militância stalinista, quando textualmente reduziu sua literatura a um mero documento social, instrumento de expressão a serviço de uma causa ideológica.

Embora São Bernardo seja a grande realização literária, de Graciliano Ramos, talvez Vidas secas seja a obra que melhor traduza em termos formais a coerência entre fundo e forma, entre a expressão temática da realidade social do sertão nordestino e a linguagem áspera e precisa reveladora do estado de miséria primitiva em que vivem seres como Fabiano e Sinha Vitória. Em Graciliano Ramos, a literatura é um testemunho intransigente de integridade ética diante da ideologia e dos fatos da realidade, que é decantada pelos processos formais de natureza realista não para servir à representação idealizada de uma ideologia particular, mas para representar de forma radical a realidade apreendida e esteticamente formalizada por todo grande escritor realista. Por isso sua obra constitui uma veemente recusa da mitificação da pobreza, do herói popular revestido de virtudes que não passam de projeção idealizada do autor, não por acaso um membro de camadas sociais que vivem da espoliação dos fabianos da seca ou dos zé ninguém dos canaviais, e por isso nunca provaram da poeira da miséria, do nada ou quase nada que é sobreviver equilibrado sobre a linha tênue da necessidade.

O leitor carente de mudar o mundo, ou dele escapar através das muitas vias de fuga imaginária propiciadas pela literatura e a arte, saía da leitura de romances como Jubiabá e Mar morto transformado pela idealização da pobreza e dos personagens populares que nela encontram alimento revolucionário para abolir a servidão de classe, fundar a utopia passível de reconciliar nossa humanidade dividida e cruelmente regida pela dominação imposta pelos poderosos (evito a expressão marxista mais específica, dominação burguesa, porque o conjunto da obra de Jorge Amado pouco nos revela acerca da burguesia e do seu correspondente antagônico, o proletariado) e portanto transpor o céu ou o paraíso das religiões para o reino da imanência. O leitor da obra de Graciliano Ramos, contrariamente, sai mais esclarecido sobre a necessidade que governa seus personagens, a opressão de classe e outros ingredientes fundamentais que regem o mundo dividido e cruel onde habitamos e sobretudo sofremos. Parece-me enganoso, portanto, ler esse mundo inventado pela força ficcional de Graciliano Ramos como um mundo destinado à redenção ou ao ideal de uma humanidade reconciliada fundado numa ideologia.

Certa vez Drummond assinalou metaforicamente a ambiguidade peculiar da literatura observando que ela é uma casa com duas portas: uma conduz o leitor atormentado pela realidade em direção a uma linha de fuga, um meio de escape dessa realidade que é incapaz de suportar ou mudar; a outra, inversamente, transporta o leitor de volta à realidade franqueando-lhe uma percepção mais aguda do mundo e do que ele é dentro do mundo. Refaço a metáfora com termos muito livres e por certo menos precisos e convincentes. Não importa. Importa apenas ser fiel ao cerne da metáfora expressa por Drummond. Não preciso acrescentar que ele e Graciliano Ramos pertencem à vertente literária associada à segunda porta.


domingo, 14 de outubro de 2012

Jorge (bem)Amado



O ano de 2012 assinala o centenário de dois dos mais consagrados escritores da literatura brasileira: Jorge Amado e Nelson Rodrigues. Em tempo, acrescentaria ainda Álvaro Lins, hoje infelizmente quase esquecido. Este, contudo, era um crítico literário e a tradição letrada nunca concede a essa categoria, a crítica, o valor atribuído ao criador literário no sentido estrito do termo (explicitando: o romancista, o poeta e o contista). O fato, de resto, deveria importar para que a cultura acadêmica tivesse a humildade de admitir a subordinação da crítica e da teoria à criação literária compreendida no sentido estrito que acabo de especificar. O assunto é de enorme relevância, mas não posso infelizmente considerá-lo sem enredar-me em digressões impertinentes.

