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segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Carpeaux e Merquior


Começo por esclarecer ao leitor que este artigo foi escrito há algum tempo. Na ocasião em que meu amigo César Melo o leu, prontamente sugeriu-me propor a Daniel Lopes, nosso editor do blog Amálgama, que o publicasse quando do intervalo entre as datas da morte de Carpeaux e Merquior. Lembro ao leitor desmemoriado, como é o meu caso, que Merquior morreu em 07 de janeiro de 1991; Carpeaux, 03 de fevereiro de 1978. Minha intenção, portanto, era encaminhar o artigo para Daniel em meados de janeiro passado. A data passou, também o mês e somente agora, meio envergonhado de minha memória, proponho afinal a Daniel que publique o artigo. Encerro esta nota introdutória acrescentando uma razão pessoal e outra pública visando justificar a publicação tardia. A pessoal prende-se ao fato de que César, Daniel e eu admiramos a obra de Carpeaux e Merquior, além de nos identificarmos com a tradição do humanismo liberal a que se filiam; a segunda deriva do silêncio, salvo desatenção compreensível num leitor pouco regular da mídia, que cercou as datas acima assinaladas.

Tenho ainda uma outra razão, esta bem recente, para justificar a repostagem deste artigo. Embora pouco informado sobre a produção crítica corrente, até por não ser e nunca ter sido crítico militante, tenho lido dois críticos da nova geração de escritores pernambucanos: Cristiano Ramos e Eduardo César Maia. Além de intervirem com freqüência nas redes sociais e em eventos relacionados à literatura, têm ambos explicitado o quadro ideológico ao qual vinculam sua atividade crítica. Adeptos confessos e combativos do liberalismo humanista, escrevem e debatem publicamente as obras e as idéias correntes salientando a importância que os críticos considerados neste artigo têm na sua formação. A eles acrescentam Octavio Paz, Mario Vargas Llosa, Ortega y Gasset e Álvaro Lins. Dado que a tradição liberal dentro da qual nos alinhamos é ainda tão incompreendida no Brasil e na América Latina, quando não deliberadamente deformada, acolho com vivo entusiasmo estes jovens decididos a intervir no nosso ambiente intelectual tão pobre de obras e idéias, sobretudo neutralizado no seu potencial crítico pela prática longeva da cordialidade literária. Friso conferir ao termo cordialidade o sentido que lhe deu Sérgio Buarque de Holanda. Como foi tão incompreendido, e ainda o é, esforcei-me por esclarecê-lo no artigo Raízes do Brasil, que o leitor interessado pode conferir no meu blog. E assim fecho a nota explicativa antes que ela se torne mais extensa que o artigo original.

Penso que Otto Maria Carpeaux e José Guilherme Merquior realizaram com erudição singular e rara independência ideológica a mais alta expressão do jornalismo cultural que já tivemos no Brasil. Talvez pronunciando-me em termos tão absolutos incorra em alguma injustiça, pois tivemos outros de estatura semelhante. A isso acrescento algumas distinções entre ambos que me parecem dignas de registro. Carpeaux foi jornalista de profissão, enquanto Merquior cedo ingressou na diplomacia e infelizmente morreu no esplendor de sua vitalidade intelectual. Penso que o mérito supremo do primeiro foi transportar para o Brasil, com sua impressionante erudição, a mais alta tradição intelectual europeia. Num país de tradição similar ainda muito restrita, é difícil avaliar o quanto fez no sentido de familiarizar o leitor brasileiro com uma infinidade de autores e obras fundamentais, alguns até então praticamente desconhecidos no Brasil. Embora tenha produzido antes de tudo para o jornal, deixou duas obras únicas que melhor demonstram o que acabo de indicar. Refiro-me à monumental História da Literatura Ocidental e a Uma Nova História da Música. Quanto a Merquior, chamou a atenção de imediato devido à precocidade com que principiou intervindo no debate cultural e ideológico através de suplementos literários extintos pela revolução tecnológica operada no campo da comunicação com efeitos profundos sobre o sistema cultural.

