segunda-feira, 14 de novembro de 2011
Narciso em Insulândia
Ela aportou em Insulândia numa tarde de dezembro
Quando o sol dos trópicos banha as águas atlânticas
Com sua luz de ouro e fogo.
Senile, o habitante de Insulândia,
Acolheu-a entre perplexo e tenso
Seu coração insular inflado de presságios
Como as nuvens de Insulândia
emitindo sinais de tempestade e cólera
Nas madrugadas de junho.
Viera de longe, da costa americana
A pele e os cabelos longos
Traindo sua ascendência nórdica.
À noite, sentados ao pé do fogo
Ela lhe falou do mundo de que fugia.
Globalisation, she said
Is killing the very core of cultural diversity.
The real name of the Devil is American capitalism
Driven by greed and fierce competition.
Ouvindo-a desfiar dentro da noite de Insulândia
Seu desarraigamento e seu sonho de um mundo reencantado
Senile, ainda vulnerável à humanidade assimilada no continente,
Foi dormir tocado pela fantasia
De uma humanidade refeita em Insulândia.
Os dias e a matéria convivida
Cedo dissolveram na imaginação de Senile
O sonho de uma Insulândia duplicada
Em unidade amorosa.
Ela acordava sempre deprimida
Ausente de Senile
Da ilha que figurava como um poço sem fundo
Hostil ao mundo impassível
À sua demanda de unidade mística.
A indiferença das águas
Sobre as quais debruçava a face vazia
Feria-lhe a carne estéril de desejos destrutivos.
Narciso transtornou a solidão de Senile
Sua paisagem moral de bicho insular
Conciliado com o mundo idêntico às medidas de Insulândia.
Narciso sofria a ausência de espelhos
Um mundo encadeado em reflexo, vitrine
Fluxo incessante de imagens
Tecido sem pausa e sem silêncio
Oco escorrer de corpos, ruídos e sons agônicos
Propagados em miríades de telas, fauna noturna
Estádios explodindo em shows de rock e rapina.
Na pausa da noite, órfã sob os céus indiferentes
Narciso voltava-se para Senile
Oprimida pela carência de âncora
Ilha suspensa sobre seu mundo náufrago.
Mirava-o aflita
Sem que todavia a face dele a refletisse.
Debruçava-se sobre a superfície opaca
E recuava retesada em ondas destrutivas:
The world is sheer hell
And K. is kaos.
Sem suportes no tempo
Privada de um antes e um depois
Narciso braceja no nada cinzento do presente.
Como então compreenderia
A solidão de Senile
Iluminada pela memória da carne?
A recusa de Senile
Amparada na convicção de uma vida melhor?
Os sonhos sonhados por Narciso
São um fluxo de pesadelo e desejo de morte.
The world, she says, will end in fire or ice storm
With a bang or a whimper
And that´s all
And that shakes my body
With an unbearable feeling of terror and despair.
Se a ameaça do fim
E e sopro destrutivo da barbárie movem Senile
E suas linhas de fuga para Insulândia
Narciso a tudo assiste nas águas intransparentes do espelho-mundo
Seu ser profundo a densidade de uma vitrine de butique
Girando drogado nas danceterias frenéticas.
Things fall apart and you can do nothing
Except getting fun at the Fun House
And dancing rock and maracatu over the volcano.
Narciso longamente lavava os pesadelos noturnos
E a depressão imóvel sobre espelhos cegos
Nas águas de Insulândia.
Senile esmorecia e se alumbrava sob as árvores
Vendo-lhe o corpo nu
A pele leitosa tingida pelo sol dos trópicos
A nudez reconciliando-a com a verdade precária da carne.
E o alumbramento se fazia regressão à natura
Agitando o canibal em Senile.
A lei primeva do homem
Reposta no desejo represado de Senile.
Naquela noite
O uivo do Lobo de Pindorama
Crispou de gozo e medo a carne de Senile.
Eis que o possuía a força cega da lei primeva
O desejo de devorar carne da mesma espécie.
Senile abateu-a com três golpes precisos e letais.
A luz da fogueira, queimando no ar deserto de Insulândia,
Cozia a carne retalhada de Narciso.
Senile banqueteou-se até raiar nos mares
A luz enxuta da manhã.
A porção mais deleitável concentrava-se nas coxas.
Mordendo-a e lentamente mastigando-a
Senile sentiu correr-lhe o corpo
O gozo inefável do Lobo
Nunca antes em si sabido ou intuído.
Por fim, saciada a fome
Sugada no poço a gota última
Do êxtase irrepetível
Ouviu Senile o uivo do Lobo de Pindorama:
Sometimes you must be cruel, my dear hunter,
In order to be kind.
Então ele palitou os dentes
E as águas de Insulândia refletiram no fundo azul
A superfície iluminada de um sorriso sagrado.
Insulândia se reconstelou
Nos seus elementos mais puros e inativos.
Reintegrado ao ventre harmônico da ilha
Senile adormeceu sob o brilho das estrelas impassíveis.
Recife, 20 de dezembro de 1999.
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Mas que poema antropofágico!
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