sábado, 2 de julho de 2011

Macunaíma


Mário de Andrade publicou Macunaíma em 1928, ano fundamental na história do modernismo. Além desta obra, consagrada como a obra-prima do líder do movimento, destacam-se no mesmo ano Retrato do Brasil, de Paulo Prado, e a antropofagia, vertente radical e anárquica do modernismo. A antropofagia está ainda associada à Revista de Antropofagia e ao Manifesto Antropófago, de autoria de Oswald de Andrade, que foi sem dúvida o modernista mais combativo e radical durante esse período de grandes inquietações e mudanças na cultura brasileira.

Mário de Andrade descobriu Macunaíma lendo o etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg, estudioso das culturas indígenas da Amazônia. Na época em que o leu, Mário já andava mergulhado na busca da cultura brasileira e da nossa identidade cultural. Ao se deparar com o herói mitológico Macunaíma, logo foi tomado pela intuição de que ele condensava características marcantes do brasileiro. O livro foi escrito de um jato, durante uma semana de redação febril em dezembro de 1926. Em seguida, conforme seu método de composição, Mário reescreveu e cortou muita coisa. Além disso, aprofundou suas pesquisas e estudos relativos à cultura brasileira, muito enriquecidos pelas duas viagens que fez ao Norte e Nordeste do Brasil. Essas viagens,que designou como viagens etnográficas, estão documentadas em várias de suas obras e arquivos mais tarde explorados por alguns dos seus discípulos, notadamente Oneyda Alvarenga. O livro que melhor documenta as viagens é O Turista Aprendiz.

Embora escrita inicialmente em 1926, como observei acima, Macunaíma somente foi publicada em 1928. Lida ainda hoje como símbolo do brasileiro, a obra é bem mais complexa e portanto encerra muitos outros significados. O próprio Mário contribuiu para validar essa leitura estreitamente nacionalista. Ao mesmo tempo, como era típico de sua personalidade múltipla e contraditória, cuidou também de desmentir essa leitura nacionalista ao ressaltar que o livro simbolizava também o latino-americano, não apenas o brasileiro. Indo além, afirmou depois que Macunaíma era um símbolo do homem moderno. Seguindo essa orientação crítica, Gilda de Mello e Souza concede prioridade a uma leitura universalista (leia-se antes de tudo europeia) num ensaio que é provavelmente a melhor interpretação do livro: O tupi e o alaúde.

Macunaíma nasce no fundo da mata virgem (isto é, numa tribo amazônica) com características físicas que já denotam o tema da miscigenação tão caro aos nossos nacionalistas. Ele é índio e ao mesmo tempo negro retinto. Mais tarde torna-se branco graças a um dos muitos expedientes de magia que impregnam o livro. Utilizando fontes da mitologia indígena, além de uma enormidade de documentos que traduzem a riqueza e variedade do nosso folclore e da nossa cultura popular, Mário de Andrade se vale da magia como um dos princípios de composição da trama. Por isso a narrativa foge aos padrões convencionais da lógica, já que é repleta de deslocamentos tanto geográficos como temporais. Mário valeu-se muito desse recurso no livro para realizar um dos ideais da sua concepção da cultura brasileira. O recurso ao qual me refiro é o da desregionalização da narrativa. Noutras palavras, funde intencionalmente traços culturais das diferentes regiões brasileiras com o propósito de integração numa unidade nacional.

A leitura nacionalista, reforçada em argumento do próprio Mário, chama nossa atenção para o subtítulo do livro: o herói sem nenhum caráter. Como o próprio Mário explicou, o termo caráter não deve ser lido no seu sentido restritamente moral, que é o mais corrente. Macunaíma não tem caráter, segundo Mário, porque é privado de características culturais e psicológicas definidas ou constantes. É por isso que a ação do livro tanto ressalta suas contradições ou ausência de lógica e coerência psicológica. Exemplificando, Macunaíma é valente e covarde, mentiroso e sincero, preguiçoso, mas movido por uma vitalidade fascinante, um desejo irrefreável de vida e prazer. O que importa antes de tudo reter, no caso, é a intenção com que Mário sintetiza nesses traços da personagem o que lhe parecia simbólico da nossa carência de uma identidade cultural consistente e estável.

A preguiça constitui outro traço saliente da obra. Macunaíma está sempre repisando esta frase: “ai, que preguiça”, como um refrão que atravessa toda a narrativa. Esse traço relativo à preguiça foi muito repetido através da nossa história como característico do brasileiro. Para ser mais preciso, leia-se o brasileiro escravo, o negro que compreensivelmente fugia ao trabalho forçado sempre que possível. É compreensível que numa economia baseada no trabalho escravo o trabalhador use de todos os meios e subterfúgios para escapar de um trabalho, ou pelo menos aliviá-lo, que é vivido como castigo e punição. O próprio Mário, aliás, desmente esse mito. Embora tenha ironicamente celebrado a preguiça (o primeiro artigo que publicou tinha como título: “A divina preguiça”), trabalhou a vida inteira com um sentido de disciplina, método e tenacidade admiráveis.