Num país cujo público letrado é tão ralo, Jorge Amado e Nelson Rodrigues distinguem-se antes de tudo pelo extraordinário sucesso editorial, notadamente o primeiro. Jorge Amado alcançou o raro privilégio de viver de literatura bem antes do advento da televisão e da expansão da universidade brasileira. Enquanto a primeira contraiu ou desviou o público potencial da literatura, a segunda pouco concorreu para ampliá-lo. Com isso ou contra isso, Jorge Amado foi o mais afortunado dentre os representantes de uma corrente ficcional que conciliou de forma inusitada na nossa tradição literária a qualidade estética e o sucesso editorial. O leitor sabe que me refiro à corrente do romance social nordestino, cuja irrupção, no início dos anos de 1930, afetou a orientação da literatura experimental da década precedente e pouco mais tarde deslocou para segundo plano o romance de cunho psicológico e metafísico de Cornélio Pena, Octavio de Faria, Lúcio Cardoso e alguns outros. A cristalização e ápice desta última corrente é constituída pela obra de Clarice Lispector.

Já que o mercado é a única ideologia que nos sobra no presente, não é à toa que inicio este artigo ressaltando o singular sucesso editorial de Jorge Amado. É certo que, a julgar pelas estatísticas correntes, Paulo Coelho o superou como expressão desconcertante da literatura globalizada. Ainda assim, Jorge Amado detém trunfos estranhos ao sucesso colossal do rival. Além da amplitude da sua obra, acumulada dentro de um ritmo de progressão regular que se estendeu do início dos anos 1930 a 1994, data de publicação do seu último romance, teve grande parte da sua obra adaptada para o cinema, a televisão, o teatro e o rádio. Não bastasse tanto, Jorge Amado foi dos raros escritores brasileiros inventores de uma mitologia nacional. Ele traduziu em termos estritamente ficcionais o Brasil mítico inventado por Gilberto Freyre no âmbito das ciências sociais. O Brasil da sua ficção, sobretudo a Bahia, é uma reinvenção sua de tal modo impregnada no imaginário nacional que com ele, assim como com Gilberto Freyre e alguns poucos, aprendemos a ver e sentir o país real transfigurado por sua imaginação lírica, romântica, porejante de sensualidade e idealização imantada não no que somos, mas no que desejamos, não na tradição realista que ele sempre subverteu, mas numa forma de idealização romântica que nos representa como certamente gostaríamos de ser.

Diante do que acima esbocei, é previsível que a magnitude da data, o centenário de Jorge Amado, pouco encoraje apreciações pautadas pela isenção crítica, pela avaliação indiferente ao espírito de celebração. Lembrando ainda os soberanos interesses do mercado, a pressão é grande e espontânea o suficiente para que fiquemos apenas no batuque do samba exaltação, virtude de resto distintamente brasileira. Friso, portanto, que este artigo desdobra-se deliberadamente na contracorrente dessas manifestações previsíveis. Antes, porém, ressalto que Jorge Amado, como aliás qualquer autor de obra e biografia complexas, pode ser abordado em consonância com inúmeras perspectivas e escalas de valor. O que cabe ao crítico é explicitar seu ângulo de apreciação argumentando de forma coerente com o que se propõe a explorar. Antes de explicitar o meu, cuido de reconhecer alguns méritos inegáveis do autor e da obra.

Um dos grandes méritos de Jorge Amado, extensivo aos melhores representantes do romance nordestino dos anos 1930, foi conferir expressão palatável para o público leitor mais amplo conquistas estéticas propostas e limitadamente experimentadas pela linha de ponta do modernismo difundido no curso da década anterior. Refiro-me mais precisamente à incorporação do povo na literatura, à introdução bem sucedida da linguagem coloquial no discurso literário, à representação ficcional da cultura do povo. Estes são postulados pelo modernismo a partir de sua guinada nacionalista, isto é, a partir de 1924. Mas essa tradução de postulados estéticos e ideológicos do modernismo em clave regionalista não se fez sem alguns problemas que foram bastante discutidos pela crítica. Mário de Andrade, por exemplo, enfrenta essa questão no texto da sua célebre conferência de 1942 quando, a pretexto de celebrar os 20 anos do modernismo, procede a um balanço do movimento em tom isento de complacência mesclando crítica objetiva e apreciação impiedosa do papel que individualmente desempenhou no processo cultural.

