quinta-feira, 28 de julho de 2011

Octavio Paz



Morte de Octavio Paz. Para mim, ele é o ensaísta supremo da América Latina neste século. Especifico o ensaísta por considerá-lo superior ao poeta. El Laberinto de la Soledad, acima de qualquer das suas muitas obras, é um livro ao qual sempre retorno. Refiro-me mais exatamente ao capítulo “La dialéctica de la soledad”, que reli incontáveis vezes e estou certo de que continuarei relendo com o mesmo encantamento resultante da sua densidade analítica e do primor formal do estilo de Paz. Muitas vezes recomendei este capítulo à leitura de amigos, sobretudo de amigas, interessados no assunto – a solidão relacionada à sua negação, o amor. Octavio Paz aí demonstra, com rigor e claridade expressiva, ser um autêntico mestre da argumentação dialética, que muitos tolos presumem indissociável do marxismo.

Dois outros livros seus – livros novamente de ensaísta, no caso empenhado em elucidar temas de estética e história literária com a consistência argumentativa do crítico da cultura – também me parecem fundamentais: El Arco y la Lira e Los Hijos del Limo. Em Tiempo Nublado – livro menor, mas também obrigatório para quem deseje conhecer as muitas faces do ensaísta – Octavio Paz volta-se corajosamente para o domínio da crítica política e ideológica. Digo corajosamente porque ele, ao lado de Mario Vargas Llosa e de José Guilherme Merquior, foi dos poucos que ousaram criticar com argumentos de peso, e de modo algum conservadores, a sólida hegemonia de esquerda na cultura latinoamericana que, no caso brasileiro, se encorpa a partir da década de 1930. Para que se tenha ideia dessa hegemonia, ainda hoje, no cenário do pós-socialismo real, vemos intelectuais do porte de Antonio Candido justificando ideologicamente a ditadura de Fidel Castro, aparentemente decidido a sobreviver exercendo o poder até o último suspiro, ou charuto.

Se no Brasil Merquior foi sempre desprezado e com frequência difamado por essa hegemonia, no contexto mexicano Paz sofreu problemas ideológicos similares. Durante meus anos passados na Universidade de Essex fiz vários amigos mexicanos, quase todos ligados ao Departamento de Ciência Política. Sendo todos de esquerda, novamente a hegemonia em cena, hostilizavam Octavio Paz. Um desses amigos, David Davila-Villers, odiava-o ao ponto de recusar-se a admitir um fato facilmente verificável: em 1968 Octavio Paz renunciou ao cargo de embaixador do México na Índia em sinal de protesto contra a repressão imposta pelo governo do seu país aos estudantes de esquerda. Intolerância cega gente de todos os níveis mentais.

Itinerario, publicado em 1993, pode ser lido como uma biografia intelectual condensada de Octavio Paz. Comprei-o e li-o no início de 1995, quando fiz breve visita a Buenos Aires. Minhas impressões acerca deste livro delicioso, quase todo fruído num modesto quarto de hotel, estão anotadas no diário de viagem que então redigia: De Cidade y Ciudad.

Octavio Paz morre quase ao mesmo tempo em que, no Brasil, morre o político Sérgio Motta, figura proeminente do ministério de Fernando Henrique Cardoso. Embora tenha executado medidas políticas fundamentais à frente do Ministério das Comunicações, concorrendo assim para arejar o setor corroído pelas forças do estatismo parasitário que sustenta nosso indignante atraso social, Sérgio Motta é volátil como uma folha de grama exposta a ventos e marés. Sendo assim, coincidem, ele e Paz, apenas na dimensão da morte material, já que o político também se dissipa enquanto entidade espiritual. Octavio Paz, contrariamente, sobrevive. A matéria contingente, essa se dissipa, seja ela o corpo de Paz, de Sérgio Motta, de Ava Gardner, Ingrid Bergman, o rabo da última gostosa vendida na capa da Playboy, ou qualquer outro corpo.

O privilégio do grande artista, do criador de grandes obras espirituais, seja o poema, a canção, o romance, o sistema filosófico ou religioso, é sobreviver na obra que lega à posteridade. Sócrates, Jesus Cristo, São Francisco de Assis, Shakespeare, Marx, Freud, Montaigne, Bach, Tom Jobim, Machado de Assis, Cervantes, Michelangelo, Turgueniev, Conrad e muitos outros são forças vivas e atuantes no cerne da vida contemporânea. Sobrevivem, portanto, à morte física na obra espiritual que nos legaram. É por isso que não lamento a morte recente de Octavio Paz. Sequer sinto a sua falta. Como iria eu sentir a sua falta, se viveu sempre no meu espírito e nas prateleiras da minha biblioteca desde o primeiro momento em que o li?

Diário - Recife, 20 de abril de 1998.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

O autor e a obra



“On Paul Goodman” é o título do ensaio no qual Susan Sontag generosamente celebra a morte de um intelectual eminente na cena cultural americana da década de 1960. A eminência de Goodman não se prolongou até o Brasil e se vai esbatendo nos próprios Estados Unidos. Sendo assim, diria que o ensaio importa mais devido à apreciação generosa da autora do que ao valor intrínseco do objeto. A generosidade a que me refiro transparece no descompasso entre a apreciação restritiva feita ao homem Paul Goodman e a excelência da obra por este produzida. Pois, ao mesmo tempo em que naquele acentua negativamente os traços de misoginia, infantilismo sexual e antipatia no convívio, Susan Sontag ressalta o significado renovador da obra no contexto liberador dos anos sessenta e na sua própria formação.

A tensão e o descompasso entre o homem e a obra estão sobretudo vincados nesta passagem: “I suspect there was a nobler human being in his books than in his life, something that happens often in ´literature`. (Sometimes it is the other way around, and the person in real life is nobler than the person in the books. Sometimes there is hardly any relationship between the person in the books and the person in real life.)” (Under the sign of Saturn. New York: Farrar, Straus, Giroux, 1980, p. 9).

Acredito que a situação mais frequente é a primeira, que de resto pontua, como ficou já evidente, o desenvolvimento do ensaio. Embora muito restritamente tenha convivido com intelectuais e artistas, deles provei o suficiente para frisar a frequência com que a obra supera o autor. Ousaria generalizar ainda mais afirmando que a humanidade mais verdadeira e significativa desse animal egocêntrico – mon semblabe, mon frère – reside na obra criada e não na vida vivida. Por isso há muito abrandei meu interesse e fascínio pelo convívio com intelectuais e artistas. O melhor é sem dúvida conhecer-lhes a obra, pois que nela imprimiram o melhor da sua humanidade tantas vezes falhada ou impraticável. Os poetas amam melhor com a palavra do que com o corpo e o que do espírito sobre este se deposita. Mesmo quando tenham vivido generosamente, e não nego que muitos o tenham feito, os intelectuais sublimam na obra produzida os desacertos de sua humanidade insensata.

Talvez a própria natureza dessas práticas humanas – a criação do romance ou do poema, assim como a solidão criativa do ateliê ou da biblioteca -, somada a seus modos específicos de inserção na sociedade contemporânea, concorra de forma decisiva para a acentuação dos traços narcisistas inscritos sobre a pele do artista. Bach e outros gênios anteriores ao advento do capitalismo gerador de um mercado cada vez mais poderoso destinado à circulação da obra convertida em mercadoria altamente rentável, Bach e esses outros foram homens comuns humildemente anexados à propriedade da nobreza tradicional ou da Igreja insaciável no exercício de um patrocínio artístico que lhe reforçava os mecanismos de dominação. Qualquer desses artistas contemporâneos – sobretudo os que operam no circuito da cultura de massa, onde são venerados como deuses – seria um pobre diabo dentro do sistema cultural que precedeu o capitalismo.
Concluindo com uma imagem pouco original, existem duas vias de circulação através da casa da arte: enquanto uma conduz à sala de recepção onde o artista tagarela sua humanidade narcisista ou simplesmente banal, a outra leva à biblioteca com ramificações para a sala de audição, a galeria de arte, a comunhão com a obra purificada das contingências aderentes ao ser que a produziu. Que visitante insensato escolheria a primeira via?
Diário - Recife, 6 de março de 1998.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Diário (fragmentos)



08 de junho 2004
Releio uma tradução francesa de Dom Casmurro assinada por Francis de Miomandre e revista por Ronald de Carvalho. Trata-se, portanto, de uma tradução já velha, provavelmente a primeira em língua francesa, talvez a primeira em língua estrangeira. Embora seja um modesto leitor de francês, portanto sem a devida qualificação para ajuizar sobre a qualidade da tradução, reconheço e retenho na leitura de algumas páginas alguns dos traços que mais singularizam a prosa de Machado de Assis: a ironia, o humor, o toque inconfundível do moralista iluminando com a pena aguda os desvãos perturbadores da vaidade, da mesquinheza, da autodeleitação inconsciente com que irreparavelmente nos enganamos acerca do que somos e presumimos saber sobre o outro. Quanto mais releio Machado, em português e noutras línguas que freqüento, mais me convenço da sua grandeza única, do seu indiscutível gênio literário. Reiterando o que outros já ressaltaram, fosse ele um autor de língua inglesa, ou outra de prestígio e difusão similares, seu reconhecimento seria amplo e universal. Apesar da barreira da língua, é animador comprovar que sua obra mais e mais se impõe à admiração por vezes perplexa de grandes leitores e críticos de outras línguas. Vargas Llosa e Carlos Fuentes já registraram em espanhol sua grandeza gradualmente ampliada na esfera do reconhecimento internacional; na língua inglesa, caberia destacar antes de tudo a obra de esclarecimento e difusão desenvolvida por John Gledson, que aliás assina a retradução aprimorada de vários textos de Machado, além da contribuição crítica notável contida, antes de tudo, em The Deceptive Realism of Machado de Assis. Valeria ainda acentuar a obra crítica pioneira escrita por Helen Caldwell. Aliás, somente há poucos anos, depois de tantas referências feitas por estudiosos de Machado de Assis, foi afinal vertido para o português O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. Dois críticos ingleses, pouco conhecidos no Brasil, também dedicaram páginas surpreendentes a Machado: V. S. Pritchett e Martin Seymour Smith. Mais recentemente, importaria assinalar Susan Sontag, Salman Rushdie, John Barth e este crítico desconcertante e leitor pantagruélico que é Harold Bloom. Enfim, Machado eleva-se sobre nossa surrada tradição de nacionalismo literário na qual patinaram mesmo alguns dos nossos maiores escritores como Mário de Andrade e nossa melhor produção romântica, modernista e regionalista. A prova suprema do grande escritor é sobreviver ao tempo e no tempo submetido a continuadas, sucessivas e renovadas leituras.

