sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Eu


Eu é outros. Eu também
Sou tantos que nem me sei
Que até no outro ninguém
Sou o outro que em mim neguei.

Recife, 9 de janeiro de 2011.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Indivíduo e meio social


Há um desacordo irredutível entre o que somos por dentro, e até por fora, e o modo como a opinião alheia nos aprecia. Ser livre, na medida em que isso é possível, é libertar-se da tirania da opinião que não só nos vê como não somos, mas também nos escraviza à semelhança do que ela vê. Essa subordinação do indivíduo aos ditames da sociedade, ou do meio social, é corriqueira e de ordinário inconsciente, sobretudo num mundo governado pela ilusão da autonomia individual, por clichês publicitários segundo os quais somos livres para ser na vida o que quisermos. A medida da minha liberdade é a medida do meu desejo, eis o que a todo instante reiteram para nos venderem toda a sorte de produto. Lembrando Montaigne, convém não subestimar a medida da nossa cega adesão aos hábitos e convenções sociais. Por isso tantos reiteram impensadamente a ilusão de uma ordem de liberdade que não passa de automatismo induzido pela indústria do consumo.

Durante muito tempo de minha vida dei importância demasiada à opinião do outro, à sua apreciação equívoca, tantas vezes leviana e infundada, e às expectativas com que cercava minhas ações, não raro determinando-as, induzindo-me a fazer não aquilo que mais autenticamente me traduzisse, mas o que convinha à sua compreensão estreita, capricho ou mera rotina. Como se de algum modo assim me comandasse: seja assim simplesmente porque é assim que somos, ou porque se espera que assim sejamos. Foi talvez o excesso de desajuste prematuro dentro de uma comunidade mesquinha, ou a medida de uma excentricidade e estranheza que não escolhi, nem a princípio tive delas consciência, o que me impeliu a buscar vias de fuga e expressão humana orientadas para a realização do indivíduo chamado Fernando da Mota Lima.

Um dos fatos humanos que me persuadem da insuficiência das explicações sociológicas, embora seja eu um profissional desta discutível ciência, a sociologia, é a espantosa diversidade, e imprevisibilidade dos modos como o indivíduo reage às condições do meio. Quando o sociólogo teoriza sobre essa ordem de fatos sociais, invariavelmente sobrepõe o meio ao indivíduo. Isso independe de sua orientação teórica, que no contexto importa apenas para determinar os variáveis graus de subordinação do indivíduo ao meio, ou à sociedade. Admito que esta proposição geral é verdadeira quando aplicada à média humana convencional.

Os indivíduos que todavia se distinguem em todas as formas de relação e expressão social distinguem-se precisamente por contrariarem a proposição acima enunciada.
Não me refiro apenas ao indivíduo identificado pela ação heroica ou a excepcionalidade que o diferencia da massa ignara e conformista. Longe de mim a intenção de reivindicar uma concepção sociológica do herói ou do indivíduo extraordinário. Se é fato que ambos ratificam minha tese, não é fato que neles prioritariamente me baseie para sustentá-la. Penso antes em indivíduos comuns, no sentido de que se dissolvem no anonimato das massas. Noutras palavras, não gozam de nenhum tipo de fama ou reconhecimento social que lhes transportem o nome e a identidade para além do círculo em que suas vidas se manifestam. Privados embora de fama, ou qualquer tipo de glória, esses indivíduos existem contrariando com sua existência distintiva o suposto império que o meio sobre eles exerce. Não chegam a constituir uma multidão, fato que por certo representaria uma constante ameaça à ordem convencional da sociedade, mas não são tão minoritários quanto presumem os cultores do indivíduo herói. Posso dizer que conheci vários nos meios e nas circunstâncias mais diferenciadas a até imprevisíveis. A experiência que neles identifico e assimilo não concorre em nenhum sentido sociológico para a elaboração de uma teoria passível de explicar os modos fundamentais da relação indivíduo e sociedade. Seria absurda tamanha pretensão. Meu simples propósito é alertar contra qualquer ambição de determinismo sociológico.

Se o argumento acima esboçado tem alguma consistência, insisto em sustentar que tem, meu ponto de vista em defesa de um certo quinhão de autonomia e liberdade individual funciona como um antídoto para qualquer concepção determinista, para qualquer perspectiva pessimista levada ao extremo da impotência individual em face dos poderes do mundo. Apesar de tudo, apesar antes de tudo do meu próprio ceticismo, nunca duvidei de que o indivíduo pode realizar na vida algum ideal de liberdade que o distinga do conformismo corrente, da adesão resignada à ordem social, à opinião servil que o quer ratificando as expectativas falsamente sólidas do teatro social que representamos.

Diário, Recife, 02 de agosto de 2004.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O leitor e a integridade da obra


Durante anos tentei – sem muito empenho, admito – adquirir uma edição decente do Dom Quixote. Ainda que não a relesse, sonhava possuir uma edição espanhola do livro cuja leitura mais profundamente me tocou despertando-me emoções e estados de transfiguração sem precedente. A que li foi a famosa edição em cinco volumes publicada por José Olympio na qual são reproduzidas as gravuras assinadas por Gustave Doré. Esse momento inapagável na minha experiência de leitor deveu-se à doença cardíaca que me sobressaltou a vida já de si oprimida no início dos anos 1970.
Eram tempos sombrios, de vida dificultosa e obscura. Privado de emprego estável, portanto de uma margem mínima de segurança econômica, crivado de angústias existenciais e ideológicas, agravadas pelo clima de repressão política dominante, dispunha de pouco solo seguro sob os pés vacilantes. Afora o amor de Rejane, as bebedeiras catárticas, mas por vezes opressivas, na companhia de amigos mais atormentados que eu, o resto era insegurança e amanhãs sem perspectivas animadoras. Foi em meio a isso que sobre mim caiu o diagnóstico de uma doença cujo efeito imediato, mais psíquico e moral do que propriamente orgânico, foi devastador.
Acalmado o primeiro assombro, já preso a uma cama em regime de repouso absoluto, tive a luminosa idéia de pedir a Rejane, amada e enfermeira dedicada, que tomasse de empréstimo à biblioteca pública de Afogados a edição José Olympio do Dom Quixote. Tão logo embrenhei-me por terras de Espanha na companhia daquele visionário genial, minha vida sofreu uma completa e automática transfiguração. Ao anotar que foi um momento sem precedente na minha experiência de leitor, vindo das mais intensas e erráticas leituras, quis mais exatamente sugerir que nenhum outro livro teve, como ele, o poder de mobilizar todas as minhas energias, notadamente as do leitor apaixonado e sensível cuja imaginação com frequência esbarrava nos limites estreitos da realidade ordinária.
Recordo ainda com plena nitidez o estado de sobressalto emocional que me tomou, tão exigente e constante que simplesmente perdi o sono. Varava a noite imerso na leitura, indiferente às inquietações suscitadas por meu estado de saúde, associado a outros igualmente inquietantes. A transfiguração advinda da leitura foi tal que Rejane começou a ficar preocupada, seriamente acreditando que o livro me afetara a razão. Pois o fato é que desandei a rir dentro da noite, a tagarelar animado às voltas com diálogos imaginários entretidos com meus heróis sem dúvida bem mais insensatos que eu. Ao cabo da leitura, prometi-me reler sempre que possível a obra-prima de Cervantes. Aliás, se bem me lembro, prometi-me reler Dom Quixote anualmente. É claro que não cumpri minha promessa. Para não dizer que faltei completamente com a palavra a mim próprio empenhada, reli-o uma única vez, valendo-me da única edição que até recentemente possuí: a que circulou periodicamente nas bancas de revista editada pela Abril Cultural.
Miro agora amorosamente as duas edições que comprei à Livraria Cultura. Tão amorosamente que fui à prateleira e trouxe ambas para perto de mim. Enquanto digito esta entrada, miro-as com olhar de bibliófilo enamorado: a do IV Centenário, editada pela Real Academia Española e a Asociación de Academias de la Lengua Española, e a segunda, ainda mais bela e vistosa, da Anaya. Esta, além de ser um primor de concepção gráfica, é admirável e fartamente ilustrada por José Ramón Sánchez. Além de uma longa e erudita introdução assinada por Angel Basanta, é anotada com zelo e minúcia filológica exemplares. A primeira, em compensação, vem enriquecida de um glossário e precedida por ensaios de Mario Vargas Llosa, Francisco Ayala e Martín de Riquer. Não bastasse tanto, agrega ensaios complementares assinados por José Manuel Blecua, Guillermo Rojo, José Antonio Pascual, Margit Frenk e Cláudio Guillén.
Mas o que mais importa é a leitura, ou releitura, da obra propriamente dita. Noutras palavras, que é feito de minha velha e esquecida promessa? O que dela agora fazer, já que tenho diante dos olhos duas edições primorosas da obra na sua língua original? Introduzo tais indagações inspiradas por certo cálculo retórico porque intento retomar aqui elementos de uma conversa mantida com Brenno Kenji. Discutíamos a legitimidade editorial fundada na adaptação e condensação de grandes obras da tradição literária como um expediente viabilizador de leituras atuais dependentes de um leitor cada vez mais apressado, cada vez mais solicitado por estímulos e fontes de informação e cultura incompatíveis com a realidade cultural em que obras como Dom Quixote foram escritas e lidas.
Brenno, leitor radical e definitivamente atípico, fiel aos mais altos valores da tradição letrada, argumenta em defesa da integridade da obra. Para ele, a obra deveria ser lida e retraduzida através dos tempos em conformidade com o texto integral do autor. Esta seria, admito, a relação ideal imaginável entre os textos canônicos e o leitor que, sucedendo-se na corrente do tempo, já não é, assinemos esta banalidade, o mesmo do século em que Dom Quixote veio a lume, ou o contemporâneo de Balzac e Flaubert. As condições mutáveis do mundo, mais ainda neste assombrado por ritmos de aceleração sociocultural sem precedente, suprimiram do horizonte do receptor os lazeres concebíveis noutras épocas.
O leitor hodierno, mesmo quando antes e acima de tudo leitor, está agora imantado a uma complexa rede de difusão cultural que não apenas compete com os meios tradicionais da literatura, mas lhe faz concorrência desigual e sem dúvida bem mais atraente. Como pretender que o jovem de hoje leia ainda edições integrais de Great Expectations ou Nicholas Nickleby, de Mansfield Park ou Sense and Sensibility, de Madame Bovary e Doutor Jivago, Anna Karenina e Crime e Castigo (cito alguns títulos que me vêm de imediato à memória), se o cinema lhe franqueia adaptações providas de todas estas vantagens: apelo audiovisual, concentração de tramas longas e complexas em duas horas de entretenimento e eventual enriquecimento cultural, adequação da tradição histórica às convenções dominantes no presente?
Evidentemente, não me passa pela cabeça afirmar que o espectador de Anna Karenina, adaptada e comprimida em versão corrente, exibida até em sessões noturnas da rede Globo, está em contato efetivo com a obra, com Tolstoi, para não falar da rica floração literária da tradição em que ambos se inserem, com os valores intrinsecamente literários do grande romance russo. O ideal, como Brenno apaixonadamente o reivindica, seria ficarmos com a integridade literária da obra, ou ainda, para quem queira acomodar-se ao melhor de dois mundos, com a obra e sua adaptação que não pode ser apreciada com o mesmo metro e rigor de recepção. Mas como pretender, dadas as complexas condições do presente que não posso adequadamente caracterizar numa mera entrada de diário, que tal modalidade de prática cultural prevaleça num mundo que impõe à literatura um lugar cada vez mais marginal, privilégio, para não dizer idiossincrasia, de uma casta de letrados?
O próprio exemplo de que trato nesta entrada – o meu, noutros termos – constitui evidência suficiente, melhor do que toda a argumentação verbal que acaso me empenhe em desfiar páginas afora. Embora leitor constante, agraciado pelo privilégio de dispor de ampla margem de tempo livre, isento dos embaraços e solicitações penosas de uma rede familiar e coisas similares a que está atada a maioria dos leitores, fui incapaz de cumprir minha promessa de seguir relendo Dom Quixote através de minha vida. As duas edições que agora enriquecem minha biblioteca me solicitam e desafiam mirando-me sobre a mesa em que quedam paralisadas. De meu lado, um tanto oprimido pela dívida que me devo e não me pago, resta-me o recurso da contemporização vacilante, o adiamento de mais uma viagem imaginária por aquelas terras de Espanha que Cervantes para sempre transfigurou e imortalizou na história da literatura. Um dia, quem sabe, eu voltarei de um modo como nunca mais voltei, não obstante o quisesse, para minha Isabel, minha Isabel de Valencia.

