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terça-feira, 20 de junho de 2017

Antonio Candido (1918-2017)


Morreu enfim meu imortal preferido: Antonio Candido. Foi tão longevo e lúcido que já me parecia ser de fato imortal. Devo a ele o mais importante encontro intelectual de minha vida. Foi quando o visitei em 1995. À época era amigo de muita afeição e circunstância de Walnice Nogueira Galvão, a mulher mais culta e erudita que já conheci. Antonio Candido deixou uma legião de discípulos de alta qualidade intelectual, mas os dois mais importantes são sem dúvida Roberto Schwarz e ela. Por isso muitas vezes falamos com admiração sobre ele: eu apenas sobre a obra, tão decisiva na minha vida que determinou minha migração das letras para a sociologia da literatura, e ela sobre o homem e a obra. Difícil, talvez impossível, decidir entre o que ela mais venerava e venera. Poderia ter chegado a ele através de Walnice. Mas um certo tipo de timidez ou insegurança sempre anulou qualquer desejo expresso de minha parte.
Por fim, anos mais tarde, acabei visitando-o graças à mediação de José Luiz Passos, sempre à vontade para procurar e seduzir os que admirava e desejava conhecer. Conversamos durante 4 ou 5 horas. Ele e d. Gilda me deixaram tão à vontade que conversamos em tom espontâneo e prazeroso, pelo menos para mim, levados pelo fluxo arbitrário da interlocução associativa. Impressionaram-me seus modos cavalheirescos sem qualquer vinco de afetação ou gosto de brilhar. São assim os que de fato sabem no sentido plenamente intelectual e ético do termo, isto é, aqueles que convertem o conhecimento em experiência ou modo de ser. Antonio Candido prescindia do gosto de impressionar porque era o que era, era o que se tornou de forma lúcida, harmoniosa e coerente.
Devido às razões acima sugeridas, Antonio Candido foi um dos raros intelectuais que me impressionaram não só através da obra, que já conhecia de muita leitura e releitura, mas através da sutil apreensão de uma correspondência entre o autor e a obra, entre o texto e a vida, expressão que dá título a um dos vários volumes de ensaios enfeixados com o propósito de prestar-lhe justa homenagem.
Aludindo de passagem a alguns pontos que retive na memória do nosso encontro, lembro-me do meu desconserto quando me declarou que a obra que gostaria de ter escrito era Casa-Grande & Senzala. Alongou-se em comentários sobre Gilberto Freyre, inclusive de caráter pessoal, num momento em que a reavaliação da obra deste não estava ainda consolidada, sobretudo nos arraiais uspianos. Neste contexto, não podia deixar de animá-lo a evocar memórias dos modernistas e intelectuais uspianos que conheceu intimamente: Mário e Oswald de Andrade, Drummond (este com muita reserva, pois era por temperamento quase inacessível), Paulo Emílio, Décio de Almeida Prado e Ruy Coelho. De Mário revelou-me algo que me causou forte decepção, pois então era o intelectual brasileiro que eu mais admirava, tanto a obra quanto o autor e o homem desvelado pela vasta correspondência e outras fontes íntimas.
Segundo Antonio Candido, no auge da perseguição política que Agamenon Magalhães moveu no Recife contra Gilberto Freyre, um dos mais veementes e corajosos críticos do interventor em Pernambuco, Sérgio Buarque de Holanda tomou a iniciativa de encabeçar um movimento de abaixo-assinados como instrumento de pressão política em defesa de Gilberto Freyre. Mário de Andrade recusou-se a assinar o documento. Isso me causou grande decepção no momento em que ouvi a história narrada por Antonio Candido.
Tão à vontade estava que lá pelas tantas incorri numa séria inconveniência. Somente a civilidade e a discrição do casal explicaria o silêncio discreto com que ouviram o que passo a relatar. Falando livremente de livros e escritores que influenciaram minha experiência de leitor, mencionei a admiração que dedico a Paulo Francis e Millôr Fernandes. De passagem, assinalei o significado que o semanário O Pasquim exerceu sobre a minha juventude no auge dos anos de chumbo da ditadura. Ora, poucos anos antes de 1995 houve um incidente intelectual que com certeza feriu Antonio Candido de forma talvez irremediável.
Situando o incidente, um grupo de intelectuais uspianos, todos discípulos de Antonio Candido, gravou e publicou na revista Remate de Males uma longa entrevista, mesclada a passagens de livre debate, sobre a emergência de um conjunto de romances de cunho realista renovado pela experiência da ditadura e da abertura política e cultural. O entrevistado era Davi Arrigucci Jr. Também participavam João Luiz Lafetá, Carlos Vogt e outros que agora esqueço. Comentando essa produção inusitada, que incluía Em câmera lenta, Quatro-olhos, O que é isso, companheiro?, Davi deteve-se na crítica severa a Cabeça, romance inaugural da trilogia de Paulo Francis. Este prontamente veio a público com um dos seus artigos mais brutais e injustificáveis que o leitor possa imaginar. Além do tom grosseiro, partiu para o ataque em tom puramente pessoal. Seu alvo, que nada tinha a ver com a história, era precisamente Antonio Candido. Soltou os cachorros em tom totalmente inqualificável. Antonio Candido e seus discípulos silenciaram. Que mais restaria dizer contra um polemista que por vezes chegava às raias da brutalidade possessa?
Somente alguns dias depois da visita, refletindo sobre ela, dei-me conta do quanto fui desastrado. Como já frisei, Antonio Candido e d. Gilda ouviram-me em silêncio. Depois a conversa retomou seu tom ameno, novamente prazeroso. Retirei-me já depois das 19h. Chovia uma chuva imprevisível em São Paulo. Prontamente, Antonio Candido me deu um guarda-chuva novinho de presente. Insisti em recusar, aleguei não haver necessidade. Sorriu com aquele ar doce e sereno, porém firme e enérgico, quando necessário, e me disse: “É para você. Tenho aqui outros justamente para presentear meus visitantes imprevidentes”. Despedi-me de alma leve e lavada e continuei lendo e relendo a obra única de Antonio Candido. Tenho-a, aliás, integralmente nas minhas prateleiras. Sua obra crítica é sempre agudamente plástica, inteligente e sensível. Ela está à altura da melhor crítica que já li em algumas línguas escrita pelos melhores críticos de muitas nacionalidades que já li e prosseguirei lendo enquanto tiver vida e lucidez. Antonio Candido é uma das mais belas expressões singulares do Brasil que sonhei possível.
Recife, 12 de maio de 2017.