09 de junho de 2004
Há pouco ocorreu-me evocar a expressão de Voltaire anotada no fecho do seu sempre atual Cândido, ou o otimismo: “...il faut cultiver notre jardin”. Dou-me agora ao luxo de me propor algumas normas pertinentes à sabedoria da jardinagem. A primeira consiste na necessidade da delimitação de uma fronteira necessária entre o mundo público e o íntimo, correspondente ao jardim. Se o jardineiro incorre no erro insensato que seria reproduzir a matéria e os valores daquele no solo em que aspira a cultivar seu mundo íntimo, será portanto inútil qualquer presunção ou ideal de vida alternativa. Noutras palavras, melhor continuar imerso no grande mundo com tudo que encerra de pequenas e grandiosas misérias. Recuso-me, por conseguinte, a trazer para dentro do meu jardim as ervas daninhas do cotidiano que me vejo forçado a viver na companhia do semelhante inevitável. Até o noticiário noturno da tv tenho me disciplinado para evitá-lo ao me dar conta de que me inspira antes de tudo indignação e ódio impotente em face das brutalidades rotineiras praticadas na nossa sociedade, sobretudo pela elite bandida deste país vergonhoso. Aponho a elite um qualificativo contraditório por não encontrar meio menos inadequado de referir-me a isso que tão impropriamente designamos por elite brasileira, notadamente a política. Talvez melhor convenha o termo proposto por Evaldo Cabral de Mello, que ao negar que ela exista de fato no Brasil opta pelo termo clientela. O noticiário brasileiro e, por extensão, o estrangeiro, ficam assim interditados no solo do meu jardim.

Dado que entendo a jardinagem como equivalente de uma estética da existência, outra norma fundamental radica no livre e continuado cultivo das artes. É dentro desse espírito que me disciplino para voltar a cantar todos os dias acompanhado pelo meu violão. Valendo-me com frequência dos meus livros de cifras, dou-me ao prazer diário de cantar meus compositores populares preferidos: Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Vinicius de Moraes, Lennon-McCartney... Outra flor cultivada no meu jardim é a literatura. Os poetas ocupam lugar especial no canteiro literário que se estende pela via central do jardim. Os mais lidos - no geral de viva voz, pois concordo com Harold Bloom que a poesia deve ser lida – são Drummond, Auden, Eliot, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Murilo Mendes. Outra atividade constante que imprime beleza, emoção e esclarecimento à atmosfera do meu jardim é a frequentação dos filmes de ordinário gravados em dvd: as adaptações de obras assinadas por Shakespeare, Henry James, Jane Austen, Graham Greene, E. M. Forster, Dostoiévsky, Tchekov, Charles Dickens, Balzac, Victor Hugo, Oscar Wilde e muitos outros. Além disso, entra nesta composição a obra cinematográfica obrigatória dos meus diretores e roteiristas de eleição. Cito apenas os que me vêm de imediato à memória: Hitchcock, Billy Wilder, Woody Allen, Ingmar Bergman, Fellini, Kubrick, Christopher Hampton, David Hare, Louis Malle, Truffaut, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, David Lean.

Há no jardim uma hora preciosa, antes de tudo porque cada vez mais rara, a hora da solidão voluntária livremente povoada pela meditação errática, a pura contemplação da noite ou do mar próximo, mas antes adivinhado que propriamente apreendido pelos sentidos. É esta uma hora rara e progressivamente difícil porque o mundo é cada vez mais sobressaltado por toda sorte de ruído: o ruído dos aviões que fazem dos céus sob os quais habito uma rota de voo obrigatória; o ruído dos vizinhos empenhados em infernizar a vida do próximo; o ruído dos carros e de suas buzinas ferozes; o ruído de semelhantes boçais e arrogantes que, atormentados por modos de vida no geral gestados pela própria insensatez com que vivem, vingam-se dos seus tormentos insolúveis atormentando impiedosamente o mundo disposto ao alcance do seu poder. Há que cultivar o jardim contra e à margem e acima disso tudo. O resto escapa a meu poder de governo do meu mundo íntimo.

21 de junho de 2004.
Li ontem o último romance de Rubem Fonseca: Diário de um Fescenino. Não é com certeza um grande romance, mas é um bom romance. Narrado na forma de um diário, como já sugere o título, nele observo a concentração da narrativa no universo da classe média carioca. Se isso não o isenta de alguns traços marcantes da ficção de Rubem Fonseca, traços associados à representação brutal da marginalidade, acentua a presença de um universo social familiar ao leitor típico brasileiro. Algo que muito prezo no conjunto da obra de Rubem Fonseca é seu afastamento consciente e confesso do forte veio regionalista presente na nossa tradição literária. Desde seu primeiro livro, Rubem Fonseca elege o Brasil urbano, notadamente o Rio de Janeiro, como provedor de temas, conflitos, linguagens e tons dilacerantes da sua literatura. Fiel a esta orientação geral, distinguiu-se antes de tudo como contista da cidade – o melhor dentre os contemporâneos – e também como romancista. Seu primeiro romance, O Caso Morel, exerceu uma influência decisiva sobre minha consciência e prática sexuais. Que mais se pode pedir ou esperar de um livro? Registrei em alguma anotação remota de um dos meus diários o significado que este romance teve sobre minha vida.
Lendo Diário de um Fescenino, assim como Pequenas Criaturas, seu último volume de contos, observei como sua veia de humorista tornou-se mais pronunciada. A meio da leitura de algumas páginas de ambos os livros, não contive o riso. Rio prazerosamente lendo Cervantes, Voltaire, Swift, Lawrence Sterne, Machado de Assis, Oswald de Andrade... Rubem Fonseca, dentre os contemporâneos, é um que me estimulam ao riso e ao prazer elevado da inteligência e do espírito que a boa literatura propicia.

22 de junho de 2004.
Hoje acordei às 4 da madrugada. É que fui dormir também muito cedo. Gosto de estar de pé nessa hora ambivalente, suspensa entre a treva da noite e as primeiras luzes do dia. É quase miraculoso ouvir o silêncio respirando no asfalto deserto das ruas, os tons vagos da aurora espanando as gotas de água do oceano. Depois o dia vai lentamente nascendo, lentamente os objetos emergem do sono profundo da noite. Vesti-me feliz, quase que às pressas, e aproveitei a trégua da chuva, que nos últimos dias privou-me do prazer de correr e bater perna no calçadão da praia, sobretudo do prazer de mergulhar na piscina. Alternando a corrida lenta e a passada longa, fui até a praça de Boa Viagem. Depois fiz o percurso de volta estendendo-o até os limites de Piedade. Quando cruzei a linha do prédio onde Ci e as meninas viveram, espremido entre dois grandes edifícios que miraculosamente não lhe suprimiram a visão do mar, respirei com saudável e comovida memória os anos mais belos e felizes de minha vida. É bom evocá-los assim, retê-los nas linhas concretas do prédio onde tudo se deu e se consumou, surpreendê-los vibrando na atmosfera da cidade insensível, sem qualquer dor, ressentimento ou nostalgia. Vivi o que pude, vivemos o possível, e assim espero assimilar à memória toda essa paisagem esplêndida que perdi sem no entanto perdê-la. Passarei sempre diante daquele prédio respirando no ar sem sombras toda a felicidade invisível que elas me deram. Mentiria se dissesse que a aceitação repousada do que nelas perdi anula qualquer traço ou desejo de volta no tempo, ou de atualização dos esplendores perdidos. O que digo é que procurei tudo aceitar e viver e agora apenas memorar tal como foi: temporário, falível e todavia inefável. Talvez inefável exatamente porque temporário e falível. Tudo que queria ainda, mas não depende de mim, era retê-las como amigas, expressar livremente em clave sublimadora todo o amor, o gozo e desejo que a elas definitivamente me prendem. Um dia escrevi um poema para Ci intitulado: Sempre. Já não lembro o poema e a preguiça impede-me de ir catá-lo numa pasta que nem sei bem onde se encontra. Lembro porém de que nele aspirei a traduzir o sentido de eternidade humana, se é possível assim dizer, do amor que a ela me prende e me prenderá enquanto eu viva. Não importa o fato de ela abafar nos desvãos da memória tudo o que poderosa e irreprimivelmente nos une. Afinal, perdemos a liberdade de nos esquecer.