Diário, Recife 2005.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

George Steiner


George Steiner é um dos últimos sobreviventes da grande tradição humanista cultivada por judeus nascidos e/ou formados na Europa central. Deste tronco poderoso brotaram nomes tais como Karl Marx, Sigmund Freud, Robert Musil, Wittgenstein e Hermann Broch. Embora ficcionista ocasional, Steiner é sobretudo um scholar de imenso prestígio no ambiente acadêmico europeu e americano, comentador agudo e frequentemente polêmico das obras e personalidades que sacodem a atmosfera cultural contemporânea. Testemunha e vítima da caçada nazista movida contra os judeus, desde a infância Steiner aprendeu a encarar de frente a máscara da tragédia que indelevelmente o atingiu. Quando certa feita evocou comovido esse aprendizado ao conceder entrevista a Jeremy Isaacs na BBC Television, identificou na figura do pai a força que o dirigiu para a crua observação da realidade.

Menino ainda, mas já exposto aos tumultos de massa alastrados pelas ruas de Paris, assistiu ele à ascensão da violência antissemita lançada contra a população judaica. Encurralado entre Hitler e o antissemitismo enraizado na tradição cultural francesa, educou-o o pai contra o medo, ilustrando-o na prática crua da Europa pré-Segunda Grande Guerra acerca da torrente destrutiva prenunciadora de Auschwitz.

Os tormentosos eventos históricos acima grosseiramente sugeridos, mas de modo algum estranhos ao leitor culto, embasam o admirável conjunto de ensaios que integra o volume Linguagem e Silêncio. Dado que o tema predominante dos ensaios é a literatura, parecerá decerto extravagante verificar que no cerne de tudo ele explicitamente inscreve a barbárie nazista, ápice da ruína por ele assim apreciada:
"Essa ruína é o ponto de partida de qualquer reflexão séria sobre literatura e sobre o lugar da literatura na sociedade. A literatura lida essencial e constantemente com a imagem do homem, com a forma e o estímulo da conduta humana. Não podemos agir agora, seja como críticos ou como simples seres racionais, como se nada de importância vital tivesse afetado nosso senso da possibilidade humana, como se o extermínio pela fome ou pela violência , de cerca de 70 milhões de homens, mulheres e crianças na Europa e na Rússia, entre 1914 e 1945, não tivesse alterado de modo profundo a propriedade de nossa consciência". (p. 22)

Como fica claro na citação acima, não é apenas o nazismo que está em jogo, detonando e ao cabo dissolvendo sonhos devastadores nas cinzas dos infernos que acendeu. Agentes e efeitos estendem sua ação histórica direta, frisa Steiner, ao período que cobre os anos de 1914 a 1945. Se entretanto antes de 1933 a ruína estava em curso, a partir da ascensão do nazismo ela atinge escalas sem precedente. Se as escalas de destrutividade não encontram precedente no conjunto da história humana, mais devastadoras ainda foram as formas como se processaram. A interrogação ainda hoje suspensa no ar turvo da nossa consciência, mas genericamente respondida por Freud em O Mal-Estar na Civilização, ocupou a mente e fração decisiva da obra realizada por intelectuais como Erich Fromm, Adorno, Primo Levi, Bruno Bettelheim, Elias Canetti e, claro, o próprio George Steiner.

Opondo-se a interpretações históricas tendentes a explicar o nazismo fundadas no papel satânico desempenhado por Hitler, ou quando muito em fatores contingentes da estrutura sócio-econômica, Steiner assinala que foi na Europa Central, onde elevados eram os padrões de difusão da tradição humanista encarnada em símbolos intelectuais da estatura de Shakespeare, Voltaire e Goethe, que foram acesos os fornos e instalados os campos de concentração. Como afirma Steiner, "A barbárie predominou no próprio berço do humanismo cristão, da cultura renascentista e do racionalismo clássico. Sabemos que alguns dos homens que conceberam e administraram Auschwitz foram educados lendo Shakespeare ou Goethe, e continuavam a lê-los".

Dado que é verdadeiro o que afirma, a questão se desenha de modo muito mais inquietante na nossa consciência. Formados dentro de um espírito humanista que aparentava constituir-se como negação necessária da barbárie, eis-nos aqui confrontados com esses perturbadores fatos da história. Os líderes e homens investidos de posição de mando dentro da organização nazista não eram monstros, malfeitores privados do acesso à tradição humanista que presumimos incompatível com a onda de barbárie alastrada pela Europa, centro da civilização ocidental. Eliminada a confortadora disjuntiva entre civilização e barbárie, impõe-se deduzir que a primeira não constitui garantia necessária contra a segunda. Uma outra dedução, de natureza ainda mais inquietante, parece-me seguir-se à primeira: ao invés de caracterizar-se como monstros, produtos anti-humanos cuja real natureza seria impermeável a nossas possibilidades de explicação racional, são os nazistas seres humanos como nós outros. Mas de outro lado convenhamos, é ilusório presumir uma explicação racional suficiente para questões históricas dessa natureza.

A força desta verdade aparenta ser tão perturbadora que governos liberais e de esquerda resistem a esse modo de tratamento do problema concernente às bases sociais e humanas do nazismo. É sintomático que o filme de Agnieszka Holland, Europa Europa (título adotado no Brasil: Filhos da Guerra), talvez o melhor já realizado sobre a relação entre nazistas e judeus, tenha tido sua participação na categoria melhor filme estrangeiro, prêmio Oscar de Hollywood, vetada pelo atual governo alemão. O veto sugere a força inquietante do filme que representa carrascos e vítimas dentro da complexa rede humana sobre a qual se estrutura nossa obscura humanidade.

Sem qualquer concessão aos clichês do humanismo vulgar, nazistas e judeus são no fundo nem monstros nem anjos indefesos, mas gente como a gente. Eis aí, límpido e desconcertante, o clichê repelido. Pois é, gente como a gente, eis o que aparenta em suma exprimir Agnieszka Holland com seu filme extraordinário. O surrado clichê entretanto não autoriza, deixo claro, perdão ou condescendência para com o carrasco. Em nenhuma circunstância, a impureza da vítima, falta-me expressão mais adequada, justifica a ferocidade do opressor.

As esquemáticas observações acima servem ao menos para sugerir, assim espero, possibilidades analíticas incompatíveis com versões difusas de humanismo ingênuo, assim como com mais elaboradas interpretações culturalistas ao cabo confortadoras, já que identificam as causas da destrutividade humana em fatores de natureza puramente histórico-cultural. Ora, parece-me que Freud atira mais perto do alvo quando sustenta a existência de um cerne biológico destrutivo e, em última instância (era assim que costumávamos concluir um argumento intentando resguardar a força universal da teoria marxista exaurida por tantas ações e manipulações procedentes de mal orientados discípulos), indomesticável pelas normas reguladoras da civilização.

A inserção do ensaísmo literário na moldura histórica do nazismo e suas conexões de fundo ético-intelectual bastam para distinguir Steiner da produção acadêmica característica desta segunda metade do século. Mais e mais especializada, reclusa em esotéricas investigações cuja espessa esterilidade evoca ecos da castália idealizada por Hermann Hesse no seu romance O Jogo das Contas de Vidro, a cultura acadêmica produz montanhas de obras indiferente ao som e à fúria do século.

Exemplo frisante das distorções intelectuais geradas nesse contexto é visível na própria função e prestígio de que goza o crítico literário. Se no veio da grande tradição humanista dentro da qual sobrelevam nomes como Edmund Wilson, Lionel Trilling, George Orwell, Antonio Candido, Otto Maria Carpeaux, para mencionar apenas alguns pertencentes ao nosso século, o crítico operava como um mediador entre o autor e o público, atualmente o crítico acadêmico instala-se no lugar do efetivo criador de literatura. Sendo um mero criador de segundo grau, não importando a grandeza da obra crítica que produza, torna-se ele, entretanto, o agente de uma grave inversão de valores derivada do processo de organização da cultura acadêmica. Como bem observa George Steiner,
"O crítico vive de segunda mão. Ele escreve sobre. O poema, o romance ou a peça têm de ser dados a ele; a crítica existe pela graça do gênio de outros homens". (p. 21) Nas castálias acadêmicas da nossa contemporaneidade, todavia, lê-se cada vez mais crítica e teoria literárias em detrimento da literatura propriamente dita. O estudante modelar dos cursos de letras estará por certo familiarizado com a produção de críticos tais como Fredric Jameson e Terry Eagleton, Jacques Derrida e Roland Barthes (já meio fora de moda), Antonio Candido e Roberto Schwarz, mas provavelmente não terá lido a sério nenhum criador canônico da literatura nacional ou internacional.

George Steiner compartilha com os humanistas judeus acima mencionados uma sólida atitude internacionalista, mirada além-fronteiras em mundo mais e mais retalhado por particularismos sangrentos contraditoriamente atados à realidade da acelerada universalização promovida pela vertiginosa dinâmica deste capitalismo fin de siècle. Internacionalista consequente, a um judaísmo beligerante, armado em fronteiras fechadas, sobrepõe valores que o impelem a opor-se ao sionismo e à política adotada pelo Estado de Israel.

