quinta-feira, 21 de julho de 2011

Diário (fragmentos)



08 de junho 2004
Releio uma tradução francesa de Dom Casmurro assinada por Francis de Miomandre e revista por Ronald de Carvalho. Trata-se, portanto, de uma tradução já velha, provavelmente a primeira em língua francesa, talvez a primeira em língua estrangeira. Embora seja um modesto leitor de francês, portanto sem a devida qualificação para ajuizar sobre a qualidade da tradução, reconheço e retenho na leitura de algumas páginas alguns dos traços que mais singularizam a prosa de Machado de Assis: a ironia, o humor, o toque inconfundível do moralista iluminando com a pena aguda os desvãos perturbadores da vaidade, da mesquinheza, da autodeleitação inconsciente com que irreparavelmente nos enganamos acerca do que somos e presumimos saber sobre o outro. Quanto mais releio Machado, em português e noutras línguas que freqüento, mais me convenço da sua grandeza única, do seu indiscutível gênio literário. Reiterando o que outros já ressaltaram, fosse ele um autor de língua inglesa, ou outra de prestígio e difusão similares, seu reconhecimento seria amplo e universal. Apesar da barreira da língua, é animador comprovar que sua obra mais e mais se impõe à admiração por vezes perplexa de grandes leitores e críticos de outras línguas. Vargas Llosa e Carlos Fuentes já registraram em espanhol sua grandeza gradualmente ampliada na esfera do reconhecimento internacional; na língua inglesa, caberia destacar antes de tudo a obra de esclarecimento e difusão desenvolvida por John Gledson, que aliás assina a retradução aprimorada de vários textos de Machado, além da contribuição crítica notável contida, antes de tudo, em The Deceptive Realism of Machado de Assis. Valeria ainda acentuar a obra crítica pioneira escrita por Helen Caldwell. Aliás, somente há poucos anos, depois de tantas referências feitas por estudiosos de Machado de Assis, foi afinal vertido para o português O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. Dois críticos ingleses, pouco conhecidos no Brasil, também dedicaram páginas surpreendentes a Machado: V. S. Pritchett e Martin Seymour Smith. Mais recentemente, importaria assinalar Susan Sontag, Salman Rushdie, John Barth e este crítico desconcertante e leitor pantagruélico que é Harold Bloom. Enfim, Machado eleva-se sobre nossa surrada tradição de nacionalismo literário na qual patinaram mesmo alguns dos nossos maiores escritores como Mário de Andrade e nossa melhor produção romântica, modernista e regionalista. A prova suprema do grande escritor é sobreviver ao tempo e no tempo submetido a continuadas, sucessivas e renovadas leituras.

09 de junho de 2004
Há pouco ocorreu-me evocar a expressão de Voltaire anotada no fecho do seu sempre atual Cândido, ou o otimismo: “...il faut cultiver notre jardin”. Dou-me agora ao luxo de me propor algumas normas pertinentes à sabedoria da jardinagem. A primeira consiste na necessidade da delimitação de uma fronteira necessária entre o mundo público e o íntimo, correspondente ao jardim. Se o jardineiro incorre no erro insensato que seria reproduzir a matéria e os valores daquele no solo em que aspira a cultivar seu mundo íntimo, será portanto inútil qualquer presunção ou ideal de vida alternativa. Noutras palavras, melhor continuar imerso no grande mundo com tudo que encerra de pequenas e grandiosas misérias. Recuso-me, por conseguinte, a trazer para dentro do meu jardim as ervas daninhas do cotidiano que me vejo forçado a viver na companhia do semelhante inevitável. Até o noticiário noturno da tv tenho me disciplinado para evitá-lo ao me dar conta de que me inspira antes de tudo indignação e ódio impotente em face das brutalidades rotineiras praticadas na nossa sociedade, sobretudo pela elite bandida deste país vergonhoso. Aponho a elite um qualificativo contraditório por não encontrar meio menos inadequado de referir-me a isso que tão impropriamente designamos por elite brasileira, notadamente a política. Talvez melhor convenha o termo proposto por Evaldo Cabral de Mello, que ao negar que ela exista de fato no Brasil opta pelo termo clientela. O noticiário brasileiro e, por extensão, o estrangeiro, ficam assim interditados no solo do meu jardim.