24 de junho de 2004
O Diário Crítico de Sérgio Milliet cobre um período que se estende grosseiramente do início dos anos 40 a meados dos anos 50. Uma das lições que patenteia é a fugacidade da fama e do prestígio literário. Se nem tudo é moda, boa parte dos escritores lidos e celebrados numa geração – diríamos hoje num ano – cedo mergulha no esquecimento. Mesmo alguns distinguidos pelo reconhecimento geral, sobretudo pela crítica mais criteriosa, com o tempo dissolvem-se no silêncio das prateleiras, ou pelo menos são reduzidos a dimensões comparativamente insignificantes. É curioso lembrar, por exemplo, o prestígio indisputável da cultura francesa durante o período registrado no diário de Sérgio Milliet. Talvez o escritor mais contemplado nas entradas e comentários do crítico paulista seja André Gide. Era então extraordinário o prestígio internacional de que desfrutava. Milliet reitera tal prestígio dedicando-lhe algumas das melhores e mais elogiosas páginas do seu diário. Se Gide não mergulhou na obscuridade, é certo que é hoje muito pouco lido. Outros similarmente distinguidos, como Georges Bernanos e Charles Péguy, tornaram-se ilustres desconhecidos para os contemporâneos.

Dentre os brasileiros, Mário de Andrade e Gilberto Freyre merecem por certo as notas mais amplas e elogiosas. Também a crítica, de resto notável no período, é objeto de inúmeras considerações de Milliet. O destaque maior vai para Álvaro Lins e Roger Bastide. O primeiro era no geral reconhecido como o melhor crítico militante na literatura brasileira; o segundo, embora antes de tudo sociólogo, trouxe contribuição notável à renovação dos nossos estudos socioantropológicos e também literários, com ênfase, aqui, para a ponderação mais sistemática do papel que a sociologia desempenha na apreciação da obra de arte, em geral, e da literária, em particular. Sílvio Romero, Alceu Amoroso Lima, Lúcia Miguel-Pereira, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Rui Coelho e outros são contemplados com notas no geral elogiosas.
Outro assunto merecedor de breve registro liga-se à febre dos testamentos e plataformas dados a público pelas duas gerações concorrentes no cenário cultural brasileiro na primeira metade dos anos 40. Os termos que emprego, testamentos e plataformas, aludem, claro, a dois livros de ampla repercussão: Testamento de uma Geração, organizado por Edgard Cavalheiro, e Plataforma da Nova Geração, organizado por Mário Neme. Enquanto o primeiro reúne depoimentos e balanços literários e ideológicos da geração fautora do Modernismo, a segunda dá voz à geração ascendente, constituída antes de tudo por escritores e ensaístas de vocação crítica ratificada pelo desenvolvimento do processo cultural brasileiro. Fui dos poucos, na minha geração, a ler cuidadosamente estas obras. Encontrei-as no acervo precioso da Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife durante minha curta e desprezada passagem pelo curso no auge dos chamados anos de chumbo da ditadura militar. Aliás, a leitura de obras desta natureza, somada à descoberta da psicanálise e dos escritores modernistas, concorreu de forma decisiva para que eu nunca mais pusesse os pés no prédio histórico do Parque 13 de Maio. Outro fator decisivo foi a leitura de O Processo Maurizius, de Jakob Wassermann. Poucos livros que li, aqui incluído Dom Quixote, tiveram sobre minha imaginação ética e estética efeito tão poderoso. O livro de Wassermann é a história de um processo de injustiça afinal reparado pela luta de um personagem eticamente grandioso. Não podia ler um livros destes sem cotejá-lo com a experiência cotidiana que me oprimia na Faculdade de Direito e no Brasil policiado pela truculência dos militares. Fiquei tão abalado que desisti do curso, pois tinha consciência de que nunca teria força e grandeza intelectuais e morais para seguir o exemplo de Etzel Undergast (tenho sérias dúvidas sobre a correção do sobrenome) como representante da lei e da justiça no país da ditadura e da injustiça.
Por fim, um breve comentário sobre a hegemonia do romance nordestino no decurso do primeiro momento historiado pelo diário de Sérgio Milliet. Tecendo elogios notadamente a José Lins do Rego – talvez, dentre os nordestinos, o que gozava de maior prestígio literário naquele período, como atesta o juízo de peso emitido por Mário de Andrade, que o distinguiu como o maior romancista brasileiro - Milliet proclama a excelência dessa corrente da nossa produção romanesca ao reconhecer que os nordestinos realizaram a ficção que os paulistas propunham ou desejariam realizar.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Nuit des Ténèbres



Como explicar o fato de o Brasil piorar até quando se desenvolve? Embora já incluído entre as sete mais poderosas economias do mundo, olho à minha volta e vejo tudo pior. O que meus sentidos e minha percepção crítica constatam é confirmado pelo noticiário corrente: cidades convertidas em infernos urbanos, rodovias intransitáveis, nossos brutais padrões de desigualdade social visíveis nas situações mais comezinhas... O capitalismo que criamos é selvagem e ponto. Portanto, como explicar que o país piore quando cresce em ritmo estável? Tenho meus palpites, que todavia não gastarei nos limites estreitos de uma mera nota sombria repassada da minha desilusão com o país em que nasci e vivo.

Tanto viver, a tanto aspirar, para ao cabo despencar nessa noite de trevas. Olho à minha volta e sei que estou sozinho e vago na noite sem pouso ou companhia. A solidão, antes de ser a que conquistei como expressão da minha liberdade individual, é hoje a solidão sitiada de quem recua e se isola como último recurso de integridade contra as forças opressivas do ambiente. O amor seria a única via passível de nos salvar e entretanto é apenas um grande mal-entendido e os amantes não se sabem nem se compreendem, irredutíveis na sua natureza egoísta. Dormir. Resta-me dormir, quando o sono vier, para acordar amanhã e tudo refazer sem ilusão ou esperança.
Recife, 7 de julho de 2011

O desânimo desce sobre mim nesta noite de sexta-feira. Desânimo que é também desgosto dessa vida encerrada em horizontes mesquinhos. O desejo de amor vem e me fere a carne. Meço como sempre as possibilidades de amor, até mesmo as disponibilidades discerníveis no círculo do meu convívio, e todo na casa me fecho como ilha incomunicável, ou navego como um barco sem cais. Luiza Cage é mais um problema que um verdadeiro caso de amor. Maria J. é o amor sublimado em afinidade moral. Há mulheres lindas que desejaria amar. Mas sempre entre elas e mim se interpõem obstáculos muitas vezes obscuros, códigos embaçados colidem e tudo ao cabo se dissolve em frustração amorosa. O mundo não vale o mundo e o raso medido é fundo. Ou não sei ou por outra me tenta agora refazer a frase. Quem sabe o raso medido não seja apenas raso, já que, induzidos pelo conformismo e a baixeza moral diante da vida, medimos não mais que a rasura visível na aparência dos nossos móveis de carne? Uma saudade indecifrável, voz de uma fala perdida ou nunca alcançada, repica no bojo da memória, ou me atravessa obscuramente o coração desamado, e afinal me decido a dormir como quem momentaneamente morre.
Diário – Recife, 5 de abril de 1998.

Van Gogh
He was a lonely and suffering man. He never knew what people call love and happiness. I mean, he loved his brother and his brother loved him. But they never found the proper way to convey their mutual feelings. He painted some of the most beautiful and agonizing pictures of modern art. And yet he did not sell at least one of them. He tried a true friendship with an outside artist like himself. They did not succeed and separate like crazy enemies. One day he shot himself in the middle of a yellow and windy field. He died after a few and agonizing days. Nowadays he is famous and his pictures worth millions of pounds. Life is meaningless.
Diário - Recife, 6 de abril de 1998.

Desenraizamento
É fato que sofro, que há muito venho sofrendo a carência de uma vida melhor vivida, isto é, melhor compartilhada. As condições do meio são intratáveis para um indivíduo do meu tipo, para o tipo de indivíduo que voluntariamente fiz de mim, sempre alterando e em alguns casos invertendo os condicionamentos e modelos dominantes na cultura que demarca o desenvolvimento da minha personalidade.
Os anos vividos, com o que encerram de experiência assimilada, levaram-me, por exemplo, a repelir isso que chamo de gregarismo do brasileiro em contraposição às formas de sociabilidade praticadas no âmbito dos pequenos grupos, dos grupos formados por eleição afetivo-intelectiva. Somos refratários, sim, a essas formas de associação predominantes na cultura inglesa e mesmo na cultura urbana brasileira de corte metropolitano, como é o caso de São Paulo. Por aqui o que vigora é o gregarismo dos bares, festas, badalações noturnas e praieiras, além dos eventos de massa que mobilizam dezenas de milhares de pessoas. O vazio. A solidão dentro da massa. Tenho horror a isso tudo.

A alternativa, dentro dos quadros convencionais, é a sociabilidade típica da nossa herança patriarcial: a família extensa agregada nos fins de semana para almoços, jantares e bebedeiras onde os vínculos do sangue circulam. São no fundo relações viciosas, marcadas antes de tudo por laços de dependência e lealdade patrimonial. Produzem gente infeliz, oprimida pelos pactos implícitos da velha ordem patriarcal, que evidentemente já não se exprime como exercício de autoridade exercido pelo patriarca dissolvido no caldeirão do consumismo hedonista, mas retém vantagens inegáveis.

Dentro de uma ordem social onde o descrédito das instituições básicas é completo – ninguém confia no sistema médico, na polícia, no sistema legal lato sensu, na escola pública etc. -, ser ou tornar-se membro de uma família extensa é uma garantia de segurança contra a anomia dominante. Pois ela assegura privilégios materiais, status e acesso cordial (friso usar o termo no sentido adotado por Sérgio Buarque de Holanda) a uma rede de relações e serviços que numa ordem social verdadeiramente democrática existem em função do indivíduo abstratamente considerado. Trocando em miúdos, ser ou tornar-se membro de uma dessas famílias é ser proprietário ou beneficiário de renda privilegiada, bens móveis e imóveis e serviços personalizados. Conheço pessoas que, detentoras desses privilégios típicos de uma sociedade estamental, têm na própria família, ou na extensão do poder por esta exercido, serviços médicos, jurídicos, terapêuticos e educacionais personalizados e até imunidade parlamentar. Como nada é perfeito, também anulação da individualidade e infelicidade doméstica.
Diário - Recife, 28 de abril de 1998.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Autoengano



Compareço à Arcádia, em Apipucos, para assistir a uma palestra de Eduardo Giannetti seguida do lançamento do seu último livro, Autoengano. Embora não conheça ainda o livro – falta-me de resto tempo para o ler em meio às tantas leituras acumuladas neste mês de férias sem efetivo repouso intelectual – fui à Arcádia já razoavelmente ilustrado pela discussão em torno do livro promovida pelo programa Roda Vida, segunda-feira passada.