Pessimista quanto ao destino da arte num mundo superpovoado e subordinado às regras do capitalismo de consumo, Steiner acentua a íntima e milenar ligação entre arte e religião. Tal ligação, também assinalada por Freud em O Mal-Estar na Civilização, está à perfeição demonstrada nas palavras de um antecessor de gênio: "Aquele que tem ciência e arte, tem também religião; o que não tem nenhuma delas, que tenha religião!" (Goethe, apud Freud, O Mal-Estar na Civilização, Ed. Imago, p. 31).
Qual o sentido atual da arte, que durante milênios abrigou no próprio centro dos símbolos que articula certas possibilidades religiosas hoje erodidas pelas condições dominantes de mercantilização de valores e sentidos enraizados no solo humano-material onde se constitui? Para Steiner, a raison d'être da arte, i.e. as possibilidades religiosas que encerra, se encontra posta em risco no inquietante universo do nosso fin de siècle. Como identificar, menos ainda discutir, uma grande obra de arte quando uma atordoante proliferação de valores, muitos de natureza antagônica, lutam para impôr um princípio de hegemonia cuja aparente inviabilidade põe em risco a possibilidade mesma de consenso em torno de princípios instauradores de um referencial canônico no plano da tradição literária?

Às voltas com outros temas polêmicos, como intelectual empenhado no bom combate, Steiner não poupa críticas ao ideário (hoje transformado em ideologia, aqui tomada em sentido pejorativo) forjado por dois gênios da sua raça: Marx e Freud. Da filha dileta do último, a psicanálise, disse não passar de "vingança judaica contra a ciência cristã". Melhor registrar suas próprias palavras gravadas de "Fin de Siècle", série de debates transmitida pelo Channel 4, Inglaterra, em 1991.
"I regard psychoanalysis as a completely ephemeral mithology. To me, it's a Jewish vengeance on Christian science. Nothing is more charged with animism than psychoanalysis".

Não é de espantar que tenha constrangido Julia Kristeva, diante de quem disparou a crítica no debate de que participaram ao lado de Terry Eagleton. Por outro lado, entra em desacordo com este, ainda mais acaloradamente com Michael Ignatieff, "liberal pós-moderno" da mídia inglesa, graças aos ataques devastadores que tem movido contra a acelerada mercantilização da cultura pilotada pela mídia norte-americana. Em 1990, por exemplo, pouco depois da euforia que se seguiu à queda do totalitarismo soviético, publicou virulento artigo no "The New Yorker" contra a forma como os recém-abertos mercados do Leste Europeu estavam sendo invadidos pela cultura de massa do Ocidente. Simbolizando na dupla Madonna e Maradona os valores destrutivos e anti-humanos gerados pela cultura produzida em série segundo critérios perversamente mercadológicos, George Steiner clama em defesa de um humanismo que me parece, para minha pessoal inquietação, condenado a sobreviver na oprimida atmosfera de uma escassa elite.

Bearer of ashes, ou Cassandra da alta tradição europeia, assim ocorre-me caracterizá-lo, numa mão empunha a memória perturbadora da ruína produzida pela barbárie deste século, noutra a determinação de afirmar contra uma nova onda bárbara as virtudes do seu humanismo acuado. É admirável e comovente assistir a esse tresloucado Quixote, a cavaleiro de um arfante humanismo-rocinante, arremeter contra os mortíferos poderes deste mundo da vertigem técnica capaz de produzir catástrofes apreciadas pelo público universal como se fossem eletrizantes videogames.

Vendo-o de lança em riste, sobre uma campina solitária, e imaginando-o a braços, bastaria um só dia, com a mídia brasileira, não resisto à tentação de compará-lo a um humanista brasileiro que, em contexto evidentemente muito distinto, assim foi caracterizado por Mário de Andrade: "E se é certo que já agora ele é uma das mais fortes figuras de crítico que o país produziu, desconfio que os futuros não-sei-o-quê vivendo nestas terras do Brasil terão ao lê-lo o espetáculo dum homem querendo desviar uma enchente, apagar o incêndio dum mato, ou parar um raio com a mão".
Referia-se Mário de Andrade, sabem os leitores familiarizados com a literatura brasileira deste século, a Alceu Amoroso Lima, humanista (então da direita católica) empenhado em salvar o Brasil, ambição rotineira em intelectual nativo, com armas retrógadas e quixotescas fornecidas pelo catolicismo da época. O paralelo aqui grosseiramente proposto assenta, claro, sobre profundas diferenças de contexto histórico-ideológico. Mas acredito-o pertinente dada a similaridade da empresa movida tanto por George Steiner quanto por Alceu Amoroso Lima.

Diário, 1 de agosto de 1993.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Suzete e o marinheiro inglês


Ando sozinho pelas ruas do Recife. Nesta tarde do dia de Natal as ruas adormecem um sono de passos quase desertos. Ando pela zona portuária da cidade. Tudo um quase silêncio, uma quase imobilidade nas coisas e pessoas. Meus olhos sentam-se num ônibus e interrogam os velhos sobrados nessa antiga paisagem do Recife marcada pela remota, mas indelével presença holandesa nos trópicos. Roupas estendidas nas janelas, panos encardidos que semelham colchas de retalho. Vultos atravessam espaços de sombra ou esquiva luz. Deslizam fugitivos ante olhares curiosos. Essa gente noturna, fauna errante em esquinas sórdidas, tem medo da luz do dia.
Meus olhos percorrem as ruas da zona portuária. Quase desertas. Os bares modorrando na tarde de sol abrasante. Quem não vive, olha. Quem não vive escreve, ainda que um diário. Meus olhos andam nas ruas da zona. Seguem errantes a rota sem norte dos seus obscuros personagens, lutam para adivinhar suas miúdas e eternas misérias. Meus olhos, andam...
A luz quente do sol escorre sobre o asfalto, sobre as fachadas adormecidas na tarde cuja imobilidade se acotovela com formas de movimento quase imperceptíveis. Meus olhos andam e andam. Param subitamente numa mesa do São Francisco. Meus olhos veem uma puta bebendo com um senhor de meia idade. É Luísa. Meus olhos estacionam perplexos no vestido amarelo de Luísa. Tão estranha a sensação de rever Luísa assim imprevisível, assim esquecida. Estranho esbarrar na tarde em Luísa e seu vestido amarelo.
Conversa com o Fulano lá. Parece rir. Se não sonho, se não deliro, é certo que vejo os dentes de Luísa brilhando na tarde, rompendo a compacta desolação do São Francisco. Meus olhos nunca antes viram os dentes de Luísa rindo assim tão livres. Será felicidade? Ora, Fernando, não me venha com poesia barata a essas horas da vida. Luísa ri ainda, o Fulano também. Por certo divertem-se com alguma coisa. Com a vida? Mas o que há de divertido nas vidas miseráveis dessa gente? Riem talvez porque não há mais o que fazer. Como Suzete ria lembrando seu marinheiro inglês. Ela me mostrava o endereço dele. Me pedia:
Fernando, vem aqui amanhã escrever uma carta pra mim. Você não sabe inglês?
Eu: muito mal.
Ela: então vem. Quero pedir a fulano (já esqueci o nome do marinheiro, digamos John) pra vir me buscar.
Eu: certo. Mas como vou escrever para ele? Digo assim: John, amor de minha vida, única e eterna ventura que Deus me deu.
Suzete ria. Gostava de ouvir-me dizer essas coisas. A gente bebia longas horas na Baiana, trepados e trepando naquele velho sobradão de escadas rangentes e escuras. Ela não esquecia seu marinheiro inglês, nem mesmo quando trepava comigo. Nunca me cobrou dinheiro. Dava-o quando a encontrava, quando se dizia faminta, quando se queixava do dia sem homem e portanto sem ganho. Levava-a para o Gambrinus, pagava-lhe um jantar.
Ela dizia: você é muito bom. Como John, meu marinheiro inglês.
Eu lhe fazia uma careta fingidamente aborrecida. Achava graça na minha careta. E mais uma vez e sempre me pedia: vem aqui amanhã à tarde. Queria que você escrevesse minha carta para John.
Eu prometia. Sempre prometia. Bêbado, de imaginação desatada, chegava mesmo a dizer e representar para Suzete a carta que nunca escrevi. Ela se divertia. Mas nem sempre. Às vezes uma sombra pairava nos seus olhos, um travo de amargura nos cantos da boca, e uma pausa grudava-se no seu rosto cansado. Eu consolava Suzete.
Fomos bons parceiros de cama e mesa, de madrugada e de porre. Fazia-me repetidas indagações: você não é casado?
Eu: não.
Ela: nem comigo?
Eu: nem com você. Casamento é coisa muito tediosa.
Ela: que é tediosa?
Eu: chata. Como um poço vazio e fundo no meio do deserto.
Ela: chato é você. Chata é essa vida de puta.
Um dia sumiu. Procurei-a na Baiana. Disseram que fora embora. Talvez para Salvador. Talvez para São Luís do Maranhão, cidade de onde viera. E eu completava para mim próprio: talvez para Londres. Talvez Liverpool. À procura de John, seu marinheiro sem volta, seu refúgio ilusório dentro da sordidez da zona. Quem sabe não se desiludiu de esperar seu John assim como me desiludi de esperar meu Godot?
Meus olhos esbarram na linha turva do presente e novamente estacionam no vestido amarelo de Luísa. Ela se levanta com o fulano. Dobram a primeira esquina e somem. A tarde misteriosamente se imobiliza e tudo ante meus olhos se desenha em linhas de abafada e dolorosa neutralidade.

Recife, 25 de dezembro de 1979.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A culpa


Juntou a culpa do mundo
(incalculável montanha).
Atou o raso e o fundo
A chicotada que lanha
A carne dilacerada.
Depois subiu para o céu
E o mundo é tudo: meu nada.

Moeu a culpa do mundo
Numa moenda azeitada
Vertendo o caldo imundo
Sobre a infinita estrada.

Queimou a culpa do mundo
Numa fogueira tão alta
(bem mais que alta, infinita)
Que agora até sente falta
Da culpa que move a vida.

Recife, 24 de agosto de 2011.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Miragem do nada


Esse fascínio do nada
Que há tanto vive comigo
Modo de ser, minha estrada
Vazio em que me abrigo.

A tirania do ego
Impregna o que respiro.
A quantos não dá emprego
Atando lucro e castigo?

Sonhei um outro Ocidente
Que nunca hei de encontrar
Com seu quinhão de Oriente
Deserto à borda do mar.

O nada a mim me persegue
(fosse ele convicção...)
Buda, nirvana, o que negue
O pleno na imensidão.

Que portas posso eu abrir
Com as chaves do Ocidente
Servas do ego, da fala
Desse discurso de sala
De devaneios dementes?