terça-feira, 19 de abril de 2016

No Mural do Facebook X


Fim de papo, PT!

Os poucos que leem meus posts sabem que sempre opinei movido pelo propósito de modestamente contribuir para civilizar nossa política. Ninguém pode acusar-me de intolerância ou crítica infundada. Durante todo esse tempo li e até discuti educadamente com militantes e sectários que defendem intransigentemente Lula, Dilma e o PT. Também me coloquei sempre acima de qualquer maniqueísmo ou partidarismo sectário. Por isso defendi e defendo a investigação irrestrita de qualquer denunciado.
O anúncio da nomeação de Lula, que vai ser governante efetivo dessa desmiolada e incompetente Dilma Rousseff, muda radicalmente minha posição.
Jamais desejei a radicalização da luta política, mas já não tenho dúvida de que é isso o que querem Lula e o PT. Para sustar as investigações que o levariam à cadeia, Lula já provou que é capaz de qualquer coisa. Não tenho mais o que dialogar com pessoas que o seguem nessa trilha cujo desfecho é imprevisível. Mas uma coisa é certa: ela nos empurra para a afronta às instituições democráticas e portanto para a luta política suja e a intolerância.
Dilma desceu a um grau de impotência tão desprezível que já não se refere a seu criador como presidente por mero ato falho. Hoje ela deixou claro seu servilismo referindo-se a ele repetidamente como o presidente Lula. Para mim o PT precisa ser varrido da luta democrática. Quem quiser insistir aqui no diversionismo ideológico que tenho denunciado; quem quiser defender o indefensável esmagando os princípios éticos fundamentais da democracia e das relações civilizadas, que vá fazê-lo no terreiro de Lula e seus comparsas. Para mim chega. Façam o favor de remover meu nome da sua lista de amigos todos que assim decidirem proceder. Aliás, nunca vi neste país tamanha rendição dos intelectuais e das universidades, que ou silenciam em defesa dos corruptos ou se pronunciam apenas em nome do servilismo intelectual e ideológico. Os que assim procedem desprezam os princípios éticos da verdadeira inteligência, que consistem na liberdade de pensar de acordo com a própria consciência e não subordinar os ideais da verdade aos interesses espúrios de partidos e ideologias que afrontam tais princípios.
(Postado no Facebook, 16 de março 2016).