Giannetti é um economista de credenciais bem pouco ortodoxas na cena intelectual brasileira. Pois, não obstante pense aqui em Celso Furtado ou Caio Prado Jr., são poucos os que entre nós praticam uma economia distanciada de padrões econométricos demasiado ciosos de fidelidade à ciência positiva. Declarando-se ele próprio filiado à tradição da economia política, quando não francamente filosófica, faz questão de lembrar a obra pouco convencionalmente econômica de economistas como Adam Smith, John Stuart Mill e Karl Marx.

Seu distanciamento da corrente dominante deste século se evidencia ainda no próprio tratamento analítico conferido ao tema do autoengano. Pois ao frisar que o indivíduo é o locus desse fenômeno complexo, que investiga não só no âmbito das relações humanas, mas também no próprio reino animal – não humano, esclareço – e vegetal, Giannetti atenua o peso dos fatores especificamente sociológicos.

Algo que me inspira simpatia no seu comentário introdutório acerca da relação entre sua linha de abordagem da matéria e a filosofia analítica é o relevo que empresta na composição da obra a duas características básicas desta orientação teórica: a definição precisa do objeto e a clareza expositiva. Acrescenta, para ser exato, uma terceira característica que infelizmente me escapa à memória. Outro dado que igualmente me inspira simpatia é sua resistência a que se confunda sua exploração analítica com uma linha de produção editorial hoje largamente consumida, e no geral intelectualmente desonesta, banalizada sob o título de literatura de autoajuda.
Voltando ao ponto referente ao indivíduo encarado como o locus do autoengano, torna-se de fato difícil propor, ainda que à margem de qualquer intenção de receituário, medidas de efetiva superação das manifestações mais rotineiras de autoengano. Pois nossas práticas humanas, em qualquer terreno imaginável, aparentam pautar-se por desejos irremovíveis de autoengano. Embora modestamente me vincule à tradição racionalista, e possa no meu caso pessoal aferir como o exercício da razão analítica e sobretudo autoanalítica alterou decisivamente comportamentos de autoengano, julgo ter antes de tudo aprendido a impossibilidade de subordinar a inclinação imperativa para o autoengano aos dispositivos esclarecedores da razão.

Seria aqui interessante propor dois exemplos passíveis de atestar o quanto somos resistentes ao exercício dessa função corretiva da razão. O primeiro, o do autoengano ideológico gestado e difundido por intelectuais influentes, teve efeitos políticos desastrosos neste século. Apesar de se representarem como sismógrafos da consciência coletiva, Sartre é o exemplo paradigmático dessa consciência crítica autodelegada, esses intelectuais teimaram até o fim em acreditar, ou pelo menos publicamente declarar, as virtudes do socialismo e a magnitude intelectual e moral de tiranos do porte de Stalin.

Lembro-me de que minha própria geração se formou embalada por essas gigantescas mentiras. Um livro de Georges Pollitzer, Princípios de Filosofia, funcionou como manual de iniciação ao marxismo para mim e muitos dos meus amigos de esquerda. Nele Stalin era incensado como grande cientista, teórico social extraordinário e, literalmente, benfeitor da humanidade. Afrontar essas mentiras, e dissolvê-las com fatos acessíveis a qualquer observador isento, era fazer o jogo da direita, era concorrer para o enfraquecimento da luta revolucionária. Ademais, custava ao crítico, com frequência, a pecha de renegado, lacaio do capitalismo e desqualificações igualmente intolerantes. Intelectuais independentes e autenticamente dedicados ao livre exercício da razão como Bertrand Russell, George Orwell, André Gide, Albert Camus, Arthur Koestler foram alvo de desprezo e calúnia.

O dado irônico nesse autoengano do intelectual revolucionário consiste no racionalismo crítico que sempre reivindicou para sua prática ideológica. Identificando na sua crítica a materialização da razão histórica, jamais duvidou de que no seu modo de ser e atuar dentro da realidade a teoria e a prática encarnavam a expressão mais avançada da consciência autêntica e da energia revolucionária que no futuro instauraria os ideais fundamentais da razão, da justiça e da existência social verdadeira. Investido de tão poderoso autoengano, como poderia perceber as grandiosas mentiras que produzia ou validava, além da intolerância com que investia contra quem ousasse afirmar a verdade do socialismo real e do fracasso evidente que foram todas as tentativas orientadas para a sua realização no curso deste século?
Uma variante desse primeiro exemplo aqui já um tanto desenvolvido seria a ascensão do nazismo. Parece-me insuficiente a explicação correntemente proposta – inclusive pelo próprio Giannetti, que a reitera no curso da sua palestra – pela tradição historiográfica e sociológica satisfeita em atribuir a adesão dos alemães à ideologia nazista à humilhação imposta pelo Tratado de Versailles, à hiperinflação e à astúcia maquiavélica dos líderes nazistas. Esses fatos históricos concorreram sem dúvida para a ascensão do nazismo, mas estão longe de constituir uma explicação racional satisfatória.

O segundo exemplo, solo fértil onde germina o autoengano entanto espantosamente quase silenciado tanto na palestra quanto no prolongado debate que a ela se seguiu, é o da experiência amorosa. Num dado momento, senti-me tentado a pedir a palavra para narrar uma passagem exemplar do conto “Corações Solitários”, de Rubem Fonseca. Um personagem, símbolo dessa anônima legião de infelizes manipulada pela máquina de enganos que são as seções de aconselhamento de revistas pouco ou nada recomendáveis, envia uma carta ao protagonista do conto, que vive do expediente enganador indicado neste período. Já que possuo o livro, será mais simples transcrever o episódio:
“Nathanael. Sabe o que é duas pessoas se gostarem? Éramos nós dois, eu e Maria. Meu prato predileto é arroz, feijão, couve à mineira, farofa e linguiça frita. Imagina qual era o de Maria? Arroz, feijão, couve à mineira, farofa e linguiça frita. Minha pedra preciosa preferida é o Rubi. A de Maria, estás a ver, era também o Rubi. Número da sorte o 7, cor o Azul, dia Segunda-Feira, filme, de Faroeste, livro O Pequeno Príncipe, bebida Chope, colchão o Anatom, clube o Vasco da Gama, música o Samba, passatempo o Amor, tudo igualzinho entre eu e ela, uma maravilha. O que nós fazíamos na cama, rapaz, não é para me gabar, mas se fosse no circo e a gente cobrasse entrada nós ficávamos ricos. (...) Mas não era apenas isso que nos ligava. Se você não tivesse uma perna eu continuaria te amando, me dizia ela. Se você fosse corcunda eu não deixaria de te amar, eu respondia. Se você fosse surdo-mudo eu continuaria te amando, dizia ela. Se você fosse vesga eu não deixaria de te amar, eu respondia. Se você fosse barrigudo e feio eu continuaria te amando, dizia ela. Se você fosse toda marcada de varíola eu não deixaria de te amar, eu respondia. Se você fosse velho e impotente eu continuaria te amando, ela dizia. E nós estávamos trocando essas juras quando uma vontade de ser verdadeiro bateu em mim, funda como uma punhalada, e eu perguntei a ela, e se eu não tivesse dentes, você me amaria? e ela respondeu, se você não tivesse dentes eu continuaria te amando. Então eu tirei a minha dentadura e botei em cima da cama, num gesto grave, religioso e metafísico. Ficamos os dois olhando para a dentadura em cima do lençol, até que Maria se levantou, colocou um vestido, e disse, vou comprar cigarros. Até hoje não voltou. Nathanael, me explica o que foi que aconteceu. O amor acaba de repente? Alguns dentes, míseros pedacinhos de marfim, valem tanto assim? Odontos Silva”. (“Corações Solitários”, in Rubem Fonseca, Feliz Ano Novo. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 36-7).

Várias vezes utilizei este episódio do conto de Rubem Fonseca em diferentes cursos da UFPE – psicologia, jornalismo, serviço social – com o propósito de proceder a uma crítica da idealização do objeto amado. Um prato cheio para analistas do autoengano, com certeza. Adotando esse ponto de vista negativo, talvez um sintoma da minha crença na necessidade da crítica racional desfechada contra as mistificações amorosas em que desmedidamente incorremos, certa feita fui surpreendido pelo comentário divergente de um amigo cuja opinião muito respeito: Daniel Lima. Enquanto, de minha parte, reiterava uma crítica sempre movido pela convicção de que amaríamos melhor se desenvolvêssemos a capacidade de amar o outro imperfeito tal como é, incorporando ao amor pelo amado a sua dentadura, esses míseros pedacinhos de marfim, como metaforicamente se exprime o contista, Daniel chamou minha atenção para o fato de que o amor carece do engano da dentadura. Dito de outro modo, o amor se realiza precisamente pela via do autoengano. No entender do meu amigo, que é decerto o entender da maioria, não existiria amor sem uma dose necessária de idealização e autoengano compartilhado pelos amantes.