Pudesse eu alcançar
O cume, ataraxia
E no silêncio do mar
No nada, pó de luar
Me dissolver em poesia.

Recife, 27 de agosto de 2011.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Aspiração


Ser o nirvana, vazio
Liberto da tirania
Do ego, deserto frio
Eco voraz da anarquia.

No oco do mundo traçar
As linhas do meu retiro.
Sustar as ondas do mar
E no silêncio um respiro
Sequer ouvir quando a noite
Descer tão impressentida
Que já não saiba se sou
Vazio ou sopro de vida.

Recife, 27 de agosto de 2011.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Transitivo



Fernando, acaso duravam
No coração transitivo
(antes tão dócil, cativo)
As mulheres que te amavam?

Que duração teve o amor
Esse amor muitos, plurais
Que até doendo, na dor
Pede amor mais, inda mais?

Mas que importa, que importa
Dure tão pouco a canção?
O coração tem mil portas
E a vida muito desvão.

Recife, 21 de dezembro de 1987.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

No fim do dia



No fim do dia repasso
As horas do tempo ido
De tudo retendo um traço
Do meu relógio partido.

Era barato, de feira
O meu relógio perdido
Colhido em meio à poeira
Do meu caminho sofrido.

E entanto houve um tempo
Em que o espelhei sob a luz
Que era sonho e alento
Soprando auroras azuis.

Não era felicidade
O que na aurora luzia
Mas uma outra cidade
No dia que se expandia.

A inconsciência das horas
E a juventude do dia
Diziam: vive, lá fora
Um outro céu se anuncia.

Até na dor, no deserto
Essa promessa sustinha
De longe quanto de perto
A luz que era só minha.

E assim vivi de enganos
De asilo na minha ilha
Enquanto o passar dos anos
Roubou-me fêmeas e filhas.

Agora no fim do dia
Medindo o tempo perdido
Nenhum consolo ou poesia
Retém meu fardo puído.

De sobra ficou-me a noite
A sua concha e abrigo
E o velho relógio gasto
O fim já mede comigo.

Recife, 23 de agosto de 2011

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Cultura, identidade e globalização


Cultura Brasileira, Identidade Cultural e Globalização

Chego ao texto conclusivo da série de textos relativos à cultura brasileira e no entanto pouco considerei a situação presente da cultura brasileira e sua relação muito complexa com a questão da identidade cultural e a da globalização. Como penso que seria uma omissão no mínimo criticável, tentarei adiante considerar alguns aspectos dessas relações complexas sem nenhuma pretensão de resolver problemas ou fornecer respostas suficientes. Como o leitor decerto notará, os textos precedentes concentram-se no estudo das origens e da formação da cultura brasileira. Dado que elaborei o plano do conjunto de artigos relativos à cultura brasileira conferindo prioridade a conceitos básicos e à forma como alguns dos grandes representantes da tradição do pensamento social brasileiro os abordaram, suponho haver coerência no conjunto dos textos postados. Além disso, caberia também adiantar que este é um artigo de composição livre, inspirado nas minhas observações e nas muitas leituras que fiz sem anotações ou a intenção de escrever sobre o assunto.

Além do que já expus sobre a cultura brasileira, importaria acrescentar que o conceito é muito discutível, assim como os dois outros que dão título a este texto. As pessoas tendem a falar de cultura brasileira, mesmo pessoas muito educadas e até especialistas, como se o conceito indicasse uma realidade uniforme ou pelo menos coerente. Na verdade, isso está bem longe da verdade. Toda cultura, sobretudo as culturas do nosso tipo, estão expostas a variações no tempo e no espaço, além de se diferenciarem internamente. Há pouco propus a duas turmas minhas da Universidade Federal de Pernambuco que descrevessem uma viagem importante na vida de cada membro das turmas relacionando o local visitado (cidade, vila ou país) com características culturais de Recife. Para minha surpresa, os alunos me forneceram nas descrições feitas um rico material etnográfico, isto é, relativo à descrição de costumes e valores culturais observados nas viagens que fizeram. A maioria das descrições era relativa a cidades do interior de Pernambuco. Um dos aspectos mais interessantes dos trabalhos consistia precisamente na constatação da grande variedade de costumes, hábitos de vida e valores culturais relativos à religião, culinária, vestuário, educação, formas de entretenimento, cenas de rua etc.

Mencionei o exemplo acima para sugerir o quanto a cultura recifense, e mais amplamente pernambucana, contém de diversidade. Essa diversidade depende de muitos fatores, entre eles os de classe, espaço, tempo, modos de tradição... Tudo isso importa para sugerir o quanto é difícil fixar conceitos como os que dão título a este texto. No entanto, falamos e ouvimos correntemente falarem de cultura brasileira, cultura pernambucana, cultura nordestina, como se fossem realidades facilmente apreensíveis e consensualmente aceitas. Isso não é verdade nem tenho a pretensão de apresentar a verdade sobre esses assuntos. Por isso afirmei já no parágrafo inicial que meu objetivo não é resolver problemas ou fornecer respostas suficientes. Meu objetivo principal é propor claramente muitas dessas questões e assim induzir o leitor a refletir sobre elas, considerar respostas possíveis, procurar estudar e compreender melhor o que não tem respostas definitivas e absolutas.

Na década de 1970, como consequência da instituição dos programas de pós-graduação em diversas universidades brasileiras, surgiram várias obras nas quais os autores se propunham apresentar análises ideológicas da realidade social brasileira e de muitas das obras que aqui tenho estudado ou mencionado. O livro que provavelmente alcançou mais repercussão dentro dessa corrente foi o do historiador Carlos Guilherme Mota: Ideologia da Cultura Brasileira. Um dos principais objetivos do autor é exatamente questionar o conceito de cultura brasileira. Embora seja pouco preciso na abordagem deste assunto, e de modo algum forneça ao leitor uma resposta satisfatória, seu objetivo principal é desmontar esse conceito que no seu entendimento não passa de uma construção ideológica. Tentando exprimir isso de forma mais clara, ele procura demonstrar que o conceito de cultura brasileira é uma representação criada por certos intelectuais ligados às classes dominantes cujos interesses moldam a realidade deformada do conceito.
Criticando antes de tudo Gilberto Freyre, em quem identifica antes de tudo o grande ideólogo das oligarquias tradicionais e decadentes do Nordeste, Mota é incapaz de reconhecer ou admitir que uma obra como Casa-Grande & Senzala, por exemplo, está muito além da expressão de interesses de classe e poder, muito além de ser uma mera projeção ideológica dos interesses parciais da classe social à qual Gilberto Freyre pertence, assim como outros explicadores do Brasil estudados no livro.

A relação entre realidade social e ideologia é muito complexa. Além de não ser a questão mais importante deste artigo, não tenho também uma teoria definitiva sobre ela, nem sei de ninguém que tenha proposto uma teoria universalmente aceita. Minha intenção ao mencionar o livro de Carlos Guilherme Mota foi apenas assinalar uma corrente de estudos existente nessa área, além de novamente explicitar a complexidade dos assuntos que estou considerando. Noutras palavras, meu alvo é a cultura brasileira. Falo de cultura brasileira como algo que efetivamos existe, mas me parece impossível determinar exatamente o que seja esse objeto. Por isso observei noutros artigos aqui postados sobre cultura minha convicção de que o conceito de cultura brasileira, assim como o de identidade cultural, é uma construção ideal, um conceito que compreende aspectos seletivos da realidade dependentes da perspectiva do autor que considera o problema.
Mencionei acima a grande diversidade da cultura pernambucana que constatei ao ler os trabalhos de duas turmas da Universidade Federal de Pernambuco. Observei como essa surpreendente diversidade se opõe à noção corrente do conceito de cultura pernambucana, que representa este objeto, a cultura pernambucana, como se fosse algo uniforme e coerente, algo facilmente apreensível pela observação e também pelo conceito. É certo que agora se fala muito em diversidade cultural, a começar pela própria secretaria de governo que se chama, aliás, Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. A mídia, mais do que essa secretaria e a propaganda oficial, encarregou-se de difundir essa noção que virou portanto moda ou lugar comum. Agora todo mundo fala em diversidade cultural, em carnaval multicultural e expressões afins. Isso parece sugerir que somos todos muito conscientes e tolerantes com relação à grande diversidade da nossa cultura. No entanto, não encontramos nenhuma tolerância nos que defendem ardentemente uma concepção regionalista da cultura.

Já registrei noutros textos aqui postados o exemplo de Ariano Suassuna, talvez o melhor que se possa considerar. Afinal, além de ser um grande escritor e intelectual de imenso prestígio, ele é o mais radical defensor dos valores regionais da cultura, o grande ideólogo e porta-voz da cultura nordestina. Mais exatamente, ele defende um tipo de regionalismo conservador, preso a raízes ibéricas da nossa cultura conservadas em áreas do sertão muito pobres e por isso mantidas à margem da cultura típica do mundo moderno. É difícil encontrar nas atitudes públicas e pronunciamentos de Ariano Suassuna o espírito de tolerância e diversidade corrente nos lugares comuns da propaganda oficial, nos clipes publicitários, no discurso da mídia. Ele se pronuncia nitidamente contra tudo que é expressão da cultura de massas, tudo que é expressão da cultura contemporânea produzida e veiculada pela tecnologia, pelo capitalismo de consumo, pelas forças da globalização econômica e cultural. Indico sumariamente este exemplo apenas com a intenção de sugerir a complexidade das questões concernentes a este artigo: o conceito de cultura, o de identidade cultural, o de globalização.

Se passamos à consideração do outro conceito – o de identidade cultural, já estudado no artigo referente ao modernismo, ao regionalismo e à identidade cultural – esbarramos no mesmo tipo de dificuldade. Falamos correntemente de identidade na mídia e na propaganda oficial como se estivéssemos falando de um conceito claro, uniforme e de fácil compreensão. Se no entanto começamos a analisar alguns fatos relacionados ao conceito, logo nos deparamos com grandes dificuldades. Se nossa cultura é evidentemente marcada por sua grande diversidade de valores e práticas, como determinar uma identidade uniforme, ou pelo menos objetivamente apreensível? Diante de dificuldades dessa ordem, volto a afirmar minha convicção de que esses conceitos são construções ideais, isto é, não correspondem a nenhuma realidade objetiva, a nenhuma coisa que possamos precisamente determinar no âmbito da realidade observada.

