segunda-feira, 21 de novembro de 2011
Cultura, identidade e globalização
Cultura Brasileira, Identidade Cultural e Globalização
Chego ao texto conclusivo da série de textos relativos à cultura brasileira e no entanto pouco considerei a situação presente da cultura brasileira e sua relação muito complexa com a questão da identidade cultural e a da globalização. Como penso que seria uma omissão no mínimo criticável, tentarei adiante considerar alguns aspectos dessas relações complexas sem nenhuma pretensão de resolver problemas ou fornecer respostas suficientes. Como o leitor decerto notará, os textos precedentes concentram-se no estudo das origens e da formação da cultura brasileira. Dado que elaborei o plano do conjunto de artigos relativos à cultura brasileira conferindo prioridade a conceitos básicos e à forma como alguns dos grandes representantes da tradição do pensamento social brasileiro os abordaram, suponho haver coerência no conjunto dos textos postados. Além disso, caberia também adiantar que este é um artigo de composição livre, inspirado nas minhas observações e nas muitas leituras que fiz sem anotações ou a intenção de escrever sobre o assunto.
Além do que já expus sobre a cultura brasileira, importaria acrescentar que o conceito é muito discutível, assim como os dois outros que dão título a este texto. As pessoas tendem a falar de cultura brasileira, mesmo pessoas muito educadas e até especialistas, como se o conceito indicasse uma realidade uniforme ou pelo menos coerente. Na verdade, isso está bem longe da verdade. Toda cultura, sobretudo as culturas do nosso tipo, estão expostas a variações no tempo e no espaço, além de se diferenciarem internamente. Há pouco propus a duas turmas minhas da Universidade Federal de Pernambuco que descrevessem uma viagem importante na vida de cada membro das turmas relacionando o local visitado (cidade, vila ou país) com características culturais de Recife. Para minha surpresa, os alunos me forneceram nas descrições feitas um rico material etnográfico, isto é, relativo à descrição de costumes e valores culturais observados nas viagens que fizeram. A maioria das descrições era relativa a cidades do interior de Pernambuco. Um dos aspectos mais interessantes dos trabalhos consistia precisamente na constatação da grande variedade de costumes, hábitos de vida e valores culturais relativos à religião, culinária, vestuário, educação, formas de entretenimento, cenas de rua etc.
Mencionei o exemplo acima para sugerir o quanto a cultura recifense, e mais amplamente pernambucana, contém de diversidade. Essa diversidade depende de muitos fatores, entre eles os de classe, espaço, tempo, modos de tradição... Tudo isso importa para sugerir o quanto é difícil fixar conceitos como os que dão título a este texto. No entanto, falamos e ouvimos correntemente falarem de cultura brasileira, cultura pernambucana, cultura nordestina, como se fossem realidades facilmente apreensíveis e consensualmente aceitas. Isso não é verdade nem tenho a pretensão de apresentar a verdade sobre esses assuntos. Por isso afirmei já no parágrafo inicial que meu objetivo não é resolver problemas ou fornecer respostas suficientes. Meu objetivo principal é propor claramente muitas dessas questões e assim induzir o leitor a refletir sobre elas, considerar respostas possíveis, procurar estudar e compreender melhor o que não tem respostas definitivas e absolutas.
Na década de 1970, como consequência da instituição dos programas de pós-graduação em diversas universidades brasileiras, surgiram várias obras nas quais os autores se propunham apresentar análises ideológicas da realidade social brasileira e de muitas das obras que aqui tenho estudado ou mencionado. O livro que provavelmente alcançou mais repercussão dentro dessa corrente foi o do historiador Carlos Guilherme Mota: Ideologia da Cultura Brasileira. Um dos principais objetivos do autor é exatamente questionar o conceito de cultura brasileira. Embora seja pouco preciso na abordagem deste assunto, e de modo algum forneça ao leitor uma resposta satisfatória, seu objetivo principal é desmontar esse conceito que no seu entendimento não passa de uma construção ideológica. Tentando exprimir isso de forma mais clara, ele procura demonstrar que o conceito de cultura brasileira é uma representação criada por certos intelectuais ligados às classes dominantes cujos interesses moldam a realidade deformada do conceito.
Criticando antes de tudo Gilberto Freyre, em quem identifica antes de tudo o grande ideólogo das oligarquias tradicionais e decadentes do Nordeste, Mota é incapaz de reconhecer ou admitir que uma obra como Casa-Grande & Senzala, por exemplo, está muito além da expressão de interesses de classe e poder, muito além de ser uma mera projeção ideológica dos interesses parciais da classe social à qual Gilberto Freyre pertence, assim como outros explicadores do Brasil estudados no livro.