Nós que nos amávamos tanto:

Perdoem o título inapropriado e talvez impertinente em meio a uma realidade afogada em corrupção, anomia e desespero. A idade ensinou-me a policiar minhas emoções através da razão. Os estoicos e sobretudo Montaigne ensinaram-me a viver no presente. Portanto, espero que este não seja um post sentimental ou nostálgico.
Há pouco, voltando da praia na hora em que o lobo uiva e o coração estremece, esta frase, título de um filme quase esquecido, começou a rondar-me a cabeça e a memória: Nós que nos amávamos tanto. Chego em casa, ligo o notebook e leio uma mensagem de Fabianna Freire Pepeu. É uma amiga que não vejo há muito tempo e além disso diverge muito de mim. Ela me envia o recorte de um artigo sobre a relação entre a amizade e a política. Por coincidência, li o texto nesta manhã. Já não me lembro se simplesmente o curti ou comentei. Voltei a remoer a memória dos que se amavam tanto.
Por que nos prendemos tão obsessivamente à política? Quando acesso o mural do Facebook, e o mais grave é já não resisto a tentação de fazê-lo, sei de antemão o que vou ler. Houve um tempo em que até no Facebook lia posts sobre o amor e a amizade, transcrição de poemas e outras expressões da vida humana mais elevada. Minha amiga (ou ex) Maria De Fatima Duquesacordava minha memória poética transcrevendo sobretudo poemas do meu mais amado amigo: Daniel Lima. Hoje postamos apenas os trapos de um país que se desintegra entre disputas surdas ou desvairadas. Há os que denunciam a histeria sectária de Marilena Chauí, assim como os que denunciam a histeria de Janaína Paschoal. Ninguém aparentemente se dá conta de que a obsessão da política cindida (este é tempo de partido, tempo de homens partidos, Drummond) é antes de tudo sintoma das vidas mesquinhas que vivemos, vidas privadas e carentes de amor e convicção, vidas de náufragos num mar onde os ideais utópicos não passam de farsa e fantasia. Por isso, apesar da minha fidelidade a Montaigne e a meus estoicos muito acima da minha fraqueza moral, não suportei a dor de viver num tempo tão corrupto e mesquinho e tomei um uísque e me indaguei de mim para mim no fundo da minha desolação: o que fizemos do que amávamos tanto?
(Postado no Facebook, 6 de abril 2016).

A Candidez de Antonio Candido:

Acabo de reler Cândido ou o Otimismo, de Voltaire, entre encantamento e gargalhadas. E logo tomei conhecimento de mais uma enquete com grandes intelectuais brasileiros (que no geral posam como se fossem intelligentsia de fato) opinando sobre o Impeachment de Dilma. Como seria previsível, o eterno Candido brasileiro (o grande, sem ironia, Antonio) não é apenas contra, mas também exalta a "destemida Dilma". A candidez revolucionária de Antonio Candido me lembra uma ex-aluna justificando o fato de ainda ser comunista: "sou fiel à minha infância". Pergunto-me candidamente o que o destemor tem a ver com a legitimidade do governo de Dilma (perdão, Lula), no primeiro caso, e a fidelidade à infância com o comunismo (em qualquer sentido), no segundo.
Antonio Candido foi uma das influências seminais da minha vida. Por isso lamento escrever este post. Mas friso ressaltar a grandeza do crítico, não a candidez do político. Este, com integridade impecável, com comovente candidez, passou a vida defendendo o totalitarismo comunista e os regimes de esquerda latino-americanos. Alegando desde muito ser adepto do socialismo democrático, isentou-se de revisar o comunismo (ou o stalinismo, diria o insuspeito Leonardo Padura). Defensor intransigente do regime cubano, exaltou a luta armada na figura de Marighella, "o santo do socialismo brasileiro" (palavras suas).
Antonio Candido, a mais fina e refinada flor da inteligência paulista, modelo supremo do intelectual acadêmico brasileiro, carimba admiráveis e longevos 97 anos com a mesma candidez do menino encantado em Poços de Caldas pela experiência anarquista de Teresina. Ou será que seu real Dr. Pangloss foi seu amado Paulo Emílio Salles Gomes? Não importa. Antonio Candido vai morrer candidamente em paz com a sua consciência certo de haver emprestado sua integridade e elevado humanismo a líderes regeneradores da humanidade como Marx, Lênin, Stálin, Fidel Castro, Che, Marighella, Lula e a destemida Dilma Rousseau, que trata os brasileiros pobres como este tratou os próprios filhos.
Postado no Facebook, 10 de abril 2016).


quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Dialética Tropical


O novo livro de ensaios críticos de Roberto Schwarz, Martinha versus Lucrécia, pouco varia nos temas, enquanto previsivelmente reitera a perspectiva teórica que embasa toda sua atuação como crítico. Machado de Assis, como também seria previsível, é a figura dominante. Além de fornecer o mote que dá título ao livro, é o foco do ensaio de abertura, “Leituras em competição”, de “A virada machadiana” e de uma das entrevistas que integram o volume. Além disso, a crônica de Machado que confere título e matéria ao livro vem reproduzida no final do volume. Repetindo procedimento já familiar para quem acompanha sua obra, as entrevistas se somam aos ensaios, como de resto vem explícito no subtítulo de Martinha versus Lucrécia. O ensaio de maior fôlego, que alcançou mais repercussão na mídia, como seria também previsível, é o que dedica a Verdade Tropical, livro de memórias de Caetano Veloso. Aliás, Schwarz o identifica como autobiografia quase-romance (ver p. 85). Schwarz também retoma alguns dos seus autores de eleição na cena literária contemporânea: Chico Buarque, Francisco Alvim, Paulo Lins. Por fim, os uspianos e afins: Giannotti, Bento Prado, Gilda de Mello e Souza, Francisco de Oliveira, Michael Löwy. Tentarei abaixo esmiuçar um pouco do que vai condensado neste parágrafo inicial.

Antes que o leitor apressadamente conclua que os muitos “previsíveis” acima anotados supõem algum juízo crítico negativo, me apresso a afirmar o contrário. Um livro de ensaios críticos de Roberto Schwarz contém muito de previsível, antes de tudo, porque ele, à diferença da usina recicladora de modas intelectuais que é a universidade, sobretudo a brasileira, periférica e portanto sempre deslumbrada com tudo que produzem os centros hegemônicos da cultura intelectual, ele é um crítico consistente e coerente. Podemos discordar de sua perspectiva teórica, é o meu caso; daí a desqualificá-lo deformando grosseiramente suas ideias, procedimento patente em resenhas como a de Nelson Ascher, publicada na Veja (2 de maio de 2012), é passar da divergência teórico-ideológica para o ataque grosseiro. Aliás, é isso o que também faz Caetano Veloso na entrevista que concedeu à Folha de S. Paulo (22 de abril 2012). Infelizmente, no Brasil raramente sustentamos um debate de ideias, que logo desanda para o bate-boca e o ataque pessoal. Há algumas explicações razoáveis para esse fenômeno, algumas identificáveis na própria leitura que Schwarz faz da obra de Machado e de outros autores, mas prender-se a elas seria fugir do foco desta resenha, além de alongá-la em demasia.

Roberto Schwarz declara sempre nitidamente de onde fala, em nome de que fala e intervém no debate ideológico e intelectual. A todo tempo, eis nele algo previsível que já se tornou lugar comum, reitera sua filiação ao pensamento dialético. Seus mestres supremos também são sempre invocados: Adorno, na tradição marxista alemã, e Antonio Candido, na brasileira. O primeiro me parece absolutamente ilegível, mas a culpa é certamente minha, talvez por não saber alemão nem me dispor a um treinamento de exegese e hermenêutica (que o leitor de blog me perdoe os palavrões) que consumiria anos de minha vida e me tornaria mais infeliz. Antonio Candido é outra história. É não apenas nosso crítico literário supremo, mas também autor dotado de um estilo de exposição crítica, de esclarecimento das ideias que lamentavelmente não fizeram escola na nossa capenga tradição universitária. Alguns dos seus discípulos confessos, é o caso de Walnice Nogueira Galvão e João Luiz Lafetá, são fieis à sua linhagem estilística, que prima pela clareza, elegância e aversão sistemática a qualquer modismo ou tentação obscura que muitos subletrados confundem com profundidade. Quanto a Schwarz, seu discípulo mais célebre, ostenta um estilo dialético demais para o meu gosto.