Dado que entendo a jardinagem como equivalente de uma estética da existência, outra norma fundamental radica no livre e continuado cultivo das artes. É dentro desse espírito que me disciplino para voltar a cantar todos os dias acompanhado pelo meu violão. Valendo-me com frequência dos meus livros de cifras, dou-me ao prazer diário de cantar meus compositores populares preferidos: Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Vinicius de Moraes, Lennon-McCartney... Outra flor cultivada no meu jardim é a literatura. Os poetas ocupam lugar especial no canteiro literário que se estende pela via central do jardim. Os mais lidos - no geral de viva voz, pois concordo com Harold Bloom que a poesia deve ser lida – são Drummond, Auden, Eliot, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Murilo Mendes. Outra atividade constante que imprime beleza, emoção e esclarecimento à atmosfera do meu jardim é a frequentação dos filmes de ordinário gravados em dvd: as adaptações de obras assinadas por Shakespeare, Henry James, Jane Austen, Graham Greene, E. M. Forster, Dostoiévsky, Tchekov, Charles Dickens, Balzac, Victor Hugo, Oscar Wilde e muitos outros. Além disso, entra nesta composição a obra cinematográfica obrigatória dos meus diretores e roteiristas de eleição. Cito apenas os que me vêm de imediato à memória: Hitchcock, Billy Wilder, Woody Allen, Ingmar Bergman, Fellini, Kubrick, Christopher Hampton, David Hare, Louis Malle, Truffaut, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, David Lean.

Há no jardim uma hora preciosa, antes de tudo porque cada vez mais rara, a hora da solidão voluntária livremente povoada pela meditação errática, a pura contemplação da noite ou do mar próximo, mas antes adivinhado que propriamente apreendido pelos sentidos. É esta uma hora rara e progressivamente difícil porque o mundo é cada vez mais sobressaltado por toda sorte de ruído: o ruído dos aviões que fazem dos céus sob os quais habito uma rota de voo obrigatória; o ruído dos vizinhos empenhados em infernizar a vida do próximo; o ruído dos carros e de suas buzinas ferozes; o ruído de semelhantes boçais e arrogantes que, atormentados por modos de vida no geral gestados pela própria insensatez com que vivem, vingam-se dos seus tormentos insolúveis atormentando impiedosamente o mundo disposto ao alcance do seu poder. Há que cultivar o jardim contra e à margem e acima disso tudo. O resto escapa a meu poder de governo do meu mundo íntimo.

21 de junho de 2004.
Li ontem o último romance de Rubem Fonseca: Diário de um Fescenino. Não é com certeza um grande romance, mas é um bom romance. Narrado na forma de um diário, como já sugere o título, nele observo a concentração da narrativa no universo da classe média carioca. Se isso não o isenta de alguns traços marcantes da ficção de Rubem Fonseca, traços associados à representação brutal da marginalidade, acentua a presença de um universo social familiar ao leitor típico brasileiro. Algo que muito prezo no conjunto da obra de Rubem Fonseca é seu afastamento consciente e confesso do forte veio regionalista presente na nossa tradição literária. Desde seu primeiro livro, Rubem Fonseca elege o Brasil urbano, notadamente o Rio de Janeiro, como provedor de temas, conflitos, linguagens e tons dilacerantes da sua literatura. Fiel a esta orientação geral, distinguiu-se antes de tudo como contista da cidade – o melhor dentre os contemporâneos – e também como romancista. Seu primeiro romance, O Caso Morel, exerceu uma influência decisiva sobre minha consciência e prática sexuais. Que mais se pode pedir ou esperar de um livro? Registrei em alguma anotação remota de um dos meus diários o significado que este romance teve sobre minha vida.
Lendo Diário de um Fescenino, assim como Pequenas Criaturas, seu último volume de contos, observei como sua veia de humorista tornou-se mais pronunciada. A meio da leitura de algumas páginas de ambos os livros, não contive o riso. Rio prazerosamente lendo Cervantes, Voltaire, Swift, Lawrence Sterne, Machado de Assis, Oswald de Andrade... Rubem Fonseca, dentre os contemporâneos, é um que me estimulam ao riso e ao prazer elevado da inteligência e do espírito que a boa literatura propicia.