Saindo agora do cerne da palestra, o que ouvi de Giannetti confirma a admiração que lhe tenho dedicado desde que passei a tomar contato com as ideias que postula. Contato precário, sei, já que restrito a intervenções ocasionais nas páginas de jornal e em debates veiculados pela televisão, mas ainda assim suficiente para que possa estimar seus méritos intelectuais e morais. Tratando de um tema tão relevante e atraente para o leitor, não cede ele entretanto no rigor da exposição analítica. De outro lado, fiel à tradição filosófica declarada no pórtico de sua palestra, e já acima explicitada, procede como um expositor exemplar. A ordenação dos seus argumentos, articulada a elementos ilustrativos extraídos da história da arte e da cultura, além do próprio domínio das ciências da natureza, pauta-se por critérios de clareza, integridade intelectual e sobretudo um ceticismo salutar sempre consciente de que o autoengano é uma necessidade transfiguradora, para o bem quanto para o mal, das máquinas imperfeitas que somos. Por isso, sem embora subestimar o papel corretivo exercido pela razão, sabe ele o quanto são precários nossos poderes racionais.

Diário - Recife, 26 de janeiro de 1998.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Solidão e Poesia



O espetáculo do mundo me desgosta. Por isso meu mundo pessoal cada vez mais se fecha dentro das paredes do meu apartamento. Mesmo os raros e mais íntimos amigos frequento-os quase que exclusivamente por telefone. Os que me telefonam, cada vez menos, pesam para que decisivamente desanime de atender as chamadas do aparelho. Limpe a chaminé cuja fuligem e gás tóxico provêm do seu inconsciente, como Freud recomendava, sem ao mesmo tempo esquecer de filtrar a poluição que vem de fora, da rua e dos habitantes que de ordinário envenenam nossa precária saúde.

Essa gente – não aludo aos amigos, convém frisar - entra pela minha casa através do fio e de ordinário me solicita a ouvir as mesmas e previsíveis lamúrias. São egos feridos mordendo complacentemente a própria egolatria contrariada pela insensata desordem do mundo. Não se dão conta, aparentemente, do quanto concorrem para agravar a desordem que confessam lastimar. Muitas vezes, ao longo dos anos, sofri de compaixão por essa gente, a que integrava de modo direto meu mundo de convivência assim como a gente mais geral e abstrata. Hoje admito pouco sofrer dessa compaixão que tanta dor íntima e inconfessada já me causou. Hoje a insensatez do meu semelhante me causa antes desgosto que compaixão. Ademais, de que lhe serviria a compaixão de um homem que menos e menos entende o mundo ou se dispõe a acolhê-lo tal como é? Isto é, tal como sou.

Venho de mais de uma semana de solidão deliberada em Porto de Galinhas. Alegando precisar de um refúgio contra a fumaça infernal das fogueiras de São João e São Pedro, essa excrescência das tradições rurais que envenena o ambiente urbano nordestino, pedi a meu amigo Marcelo Guerra as chaves do seu apartamento e peguei a estrada. Embora a alegação fosse verdadeira, viajei para Porto de Galinhas antes de tudo para me refugiar das próprias situações de convívio a que me vejo exposto.

Oito dias de completa solidão na praia. Adoro ficar em Porto de Galinhas nesta época do ano. A temperatura é branda, o céu enxutamente luminoso, embora sobrevenham as chuvas que aliás me parecem moderadas, não obstante sejam chuvas de inverno. Moderadas ou não, não me incomodam. Pelo contrário, amo a chuva no mar. Amo caminhar longamente dentro da chuva seguindo a linha sinuosa das ondas que quebram sobre as areias.

Assim vivi meus oito dias de solidão: longas caminhadas à margem das águas ora sob a luz de um sol ameno, ora molhado dentro da chuva. Lá no alto, as estrelas, belas na sua misteriosa cintilação, a tudo assistiam indiferentes ao enredo que aqui embaixo encenamos entre estupidez e engenho, entre alegria e dor, entre esperança e engano. À parte isso, sentava-me numa cadeira de balanço entre a sala e a varanda durante a maior parte do dia. De lá, desse ponto estratégico, descortinava uma paisagem familiar que mais e mais fui aprendendo a amar através dos anos: a cor quente dos telhados borrando o verde esplendor dos coqueirais. Para além, na linha quase invisível, a rumorosa pulsação do mar. De lá, reaprendia com Alberto Caeiro que o mundo é do tamanho da minha varanda.

O mais importante nesses dias de solidão voluntária foi o tempo dedicado à poesia: a poesia de alguns poetas que amo, que ao longo dos anos me eduquei para amar alheio ao ruído do mundo; a poesia de outros que antes leio do que amo e por fim minha própria e errática poesia. A poesia é por vezes a religião de quem não a tem, ou a filosofia de quem não a sabe. A poesia é a minha cachaça, como um dia escreveu Drummond. A poesia é minha consolação, mas bem mais que isso. Consolação pode sugerir refúgio dos desamparados, ou linha de fuga dos que escavam na aridez da vida a ilusão que seja substitutivo da vida. Mais que consolação, a poesia pode ser uma força única de prospecção passível de iluminar zonas obscuras do ser cuja inconsciência nos sufoca.

Contra os preconceitos convencionalmente românticos colados à produção poética, e lato sensu artística, aprendi que o estado de poesia não é nunca espontâneo, não deriva de qualquer disposição subjetiva por alguns tratada como se fora inspiração, por outros como um talento ou gênio manifestado espontaneamente. Aprendi, pelo contrário, que o estado de poesia é induzido pela leitura continuada dos poetas e pela deliberada integração às forças líricas da existência.

Os dias de recolhimento solitário em Porto de Galinhas mais uma vez me confirmam este fato. Resistente à expressão poética por ausência de trabalho e acomodado distanciamento da corrente lírica da realidade, fui gradualmente me refazendo da ausência de poesia através dos mecanismos auto-induzidos acima indicados: a leitura da poesia e a escavação pessoal que em algum ponto invisível toca e retém a expressão antes imperceptível e silenciada. De tudo isso resultou um conjunto de dezesseis poemas aos quais dei o título geral de Águas Atlânticas.

Posso acaso dizer que me apraz ou me completa o estado de solidão a que me recolhi? Decerto que não. Em mim persiste a convicção de que o ser humano precisa e busca realizar-se no convívio com o outro. Antes de tudo, carecemos de amor. E o amor, não importando o quanto o mova a disposição narcisista de se amar fora de si, ou de se querer ou saber amado pelo outro, o amor mais pleno e verdadeiro é sempre uma doação, sempre um movimento generoso e altruísta do eu para o outro. Mas admito estar cansado ou descrente da possibilidade de exercitar essa expressão única e intraduzível de comunhão com o outro. Quando a vivi, quando tive a graça e a felicidade de vivê-la, fui um homem liberto da solidão egoísta, liberto da incapacidade de comunicação significativa com o mundo.

Mas duvido cada vez mais do atingimento desses estados de amor, seja o amor a que acima mais exatamente me referia, o amor passional atando um homem a uma mulher; seja o amor mais abrangente e difuso, o que antes de tudo se traduz em amizade. Admito, contra o humanismo desprendido, mas ingênuo dentro do qual procurei me realizar como ser humano, que a comunicação significativa com o outro é muito difícil; que é difícil compreendê-lo; que é difícil tocá-lo dissolvendo num gesto ou palavra a sombra compacta que dele me separa. Em suma, é muito difícil compreender e amar meu semelhante, esse ser que não se sabe e na própria insensatez se confunde e quase sempre maltrata ou põe a perder as próprias coisas que mais elevadamente deseja e acredita amar.

Diário - Porto de Galinhas, 1 de julho de 1998.

sábado, 9 de julho de 2011

Amor, Narcisismo, Solidão...



Todo mundo se queixa do estado precário das relações subjetivas. Embora todos aspiremos à realização de uma vida mais bela e harmoniosa, e todos aparentem entender esses altíssimos fins humanos inseparáveis do convívio com o semelhante, em tudo e todos prevalecem a incompreensão, a impaciência, o tédio, quando não a opressão e o ódio. Mais frequente ainda, sobretudo no âmbito das relações prolongadas, é a substituição do amor ou da amizade pela indiferença. Não é difícil observar a incidência desse fenômeno nas relações entre pessoas casadas há muito tempo, ou nas relações gerais entre familiares. Incapazes de romper a cadeia opressiva da indiferença confortável, preferem acomodar-se a esse estado de coisas.

Dar o salto para além dessa fronteira, dissolvendo assim um pacto implícito de segurança fundada na indiferença, é algo que aparenta exigir muita coragem. E os que a têm e a exercitam são no geral as mulheres. Talvez porque imprimam tão alto significado existencial à realização amorosa e familiar, as mulheres tendem a ser mais resistentes a essas formas de degradação do amor cujo limite é a indiferença acotovelada no cotidiano doméstico e na própria cama repartida.

Os homens, em contrapartida, inclinam-se para a acomodação tecida de hipocrisia, traição sem culpa aparente ou mesmo a duplicidade que às vezes envolve a constituição inconfessada de uma segunda família. Formados dentro de condições culturais que tendiam sempre a lhes favorecer os interesses egoístas em detrimento dos da mulher, é compreensível sua melhor adaptação à traição conjugal, à duplicidade e ao reduzido peso que a família passa a exercer na economia da vida subjetiva.

Ousando avançar aqui uma tese discutível, acredito que as diferenças entre homem e mulher não se esgotam no plano cultural, como decerto fica sugerido nos parágrafos precedentes. Apontando para a zona genital, disse certa feita Gertrude Stein que no homem tudo aí começava para acabar em qualquer lugar. Na mulher, contrariamente, tudo principiaria em qualquer lugar para fatalmente acabar na zona genital. À parte o feitio trocista do episódio, julgo que sua intenção era no homem sugerir uma libido especificamente centrífuga contraposta à libido centrípeta da mulher. Isso não exclui necessariamente a influência dos fatores culturais, mas sem dúvida põe a ênfase na constituição biológica de um e de outra.