É claro que podemos indicar com segurança alguns traços gerais da nossa cultura – da pernambucana ou mais amplamente da brasileira – que são compartilhados por todos ou pelo menos pela maioria. É o caso, por exemplo, da língua. Este é um traço cultural fundamental que todos compartilhamos, isto é, todos falamos a língua portuguesa. Mas mesmo esta é extremamente diferenciada nas suas formas de expressão que se manifestam no uso que dela fazemos. Quero dizer, a língua que identifica todos os brasileiros varia de acordo com a classe social, a região, padrões de educação etc. Logo, até esse valor compartilhado por todos os brasileiros está sujeito a variações do tipo que acabo de indicar. Se considerarmos o caso da religião, as variações e até mesmo as divergências e conflitos de crença e valor são ainda maiores. Bastaria pensarmos numa questão polêmica como a do aborto para observarmos a grande variedade de pontos de vista de diferentes tipos de brasileiros. Poderia acrescentar muitos outros exemplos, uma infinidade deles, para sugerir o quanto é complexa essa noção de identidade cultural, o quanto ela supõe tanto valores afins e compartilhados quanto valores conflitantes e inconciliáveis. O que podemos em suma observar é que felizmente prevalece na organização da sociedade uma situação de consenso sem a qual a sociedade não se sustentaria, isto é, nossos modos correntes de convívio e interação não se sustentariam.

Restaria por fim tecer algumas considerações gerais sobre a globalização. Para começar, a própria periodização do conceito é muito discutível. Há estudiosos que datam o processo de globalização a partir dos grandes descobrimentos, em particular do descobrimento da América. Este fato histórico representou, entre outras coisas, a expansão do capitalismo europeu para as Américas, assim como para outras partes do mundo. No que nos interessa, transportou para o mundo onde vivemos o capitalismo, a religião, a ciência e a técnica então desenvolvidas pelos portugueses. Mais do que isso, trouxeram os conquistadores da América e do Brasil todo um complexo de expressões culturais de procedência europeia que se chocaram mas também se mesclaram com valores culturais nativos produzindo a partir daí uma cultura nova. Advirto o leitor para o fato de que já considerei essa questão nas suas linhas gerais no artigo relativo à cultura brasileira e suas matrizes. Outros estudiosos, no entanto, datam o processo de globalização a partir do século 18, tendo como marcos o Iluminismo, a Revolução Industrial, originária da Inglaterra, e a Revolução Francesa. De fato, são marcos históricos fundamentais para a fundação do mundo moderno, em particular do que hoje correntemente designamos como globalização. Não vou explorar essa questão, até porque não tenho a competência do historiador e do estudioso da história econômica e social para melhor esclarecer os problemas que ela envolve. O que objetivo ressaltar é apenas a complexidade do conceito de globalização, que já se manifesta na sua periodização.

O fato talvez mais destacável, quando consideramos o problema da globalização, consiste na sua realidade objetiva. Quero dizer, noutras palavras, que ela é um fato. Em graus variáveis, a globalização está presente em todo o mundo. Está presente no Recife, assim como em Pesqueira, Londrina, Ouro Preto, nas praias distantes dos grandes centros urbanos, nas cidades e vilas remotas dos sertões e agrestes, na China, no continente africano... Está presente nos polos mais avançados do capitalismo paulista, assim como na floresta amazônica. O que varia é o grau de manifestação dessas forças globalizadoras. A ciência e a técnica, ou a chamada civilização técnica, e a revolução comunicacional que liga em tempo real o mundo inteiro são provavelmente as expressões mais fortes disso que designamos como globalização. Este, sabemos, é um fato histórico sem precedente. Como tal, ele mudou de forma profunda a realidade social e nossas formas de relacionamento. A simples existência de um curso de letras à distância, como este que me associa a alunos que nunca encontrei nem provavelmente encontrarei, constitui mais uma evidência do que acabo de afirmar.

Durante milênios os seres humanos se comunicaram diretamente, tendo a proximidade física ou espacial como fundamento da interação social. Depois das invenções tecnológicas que hoje viabilizam os contatos à distância, ou as relações virtuais, houve uma transformação radical nos nossos modos de relação humana. É provável que hoje a maioria de nós, habitantes do mundo urbano familiarizados com a televisão e a internet, mantenha contatos antes de tudo virtuais. Essa nova realidade provocou mudanças culturais e produziu novas formas de interação social que não posso infelizmente considerar de forma mais detida numa explanação geral desse desconcertante mundo novo. Além do alcance confessadamente modesto deste artigo, não disponho de conhecimentos para explorar a fundo as questões culturais implicadas nesse processo que chamamos de globalização. Por isso quase que me limitei a assinalar sua realidade objetiva, além de ressaltar sua complexidade, isto é, a própria complexidade do conceito. Reiterando o que afirmei no início, e agora concluindo, meu propósito principal foi acentuar a complexidade dos conceitos relativos a este texto. Foi ainda explicitar problemas, torná-los mais evidentes com a intenção de induzir o leitor a refletir melhor sobre a complexidade aqui indicada. Portanto, este texto é antes um texto relativo à explicitação de problemas e reflexões do que um texto de respostas e soluções fáceis.

Recife, junho de 2011.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Continente e ilha



Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world.
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity. (Yeats)

As explosões irromperam
numa luminosa manhã de setembro.
No cerne da ilha fabulosa
cerne do capital globalizado
dois modos de barbárie se entredevoram.

Recolhido na concha de sua ilha mítica
Senile vê aterrado as torres colossais se desmanchando.
A Caixa de Pandora enfim se rompe
cegando sobre as águas envenenadas
a face hedonista de Narciso.

Paralisado contra o vento fervente que o açoita
Senile vê em ondas
imagens da barbárie renascida.
Pandora rediviva na prosa niilista
do bruxo do Cosme Velho
agita as fúrias insones:
levo na minha bolsa os bens e os males
e o maior de todos, a esperança,
consolação dos homens.

No princípio era o caos
e agora a ele regredimos.
Nostromo, o coração das trevas
já não pulsam confinados na turbulência da periferia
drenada pela vontade de potência do capital
e das capitais do mundo.
Caliban e Próspero são o meu semelhante
e estão em toda a parte.
Civilização é uma flor precária
adubada no sangue da barbárie
e tangida pelos ventos da tormenta.

As torres se desmancham
soterrando o lago azul de Narciso
varrendo num sopro gelado
os cenários estéreis e histéricos do hedonismo midiático.
E entanto a barbárie segue seu curso
pois que a própria brutalidade do terror
logo se dissolve em espetáculo.
O fanático truculento que arquiteta
os infernos invocando forças divinas
é já herói, amanhã mito
incendiando a imaginação delirante
de massas famintas ávidas de sangue.
As fúrias insones
desencadeadas da Caixa de Pandora
de novo sacodem o mundo inaugurando
formas inusitadas de destruição.

Erguido contra os ventos que varrem as colinas de Insulândia
Senile vê dentro da névoa
as terras devastadas do continente.
Nas cores da manhã sangrenta
espetados no fundo rubro do horizonte
surdem os sinais do naufrágio que avança.
Transido entre a ilha mítica
e o continente inescapável sabe Senile
que nada nem ninguém estará a salvo
que até nas ilhas míticas
fecharam-se as rotas de fuga.

Mais que uma guerra desterritorializada
sem combatentes definíveis
mais que o terror elevado à escala global
Senile identifica no conflito
a luta cega de dois modos de barbárie na aparência antagônicos.
Se em um o atraso, a miséria
somados a forças elementares de resistência à mudança
produzem a violência extremada em terror
no outro o triunfo da tecnologia
e a reificação universal das relações humanas
geram a opulência privada de sentido
o niilismo prático e inconsciente
o predador consumista encolhido
no minimalismo da barbárie narcisista.

E Senile recua e se recolhe
no útero de sua ilha mítica
sabendo embora que todas as vias
de fuga estão fechadas e Insulândia
eleva-se indefesa diante da fúria
que ruge no continente.

A noite, uma noite sem tempo
recobre agora os céus do continente
estendendo suas trevas sobre o mar e a ilha.
Um longo cortejo de sombras
move-se contra o fundo onde o clarão dos mísseis
e outras máquinas mortíferas irrompem
no deserto do continente devastado.

Senile apura a retina
e as sombras se vão gradualmente definindo.
São os homens
seus semelhantes que correm
e correm e prosseguirão correndo através dos séculos.
Correm como um cortejo de condenados a correr
sem direção e sem propósito.
Correm e entanto correm
como se na corrida cega portassem uma verdade.
E assim se chocam uns contra os outros
e se combatem e se destroem
como se o sentido da verdade que invocam
na supressão do outro se afirmasse.
E difícil senão impossível é ainda
dormir em paz em Insulândia.

Recife, 30 de outubro de 2001.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Narciso em Insulândia



Ela aportou em Insulândia numa tarde de dezembro
Quando o sol dos trópicos banha as águas atlânticas
Com sua luz de ouro e fogo.
Senile, o habitante de Insulândia,
Acolheu-a entre perplexo e tenso
Seu coração insular inflado de presságios
Como as nuvens de Insulândia
emitindo sinais de tempestade e cólera
Nas madrugadas de junho.
Viera de longe, da costa americana
A pele e os cabelos longos
Traindo sua ascendência nórdica.

À noite, sentados ao pé do fogo
Ela lhe falou do mundo de que fugia.
Globalisation, she said
Is killing the very core of cultural diversity.
The real name of the Devil is American capitalism
Driven by greed and fierce competition.
Ouvindo-a desfiar dentro da noite de Insulândia
Seu desarraigamento e seu sonho de um mundo reencantado
Senile, ainda vulnerável à humanidade assimilada no continente,
Foi dormir tocado pela fantasia
De uma humanidade refeita em Insulândia.

Os dias e a matéria convivida
Cedo dissolveram na imaginação de Senile
O sonho de uma Insulândia duplicada
Em unidade amorosa.
Ela acordava sempre deprimida
Ausente de Senile
Da ilha que figurava como um poço sem fundo
Hostil ao mundo impassível
À sua demanda de unidade mística.
A indiferença das águas
Sobre as quais debruçava a face vazia
Feria-lhe a carne estéril de desejos destrutivos.

Narciso transtornou a solidão de Senile
Sua paisagem moral de bicho insular
Conciliado com o mundo idêntico às medidas de Insulândia.
Narciso sofria a ausência de espelhos
Um mundo encadeado em reflexo, vitrine
Fluxo incessante de imagens
Tecido sem pausa e sem silêncio
Oco escorrer de corpos, ruídos e sons agônicos
Propagados em miríades de telas, fauna noturna
Estádios explodindo em shows de rock e rapina.

Na pausa da noite, órfã sob os céus indiferentes
Narciso voltava-se para Senile
Oprimida pela carência de âncora
Ilha suspensa sobre seu mundo náufrago.
Mirava-o aflita
Sem que todavia a face dele a refletisse.
Debruçava-se sobre a superfície opaca
E recuava retesada em ondas destrutivas:
The world is sheer hell
And K. is kaos.

Sem suportes no tempo
Privada de um antes e um depois
Narciso braceja no nada cinzento do presente.
Como então compreenderia
A solidão de Senile
Iluminada pela memória da carne?
A recusa de Senile
Amparada na convicção de uma vida melhor?