Carpeaux concentrou sua atividade na literatura. Mas nos anos 1960, dentro de um clima de mudanças sociais sem precedente aquecidas pela radicalização do debate ideológico, ele deslocou o foco da sua militância para a política. Essa tendência acentuou-se ao ponto de se impor de forma quase absoluta depois do golpe militar e da imposição do regime que ele combateu até o fim da vida com coragem admirável e corte polêmico impressionante. Nesse sentido, Merquior tem o perfil mais definido do que com certa liberdade designo como crítico cultural. Embora altamente dotado como crítico literário, sua intervenção pública estendeu-se ao debate cultural compreendido numa escala que entendo mais ampla do que aquela descrita pela trajetória de Carpeaux.

Merquior foi dos raros que entre as décadas de 1970 e 1980 evoluíram da esquerda, num clima em que o termo se revestia de muita rigidez, dada a polarização ideológica imposta pela ditadura militar, para o liberalismo. Isso era anátema na atmosfera ideológica da época. De resto, a resistência ao liberalismo nos círculos intelectuais brasileiros, sobretudo nos acadêmicos, parece-me ainda muito grande. É um sintoma, presumo, do circuito restrito de nossa tradição democrática, dentro e fora do ambiente intelectual. Isso explica em parte o silêncio ou indiferença diante da sua obra, mesmo aquela que em princípio deveria ser do interesse obrigatório dos intelectuais acadêmicos. É o caso, especifico, do seu livro duramente crítico contra Foucault, autor que é ainda referência obrigatória na academia. Como é frequente, estudam-no, como a outros autores da moda, ignorando a contribuição de procedência nacional, sobretudo quando o autor em questão, como é o caso de Merquior, não é membro de nenhuma instituição universitária.

Polemista afiado e independente, Merquior atacou o estruturalismo no auge da moda, quando os intelectuais acadêmicos seguiam a moda, como de hábito, com a subserviência costumeira em país de cultura periférica. Atacou ainda as vanguardas, quando elas, não obstante em declínio progressivo, gozavam de tremendo prestígio, que ia da redescoberta de Oswald de Andrade e da antropofagia à tropicália, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos à revista Vozes de Cultura, que nos anos 1970 abrigou vanguardismos de todos os timbres e vozes. Atacou ainda a psicanálise, que sobrevive no Brasil, dentro e fora da academia, enquanto sua visibilidade decai no horizonte intelectual de países como a Inglaterra e os Estados Unidos. Até na França, onde a releitura psicanalítica de Lacan impôs sua hegemonia irradiando para países como o Brasil, até lá os ataques à psicanálise e a Lacan são crescentes. Mas este é um assunto que me prometo considerar num outro artigo.

Importa ainda anotar a crítica persistente de Merquior ao marxismo. Este é um dos mais exemplares capítulos da nossa história das ideias mais recente. Digo-o exemplar ao considerar que a polêmica por ele desfechada concentrou-se antes de tudo na forma de um diálogo tenso e democrático com seus amigos Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. A maior evidência do caráter exemplar, bem raro no Brasil, dessa polêmica pautada pela nobreza da tolerância crítica, do conflito sempre conduzido em termos democráticos, consiste na permanência da amizade que ligou Merquior a Konder e Coutinho até o fim da vida. Estes, por sua vez, assim como Luiz Sérgio Henriques e Gildo Marçal Brandão, para ficar na menção a um determinado grupo de marxistas, também mudaram em direção nitidamente orientada para a revisão do sentido da democracia dentro da nossa tradição marxista.

Por fim, ressaltaria que Carpeaux e Merquior realizaram sua obra infelizmente tão desprezada pela academia refinando um estilo de exposição de ideias que timbrava pela profundidade sem prejuízo da limpidez e elegância da forma. Assim procedendo, atuaram como mediadores esclarecidos e esclarecedores entre a obra e o público. Do Brasil à França, da Inglaterra aos Estados Unidos, essa admirável tradição do intelectual público parece esgotada depois que a cultura letrada refugiou-se em nichos acadêmicos ou se acasalou com a grande mídia com o olho e as ideias visando antes o mercado do que a expressão pública da cultura. Também os marxistas acima citados, mesmo quando vinculados à academia, cuidaram de preservar a clareza na exposição das ideais.