Considerando o lugar central ocupado na literatura brasileira pela corrente do romance nordestino, Mário de Andrade louva as conquistas compreendidas pelos postulados que acima indiquei. Não o faz, entretanto, sem na outra dobra criticar nesses romancistas (à parte Graciliano Ramos, ressalva minha) o excesso de inspiração e improviso. Noutras palavras, a ausência de rigor construtivo que sempre exigiu do artista. O fato de empenhar-se em produzir uma obra comprometida com ideais humanistas e politicamente progressistas, apreensíveis na sincera identificação com o povo iletrado e oprimido, não isenta o artista do domínio da técnica e da linguagem artística, dos meios culturais necessários à criação literária.
Ora, sabemos que essa crítica afeta diretamente a obra de Jorge Amado, pois nele sempre prevaleceu, de par com seu notável talento para a fabulação e a transfiguração lírica da realidade, o desleixo relativo ao estilo e à linguagem. Por isso, mesmo a crítica mais favorável e simpática à sua obra (destacaria aqui Álvaro Lins, Antonio Candido, Alfredo Bosi e Luiz Costa Lima) critica sua imaginação sensualista e primitiva, sua representação sentimental e idealizada do povo expressa na solução mágica dos conflitos e na caracterização psicológica das suas personagens demasiado esquemática. Parece-me de fato muito pobre a caracterização psicológica das suas personagens. À diferença de um Graciliano Ramos, que articula com maestria ação e caracterização subjetiva, ambiente e personagem, quando não um termo através do outro, Jorge Amado tende sempre para a caricatura quando formaliza literariamente antes tipos sociais (como o personagem de extração popular investido de virtudes idealizadas ou o pequeno-burguês, contra quem investe seu espírito satírico) do que representações realistas convincentes.

Aparentemente, o romancista nunca deu muita importância a essas restrições. Pelo menos é o que se deduz de uma frase conhecida com que à vontade se definiu: “Sou apenas um baiano romântico e sensual”. Alfredo Bosi não deixa por menos e assim comenta a frase: “Definição justa, pois resume o caráter de um romancista voltado para os marginais, os pescadores e os marinheiros de sua terra que lhe interessam enquanto exemplos de atitudes ´vitais`: românticas e sensuais...” (Ver História concisa da literatura brasileira, 34ª edição, pp. 405-6). Bosi vai adiante frisando que essa poética espontânea passou ao largo do realismo crítico contentando-se em fornecer ao leitor “...pieguice e volúpia, em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos ´folclóricos` em vez de pessoas, descuido formal a pretexto de oralidade... Além do uso às vezes imotivado do calão: o que é, na cabeça do intelectual burguês, a imagem do eros do povo. O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. No caso de Jorge Amado, porém, bastou a passagem do tempo para desfazer o engano” (Id., p. 406).

Cito e, além de citar, subscrevo o juízo crítico. Mais longe ainda que Bosi foi Walnice Nogueira Galvão, outra grande representante da crítica acadêmica. É dela a crítica mais devastadora que conheço sobre a obra de Jorge Amado. No auge da ditadura militar brasileira e do sucesso editorial do ficcionista baiano, 1973, ela escreveu um ensaio crítico a propósito do lançamento de Tereza Batista Cansada de Guerra (Ver “Amado: respeitoso, respeitável”, in Saco de Gatos).
Walnice abre seu ensaio esboçando uma equação complexa, mas essencial à análise da relação entre o escritor, o Estado e o mercado na tradição literária brasileira. Depois de louvar a coragem cívica com que Jorge Amado e Érico Veríssimo ousavam pronunciar-se contra a censura dentro dos limites de expressão impostos pela ditadura, contrapõe estes romancistas, significativamente independentes do Estado, já que dependentes do gosto público na esfera do mercado de livros, aos intelectuais dependentes do Estado, isto é, aqueles que são empregados públicos por não lograrem viver profissionalmente do exercício da literatura. Esboçadas essas linhas (remeto o leitor interessado ao ensaio de Silviano Santiago que replica e desdobra as consequências do teorema de Walnice, como escreve ele, no livro Vale quanto pesa), Walnice explora em termos críticos a relação entre a dependência do mercado e a qualidade da obra examinando em tom devastador o romance Tereza Batista Cansada de Guerra.