A relação entre realidade social e ideologia é muito complexa. Além de não ser a questão mais importante deste artigo, não tenho também uma teoria definitiva sobre ela, nem sei de ninguém que tenha proposto uma teoria universalmente aceita. Minha intenção ao mencionar o livro de Carlos Guilherme Mota foi apenas assinalar uma corrente de estudos existente nessa área, além de novamente explicitar a complexidade dos assuntos que estou considerando. Noutras palavras, meu alvo é a cultura brasileira. Falo de cultura brasileira como algo que efetivamos existe, mas me parece impossível determinar exatamente o que seja esse objeto. Por isso observei noutros artigos aqui postados sobre cultura minha convicção de que o conceito de cultura brasileira, assim como o de identidade cultural, é uma construção ideal, um conceito que compreende aspectos seletivos da realidade dependentes da perspectiva do autor que considera o problema.
Mencionei acima a grande diversidade da cultura pernambucana que constatei ao ler os trabalhos de duas turmas da Universidade Federal de Pernambuco. Observei como essa surpreendente diversidade se opõe à noção corrente do conceito de cultura pernambucana, que representa este objeto, a cultura pernambucana, como se fosse algo uniforme e coerente, algo facilmente apreensível pela observação e também pelo conceito. É certo que agora se fala muito em diversidade cultural, a começar pela própria secretaria de governo que se chama, aliás, Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. A mídia, mais do que essa secretaria e a propaganda oficial, encarregou-se de difundir essa noção que virou portanto moda ou lugar comum. Agora todo mundo fala em diversidade cultural, em carnaval multicultural e expressões afins. Isso parece sugerir que somos todos muito conscientes e tolerantes com relação à grande diversidade da nossa cultura. No entanto, não encontramos nenhuma tolerância nos que defendem ardentemente uma concepção regionalista da cultura.
Já registrei noutros textos aqui postados o exemplo de Ariano Suassuna, talvez o melhor que se possa considerar. Afinal, além de ser um grande escritor e intelectual de imenso prestígio, ele é o mais radical defensor dos valores regionais da cultura, o grande ideólogo e porta-voz da cultura nordestina. Mais exatamente, ele defende um tipo de regionalismo conservador, preso a raízes ibéricas da nossa cultura conservadas em áreas do sertão muito pobres e por isso mantidas à margem da cultura típica do mundo moderno. É difícil encontrar nas atitudes públicas e pronunciamentos de Ariano Suassuna o espírito de tolerância e diversidade corrente nos lugares comuns da propaganda oficial, nos clipes publicitários, no discurso da mídia. Ele se pronuncia nitidamente contra tudo que é expressão da cultura de massas, tudo que é expressão da cultura contemporânea produzida e veiculada pela tecnologia, pelo capitalismo de consumo, pelas forças da globalização econômica e cultural. Indico sumariamente este exemplo apenas com a intenção de sugerir a complexidade das questões concernentes a este artigo: o conceito de cultura, o de identidade cultural, o de globalização.
Se passamos à consideração do outro conceito – o de identidade cultural, já estudado no artigo referente ao modernismo, ao regionalismo e à identidade cultural – esbarramos no mesmo tipo de dificuldade. Falamos correntemente de identidade na mídia e na propaganda oficial como se estivéssemos falando de um conceito claro, uniforme e de fácil compreensão. Se no entanto começamos a analisar alguns fatos relacionados ao conceito, logo nos deparamos com grandes dificuldades. Se nossa cultura é evidentemente marcada por sua grande diversidade de valores e práticas, como determinar uma identidade uniforme, ou pelo menos objetivamente apreensível? Diante de dificuldades dessa ordem, volto a afirmar minha convicção de que esses conceitos são construções ideais, isto é, não correspondem a nenhuma realidade objetiva, a nenhuma coisa que possamos precisamente determinar no âmbito da realidade observada.