22 de junho de 2004.
Hoje acordei às 4 da madrugada. É que fui dormir também muito cedo. Gosto de estar de pé nessa hora ambivalente, suspensa entre a treva da noite e as primeiras luzes do dia. É quase miraculoso ouvir o silêncio respirando no asfalto deserto das ruas, os tons vagos da aurora espanando as gotas de água do oceano. Depois o dia vai lentamente nascendo, lentamente os objetos emergem do sono profundo da noite. Vesti-me feliz, quase que às pressas, e aproveitei a trégua da chuva, que nos últimos dias privou-me do prazer de correr e bater perna no calçadão da praia, sobretudo do prazer de mergulhar na piscina. Alternando a corrida lenta e a passada longa, fui até a praça de Boa Viagem. Depois fiz o percurso de volta estendendo-o até os limites de Piedade. Quando cruzei a linha do prédio onde Ci e as meninas viveram, espremido entre dois grandes edifícios que miraculosamente não lhe suprimiram a visão do mar, respirei com saudável e comovida memória os anos mais belos e felizes de minha vida. É bom evocá-los assim, retê-los nas linhas concretas do prédio onde tudo se deu e se consumou, surpreendê-los vibrando na atmosfera da cidade insensível, sem qualquer dor, ressentimento ou nostalgia. Vivi o que pude, vivemos o possível, e assim espero assimilar à memória toda essa paisagem esplêndida que perdi sem no entanto perdê-la. Passarei sempre diante daquele prédio respirando no ar sem sombras toda a felicidade invisível que elas me deram. Mentiria se dissesse que a aceitação repousada do que nelas perdi anula qualquer traço ou desejo de volta no tempo, ou de atualização dos esplendores perdidos. O que digo é que procurei tudo aceitar e viver e agora apenas memorar tal como foi: temporário, falível e todavia inefável. Talvez inefável exatamente porque temporário e falível. Tudo que queria ainda, mas não depende de mim, era retê-las como amigas, expressar livremente em clave sublimadora todo o amor, o gozo e desejo que a elas definitivamente me prendem. Um dia escrevi um poema para Ci intitulado: Sempre. Já não lembro o poema e a preguiça impede-me de ir catá-lo numa pasta que nem sei bem onde se encontra. Lembro porém de que nele aspirei a traduzir o sentido de eternidade humana, se é possível assim dizer, do amor que a ela me prende e me prenderá enquanto eu viva. Não importa o fato de ela abafar nos desvãos da memória tudo o que poderosa e irreprimivelmente nos une. Afinal, perdemos a liberdade de nos esquecer.

24 de junho de 2004
O Diário Crítico de Sérgio Milliet cobre um período que se estende grosseiramente do início dos anos 40 a meados dos anos 50. Uma das lições que patenteia é a fugacidade da fama e do prestígio literário. Se nem tudo é moda, boa parte dos escritores lidos e celebrados numa geração – diríamos hoje num ano – cedo mergulha no esquecimento. Mesmo alguns distinguidos pelo reconhecimento geral, sobretudo pela crítica mais criteriosa, com o tempo dissolvem-se no silêncio das prateleiras, ou pelo menos são reduzidos a dimensões comparativamente insignificantes. É curioso lembrar, por exemplo, o prestígio indisputável da cultura francesa durante o período registrado no diário de Sérgio Milliet. Talvez o escritor mais contemplado nas entradas e comentários do crítico paulista seja André Gide. Era então extraordinário o prestígio internacional de que desfrutava. Milliet reitera tal prestígio dedicando-lhe algumas das melhores e mais elogiosas páginas do seu diário. Se Gide não mergulhou na obscuridade, é certo que é hoje muito pouco lido. Outros similarmente distinguidos, como Georges Bernanos e Charles Péguy, tornaram-se ilustres desconhecidos para os contemporâneos.