Quanto à academia, dela procede Antonio Candido, nosso crítico literário insuperável. Embora suas ideias e docência tenham produzido uma leva de críticos de alta qualidade, sua obra não se disseminou como padrão de estilo expositivo na academia. Mencionando um único exemplo, o da sociologia, até porque a obra de Antonio Candido se sustenta sobre essas duas sólidas vigas, a literatura e a sociologia, o estilo que triunfou impondo-se portanto como padrão foi o de Florestan Fernandes e outros cientistas de mérito inegável, mas escritores de categoria apenas medíocre. O pior é a enxurrada de iletrados letrados, o paradoxo é intencional, produzida em massa pelos programas de pós-graduação. Esses escrevem regidos pelo princípio do método obscuro, que impressiona na mesma proporção em que mascara a pobreza ou banalidade das ideias.Obediente à última moda intelectual importada dos EUA ou da Europa, concluo.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Carpeaux e Merquior


Penso que Otto Maria Carpeaux e José Guilherme Merquior realizaram com erudição singular e rara independência ideológica a mais alta expressão do jornalismo cultural que já tivemos no Brasil. Talvez pronunciando-me em termos tão absolutos incorra em alguma injustiça, pois tivemos outros de estatura semelhante. A isso acrescento algumas distinções entre ambos que me parecem dignas de registro. Carpeaux foi jornalista de profissão, enquanto Merquior cedo ingressou na diplomacia e infelizmente morreu no esplendor de sua vitalidade intelectual. Penso que o mérito supremo do primeiro foi transportar para o Brasil, com sua impressionante erudição, a mais alta tradição intelectual europeia. Num país de tradição similar ainda muito restrita, é difícil avaliar o quanto fez no sentido de familiarizar o leitor brasileiro com uma infinidade de autores e obras fundamentais, alguns até então praticamente desconhecidos no Brasil. Embora tenha produzido antes de tudo para o jornal, deixou duas obras únicas que melhor demonstram o que acabo de indicar. Refiro-me à monumental História da Literatura Ocidental e a Uma Nova História da Música. Quanto a Merquior, chamou a atenção de imediato devido à precocidade com que principiou intervindo no debate cultural e ideológico através de suplementos literários extintos pela revolução tecnológica operada no campo da comunicação com efeitos profundos sobre o sistema cultural.

Carpeaux concentrou sua atividade na literatura. Mas nos anos 1960, dentro de um clima de mudanças sociais sem precedente aquecidas pela radicalização do debate ideológico, ele deslocou o foco da sua militância para a política. Essa tendência acentuou-se ao ponto de se impor de forma quase absoluta depois do golpe militar e da imposição do regime que ele combateu até o fim da vida com coragem admirável e corte polêmico impressionante. Nesse sentido, Merquior tem o perfil mais definido do que com certa liberdade designo como crítico cultural. Embora altamente dotado como crítico literário, sua intervenção pública estendeu-se ao debate cultural compreendido numa escala que entendo mais ampla do que aquela descrita pela trajetória de Carpeaux.

Merquior foi dos raros que entre as décadas de 1970 e 1980 evoluíram da esquerda, num clima em que o termo se revestia de muita rigidez, dada a polarização ideológica imposta pela ditadura militar, para o liberalismo. Isso era anátema na atmosfera ideológica da época. De resto, a resistência ao liberalismo nos círculos intelectuais brasileiros, sobretudo nos acadêmicos, parece-me ainda muito grande. É um sintoma, presumo, do circuito restrito de nossa tradição democrática, dentro e fora do ambiente intelectual. Isso explica em parte o silêncio ou indiferença diante da sua obra, mesmo aquela que em princípio deveria ser do interesse obrigatório dos intelectuais acadêmicos. É o caso, especifico, do seu livro duramente crítico contra Foucault, autor que é ainda referência obrigatória na academia. Como é frequente, estudam-no, como a outros autores da moda, ignorando a contribuição de procedência nacional, sobretudo quando o autor em questão, como é o caso de Merquior, não é membro de nenhuma instituição universitária.