Ora, se os valores e práticas humanos comprovadamente variam na medida em que varia o ambiente cultural, o extremo dessa variação não me parece autorizar o desprezo pelas diferenças de ordem biológica. A evidência de algumas dessas diferenças é tal que chega a parecer simplesmente sensato admiti-la. No entanto, sabe-se o quanto o desenvolvimento da antropologia cultural, com nítidas ramificações sintetizáveis no princípio teórico do relativismo cultural, induziu a excessos. É assim hoje rotineiro ouvir-se alguém afirmar que tudo é cultural, que tudo depende das formas específicas adotadas pelas culturas particulares aparentemente irredutíveis, em qualquer dimensão, a proposições de validade universal.

Eu próprio, no exercício da profissão de professor de sociologia, perdi a conta de quantas vezes me envolvi em disputas, quase sempre sem força de convencimento intelectual, com representantes das formas difusas de ideologia feminista, homossexual, racial, etc. Quantas vezes, em meio ao calor dessas disputas, não lembrei com insucesso a meus interlocutores que estou, enquanto homem, privado do poder de engravidar, menstruar, amamentar, etc.? Essas diferenças de ordem biológica não vão decididamente atuar no modo como homem e mulher concebem a atividade sexual, no modo como a praticam, no modo como emocionalmente a vivem? Acredito que sim. O culturalista, entretanto, diria que não, que tudo não passa de condicionamento ou conformação cultural das disposições humanas fundamentais.

Voltando entretanto à questão inicialmente enunciada, presumo que conviver de modo compreensivo, ou simplesmente satisfatório, foi e sempre será difícil. Talvez a natureza de que somos feitos, máquinas falíveis e fundamentalmente egocêntricas, imponha sempre limites variáveis à realização de uma melhor humanidade convivida. Mas também neste ponto importaria advertir para o risco de uma visão essencialista. Se me parece verdadeiro o peso exercido pelos fatores variáveis, associados à cultura nas suas concreções espaciais e temporais, eles não anulam à força atuante, quem sabe modeladora, das constantes humanas. Negar aqueles, os fatores variáveis, seria incorrer numa visão essencialista. De outro lado, negar estas, as constantes humanas, seria reivindicar uma visão puramente imanente ou histórica para a nossa insolúvel humanidade.

Fica assim claro que busco entender essas relações complexas dentro de uma perspectiva regida pelo princípio do equilíbrio entre os extremos. O meio termo é sempre a posição dos seres sensatos. Mas também dos medíocres e vacilantes, não me esqueço. Talvez se possa historicamente creditar aos extremistas, não aos sensatos, as grandes transformações e avanços da humanidade. Também as grandes destruições e retrocessos, acrescentaria. Mas noto que voltei a me perder em digressões.

O que intentava dizer ao retomar a questão primeiramente enunciada era que o agravamento das nossas dificuldades de convívio me parece assentar sobre a variável que eu designaria, seguindo a lição crítica de Christopher Lasch, cultura do narcisismo. Valendo-me de expressões que sei exercerem funções mais retóricas que propriamente explicativas, diria que o capitalismo de consumo precisa de uma ética da permissividade e de uma cultura narcisista para operar de modo mais integrador e eficaz. Pois como conciliar o consumo tal como hoje o vivemos com uma ética da austeridade ou uma cultura na qual o indivíduo desprendidamente se orientasse pelo reconhecimento do outro, ou pelos interesses impessoais e abstratos?

Os fins visados pelo capitalismo do consumo, somados à aceleração do tempo histórico que continuamente dissolve e refaz expectativas e identidades, concorre para a articulação de uma ética e de uma cultura centradas no eu narcísico. Inseguro dentro de um mundo que não compreende nem tem poderes para controlar, o indivíduo contemporâneo cede às artimanhas sedutoras da indústria da publicidade que sistematicamente o assedia incitando-o a ser “ele mesmo”, a dar importância a si mesmo, a cuidar de sua beleza, seu corpo. Pior ainda, manipulando desejos humanos profundos, como o da felicidade e do prazer irrestrito, vende ao Narciso infeliz uma caricatura da felicidade e do desejo ilusoriamente confundindo o princípio do prazer com a própria realidade.

Se a constituição produzida pela revolução americana frisa “the pursuit of happiness” como um dos direitos humanos fundamentais, a indústria da publicidade converteu esse direito num dado ou num produto mágico da volição individual. Como estranhar, depois de tudo, a presença generalizada e ofensiva do Narciso sempre se mirando nas águas e vendo em cada outro um mero lago espelhado docilmente a serviço do seu desejo de autoabsorção. Trocando em miúdos esse fenômeno psicocultural típico da nossa época, hoje qualquer idiota se acredita espontaneamente autorizado a pensar que o mundo tem a medida do seu umbigo. Qualquer imbecil fala hoje obsessivamente de si próprio presumindo que existimos apenas para ratificar sua grandiosa existência.

Incapaz de se ver e medir assim como é, o Narciso contemporâneo se queixa do mundo, da impossibilidade de convívio satisfatório sem nunca se dar conta de que nele reside um dos fundamentos dessa impossibilidade. Ainda que fosse excepcionalmente interessante e sedutor, culto e investido de múltiplos talentos, quem o suportaria entregue ao exercício compulsivo de falar de si próprio, de ver tão só sua própria imagem projetada no espelho a que reduz o outro? Se o Narciso dotado dessas virtudes seria cansativo e inconvivível, o que dizer do Narciso banal, do cretino qualquer prisioneiro de sua mesmice, de sua visão estreita, quando não apenas boçal?

Diante desse quadro, somente a incapacidade de viver sua própria vida e sua própria e fatal solidão explica a aderência tenaz do homem à vida gregária. Já não me refiro a Narciso, que é constitucionalmente incapaz de tolerar a solidão, para não dizer refazê-la a ela imprimindo um sentido mais verdadeiro e autônomo de existência individual, mas aos seres humanos em geral.

Num belo livro dedicado ao tema da solidão, Anthony Storr retraça através de séculos da história da cultura as múltiplas maneiras e idiossincrasias mobilizadas por homens dotados de excelência inventiva para dar sentido a suas existências solitárias. Enfatizando a dimensão criativa e mesmo necessária da solidão, demonstra Anthony Storr que os relacionamentos interpessoais não constituem a única via de realização humana, como correntemente se pensa e sobretudo se vive. Sintetizando o objetivo fundamental do seu livro, eis como se pronuncia: “We all need to find some order in the world, to make some sense out of our existence. Those who are particularly concerned with such a search bear witness to the fact that interpersonal relationships are not the only way of finding emotional fulfilment” ( Anthony Storr, Solitude. London: Flamingo, 1989, p. 167).

Como entretanto procedemos de modo oposto a este observado e fecundamente demonstrado no desenvolvimento do livro de Storr, persistimos em acreditar que somente no convívio, quando não na pura necessidade de vida gregária, podemos encontrar sentido e realização na vida. A elevada incidência de insatisfação e desgosto de conviver parece claramente sugerir o quanto somos insensatos em proceder fixados num desejo – que é também necessidade humana, não o nego – rotineiramente contrariado no âmbito da família, das relações amorosas, profissionais, além das inumeráveis formas gregárias de relação. Frisaria aqui, como de resto já o fiz na intercalada do período precedente, que não estou negando a necessidade de convívio, mas apenas nossa cegueira em afirmar que seja a única necessidade fundante da nossa experiência de realização emocional.

Diário - Recife, 5 de fevereiro de 1998.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Bauman, teórico do mundo líquido


Uma das características mais desconcertantes do mundo em que vivemos consiste na aceleração sem precedente histórico das mudanças culturais. Valho-me da expressão genérica, mudanças culturais, visando condensar um complexo de situações humanas geradoras de incerteza, desorientação e medo difuso patentes tanto na esfera pública das relações humanas quanto na privada. É claro que a premência e magnitude desses problemas mobilizaram inúmeros estudiosos das ciências humanas que há algumas décadas sobre eles se debruçam. Poderia citar, por exemplo, Christopher Lasch e seus dois livros fundamentais lançados em fins da década de 1970 e início da seguinte: A Cultura do Narcisismo e O Mínimo Eu. Também, no âmbito estrito da sociologia, Anthony Giddens, Pierre Bourdieu, John Thompson, Stuart Hall e Mike Featherstone. A seara é fértil e vária. Portanto, longe de mim a presunção de conhecê-la amplamente ou citar estudiosos que na verdade nunca li. Nenhum deles, todavia, alcançou no Brasil difusão comparável à de Zygmunt Bauman.

No que concerne à bibliografia sociológica, ou mais amplamente à bibliografia das ciências sociais, Zygmunt Bauman constitui um fenômeno singular. Afinal, que outro cientista social tem tantos títulos disponíveis no mercado editorial brasileiro? Exemplificando com dados mais precisos, a editora Zahar publicou num intervalo de tempo relativamente curto nada menos do que vinte e três livros desse sociólogo prolífico, fascinante, mas também, convenhamos, já um tanto repetitivo. É o preço fatal pago por todos que buscam a glória ou são colhidos pela rede insaciável do consumo. Quero dizer, à margem a qualidade efetiva da sua obra, receio que Bauman e sua própria obra sucessiva e inesgotável paguem tributo à rotinização entranhada nas engrenagens do sucesso.

A trajetória biográfica e intelectual de Bauman também se distingue por sua singularidade. Judeu polonês nascido no entre guerras mais devastador da história humana e logo atirado aos horrores da Segunda Guerra Mundial, da qual participou alistando-se como combatente no exército russo, Bauman consagrou-se como sociólogo tardiamente, assim como Norbert Elias, escrevendo numa língua que é de fato e cronologicamente a terceira que maneja: a inglesa. Antes dela vieram a polonesa, claro, e em seguida a russa. Esta singularidade da biografia de Bauman evoca a de um outro polonês que, ao adotar a língua inglesa e tornar-se cidadão inglês, produziu uma das mais altas expressões da literatura do século 20. Refiro-me, claro, a Joseph Conrad.