Dentre os brasileiros, Mário de Andrade e Gilberto Freyre merecem por certo as notas mais amplas e elogiosas. Também a crítica, de resto notável no período, é objeto de inúmeras considerações de Milliet. O destaque maior vai para Álvaro Lins e Roger Bastide. O primeiro era no geral reconhecido como o melhor crítico militante na literatura brasileira; o segundo, embora antes de tudo sociólogo, trouxe contribuição notável à renovação dos nossos estudos socioantropológicos e também literários, com ênfase, aqui, para a ponderação mais sistemática do papel que a sociologia desempenha na apreciação da obra de arte, em geral, e da literária, em particular. Sílvio Romero, Alceu Amoroso Lima, Lúcia Miguel-Pereira, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Rui Coelho e outros são contemplados com notas no geral elogiosas.
Outro assunto merecedor de breve registro liga-se à febre dos testamentos e plataformas dados a público pelas duas gerações concorrentes no cenário cultural brasileiro na primeira metade dos anos 40. Os termos que emprego, testamentos e plataformas, aludem, claro, a dois livros de ampla repercussão: Testamento de uma Geração, organizado por Edgard Cavalheiro, e Plataforma da Nova Geração, organizado por Mário Neme. Enquanto o primeiro reúne depoimentos e balanços literários e ideológicos da geração fautora do Modernismo, a segunda dá voz à geração ascendente, constituída antes de tudo por escritores e ensaístas de vocação crítica ratificada pelo desenvolvimento do processo cultural brasileiro. Fui dos poucos, na minha geração, a ler cuidadosamente estas obras. Encontrei-as no acervo precioso da Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife durante minha curta e desprezada passagem pelo curso no auge dos chamados anos de chumbo da ditadura militar. Aliás, a leitura de obras desta natureza, somada à descoberta da psicanálise e dos escritores modernistas, concorreu de forma decisiva para que eu nunca mais pusesse os pés no prédio histórico do Parque 13 de Maio. Outro fator decisivo foi a leitura de O Processo Maurizius, de Jakob Wassermann. Poucos livros que li, aqui incluído Dom Quixote, tiveram sobre minha imaginação ética e estética efeito tão poderoso. O livro de Wassermann é a história de um processo de injustiça afinal reparado pela luta de um personagem eticamente grandioso. Não podia ler um livros destes sem cotejá-lo com a experiência cotidiana que me oprimia na Faculdade de Direito e no Brasil policiado pela truculência dos militares. Fiquei tão abalado que desisti do curso, pois tinha consciência de que nunca teria força e grandeza intelectuais e morais para seguir o exemplo de Etzel Undergast (tenho sérias dúvidas sobre a correção do sobrenome) como representante da lei e da justiça no país da ditadura e da injustiça.
Por fim, um breve comentário sobre a hegemonia do romance nordestino no decurso do primeiro momento historiado pelo diário de Sérgio Milliet. Tecendo elogios notadamente a José Lins do Rego – talvez, dentre os nordestinos, o que gozava de maior prestígio literário naquele período, como atesta o juízo de peso emitido por Mário de Andrade, que o distinguiu como o maior romancista brasileiro - Milliet proclama a excelência dessa corrente da nossa produção romanesca ao reconhecer que os nordestinos realizaram a ficção que os paulistas propunham ou desejariam realizar.

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