Polemista afiado e independente, Merquior atacou o estruturalismo no auge da moda, quando os intelectuais acadêmicos seguiam a moda, como de hábito, com a subserviência costumeira em país de cultura periférica. Atacou ainda as vanguardas, quando elas, não obstante em declínio progressivo, gozavam de tremendo prestígio, que ia da redescoberta de Oswald de Andrade e da antropofagia à tropicália, dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos à revista Vozes de Cultura, que nos anos 1970 abrigou vanguardismos de todos os timbres e vozes. Atacou ainda a psicanálise, que sobrevive no Brasil, dentro e fora da academia, com uma visibilidade claudicante no horizonte intelectual de países como a Inglaterra e os Estados Unidos. Até na França, onde a releitura psicanalítica de Lacan impôs sua hegemonia irradiando para países como o Brasil, até lá os ataques à psicanálise e a Lacan são crescentes. Mas este é um assunto que me prometo considerar num outro artigo.

Importa ainda anotar a crítica persistente de Merquior ao marxismo. Este é um dos mais exemplares capítulos da nossa história das ideias mais recente. Digo-o exemplar ao considerar que a polêmica por ele desfechada concentrou-se antes de tudo na forma de um diálogo tenso e democrático com seus amigos Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. A maior evidência do caráter exemplar, bem raro no Brasil, dessa polêmica pautada pela nobreza da tolerância crítica, do conflito sempre conduzido em termos democráticos, consiste na permanência da amizade que ligou Merquior a Konder e Coutinho até o fim da vida. Estes, por sua vez, assim como Luiz Sérgio Henriques e Gildo Marçal Brandão, para ficar na menção a um determinado grupo de marxistas, também mudaram em direção nitidamente orientada para a revisão do sentido da democracia dentro da nossa tradição marxista.

Por fim, ressaltaria que Carpeaux e Merquior realizaram sua obra infelizmente tão desprezada pela academia refinando um estilo de exposição de ideias que timbrava pela profundidade sem prejuízo da limpidez e elegância da forma. Assim procedendo, atuaram como mediadores esclarecidos e esclarecedores entre a obra e o público. Do Brasil à França, da Inglaterra aos Estados Unidos, essa admirável tradição do intelectual público parece esgotada depois que a cultura letrada refugiou-se em nichos acadêmicos ou se acasalou com a grande mídia com o olho e as ideias visando antes o mercado do que a expressão pública da cultura. Também os marxistas acima citados, mesmo quando vinculados à academia, cuidaram de preservar a clareza na exposição das ideais.

Quanto à academia, dela procede Antonio Candido, nosso crítico literário insuperável. Embora suas ideias e docência tenham produzido uma leva de críticos de alta qualidade, sua obra não se disseminou como padrão de estilo expositivo na academia. Mencionando um único exemplo, o da sociologia, até porque a obra de Antonio Candido se sustenta sobre essas duas sólidas vigas, a literatura e a sociologia, o estilo que triunfou impondo-se portanto como padrão foi o de Florestan Fernandes e outros cientistas de mérito inegável, mas escritores de categoria apenas medíocre. O pior é a enxurrada de iletrados letrados, o paradoxo é intencional, produzido em massa pelos programas de pós-graduação. Esses escrevem regidos pelo princípio do método obscuro, que impressiona na mesma proporção em que mascara a pobreza ou banalidade das ideias. Obediente à última moda intelectual importada dos EUA ou da Europa, concluo.

sábado, 24 de julho de 2010

Variações sobre a Solidão


Também fui leitor de Hemingway. Não dos mais entusiastas, mas fui. Quem hoje o lê? Meu preferido é The sun also rises (O Sol também se levanta), que fui incapaz de compreender à primeira leitura. Era ainda leitor jovem e bem limitado. Precisei ler mais tarde um belo ensaio de Otto Maria Carpeaux, de longe o mais erudito crítico que tivemos. Nesse ensaio, que lembro vagamente, Carpeaux procede a uma apreciação altamente positiva da obra de Hemingway sublinhando a precisão e objetividade do seu estilo, que então fez escola, e distinguindo The sun also rises como o romance fundador da moderna ficção americana; não porém sua obra mais importante, distinção que confere a Farewell to arms (Adeus às armas). Carpeaux procede então a uma interpretação iluminadora do romance. Lendo-a tive uma outra percepção da obra e então, vexado de minha ignorância, cuidei de a reler como se a lesse pela primeira vez. Mas seu romance de maior repercussão foi provavelmente For whom the bell tolls (Por quem o sino dobra).