Os sonhos sonhados por Narciso
São um fluxo de pesadelo e desejo de morte.
The world, she says, will end in fire or ice storm
With a bang or a whimper
And that´s all
And that shakes my body
With an unbearable feeling of terror and despair.
Se a ameaça do fim
E e sopro destrutivo da barbárie movem Senile
E suas linhas de fuga para Insulândia
Narciso a tudo assiste nas águas intransparentes do espelho-mundo
Seu ser profundo a densidade de uma vitrine de butique
Girando drogado nas danceterias frenéticas.
Things fall apart and you can do nothing
Except getting fun at the Fun House
And dancing rock and maracatu over the volcano.

Narciso longamente lavava os pesadelos noturnos
E a depressão imóvel sobre espelhos cegos
Nas águas de Insulândia.
Senile esmorecia e se alumbrava sob as árvores
Vendo-lhe o corpo nu
A pele leitosa tingida pelo sol dos trópicos
A nudez reconciliando-a com a verdade precária da carne.
E o alumbramento se fazia regressão à natura
Agitando o canibal em Senile.
A lei primeva do homem
Reposta no desejo represado de Senile.

Naquela noite
O uivo do Lobo de Pindorama
Crispou de gozo e medo a carne de Senile.
Eis que o possuía a força cega da lei primeva
O desejo de devorar carne da mesma espécie.

Senile abateu-a com três golpes precisos e letais.
A luz da fogueira, queimando no ar deserto de Insulândia,
Cozia a carne retalhada de Narciso.
Senile banqueteou-se até raiar nos mares
A luz enxuta da manhã.
A porção mais deleitável concentrava-se nas coxas.
Mordendo-a e lentamente mastigando-a
Senile sentiu correr-lhe o corpo
O gozo inefável do Lobo
Nunca antes em si sabido ou intuído.

Por fim, saciada a fome
Sugada no poço a gota última
Do êxtase irrepetível
Ouviu Senile o uivo do Lobo de Pindorama:
Sometimes you must be cruel, my dear hunter,
In order to be kind.
Então ele palitou os dentes
E as águas de Insulândia refletiram no fundo azul
A superfície iluminada de um sorriso sagrado.

Insulândia se reconstelou
Nos seus elementos mais puros e inativos.
Reintegrado ao ventre harmônico da ilha
Senile adormeceu sob o brilho das estrelas impassíveis.

Recife, 20 de dezembro de 1999.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Insulândia



Nas águas represadas entre a lua e o farol
Fundou sua ilha chamada Insulândia.
Há muita música no mundo.
As mais belas, e são tantas,
Povoam o ar azul de Insulândia.
Embora ame os homens que deram forma à música
Jamais lhe ocorreu o desejo de conhecê-los
Saber quem são e como vivem.
Ele sabe que o melhor desses homens
A humanidade iluminada que transportam
Vive na música, não na vida que viveram.

Há grandes livros no mundo.
Alguns habitam a biblioteca de Insulândia.
Ele viajou através dessas obras
Nelas fruindo uma forma de mais elevada humanidade.
Os homens que as produziram
Vivem lá fora e longe
Num mundo inacessível a Insulândia.
Ele não viajaria um quilômetro
Sequer atravessaria uma ponte
Para tocar e conhecer esses homens.
Pois os livros de Insulândia cedo o ensinaram:
Esses homens não valem um capítulo ou um verso
Da humanidade que escreveram.

O habitante de Insulândia
Viu e amou muitos quadros.
Espelhados no olhar da memória
Esses quadros se fazem habitantes de Insulândia
Sem que consigo transportem, sequer sugiram,
A mancha de tinta nos dedos que os pintaram
A humana ferramenta que lhes comunicou
Um sopro de vida definitiva.

Há filmes, muitos filmes e peças em Insulândia.
Projetados numa tela privada
Ou ouvidos numa fita que lhe pontua
Frequentes caminhadas através da ilha
Abrem-lhe um horizonte impraticável
No mundo das relações vivas e convividas.

Os luares de Insulândia
Ou o cheiro forte da terra molhada
Trazem-lhe um sopro sofrido de amor e mulher.
Ouve-se então
Na voz da brisa que viaja para o continente
O uivo do lobo deserto
A tristeza da carne ralando o nervo e a epiderme.
Mas cedo se pacifica
E cessa a dor do que falta
E ele se reintegra na memória da carne
Outrora amada e já perdida.
Mas a memória é também um modo de ganho
Atualização do amor e da carne
Sobrevivos no balanço dos bens gastos e retidos.

Insulândia é habitada por um homem
Um único homem.
Desesperançado do semelhante
Falível e insensato como ele
Vem longamente aprendendo
Que o melhor dos homens
Radica nas obras que inventaram.
E o amor mais alto é só memória da carne.

Recife, 12 de Dezembro de 1999.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Shakespeare para leigos



Ron Rosenbaum é uma das grandes expressões do jornalismo cultural. Importaria de pronto ressaltar que me refiro a algo bem distinto do que no Brasil entendemos por jornalismo cultural. Aludo ao jornalismo cultural compreendido na linha da tradição anglo-saxônica, que produziu autores do porte de Mencken, Edmund Wilson, Lionel Trilling, George Orwell, Frank Kermode, Melvyn Bragg, Michael Ignatieff... O que os distingue dos nossos, assim como os biógrafos de lá nitidamente se distinguem dos daqui, é a excelência da formação intelectual, não raro solidamente enraizada numa tradição acadêmica que nunca tivemos nem teremos. Isso explica grosseiramente a excelência do jornalismo cultural praticado em terras anglo-saxônicas. As guerras de Shakespeare, objeto desta resenha, constitui uma expressão singular dessa tradição.

O objetivo substancial de Rosenbaum é traduzir Shakespeare para o entendimento do leigo, de gente como eu e provavelmente como o leitor que me acompanha. Como sabemos, Shakespeare ocupa lugar supremo no cânone da literatura universal. Um dos seus estudiosos mais devotos, Harold Bloom, escreveu em 1998 um livro de mais de 700 páginas no qual escrutina e interpreta o conjunto da sua obra visando provar que ele é simplesmente o inventor do humano (Shakespeare, the invention of the human, título do livro). A tese de Bloom é extremamente ousada, pois consiste na convicção, argumentada ao longo do livro, de que Shakespeare recriou a língua inglesa e, feito ainda mais extraordinário, fundou a noção de natureza humana tal como hoje a compreendemos. Rosenbaum contesta de passagem esta tese qualificando-a simplesmente como tola (ver p. 44). De fato, endossar a tese de Bloom significaria menosprezar todas as extraordinárias invenções literárias e filosóficas anteriores a Shakespeare. Se isso fosse verdade, que lugar Homero, Sófocles, Platão, Virgílio, Dante e tantos outros passariam a ocupar na tradição cultural?

Rosenbaum introduz na obra algumas digressões autobiográficas que nada encerram de complacência narcisista, como é rotineiro na atmosfera cultural em que vivemos. Ele o faz com o propósito de explicar sua desilusão com a carreira e o ambiente acadêmico onde se forjam os altos, complexos, eruditos e não raro bizantinos estudos e interpretações da obra e da vida de Shakespeare. Sua desilusão foi tão grande que, sem meias medidas, assim se expressa:
“Pude experimentar o barato da adrenalina jornalística quando recebi credenciais de imprensa para cobrir a Convenção Democrática de Chicago de 1968 para um diário local. E sair daquele tumulto capaz de mudar a história e voltar ao cinismo barato da cultura acadêmica foi intensamente desanimador. O que havia de errado com aquela gente?, perguntei primeiro. E depois: o que havia de errado comigo? Por que ficava ali?” (p.21).

A citação que acabo de fazer é relevante por me parecer que condensa a orientação intelectual seguida por Rosenbaum e os dois livros mais importantes que escreveu e foram traduzidos no Brasil: Explaining Hitler (título brasileiro: Para entender Hitler) e este que aqui comento. Apesar da sólida formação acadêmica que assimilou, de sua precoce iniciação nos estudos literários e particularmente shakesperianos, Rosenbaum consagrou-se à elaboração de obras que acima qualifiquei como jornalismo cultural e é colaborador de periódicos renomados como New York Times Magazine, The New York Observer e The New Yorker.

O objetivo que o motivou a trabalhar durante sete anos na composição deste livro sobre Shakespeare é o mesmo que antes demoradamente o ocupou na ambiciosa empresa de explicar Hitler. As questões fundamentais que pulsam nas raízes destes dois livros – o que é exatamente shakesperiano, como explicar a singularidade shakesperiana da obra desse gênio supremo e, por outro lado, o que é o mal radical, como explicar o mal em Hitler, o que ele simboliza como expressão da maldade humana? – resultam irrespondidas e são certamente irrespondíveis. Quero dizer, faltam-nos poderes intelectuais e filosóficos, éticos, como queiramos chamá-los, para respostas satisfatórias ou definitivas. Nesse sentido, por razões radicalmente distintas, Shakespeare e Hitler são enigmas que nenhum oráculo tem o poder de decifrar. Este é um dos méritos de ambos os livros: guiar-nos até onde possível através dessas sendas e enigmas insondáveis. O leitor carente de verdades últimas, ou meramente dogmático, pode depreciar obras dessa natureza, ou simplesmente desprezá-las por não lhe fornecerem as certezas cômodas que busca. O leitor que tenho em mente, penso que também Rosenbaum, é um outro, é o leitor que busca, investiga e luta tenazmente com e contra a opacidade dos sentidos humanos para saber até onde é possível saber. Não tenho dúvida de que esse tipo de leitor muito se beneficiará da leitura de ambos os livros de Rosenbaum.

O que ele, Rosenbaum, ambiciona, assim entendo, é traduzir no melhor sentido da obra de jornalismo cultural as questões – ou as guerras, como ele as intitula – que cercam o estudo e o sentido da obra e da vida de Shakespeare. Essas questões ocupam há séculos estudiosos eruditos, especialistas acadêmicos que em alguns casos se debruçam uma vida inteira sobre os textos de Shakespeare visando esclarecer as versões e variações que as circunstâncias históricas impuseram à obra na sua passagem através dos séculos. Para adentrar essa selva, o leitor precisa conhecer conceitos e fatos elementares que o livro generosamente lhe fornece: em que circunstâncias a obra de Shakespeare foi escrita, como os textos eram impressos na sua época, o que é edição em Quarto, Fólio e coisas afins. Outras questões por ele minuciosamente abordadas: qual o verdadeiro Hamlet? Qual é a verdadeira última fala do rei Lear no fecho da tragédia, quando retém nos braços moribundos o corpo de Cordélia, sua filha adorada? A essas e muitas outras questões relativas à obra, ao texto e seu significado acrescentam-se as questões de fundo biográfico que prendem e apaixonam os estudiosos. Como sabemos, até Freud entrou nessa dança ao atribuir a Shakespeare uma identidade e posição social comprovadamente ficcionais.