Sem a intenção de explicar o sucesso editorial da obra de Bauman, penso que ele soube explorar a grande demanda do leitor por teorias e saberes passíveis de o esclarecerem, se possível guiá-lo, através do mundo confuso em que vivemos. As evidências dessa demanda são múltiplas e facilmente assinaláveis. Elas se revelam, por exemplo, na busca ansiosa pelo discurso do especialista encontradiço na mídia. O melhor exemplo dessa demanda, sintoma de nossa desorientação dentro de um mundo que não mais compreendemos e de resto nos priva de referenciais sustentáveis, é o dos pais carentes da mais elementar autonomia educativa. É irônico que uma das promessas e realizações parciais da modernidade, o princípio da autonomia individual, tenha desaguado na realidade sem leme e vela que é o barco da família contemporânea.

Outra evidência dolorosa do mundo líquido em que vivemos se espelha na volatilidade e na dissolução da vida íntima. Aludo aqui não apenas à diluição das relações amorosas, à crise aguda e progressiva do amor romântico, mito que tenazmente resiste a todas as traumáticas agressões da realidade, mas também à família, instituição nuclear da vida íntima assaltada por forças desagregadoras. Aludo ainda, como extensão desse capítulo pertinente à vida íntima, à corrosão da própria noção de amizade. Fosse o caso de imitar desdobrando a metáfora do amor líquido ou da vida líquida difundida pela obra de Bauman, diria que o Facebook inverteu o sentido da amizade ao instituir as listas de amigos. Quem acaso tiver a curiosidade de conferir esse fenômeno constatará que quase não existe cadastrado do Facebook com menos de 100 amigos listados na sua página. Há quem os tenha aos milhares, como se grupo de amigos fosse a massa volátil que ocupa uma praça, um estádio de futebol, uma praia em feriado de sol e logo se dispersa e dissolve. Essa é agora a noção corrente de amizade e relacionamento íntimo. Somos uma multidão de estranhos acotovelando-se em listas virtuais intercambiando vidas de simulacro e consumo.

Outra evidência do nosso desamparo e desorientação ética e intelectual é a categoria de obras designada como autoajuda, tão importante no mercado editorial que há anos ocupa espaço exclusivo nas cotações de livros das páginas culturais ao lado das categorias ficção e não-ficção. A isso tudo poderíamos acrescentar, em planos culturais mais baixos, o reencantamento religioso da cultura contemporânea manifesto na proliferação de todo tipo de seita, religião e esoterismo místico. Em suma, a realidade sociocultural que os sociólogos designam como pós-modernidade é um balaio de gatos.

A propósito, a terminologia científica que intenta explicá-la, a pós-modernidade, se embaralha na formulação conceitual dos fenômenos que analisa. Quero noutras palavras dizer que inexiste consenso mesmo entre grandes estudiosos acerca do que sejam modernidade e pós-modernidade. Para começar, penso que são conceitos muito infelizes, pois remetem diretamente a significados temporais que a realidade móvel do mundo desmancha. O próprio Bauman, por muitos identificado como o teórico da pós-modernidade, acabou recusando o conceito no desenvolvimento da sua obra. Nesse sentido, é recomendável que o leitor atente para a Nota do Editor aposta ao sumário de um dos livros que inspiram este artigo: Vida em fragmentos. Como vem acrescido de um subtítulo, “Sobre a ética pós-moderna”, a nota esclarece que Bauman adotou o conceito modernidade líquida em lugar de pós-modernidade.

Bauman atende à larga demanda acima indicada em parte devido a suas qualidades estilísticas e processos de exposição dissonantes do discurso típico da produção acadêmica. Enquanto esta é facilmente identificável graças a suas linhas de padronização discursiva, nas quais proliferam o jargão obscuro e os argumentos de autoridade escorados num cipoal de notas de pé de página passível de desencorajar o leitor mais tenaz e masoquista, Bauman adota uma escrita fluente, presa à terminologia científica dentro dos termos estritamente necessários.

As características formais da sua obra que acabo de assinalar constituem indício de uma formação sociológica anticonvencional ou isenta dos padrões instituídos pela cultura acadêmica. Recorrendo ao outro livro no qual me baseio, Bauman sobre Bauman, nele Bauman explicita sua compreensão da sociologia. Ao invés de a conceber como uma disciplina especializada, concebe-a antes de tudo como uma disciplina inspirada pela ambição de compreender a totalidade da experiência humana. Coerente com essa concepção, movimenta-se livremente através da filosofia, da literatura, da política, em síntese, do conjunto da cultura humanística para explicar ou pelo menos melhor esclarecer a experiência que vivemos dentro do mundo líquido que habitamos.
A linguagem empregada por Bauman é rica de metáforas típicas de uma narrativa literária. Essa qualidade formal da sua obra é reveladora não apenas da concepção sociológica que abraça, mas também de sua aderência à literatura como fonte primacial de conhecimento da experiência humana. O leitor que tenha algum conhecimento de sua obra está por certo afeito às frequentes alusões literárias extraídas da obra de Borges, Kafka, Robert Musil, Italo Calvino...

É também muito significativa sua afinidade com a obra de um sociólogo cuja obra fundamental foi escrita à margem das instituições acadêmicas do seu tempo. Refiro-me a Georg Simmel, que entre outras coisas o ensinou a observar a realidade social como uma realidade estranha o suficiente para poder ser concebida como potencialmente impregnada de muitas alternativas de mudança social. Bauman aliás acentua essa sua crença nas possibilidades de alternação social para refutar os críticos que o acusam de ser pessimista. Diria ainda que Bauman aprendeu com Simmel a fina sensibilidade com que capta na trama das relações sociais tipos sociais como o flâneur ou o andarilho, que de imediato nos remete às intuições ensaísticas de Walter Benjamin escrevendo sobre Baudelaire e a modernidade novecentista, o peregrino, o vagabundo, o turista. Esses tipos estão muito bem estudados em Vida em fragmentos. Lendo essas páginas surpreendemos a sombra inequívoca das páginas que Simmel consagra a tipos sociais como o estranho e o pobre.

A metáfora que mais importa considerar numa apreciação qualquer da obra de Bauman é sem dúvida a da liquidez do mundo em que vivemos. Começando pelo mais óbvio, a alusão aos títulos de algumas de suas obras, são cinco as que estampam este qualificativo: Amor Líquido, Medo Líquido, Modernidade Líquida, Tempos Líquidos e Vida Líquida. A estes títulos poderia adicionar outros que bem podem ser interpretados como desdobramentos semânticos da metáfora que aqui considero. Os títulos adicionais seriam: O mal-estar da pós-modernidade, Modernidade e ambivalência, A sociedade individualizada, Vida a crédito, Vida para consumo e Vidas desperdiçadas, além logicamente do já citado Vida em fragmentos.

O termo líquido encerra grande riqueza e variedade de sentidos tanto compreendidos na linha denotativa quanto na conotativa. No primeiro caso, líquido remete à noção de fluidez, corrente, movimento, indeterminação, matéria que prontamente se amolda à forma do recipiente que a contém. A realidade da matéria líquida que talvez melhor se ajuste ao exemplo que indico é a da água, acomodável à forma de qualquer recipiente que ocupe, preencha ou onde seja vertida. Outros exemplos poderiam ser detectados no campo da ciência física, assim como no da biologia. O potencial semântico do termo desdobra-se ainda na oposição entre sólido e líquido. Bauman, aliás, recorre com frequência a essa oposição para distinguir a modernidade sólida da líquida. Mas o sentido que mais importa ressaltar para bem compreender o conceito nuclear da obra de Bauman é de ordem conotativa patente no caráter metafórico do conceito. Melhor enfim passar a palavra ao próprio autor, que pode bem melhor que eu ou qualquer comentador pronunciar-se em termos mais precisos sobre sua obra:
“Diferentemente da sociedade moderna anterior, que chamo de ‘modernidade sólida’, que também tratava sempre de desmontar a realidade herdada, a de agora não o faz com uma perspectiva de longa duração, com a intenção de torná-la melhor e novamente sólida. Tudo está agora sendo permanentemente desmontado mas sem perspectiva de alguma permanência. Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da ‘liquidez’ para caracterizar o estado da sociedade moderna: como os líquidos, ela caracteriza-se pela incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades ‘autoevidentes’. Sem dúvida, a vida moderna foi desde o início ‘desenraizadora’, ‘derretia os sólidos e profanava os sagrados’, como os jovens Marx e Engels notaram. Mas enquanto no passado isso era feito para ser novamente ‘reenraizado’, agora todas as coisas, empregos, relacionamentos, know-hows etc tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis. A nossa é uma era, portanto, que se caracteriza não tanto por quebrar as rotinas e subverter as tradições, mas por evitar que padrões de conduta se congelem em rotinas e tradições”. ( A citação é extraída de uma entrevista que Bauman concedeu a Maria Lúcia Pallhares-Burke. Ver Tempo Social, vol. 16, no. 1, São Paulo, junho de 2004).

Peço desculpas ao leitor pela citação demasiado extensa. Se assim procedi, foi por supor que o próprio Bauman traduziria de forma mais compacta e precisa o que intentei fazer em parágrafos precedentes. Concluiria frisando a importância do conjunto da sua obra já em larga medida disponível para o leitor brasileiro, como de início salientei. Sem dúvida, ele lança muita luz sobre o mundo confuso que habitamos. Mas não falta quem identifique na sua obra uma sólida convicção pessimista em face do mundo líquido que ele incansavelmente procura explicar. Bauman, todavia, não se reconhece como um pessimista. Para ele, otimista é quem acredita que vivemos no melhor dos mundos possíveis. O pessimista, por outro lado, critica o mundo tal como é inspirado pela convicção de que é possível torná-lo melhor. Se é esta a distinção adequada entre o otimista e o pessimista, tomo com certeza o partido do pessimismo abraçado por Bauman.