Chega de divagação. Afinal, o parágrafo acima não passa de pura divagação, já que meu propósito não é escrever sobre Hemingway, mas sobre a solidão. Se Hemingway veio à tona, foi apenas devido ao fato de eu haver antes pensado em algumas palavras célebres assinadas por John Donne, palavras que inspiraram o título do romance de Hemingway sobre a guerra civil espanhola. Voltarei às palavras de Donne que importam.

A solidão é algo que sempre me interessou, talvez por estar tão enraizada na minha vida. Mais que isso, acredito que está enraizada na vida de todo ser humano, portanto na nossa própria condição. Em “La dialéctica de la soledad” – apêndice constante de El laberinto de la soledad – Octavio Paz ressalta sua importância crucial na nossa existência ao frisar que nossas experiências extremas, nascer e morrer, fundam-se na solidão. Nascemos e morremos sozinhos, é isto que certeiramente frisa. Nunca mais esqueci este fato tão evidente, tão revelador da nossa condição solitária, e todavia tão ignorado ou imperceptível. Este belo ensaio de Octavio Paz, que muitas vezes reli no curso de minha vida com admiração inalterável, é um dos pontos culminantes do gênero, de resto tão ambíguo quanto a natureza humana. Aludindo tão-somente a ensaios mais curtos, acomodáveis nos limites de um capítulo de livro, ocorre-me lembrar um outro de valor equivalente: To please a shadow, de Joseph Brodsky, inspirado por Auden,a quem Brodsky distingue como o maior e mais inteligente poeta do século 20. Mas continuo divagando.

As palavras de Donne que agora transcrevo apontam para o oposto da solidão, para uma dimensão de humanismo abstrato passível de dela nos salvar: “Any man´s death diminishes me, because I am involved in Mankind; and therefore never send to know for whom the bell tolls, it tolls for thee”. Minha transcrição é baseada no Dicionário Universal de Citações, de Paulo Rónai. Cotejei-a em seguida com o ensaio de Carpeaux e então notei variantes que deixo apenas assinaladas. Traduzindo livremente, o que Donne quer dizer é que a morte de qualquer ser humano nos afeta, pois somos parte da humanidade, pois em cada ser humano pulsa uma fração de humanidade comum a todos nós. Daí a verdade segundo a qual o sino que dobra como um ritual de morte do nosso semelhante dobra também por cada um de nós.

Durante minha juventude impregnada de humanismo de esquerda - qualificativo de amplo espectro que neste contexto inclui influências marxistas, liberais e católicas – acreditei profundamente no ideal de solidariedade abstrata implicado nas palavras de Donne que, como se sabe, inspiraram o romance famoso de Hemingway. A própria leitura do romance - também o filme nele baseado, que vi comovido diante da beleza de Ingrid Bergman – reforçou na minha consciência a crença na solidariedade do gênero humano. Hoje não mais acredito em nada disso. Acredito, sim, que há ainda, como sempre houve, seres humanos excepcionais capazes de renunciar à tirania do egoísmo dominante na espécie em favor da doação solidária orientada para o próximo. Isto é verdadeiro em escala quantitativamente modesta, portanto não anula em nenhum sentido a raiz solitária de nossa condição penetrantemente analisada no ensaio de Octavio Paz. Mais que a crença na revisão que faço destas considerações abstratas, importa o metro da experiência vivida. Se nele me detenho, não reluto em afirmar minha condição solitária. Não apenas aquela universal e abstrata, acima indicada, mas a mais rotineira e sensível inscrita no meu percurso biográfico. Sou solitário não apenas por reconhecer em mim a condição solitária que partilho com todo ser humano, e bem identifico nos extremos da existência enfatizados por Octavio Paz, mas também por tocá-la e vivê-la em muitas circunstâncias de minha vida.

Sou solitário, por exemplo, na doença. Como todo mundo, já adoeci. Mais que isso, fui vítima de doença grave. Mais que o medo da morte, na juventude, a doença revelou-me o desamparo da solidão, a indiferença dolorosa das pessoas nas quais presumia poder apoiar-me. Elas me faltaram. Por dever de justiça, antes de tudo de memória generosa, que comigo espero conduzir ao limite último de minha vida, a indiferença daqueles em quem em vão busquei apoio foi contrabalançada por uma solidariedade absolutamente inesperada, já que procedente de pessoas que sequer então conhecia. Acima das muitas que em circunstâncias penosas me ampararam, lembraria Ednaldo Batista, médico de bondade humana rara e talvez em vias de extinção imposta pela crueldade da medicina mercantil hoje generalizada. Ednaldo e Rejane, minha namorada, apareceram na minha vida num momento em que me via privado de tudo: saúde, emprego, residência, fortaleza moral e psíquica para suportar a situação extrema em que me vi mergulhado. Não fossem eles, a meio de circunstâncias tão adversas, não sei o que teria sido de minha vida. Por isso devoto-lhes minha gratidão que, reitero, espero sobreviver na medida em que eu próprio sobreviva.

