sexta-feira, 15 de julho de 2011
Autoengano
Compareço à Arcádia, em Apipucos, para assistir a uma palestra de Eduardo Giannetti seguida do lançamento do seu último livro, Autoengano. Embora não conheça ainda o livro – falta-me de resto tempo para o ler em meio às tantas leituras acumuladas neste mês de férias sem efetivo repouso intelectual – fui à Arcádia já razoavelmente ilustrado pela discussão em torno do livro promovida pelo programa Roda Vida, segunda-feira passada.
Giannetti é um economista de credenciais bem pouco ortodoxas na cena intelectual brasileira. Pois, não obstante pense aqui em Celso Furtado ou Caio Prado Jr., são poucos os que entre nós praticam uma economia distanciada de padrões econométricos demasiado ciosos de fidelidade à ciência positiva. Declarando-se ele próprio filiado à tradição da economia política, quando não francamente filosófica, faz questão de lembrar a obra pouco convencionalmente econômica de economistas como Adam Smith, John Stuart Mill e Karl Marx.
Seu distanciamento da corrente dominante deste século se evidencia ainda no próprio tratamento analítico conferido ao tema do autoengano. Pois ao frisar que o indivíduo é o locus desse fenômeno complexo, que investiga não só no âmbito das relações humanas, mas também no próprio reino animal – não humano, esclareço – e vegetal, Giannetti atenua o peso dos fatores especificamente sociológicos.
Algo que me inspira simpatia no seu comentário introdutório acerca da relação entre sua linha de abordagem da matéria e a filosofia analítica é o relevo que empresta na composição da obra a duas características básicas desta orientação teórica: a definição precisa do objeto e a clareza expositiva. Acrescenta, para ser exato, uma terceira característica que infelizmente me escapa à memória. Outro dado que igualmente me inspira simpatia é sua resistência a que se confunda sua exploração analítica com uma linha de produção editorial hoje largamente consumida, e no geral intelectualmente desonesta, banalizada sob o título de literatura de autoajuda.
Voltando ao ponto referente ao indivíduo encarado como o locus do autoengano, torna-se de fato difícil propor, ainda que à margem de qualquer intenção de receituário, medidas de efetiva superação das manifestações mais rotineiras de autoengano. Pois nossas práticas humanas, em qualquer terreno imaginável, aparentam pautar-se por desejos irremovíveis de autoengano. Embora modestamente me vincule à tradição racionalista, e possa no meu caso pessoal aferir como o exercício da razão analítica e sobretudo autoanalítica alterou decisivamente comportamentos de autoengano, julgo ter antes de tudo aprendido a impossibilidade de subordinar a inclinação imperativa para o autoengano aos dispositivos esclarecedores da razão.
Seria aqui interessante propor dois exemplos passíveis de atestar o quanto somos resistentes ao exercício dessa função corretiva da razão. O primeiro, o do autoengano ideológico gestado e difundido por intelectuais influentes, teve efeitos políticos desastrosos neste século. Apesar de se representarem como sismógrafos da consciência coletiva, Sartre é o exemplo paradigmático dessa consciência crítica autodelegada, esses intelectuais teimaram até o fim em acreditar, ou pelo menos publicamente declarar, as virtudes do socialismo e a magnitude intelectual e moral de tiranos do porte de Stalin.
Lembro-me de que minha própria geração se formou embalada por essas gigantescas mentiras. Um livro de Georges Pollitzer, Princípios de Filosofia, funcionou como manual de iniciação ao marxismo para mim e muitos dos meus amigos de esquerda. Nele Stalin era incensado como grande cientista, teórico social extraordinário e, literalmente, benfeitor da humanidade. Afrontar essas mentiras, e dissolvê-las com fatos acessíveis a qualquer observador isento, era fazer o jogo da direita, era concorrer para o enfraquecimento da luta revolucionária. Ademais, custava ao crítico, com frequência, a pecha de renegado, lacaio do capitalismo e desqualificações igualmente intolerantes. Intelectuais independentes e autenticamente dedicados ao livre exercício da razão como Bertrand Russell, George Orwell, André Gide, Albert Camus, Arthur Koestler foram alvo de desprezo e calúnia.
O dado irônico nesse autoengano do intelectual revolucionário consiste no racionalismo crítico que sempre reivindicou para sua prática ideológica. Identificando na sua crítica a materialização da razão histórica, jamais duvidou de que no seu modo de ser e atuar dentro da realidade a teoria e a prática encarnavam a expressão mais avançada da consciência autêntica e da energia revolucionária que no futuro instauraria os ideais fundamentais da razão, da justiça e da existência social verdadeira. Investido de tão poderoso autoengano, como poderia perceber as grandiosas mentiras que produzia ou validava, além da intolerância com que investia contra quem ousasse afirmar a verdade do socialismo real e do fracasso evidente que foram todas as tentativas orientadas para a sua realização no curso deste século?
Uma variante desse primeiro exemplo aqui já um tanto desenvolvido seria a ascensão do nazismo. Parece-me insuficiente a explicação correntemente proposta – inclusive pelo próprio Giannetti, que a reitera no curso da sua palestra – pela tradição historiográfica e sociológica satisfeita em atribuir a adesão dos alemães à ideologia nazista à humilhação imposta pelo Tratado de Versailles, à hiperinflação e à astúcia maquiavélica dos líderes nazistas. Esses fatos históricos concorreram sem dúvida para a ascensão do nazismo, mas estão longe de constituir uma explicação racional satisfatória.