Analisando aspectos fundamentais do romance com corte preciso e polêmico, a ensaísta demonstra nesta obra particular as insuficiências formais e ideológicas da obra de Jorge Amado. Argumentando contra o caráter populista da sua ficção, sempre marcada pela idealização dos oprimidos, que são antes de tudo figuras da marginalidade baiana, ou do lumpemproletariado, fato que parece no mínimo irônico num escritor que foi militante comunista durante grande parte de sua vida, Walnice contrasta Tereza Batista com Moll Flanders, protagonista do romance homônimo de Daniel Defoe. O paralelo resulta constrangedor para nosso fabulista baiano. Bastaria lembrar que Tereza Batista é uma prostituta dotada de grande consciência política, portadora das melhores virtudes populares. Isso se aplica a ela quanto a todos os heróis marginais de Jorge Amado, o que contradiz liminarmente o conceito de lumpemproletariado.

Citando a própria Walnice, “Já Tereza não resvala, única personagem sempre virtuosa do romance. Se puxamos à memória os pobres de Brecht e de Buñuel, pensamos que Jorge Amado está brincando uma brincadeira sem graça; tudo se passa em seu romance como se a ética da miséria fosse outra e pobre virtuoso não morresse de fome; a idealização da miséria nada fica a dever a Gilberto Freyre. A tessitura ficcional interrompe-se a todo instante para dar ocasião a enunciados abstratos e polêmicos sobre a miséria; concretizada em Tereza, jamais aparece. Ela é, de fato, um ser moral, como alguma duquesa riquíssima de Balzac; no quadro frio e cruel das altas esferas francesas do século XIX, onde todos se entredevoram, de vez em quando há uma personagem assim. E Balzac aponta a condição, necessária mas não suficiente, pois só como exceção se dá, em que pode surgir um ser moral: em cima de um monte de dinheiro” (op. cit., p. 16).
Além dessa idealização da miséria, Walnice também ressalta um dispositivo formal, o discurso indireto livre, empregado por Jorge Amado para resolver em termos ambíguos, que variam da representação realista à mítica ou mágica, conflitos sociais evidenciadores da sua ideologia populista. Trocando novamente em miúdos: a heroína do povo é sempre virtuosa e vencedora, as divindades africanas sempre intervêm em defesa dos heróis populares. A isso se soma o discurso saturado de baixo calão, quando não da pura e simples pornografia e da perversão sexual. Walnice alinha exemplos convincentes da sua crítica relativa a esses aspectos do romance, também presentes noutras obras de Jorge Amado.

Seria simplista, como alguns supõem, considerar a crítica acima como evidência da polaridade entre rejeição da crítica acadêmica da obra de Jorge Amado versus aceitação unânime do público. Há sem dúvida alguns críticos acadêmicos que reconhecem no romancista baiano um dos mais importantes da literatura brasileira. Por outro lado, seria um engano traduzir seu extraordinário sucesso de público como evidência de unanimidade. O que me parece todavia previsível é o clima de irrestrita celebração assinalando a passagem do centenário desse extraordinário inventor de um Brasil mitológico. E o fato é que a mitologia é avidamente consumida e amada não apenas pelos brasileiros carentes de uma representação mítica e romântica da nossa cultura cujos traços predominantes são a sensualidade, o excesso desatado de culpa e governo, a idealização das nossas misérias seculares e o sincretismo mágico mesclando em tom confraternizador o arcaico e o moderno, os grupos e classes que não são o que são, mas por certo são o que o típico leitor amadiano (brasileiro ou estrangeiro ávido de exotismo cultural) gostaria que fossem.
Recife, 25 de setembro de 2012.