Somos solitários no amor quando o amor nos abandona, ou trai, ou simplesmente acaba. Quem já não sofreu em algum grau essa forma de solidão? Refiro-me não só ao amor passional, o que nos ata a uma mulher, mas ao amor dos amigos, ou dos que tal supomos. O amor, quando excepcionalmente verdadeiro, é falível como toda forma de experiência humana. Por isso nos falha ou nos falta quando nos trai por vias imprevisíveis e obscuras. Quando assim nos castiga, no cerne da dor e da perda novamente defrontamos a sombra opressiva da solidão, da solidão dos que amam para perder.

Considerem, por exemplo, o amor que os pais de ordinário devotam aos filhos. Não duvido da sinceridade com que o vivem. Apenas acredito que com frequência amam de modo errado, por vezes com consequências desastrosas para o que eles, os filhos, serão na vida. Se amássemos com um pouco de discernimento e clarividência, aprenderíamos que amamos nossos filhos não para retê-los na rede do nosso egoísmo, do narcisismo que neles projetamos para que na vida realizem o que não pudemos ou desejamos ser. Houvesse um pouco mais de altruísmo e lucidez no amor dos pais, não tenho dúvida de que amariam para perder os filhos. Amariam para entregá-los à vida tão somente amando-os para que as vivessem, as vidas que são deles e intransferivelmente deles, do melhor modo possível.

Aprendi a duras penas o quanto esses modos de amor são inconstantes e vulneráveis. Aliás, em muitos casos eles sequer existem de fato. Se os tomamos como reais, é porque carecemos de neles acreditar. De resto, em país de laços tão frouxos quanto o nosso, onde qualquer conhecido transitório ou companheiro ocasional de farra é levianamente confundido com um amigo, a amizade é transacionada e esquecida a troco de bem pouca coisa.

Há uma ordem de solidão que se manifesta em situações rotineiras de nossa vida. Estamos todos os dias sozinhos: no sono, também na vigília, no vaso sanitário, nas apreensões palpáveis ou imaginárias que sofremos. Estamos sobretudo sozinhos na massa, em todos os tipos de massa concebíveis e rotineiramente presentes na sociedade que é por definição... de massas. Estamos sozinhos diluídos nas massas errantes e moventes das grandes cidades. Estamos sozinhos nos megashows onde regredimos à nossa ancestralidade tribal. Estamos sozinhos nos estádios de futebol, nas grandes celebrações coletivas. Estamos sozinhos nos bares e clubes bêbados de gente ruidosa e vazia. Estamos sozinhos diante do sexo que é hoje vendido e barateado em toda a sorte de comércio humano. Estamos sozinhos na cama onde todas as noites dormimos, mesmo quando acompanhados por imposição de cadeias legais que somos incapazes de romper. Estamos sozinhos na noite, na noite imensa dentro da qual vagamos sob o peso e suor do cansaço de um dia inutilmente gasto. Estamos sozinhos dentro de carros que rolam através de ruas indiferentes, ou ainda quando engavetados na maré congelada do trânsito que paralisa a cidade sem alma. Estamos sozinhos ao lado do vizinho com quem dividimos paredes grudadas, mas totalmente incomunicáveis. Estamos sozinhos diante do outro que amamos e todavia incompreendemos na mesma e insolúvel medida em que ele nos incompreende. O homem solitário, não esse das massas temerosas da própria sombra individual, mas o homem que se sabe solitário, irremediavelmente solitário, mas antes de tudo senhor de sua solidão, este é o que melhor preza o amor, a amizade, a vinculação solidária ao outro que por vezes nos salva da consciência de que somos sozinhos e sozinhos morreremos.
Recife, 20 de setembro de 2008.