Bauman sobre Bauman. Diálogos com Keith Tester. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
Vida em fragmentos – sobre ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

sábado, 2 de julho de 2011

Macunaíma


Mário de Andrade publicou Macunaíma em 1928, ano fundamental na história do modernismo. Além desta obra, consagrada como a obra-prima do líder do movimento, destacam-se no mesmo ano Retrato do Brasil, de Paulo Prado, e a antropofagia, vertente radical e anárquica do modernismo. A antropofagia está ainda associada à Revista de Antropofagia e ao Manifesto Antropófago, de autoria de Oswald de Andrade, que foi sem dúvida o modernista mais combativo e radical durante esse período de grandes inquietações e mudanças na cultura brasileira.

Mário de Andrade descobriu Macunaíma lendo o etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg, estudioso das culturas indígenas da Amazônia. Na época em que o leu, Mário já andava mergulhado na busca da cultura brasileira e da nossa identidade cultural. Ao se deparar com o herói mitológico Macunaíma, logo foi tomado pela intuição de que ele condensava características marcantes do brasileiro. O livro foi escrito de um jato, durante uma semana de redação febril em dezembro de 1926. Em seguida, conforme seu método de composição, Mário reescreveu e cortou muita coisa. Além disso, aprofundou suas pesquisas e estudos relativos à cultura brasileira, muito enriquecidos pelas duas viagens que fez ao Norte e Nordeste do Brasil. Essas viagens,que designou como viagens etnográficas, estão documentadas em várias de suas obras e arquivos mais tarde explorados por alguns dos seus discípulos, notadamente Oneyda Alvarenga. O livro que melhor documenta as viagens é O Turista Aprendiz.

Embora escrita inicialmente em 1926, como observei acima, Macunaíma somente foi publicada em 1928. Lida ainda hoje como símbolo do brasileiro, a obra é bem mais complexa e portanto encerra muitos outros significados. O próprio Mário contribuiu para validar essa leitura estreitamente nacionalista. Ao mesmo tempo, como era típico de sua personalidade múltipla e contraditória, cuidou também de desmentir essa leitura nacionalista ao ressaltar que o livro simbolizava também o latino-americano, não apenas o brasileiro. Indo além, afirmou depois que Macunaíma era um símbolo do homem moderno. Seguindo essa orientação crítica, Gilda de Mello e Souza concede prioridade a uma leitura universalista (leia-se antes de tudo europeia) num ensaio que é provavelmente a melhor interpretação do livro: O tupi e o alaúde.

Macunaíma nasce no fundo da mata virgem (isto é, numa tribo amazônica) com características físicas que já denotam o tema da miscigenação tão caro aos nossos nacionalistas. Ele é índio e ao mesmo tempo negro retinto. Mais tarde torna-se branco graças a um dos muitos expedientes de magia que impregnam o livro. Utilizando fontes da mitologia indígena, além de uma enormidade de documentos que traduzem a riqueza e variedade do nosso folclore e da nossa cultura popular, Mário de Andrade se vale da magia como um dos princípios de composição da trama. Por isso a narrativa foge aos padrões convencionais da lógica, já que é repleta de deslocamentos tanto geográficos como temporais. Mário valeu-se muito desse recurso no livro para realizar um dos ideais da sua concepção da cultura brasileira. O recurso ao qual me refiro é o da desregionalização da narrativa. Noutras palavras, funde intencionalmente traços culturais das diferentes regiões brasileiras com o propósito de integração numa unidade nacional.

A leitura nacionalista, reforçada em argumento do próprio Mário, chama nossa atenção para o subtítulo do livro: o herói sem nenhum caráter. Como o próprio Mário explicou, o termo caráter não deve ser lido no seu sentido restritamente moral, que é o mais corrente. Macunaíma não tem caráter, segundo Mário, porque é privado de características culturais e psicológicas definidas ou constantes. É por isso que a ação do livro tanto ressalta suas contradições ou ausência de lógica e coerência psicológica. Exemplificando, Macunaíma é valente e covarde, mentiroso e sincero, preguiçoso, mas movido por uma vitalidade fascinante, um desejo irrefreável de vida e prazer. O que importa antes de tudo reter, no caso, é a intenção com que Mário sintetiza nesses traços da personagem o que lhe parecia simbólico da nossa carência de uma identidade cultural consistente e estável.

A preguiça constitui outro traço saliente da obra. Macunaíma está sempre repisando esta frase: “ai, que preguiça”, como um refrão que atravessa toda a narrativa. Esse traço relativo à preguiça foi muito repetido através da nossa história como característico do brasileiro. Para ser mais preciso, leia-se o brasileiro escravo, o negro que compreensivelmente fugia ao trabalho forçado sempre que possível. É compreensível que numa economia baseada no trabalho escravo o trabalhador use de todos os meios e subterfúgios para escapar de um trabalho, ou pelo menos aliviá-lo, que é vivido como castigo e punição. O próprio Mário, aliás, desmente esse mito. Embora tenha ironicamente celebrado a preguiça (o primeiro artigo que publicou tinha como título: “A divina preguiça”), trabalhou a vida inteira com um sentido de disciplina, método e tenacidade admiráveis.

Pontuando os extremos da nossa formação sociocultural, Macunaíma vai do fundo da mata virgem para a cidade de São Paulo, centro do capitalismo brasileiro já fervilhante de imigrantes, fábricas, aceleração do crescimento urbano e muitas outras características da nossa cultura moderna. O livro de Mário é extraordinário nos efeitos estéticos e ideológicos que extrai desse antagonismo observável entre o primitivo arrancado do fundo da cultura indígena para o polo mais avançado do capitalismo brasileiro. O espanto e estranhamento do primitivo lançado no bojo da civilização técnica constitui um dos momentos altos do livro.

Outro traço marcante da obra é a sensualidade. A intenção de Mário, ao descrever em páginas de forte e apaixonante erotismo a sensualidade do herói Macunaíma, foi ressaltar a sensualidade marcante da nossa cultura. Ela se espelha na parte inicial da narrativa, quando Macunaíma vive com sua tribo na floresta amazônica. A parte culminante desse tema está contida no capítulo consagrado ao amor de Macunaíma e Ci, Mãe do Mato, índia guerreira com quem Macunaíma luta e, ajudado pelos irmãos, Jiguê e Maanape, domina e possui. Ela se apaixona por ele, ele por ela, e então Ci se torna o grande amor de Macunaíma, “o amor primeiro que não tem companheiro”. Ela dá de presente ao amado a pedra mágica muiraquitã, além de um filho. O filho morre, ela também. Não bastasse tanto, o herói inconsolável perde a pedra mágica, que acabou nas mãos do Gigante Piaimã, seu antagonista. Macunaíma acabou indo para São Paulo, acompanhado pelos irmãos, ao descobrir que o Gigante se apropriara da pedra mágica e vivia em São Paulo.

Deixando o enredo de lado, chamaria a atenção do leitor para a linguagem de Macunaíma, que deu margem a muita polêmica. A crítica negativa atacou com energia o artificialismo do estilo adotado por Mário na composição da obra. Dentro desse grupo destacam-se Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, diria todo o grupo de ficcionistas que representam a literatura hegemônica na década de 1930. Mesmo leitores favoráveis à obra – como é o caso de Manuel Bandeira, grande amigo de Mário e seu principal correspondente - criticaram os experimentalismos de linguagem e estilo adotados pelo autor, que de modo algum correspondem a uma suposta fala ou língua brasileira, causa que Mário abraçou com paixão e espírito militante, como era do seu feitio. Essa característica da obra pode de fato desencorajar o leitor mais convencional ou preguiçoso.

Como toda obra de caráter experimental, típica daquele momento do modernismo brasileiro, assim como dos movimentos de vanguarda que pipocaram na literatura do início do século 20, Macunaíma exige bastante do leitor. Exige tanto devido a seus traços de linguagem e estilo, como já acentuei, quanto à própria matéria recriada ficcionalmente por Mário de Andrade. Refiro-me mais claramente às fontes utilizadas pelo autor. Já mencionei a obra de Koch-Grünberg, na qual Mário descobriu Macunaíma e imensa documentação relativa às culturas tribais da Amazônia. A esta fonte somam-se muitas outras eruditamente anotadas e comentadas por M. Cavalcanti Proença num livro essencial para quem queira penetrar as entrelinhas da obra, sua impressionante riqueza de elementos culturais expressos em mitos, lendas, ditos populares, frases feitas, regionalismos e farta documentação etnográfica. O livro de M. Cavalcanti Proença é Roteiro de Macunaíma. Além disso, Mário também aproveitou muito da obra dos cronistas e historiadores coloniais do Brasil. Como pouco infelizmente conhecemos desse legado cultural, não é de surpreender o estranhamento que um livro como Macunaíma causa de imediato ao leitor, mesmo o leitor culto treinado na leitura da narrativa literária convencional.

O fato de ser ao mesmo tempo uma obra-prima indiscutível e um romance experimental (na verdade, Mário optou por classificar sua narrativa como rapsódia, não romance), provocou o surgimento de uma bibliografia crítica considerável. O leitor pode consultar essa bibliografia na História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi. Também a edição crítica de Macunaíma, coordenada por Telê Porto Ancora Lopez, contém rica documentação crítica. Mencionaria ainda a adaptação cinematográfica da obra, dirigida por Joaquim Pedro de Andrade, estrelando Grande Otelo e Paulo José interpretando respectivamente o Macunaíma negro e o Macunaíma branco.