Já de partida, Rosenbaum adota a posição que me parece correta diante da relação entre o autor e a obra, a biografia e o texto. A prioridade que ressalta é a obra. A biografia importa apenas na medida em que concorre para esclarecê-la. Ademais, a vida de Shakespeare foi muito nebulosa. Embora exista já uma infinidade de biografias suas (bastaria dizer que eu, um leigo apaixonado, possuo cinco), muito da sua vida é simplesmente ignorado, ou objeto de especulações, umas engenhosas, outras apenas delirantes. A qualidade da adaptação cinematográfica de um curto período da sua vida contido no filme Shakespeare in Love, escrito por Tom Stoppard e Marc Norman, e o sucesso extraordinário alcançado por este filme, premiado aliás com sete Oscars relativos a algumas das categorias mais prestigiosas do prêmio, concorreu para ampliar o interesse constante pela vida e a obra de Shakespeare. Na verdade, segundo palavras do próprio Rosenbaum, o sucesso alcançado por este filme deflagrou uma autêntica moda shakesperiana.

Como convém ao espírito do tempo, importa salientar que a obra de Shakespeare, em termos de vendagem e influência, é segunda apenas para a Bíblia. Além do fato de haver produzido uma obra que no conjunto é de uma genialidade singular e objetivamente incomparável, Shakespeare é beneficiado pela circunstância de ser antes de tudo um autor dramático, um autor da literatura que é escrita com o fim último e fundamental de ser representada. Portanto, a disseminação universal da tecnologia audiovisual contribuiu de forma decisiva para difundir sua obra numa escala inconcebível para qualquer outro gênio da literatura narrativa, aquela produzida antes de tudo para ser lida.

Como conceber, por exemplo, a obra de gênios como Cervantes, Dostoiévski, Charles Dickens, Marcel Proust, Tolstói, Henry James, Machado de Assis, Joseph Conrad e tantos outros para o cinema hoje transportado, graças ao DVD, para dentro de nossas casas? É claro que todos os autores que acabo de citar tiveram parte da sua obra adaptada para o cinema. Mas como comparar Guerra e Paz, por exemplo, com qualquer das medíocres adaptações de que já foi vítima? Não importando o gênio de quem os transporte para a tela ou o palco, a grandeza desses autores reside na forma irredutível das narrativas que genialmente criaram. Essa forma não tem simplesmente correspondente audiovisual. Ora, Shakespeare é nesse sentido, dada a razão aqui exposta, um privilegiado. Portanto, o lugar único que ocupa na história da arte e da cultura universal somente seria ameaçado se o público mais cultivado que existe trocasse a sua obra impressa, e sobretudo representada, pelo feijão com arroz melodramático que a televisão todos os dias oferece à massa dos telespectadores.

Voltando ao livro, se é que dele indevidamente saí, o mérito maior de Rosenbaum consiste em traduzir no estilo e na linguagem do melhor jornalismo cultural as “guerras” que cercam a obra e a vida de Shakespeare. Travadas com paixão e devoção maníaca nos círculos rarefeitos da alta cultura acadêmica, lastreada em métodos e sobretudo linguagem e estilo de composição impermeáveis ao leigo, elas escapam à compreensão e ao interesse do público geral. O objetivo de Rosenbaum é, portanto, erguer uma ponte entre os altos círculos da erudição shakesperiana e o leigo culto, o apreciador da obra que, não obstante autenticamente a ela vinculado, compreende-a e traduz numa dimensão muito distinta daquela forjada pelo especialista erudito. Convém lembrar, a esse propósito, que a mera intencionalidade da obra que ressalto neste parágrafo é por si só digna do mais alto apreço.

Talvez o mérito maior da tradição do jornalismo cultural que tende a progressivamente desaparecer, a tradição espelhada na obra dos jornalistas culturais mencionados no parágrafo inicial desta resenha, consistisse na consciência que tinham esses escritores e críticos de exercerem uma função cultural formativa de incalculável efeito democratizador da cultura. Eles eram, noutras palavras, mediadores esclarecidos, herdeiros portanto da melhor tradição iluminista, entre a obra e o público leigo, o público culto, sinceramente devotado aos valores da cultura intelectual, mas por variadas circunstâncias incapacitado de dominar os códigos originários complexos da tradição intelectual e estética. Essa questão tornou-se nitidamente crucial no momento, entre os fins do século 19 e as primeiras décadas do século 20, quando irromperam os movimentos de vanguarda na literatura, na pintura, na música, teatro... Foi nesse contexto que críticos como Edmund Wilson, bastaria pensar nesta obra fundamental da crítica literária que é Axel´s Castle, exerceram um papel decisivo no sentido de tornar as obras do alto modernismo literário compreensíveis ao leigo.

Devido a razões culturais complexas que não posso considerar nesta resenha, essa figura do intelectual público tende a desaparecer. Uma das razões desse desaparecimento decorre dos processos de especialização acadêmica que converteram o intelectual num funcionário preso a critérios de produção e avaliação que, em termos práticos, dissociaram sua atividade intelectual da sociedade, notadamente daquele leitor em larga medida formado e orientado por intelectuais públicos ou jornalistas culturais do tipo acima citado. Talvez a melhor ilustração desse meu argumento no contexto cultural brasileiro seja Otto Maria Carpeaux. Intelectual de origem e formação europeia, Carpeaux transportou para o Brasil toda a sua extraordinária erudição e generosamente disseminou-a nas páginas dos periódicos brasileiros durante décadas. É difícil avaliar a importância preciosa de tudo que dele herdamos.

Ao escrever obras como Para entender Hitler e As guerras de Shakespeare, Ron Rosenbaum felizmente demonstra que essa tradição não foi extinta; demonstra, noutras palavras, que é possível traduzir muitas das questões complexas que cercam a obra e a vida de Shakespeare em termos acessíveis ao leigo. Convém todavia alertar o leitor para o fato de que, não obstante tudo que nesse sentido realiza ao longo dessa obra volumosa, Rosenbaum não tem como poupar o leitor de muitas páginas tecidas de minúcias e especulações que honestamente me parecem irrelevantes, ou apenas interessantes para quem se compraz com as bizantinices e xaropadas da erudição estéril.

Ron Rosenbaum. As guerras de Shakespeare. Tradução: Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro: Editora Record, 2011.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Liberdade e identidade



Meus sentimentos de estrangeiro tendem a acentuar-se durante o carnaval. Sendo uma das mais profundas e extensivas expressões da cultura brasileira, portanto um dos seus momentos de suprema integração social, não é de estranhar que estados subjetivos dessa natureza se agravem imprimindo transparência à linha fronteiriça entre o eu e o outro coletivo, entre minha brasilidade gauche, sempre distanciada e dissonante, e o espírito gregário e ruidoso do povo brasileiro.

Isso se repete, em tom às vezes ainda mais exacerbado, durante a Copa do Mundo. Este, aliás, será um ano – junho e julho, mais exatamente – que me submeterá a mais uma dessas provas de brasilidade a contrapelo, de celebração futebolística contrafeita, já que sempre vivida com reserva, quando não com franca resistência à integração dissoluta no corpo da massa infranqueável ao exercício da individualidade e da alteridade.

Meu estranhamento desdobra-se ainda nas festas de fim de ano, além dos festejos do meio do ano, como é o caso das festas juninas que já tive a esperança de ver superadas pela dinâmica urbana do país. A mídia e a indústria da publicidade, entretanto, operaram recentemente no sentido de ativá-las integrando-as ao circuito do consumo e deslocando-as dos arraiais e da geografia rural para os shopping centers; para o cerne, portanto, do espaço onde se desenvolve a cultura urbana. Fenômenos dessa natureza sugerem a complexidade da dinâmica sociocultural do capitalismo em países do tipo do Brasil.

Será necessariamente negativo ou indesejável o estado de estranhamento dentro do meu próprio país? Minha amiga Vivian Schelling, culturalmente dividida numa linha de intersecção simbólica que compreende Alemanha, Espanha, Inglaterra e Brasil, muitas vezes se queixou nas nossas conversas londrinas da sua personalidade culturalmente dividida. Talvez por isso tanto se voltasse para o seu curto passado brasileiro, vivido entre o Rio e São Paulo, tingindo-o com cores idealizadoras.

Será assim indesejável ou negativo esse processo de interna divisão cultural? Se todos tendessem a comportar-se como Vivian, diria que o mundo contemporâneo, pelo menos o ocidental, estaria saturado da infelicidade gerada pela divisão cultural das personalidades. Dado isso como um fato, seria igualmente compreensível a representação regressiva e idealizadora do passado pré-moderno. Foscamente dividido por essas fronteiras que demarcam a linha da modernidade e a da pré-modernidade, o Brasil se prestaria a acomodar na sua geografia cultural o olhar nostálgico do pós-modernista contrafeito.

Recuando entretanto para a modesta e palpável dimensão da minha subjetividade, não me vejo como um infeliz ou carente de identidade socialmente integrada. Sem pretender subestimar o fardo que é viver regido por valores que não alcançam o estatuto de valor dominante na minha cultura de origem, sempre discriminei esse peso negativo do positivo. Tanto quanto aquele, este se constitui na expressão da minha personalidade como consequência muitas vezes consciente e até previsível dos conflitos implícita ou explicitamente travados no cerne da minha subjetividade que compreende valores coletivos, alguns imperativos, mas também valores individualmente selecionados.

É nessa linha de tensão em que se relacionam o eu-Fernando e o outro-coletivo que se define a minha subjetividade. Antes de concebê-la como mera expressão individual e reflexa da sociedade, aprendi que é possível investir-me do poder e da liberdade de traçar uma linha de diferença e individualidade diante dos mecanismos sociais tendentes a produzir o conformismo e a indiferenciação. Dependo evidentemente da sociedade em que vivo para me constituir enquanto entidade autônoma e individualizada sem que entretanto isso de modo algum pressuponha o consentimento ou dócil aderência aos valores dominantes.

Se um homem não é capaz de demarcar sua diferença contra o outro coletivo, não pode legitimamente falar de si próprio como um ser livre. É por isso que um dos problemas mais inquietantes da cultura contemporânea, regida pelas agências geradoras dos valores difundidos em alta e sistemática escala pela mídia, é a ilusão da autonomia e da liberdade individual. Digo ilusão porque a noção de liberdade vendida pela mídia é objetivamente uma forma de conformismo e escravização aos ditames do mercado. Seja você mesmo: beba coca-cola. Esta frase, mote publicitário do produto que anuncia, sintetiza à perfeição o que intento traduzir neste parágrafo.