O segundo exemplo, solo fértil onde germina o autoengano entanto espantosamente quase silenciado tanto na palestra quanto no prolongado debate que a ela se seguiu, é o da experiência amorosa. Num dado momento, senti-me tentado a pedir a palavra para narrar uma passagem exemplar do conto “Corações Solitários”, de Rubem Fonseca. Um personagem, símbolo dessa anônima legião de infelizes manipulada pela máquina de enganos que são as seções de aconselhamento de revistas pouco ou nada recomendáveis, envia uma carta ao protagonista do conto, que vive do expediente enganador indicado neste período. Já que possuo o livro, será mais simples transcrever o episódio:
“Nathanael. Sabe o que é duas pessoas se gostarem? Éramos nós dois, eu e Maria. Meu prato predileto é arroz, feijão, couve à mineira, farofa e linguiça frita. Imagina qual era o de Maria? Arroz, feijão, couve à mineira, farofa e linguiça frita. Minha pedra preciosa preferida é o Rubi. A de Maria, estás a ver, era também o Rubi. Número da sorte o 7, cor o Azul, dia Segunda-Feira, filme, de Faroeste, livro O Pequeno Príncipe, bebida Chope, colchão o Anatom, clube o Vasco da Gama, música o Samba, passatempo o Amor, tudo igualzinho entre eu e ela, uma maravilha. O que nós fazíamos na cama, rapaz, não é para me gabar, mas se fosse no circo e a gente cobrasse entrada nós ficávamos ricos. (...) Mas não era apenas isso que nos ligava. Se você não tivesse uma perna eu continuaria te amando, me dizia ela. Se você fosse corcunda eu não deixaria de te amar, eu respondia. Se você fosse surdo-mudo eu continuaria te amando, dizia ela. Se você fosse vesga eu não deixaria de te amar, eu respondia. Se você fosse barrigudo e feio eu continuaria te amando, dizia ela. Se você fosse toda marcada de varíola eu não deixaria de te amar, eu respondia. Se você fosse velho e impotente eu continuaria te amando, ela dizia. E nós estávamos trocando essas juras quando uma vontade de ser verdadeiro bateu em mim, funda como uma punhalada, e eu perguntei a ela, e se eu não tivesse dentes, você me amaria? e ela respondeu, se você não tivesse dentes eu continuaria te amando. Então eu tirei a minha dentadura e botei em cima da cama, num gesto grave, religioso e metafísico. Ficamos os dois olhando para a dentadura em cima do lençol, até que Maria se levantou, colocou um vestido, e disse, vou comprar cigarros. Até hoje não voltou. Nathanael, me explica o que foi que aconteceu. O amor acaba de repente? Alguns dentes, míseros pedacinhos de marfim, valem tanto assim? Odontos Silva”. (“Corações Solitários”, in Rubem Fonseca, Feliz Ano Novo. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 36-7).
Várias vezes utilizei este episódio do conto de Rubem Fonseca em diferentes cursos da UFPE – psicologia, jornalismo, serviço social – com o propósito de proceder a uma crítica da idealização do objeto amado. Um prato cheio para analistas do autoengano, com certeza. Adotando esse ponto de vista negativo, talvez um sintoma da minha crença na necessidade da crítica racional desfechada contra as mistificações amorosas em que desmedidamente incorremos, certa feita fui surpreendido pelo comentário divergente de um amigo cuja opinião muito respeito: Daniel Lima. Enquanto, de minha parte, reiterava uma crítica sempre movido pela convicção de que amaríamos melhor se desenvolvêssemos a capacidade de amar o outro imperfeito tal como é, incorporando ao amor pelo amado a sua dentadura, esses míseros pedacinhos de marfim, como metaforicamente se exprime o contista, Daniel chamou minha atenção para o fato de que o amor carece do engano da dentadura. Dito de outro modo, o amor se realiza precisamente pela via do autoengano. No entender do meu amigo, que é decerto o entender da maioria, não existiria amor sem uma dose necessária de idealização e autoengano compartilhado pelos amantes.
Saindo agora do cerne da palestra, o que ouvi de Giannetti confirma a admiração que lhe tenho dedicado desde que passei a tomar contato com as ideias que postula. Contato precário, sei, já que restrito a intervenções ocasionais nas páginas de jornal e em debates veiculados pela televisão, mas ainda assim suficiente para que possa estimar seus méritos intelectuais e morais. Tratando de um tema tão relevante e atraente para o leitor, não cede ele entretanto no rigor da exposição analítica. De outro lado, fiel à tradição filosófica declarada no pórtico de sua palestra, e já acima explicitada, procede como um expositor exemplar. A ordenação dos seus argumentos, articulada a elementos ilustrativos extraídos da história da arte e da cultura, além do próprio domínio das ciências da natureza, pauta-se por critérios de clareza, integridade intelectual e sobretudo um ceticismo salutar sempre consciente de que o autoengano é uma necessidade transfiguradora, para o bem quanto para o mal, das máquinas imperfeitas que somos. Por isso, sem embora subestimar o papel corretivo exercido pela razão, sabe ele o quanto são precários nossos poderes racionais.
Diário - Recife, 26 de janeiro de 1998.
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Giannetti esteve aqui em julho ou em 1998?
ResponderExcluirConcordo com padre Daniel.
Amor e razão não andam juntos. Por isso sofremos.