É claro que podemos indicar com segurança alguns traços gerais da nossa cultura – da pernambucana ou mais amplamente da brasileira – que são compartilhados por todos ou pelo menos pela maioria. É o caso, por exemplo, da língua. Este é um traço cultural fundamental que todos compartilhamos, isto é, todos falamos a língua portuguesa. Mas mesmo esta é extremamente diferenciada nas suas formas de expressão que se manifestam no uso que dela fazemos. Quero dizer, a língua que identifica todos os brasileiros varia de acordo com a classe social, a região, padrões de educação etc. Logo, até esse valor compartilhado por todos os brasileiros está sujeito a variações do tipo que acabo de indicar. Se considerarmos o caso da religião, as variações e até mesmo as divergências e conflitos de crença e valor são ainda maiores. Bastaria pensarmos numa questão polêmica como a do aborto para observarmos a grande variedade de pontos de vista de diferentes tipos de brasileiros. Poderia acrescentar muitos outros exemplos, uma infinidade deles, para sugerir o quanto é complexa essa noção de identidade cultural, o quanto ela supõe tanto valores afins e compartilhados quanto valores conflitantes e inconciliáveis. O que podemos em suma observar é que felizmente prevalece na organização da sociedade uma situação de consenso sem a qual a sociedade não se sustentaria, isto é, nossos modos correntes de convívio e interação não se sustentariam.
Restaria por fim tecer algumas considerações gerais sobre a globalização. Para começar, a própria periodização do conceito é muito discutível. Há estudiosos que datam o processo de globalização a partir dos grandes descobrimentos, em particular do descobrimento da América. Este fato histórico representou, entre outras coisas, a expansão do capitalismo europeu para as Américas, assim como para outras partes do mundo. No que nos interessa, transportou para o mundo onde vivemos o capitalismo, a religião, a ciência e a técnica então desenvolvidas pelos portugueses. Mais do que isso, trouxeram os conquistadores da América e do Brasil todo um complexo de expressões culturais de procedência europeia que se chocaram mas também se mesclaram com valores culturais nativos produzindo a partir daí uma cultura nova. Advirto o leitor para o fato de que já considerei essa questão nas suas linhas gerais no artigo relativo à cultura brasileira e suas matrizes. Outros estudiosos, no entanto, datam o processo de globalização a partir do século 18, tendo como marcos o Iluminismo, a Revolução Industrial, originária da Inglaterra, e a Revolução Francesa. De fato, são marcos históricos fundamentais para a fundação do mundo moderno, em particular do que hoje correntemente designamos como globalização. Não vou explorar essa questão, até porque não tenho a competência do historiador e do estudioso da história econômica e social para melhor esclarecer os problemas que ela envolve. O que objetivo ressaltar é apenas a complexidade do conceito de globalização, que já se manifesta na sua periodização.
O fato talvez mais destacável, quando consideramos o problema da globalização, consiste na sua realidade objetiva. Quero dizer, noutras palavras, que ela é um fato. Em graus variáveis, a globalização está presente em todo o mundo. Está presente no Recife, assim como em Pesqueira, Londrina, Ouro Preto, nas praias distantes dos grandes centros urbanos, nas cidades e vilas remotas dos sertões e agrestes, na China, no continente africano... Está presente nos polos mais avançados do capitalismo paulista, assim como na floresta amazônica. O que varia é o grau de manifestação dessas forças globalizadoras. A ciência e a técnica, ou a chamada civilização técnica, e a revolução comunicacional que liga em tempo real o mundo inteiro são provavelmente as expressões mais fortes disso que designamos como globalização. Este, sabemos, é um fato histórico sem precedente. Como tal, ele mudou de forma profunda a realidade social e nossas formas de relacionamento. A simples existência de um curso de letras à distância, como este que me associa a alunos que nunca encontrei nem provavelmente encontrarei, constitui mais uma evidência do que acabo de afirmar.
Durante milênios os seres humanos se comunicaram diretamente, tendo a proximidade física ou espacial como fundamento da interação social. Depois das invenções tecnológicas que hoje viabilizam os contatos à distância, ou as relações virtuais, houve uma transformação radical nos nossos modos de relação humana. É provável que hoje a maioria de nós, habitantes do mundo urbano familiarizados com a televisão e a internet, mantenha contatos antes de tudo virtuais. Essa nova realidade provocou mudanças culturais e produziu novas formas de interação social que não posso infelizmente considerar de forma mais detida numa explanação geral desse desconcertante mundo novo. Além do alcance confessadamente modesto deste artigo, não disponho de conhecimentos para explorar a fundo as questões culturais implicadas nesse processo que chamamos de globalização. Por isso quase que me limitei a assinalar sua realidade objetiva, além de ressaltar sua complexidade, isto é, a própria complexidade do conceito. Reiterando o que afirmei no início, e agora concluindo, meu propósito principal foi acentuar a complexidade dos conceitos relativos a este texto. Foi ainda explicitar problemas, torná-los mais evidentes com a intenção de induzir o leitor a refletir melhor sobre a complexidade aqui indicada. Portanto, este texto é antes um texto relativo à explicitação de problemas e reflexões do que um texto de respostas e soluções fáceis.
Recife, junho de 2011.
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