Essa cultura da mídia, fundada no princípio da permissividade, da completa dessacralização dos valores coletivos, exerce a forma mais insidiosa de dominação, já que é abstrata e assim nunca se materializa num indivíduo ou instância concreta. Costumo ainda hoje lembrar um episódio que tipifica este fenômeno. Quando ensinava sociologia no curso de arquitetura da UFPE costumava selecionar alguns filmes para debatê-los com os alunos. Vimos, certa vez, Sociedade dos poetas mortos (Dead Poets Society). Um dos alunos, aliás dos mais inteligentes da turma, observou que a diferença essencial entre a escola tradicional retratada no filme e a contemporânea consistia no fato de que naquela os alunos não eram livres, enquanto o eram nesta.

Ora, o que o episódio ilustra é a crença espontânea na liberdade. Dissolvendo o princípio necessário da autoridade no seio da permissividade mercadológica, a mídia despersonaliza a liberdade dissociando-a de qualquer forma concreta de autoridade. Lembrei ao meu aluno que uma das características positivas da sociedade tradicional residia no fato de a autoridade se encarnar na figura concreta do pai, da mãe, do professor, etc. Na medida em que era visível e concreta, era por conseguinte mais fácil identificá-la e opor-lhe resistência, sobretudo nas circunstâncias em que deixava de ser autoridade para converter-se em dominação autoritária.

O próprio processo de conquista da identidade individual, um fato imperativo na vida de qualquer pessoa formada nos quadros da cultura ocidental, me parece que resultava menos problemático no âmbito de uma cultura em que a autoridade estava concretamente materializada na ação de alguns agentes sociais básicos. Na medida porém em que a autoridade tende a se tornar abstrata dissolvendo-se na ideologia da permissividade, que nunca se pronuncia no imperativo nem é veiculada por agentes identificáveis com a autoridade indesejada e hostilizável, a sensação de desorientação e impotência, sobretudo do jovem, tende a acentuar-se. Falando de modo interrogativamente concreto: contra quem conquistarei minha liberdade? A quem opor minha resistência e meu desejo de afirmação individual, minha sede de liberdade, em suma? Como reivindicar minha liberdade numa cultura onde pai e mãe não apenas estão esvaziados de autoridade, mas se tornaram presas dóceis, meros financiadores da liberdade mercadológica?

Ser livre hoje talvez signifique a recusa de ir ao shopping center comportando-se como o avesso da máquina dócil imantada à engrenagem do guichê e do cartão de crédito. Ser livre hoje talvez signifique dizer não ao carnaval, ou antes brincá-lo sem subordinar-se aos invisíveis mecanismos de pressão que nos reduzem a um número estatístico ou a uma cota negociada no mercado de ações, ou ainda a um flash sonhado na telinha da rede Globo.Ser livre talvez signifique ser ninguém ou nada no caldeirão antropofágico do capitalismo de consumo, variante tropical, Pernambuco, Brasil.

Diário - Recife, 22 de Fevereiro de 1998.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Solange longe



Na tarde um sino tange
E andam cantigas da infância.
Na tarde andas, Solange
E és bem maior que a distância.

Queria a luz da poesia
Que a alma recolhe e tange
E no silêncio irradia
Teu claro nome, Solange.

Mas tão calado e pequeno
Tão de ti perto e tão longe
Que meu insensato aceno
Nunca te alcança, Solange.

E voas para Paris
Para longe, muito longe.
Meu coração sem país
Quer um país: é Solange.

Que dilatada fronteira
Cinge o humano destino
Andas ausente e inteira
Partes no bronze do sino.

Na tarde um murmúrio tenso
De morte, talvez de vida
E eu sem país sigo e penso
Que meu nome é despedida.

São Paulo, outubro de 1979.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Alain Finkielkraut


Um coração inteligente

Alain Finkielkraut, de origem polonesa, é um ensaísta e professor que se distingue na França por ser o que noutros tempos se conhecia como intelectual público. Atualizando a expressão, diríamos que é hoje um intelectual midiático, assim como no Brasil são ou foram Paulo Francis, Marilena Chauí (entre parêntesis: onde andará a grande profetisa da ética petista na polícia? Perdão, quis dizer política. Lula explica. Se o mensalão tem uma vítima, e mais que merecida, diria ser ela.) Jurandir Freire Costa, Maria Rita Kehl, Contardo Calligaris, Marcelo Coelho e tantos outros. Finkielkraut é também um dos rebentos da geração conhecida como os novos filósofos, um grupo barulhento de jovens pós-sartreanos que fez muito barulho, como é de praxe na inteligência francesa, e bem pouca filosofia que sobreviva.

Finkielkraut reaparece na cena intelectual brasileira com um livro surpreendentemente consagrado à literatura. Começo pelo melhor, pelo que de pronto me atraiu no livro: o título. Eis um belo título: Um coração inteligente. Finkielkraut introduz seu título e a devida obra evocando a súplica que o rei Salomão fez a Deus: que Deus lhe desse um coração inteligente. A julgar pela tradição bíblica, Deus lhe deu, sim, um coração inteligente. Como há muito já não existe rei ou governante do feitio de Salomão, até porque o Deus e a política da modernidade são definitivamente entidades de ordem secular, é compreensível e até sábio o fato de Finkielkraut debruçar-se sobre as fontes da literatura tocado pela esperança de fazer do seu um coração inteligente, além de intentar comunicá-lo ao coração dividido do leitor.

Por que afirmei eu que o coração do leitor, o nosso, é um coração dividido? Porque penso que essa bela unidade expressa no titulo da obra foi cindida por forças e movimentos de ideias típicos da modernidade. Rousseau, pai fundador da filosofia e da literatura romântica, elevou a sensibilidade (isto é, o coração) à condição de ideal supremo. No outro lado do canal, na Inglaterra, Jeremy Bentham e sobretudo James Mill e seu filho John Stuart Mill expulsaram o coração do reino da inteligência ao consagrarem o princípio da utilidade como fundamento da filosofia utilitarista. Claro que simplifico a história moderna das relações entre o coração e a inteligência na modernidade. Mas o enredo geral bem pode ser assim esboçado. Esta é a cisão que percorre o espírito do livro de Finkielkraut e portanto cuidarei de a retomar mais abaixo.

Entendo que o coração inteligente é aquele que conjuga a emoção e a inteligência, a sensibilidade e o intelecto. Se é possível imaginar uma razão absolutamente fria e um coração puramente cego, temos aí o primeiro motor ou a fonte suprema da catástrofe, seja num extremo, seja no outro. É essa a consequência da cisão entre os pares complementares que são a sensibilidade e a inteligência. Como ressalta Finkielkraut, o possesso e o burocrata são perversões atuais desses pares complementares. Pervertem-nos não apenas porque os dividem, mas sobretudo porque, assim procedendo, dão um passo adiante e convertem um dos polos em ideal absoluto ou norma suprema de vida.

O possesso, sabe o leitor, é uma alusão implícita ao romance Os possessos (também traduzido como Os demônios), de Dostoiévski. Estes convertem a paixão revolucionária, ou o coração fanatizado, no absoluto que, na história política, produziu insanidades como o reinado do terror, durante a revolução francesa, o stalinismo e o nazismo. O burocrata, esse funcionário sem alma, é o carcereiro da modernidade, daquilo que Max Weber, teórico supremo da burocracia e dos processos de racionalização da modernidade, designou como a jaula de aço (iron cage) do mundo em que vivemos. Se querem um exemplo extremo desse burocrata sem alma, lembrem-se de Eichmann, julgado e condenado em Jerusalém e objeto de um livro momentoso e definitivo da filosofia política do século vinte escrito pela grande Hannah Arendt.

Penso que o eixo do livro de Finkielkraut consiste nas linhas de força e tensão que procurei esboçar nos parágrafos precedentes. Mas saiba o leitor que ele não o expõe, o eixo a que me refiro, com a clareza que intentei verter sobre esta resenha. Ele acredita, assim como eu, que é na literatura que tecemos o coração inteligente. Não em Deus, como acreditava Salomão, pois Deus, imerso no seu silêncio, é indiferente à nossa súplica. De resto, introduzindo aqui um travo de mordacidade, quem hoje suplica a Deus um coração inteligente? Os fiéis suplicantes que de ordinário encontro e ocasionalmente ouço suplicam a Deus as benesses do bezerro de ouro que é a nossa sociedade de consumo. Portanto, dou razão a Finkielkraut: é na literatura que podemos talvez identificar essa unidade rompida entre a sensibilidade e a inteligência.

Guiado pelo princípio acima exposto, Finkielkraut seleciona algumas obras da literatura escritas entre os séculos 19 e 20 para ilustrar seu argumento. Dentre os autores que estuda, há dois que desconheço completamente e, até onde sei, são praticamente desconhecidos no Brasil. Refiro-me a Vassili Grossman e Sebastian Haffner. Os demais são autores canônicos da literatura moderna: Dostoiévski, Joseph Conrad, Henry James, Karen Blixen (também conhecida como Isak Dinesen, seu pseudônimo literário), Albert Camus, Milan Kundera e Philip Roth. De cada um desses autores, Finkielkraut seleciona uma obra específica e daí se empenha antes em descrever do que demonstrar o coração inteligente que esses grandes ficcionistas narram.

A insuficiência do livro me parece consistir precisamente nisso: na prevalência da descrição sobre a demonstração. Quero noutras palavras dizer que Finkielkraut, ao estudar uma obra determinada de cada um dos ficcionistas acima mencionados, limita-se quase sempre a parafrasear ou transpor em estilo próprio as narrativas que no seu entender justamente traduzem no plano do imaginário ficcional a experiência do coração inteligente. O livro seria com certeza bem melhor se ele se aventurasse a melhor demonstrar seu argumento em defesa da literatura contra a filosofia e as ciências sociais.

Na página de abertura do capítulo dedicado a um conto de Karen Blixen, A festa de Babette, Finkielkraut opõe francamente a literatura à filosofia e às ciências sociais tomando o partido da primeira. Ele acredita que o sentido do conto de Karen Blixen consiste em nos revelar na forma de uma narrativa, ou de uma história, o que significam grandes valores humanos como a civilização, a arte, o ideal e a graça. Quando se propõem questões dessa natureza, o filósofo e o cientista social recorrem ao pensamento especulativo, no caso do primeiro, e aos métodos indutivo e comparativo, no caso do segundo. O narrador ficcional, por sua vez, simplesmente inventa uma história, traduz na forma de uma narrativa as abstrações mentais do filósofo e do cientista social. Assim procedendo, e essa é na verdade a natureza do seu ofício, ele reconcilia a sensibilidade e a razão.
Traduzindo no plano do imaginário ficcional as questões fundamentais da experiência humana, o narrador converte a atividade especulativa e os conceitos abstratos em ação humana reinventada num enredo vivido por personagens portadores das qualidades sensíveis características de todo ser humano. Assim procedendo, ele reconcilia na obra de arte o coração e a inteligência, a sensibilidade e a razão. Em suma, ousaria afirmar que ser um grande criador literário, assim como ser um grande leitor, é ter o privilégio de possuir um coração esclarecido.

Alain Finkielkraut. Um coração inteligente.
Tradução: Marcos de Castro.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.