Pontuando os extremos da nossa formação sociocultural, Macunaíma vai do fundo da mata virgem para a cidade de São Paulo, centro do capitalismo brasileiro já fervilhante de imigrantes, fábricas, aceleração do crescimento urbano e muitas outras características da nossa cultura moderna. O livro de Mário é extraordinário nos efeitos estéticos e ideológicos que extrai desse antagonismo observável entre o primitivo arrancado do fundo da cultura indígena para o polo mais avançado do capitalismo brasileiro. O espanto e estranhamento do primitivo lançado no bojo da civilização técnica constitui um dos momentos altos do livro.

Outro traço marcante da obra é a sensualidade. A intenção de Mário, ao descrever em páginas de forte e apaixonante erotismo a sensualidade do herói Macunaíma, foi ressaltar a sensualidade marcante da nossa cultura. Ela se espelha na parte inicial da narrativa, quando Macunaíma vive com sua tribo na floresta amazônica. A parte culminante desse tema está contida no capítulo consagrado ao amor de Macunaíma e Ci, Mãe do Mato, índia guerreira com quem Macunaíma luta e, ajudado pelos irmãos, Jiguê e Maanape, domina e possui. Ela se apaixona por ele, ele por ela, e então Ci se torna o grande amor de Macunaíma, “o amor primeiro que não tem companheiro”. Ela dá de presente ao amado a pedra mágica muiraquitã, além de um filho. O filho morre, ela também. Não bastasse tanto, o herói inconsolável perde a pedra mágica, que acabou nas mãos do Gigante Piaimã, seu antagonista. Macunaíma acabou indo para São Paulo, acompanhado pelos irmãos, ao descobrir que o Gigante se apropriara da pedra mágica e vivia em São Paulo.

Deixando o enredo de lado, chamaria a atenção do leitor para a linguagem de Macunaíma, que deu margem a muita polêmica. A crítica negativa atacou com energia o artificialismo do estilo adotado por Mário na composição da obra. Dentro desse grupo destacam-se Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, diria todo o grupo de ficcionistas que representam a literatura hegemônica na década de 1930. Mesmo leitores favoráveis à obra – como é o caso de Manuel Bandeira, grande amigo de Mário e seu principal correspondente - criticaram os experimentalismos de linguagem e estilo adotados pelo autor, que de modo algum correspondem a uma suposta fala ou língua brasileira, causa que Mário abraçou com paixão e espírito militante, como era do seu feitio. Essa característica da obra pode de fato desencorajar o leitor mais convencional ou preguiçoso.

Como toda obra de caráter experimental, típica daquele momento do modernismo brasileiro, assim como dos movimentos de vanguarda que pipocaram na literatura do início do século 20, Macunaíma exige bastante do leitor. Exige tanto devido a seus traços de linguagem e estilo, como já acentuei, quanto à própria matéria recriada ficcionalmente por Mário de Andrade. Refiro-me mais claramente às fontes utilizadas pelo autor. Já mencionei a obra de Koch-Grünberg, na qual Mário descobriu Macunaíma e imensa documentação relativa às culturas tribais da Amazônia. A esta fonte somam-se muitas outras eruditamente anotadas e comentadas por M. Cavalcanti Proença num livro essencial para quem queira penetrar as entrelinhas da obra, sua impressionante riqueza de elementos culturais expressos em mitos, lendas, ditos populares, frases feitas, regionalismos e farta documentação etnográfica. O livro de M. Cavalcanti Proença é Roteiro de Macunaíma. Além disso, Mário também aproveitou muito da obra dos cronistas e historiadores coloniais do Brasil. Como pouco infelizmente conhecemos desse legado cultural, não é de surpreender o estranhamento que um livro como Macunaíma causa de imediato ao leitor, mesmo o leitor culto treinado na leitura da narrativa literária convencional.

O fato de ser ao mesmo tempo uma obra-prima indiscutível e um romance experimental (na verdade, Mário optou por classificar sua narrativa como rapsódia, não romance), provocou o surgimento de uma bibliografia crítica considerável. O leitor pode consultar essa bibliografia na História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi. Também a edição crítica de Macunaíma, coordenada por Telê Porto Ancora Lopez, contém rica documentação crítica. Mencionaria ainda a adaptação cinematográfica da obra, dirigida por Joaquim Pedro de Andrade, estrelando Grande Otelo e Paulo José interpretando respectivamente o Macunaíma negro e o Macunaíma branco.

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