Mas sigamos voltando ao ensaio de grande fôlego dedicado ao livro de Caetano Veloso. Num dos seus ensaios mais citados (“Cultura e política, 1964-69”, incluído na obra O pai de família e outros estudos), escrito em 1972, Schwarz faz uma apreciação crítica do movimento tropicalista no contexto dos embates culturais e ideológicos daquela época turbulenta. Agora, 14 anos depois da publicação de Verdade Tropical, ele retoma as questões centrais daquele ensaio ampliando-as no exame de crítica dialética a que submete a trajetória artística e ideológica de Caetano Veloso. Perguntaram ao próprio Caetano a razão de Schwarz demorar tanto tempo para afinal escrever o ensaio. Claro que Caetano não tem resposta para isso. Pelo visto, nem o próprio Schwarz, que responde alegando ser mais lento do que deveria.

A julgar pelo que ele descreve sobre seu processo de maturação de intuições e ideias, é fácil seguir essa rota através das muitas entrevistas que concede e integra a várias das suas obras, Schwarz é um acadêmico típico consagrado ao convívio com os livros e ideias que o perseguem como obsessões inarredáveis. Seguindo o que historia sobre sua intuição fundamental da obra de Machado de Assis, concluímos que suas reflexões e análises que gradualmente se refinam prendem-no à obra de Machado desde a juventude até o presente. Embora tenha escrito apenas dois livros sobre o conjunto dos romances do Bruxo do Cosme Velho, livros aliás um tanto compactos, um intervalo de cerca de 15 anos separa as duas obras, sem contar tudo que matutou antes e depois.

Mas em que consiste essa intuição luminosa de Schwarz que provocou uma reviravolta na leitura da obra de Machado de Assis? Espremendo a matéria do modo mais sumário e claro possível, o crítico descobre na sua paciente leitura dos romances de Machado, notadamente os que datam a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas, uma relação de homologia entre forma romanesca e processo social. A forma caprichosa e volúvel adotada pelo narrador machadiano corresponderia ao processo social singular que o crítico identifica na realidade brasileira na qual contraditoriamente (como convém ao jargão dialético) se combinam escravidão e liberalismo. O grande feito de Machado seria estilizar nossa realidade social contraditória onde escravidão e liberalismo, homens livres privados de mercado, favor e clientelismo se mesclam de forma peculiar. Em síntese, Schwarz parte dessa intuição para elaborar o dispositivo crítico que mobiliza e reitera para dar conta da obra de Machado de Assis e mais tarde de praticamente todos os autores que submete ao escrutínio de sua crítica dialética.

Para chegar aonde chegou, depois de muito ruminar ideias com a lentidão que é o primeiro a admitir, o crítico uspiano traçou um longo e complexo percurso de ideias passando pela tradição dialética alemã, em particular Adorno, e pelo estreito convívio com seus companheiros formados na Universidade de São Paulo. Esse convívio fecundo compreende sua aprendizagem da crítica dialética de Antonio Candido e seu debate franco e contínuo com amigos de geração. Esse debate é um fenômeno raro no ambiente intelectual brasileiro. Um exemplo pessoal. Estava em São Paulo em 1995, quando de uma das muitas celebrações acadêmicas do famoso seminário de estudos do Capital, de Marx. Os discípulos de Schwarz, Giannotti e outros dos participantes desse grupo não mediram esforços para converter essa experiência acadêmica singular numa lenda que, como convém ao pioneirismo de locomotiva dos intelectuais paulistas, eleva o feito a desmedidas incongruentes com o espírito desmitificador e desmistificador do marxismo.

Reunidos no auditório da USP, situado na lendária rua Maria Antônia, Schwarz, Giannotti, Fernando Novais, Paulo Eduardo Arantes e outras estrelas da universidade debateram exaustivamente a história e as consequências ideológicas e culturais do seminário de leitura de O Capital. O que mais me impressionou, além do bandeirantismo indisfarçável dos uspianos, não obstante as ironias corretivas de Schwarz e Giannotti, foi a franqueza isenta de qualquer complacência observável no debate entre estes. Surpreende-me ainda, tendo em mente minha experiência pregressa e prospectiva, ao considerar a forma como argumentavam e divergiam.

O título da minha resenha, que pouco trata do livro, admito, contém seu grão de ironia ou provocação. Como comecei assinalando, Roberto Schwarz continua manejando com sofisticação e pertinácia sua dialética tropical. Assim procedendo, ele se alinha dentro da longa tradição do pensamento crítico que procura ainda e em vão explicar o Brasil. Não que sua obra não esclareça muito de Machado, em particular, e do Brasil, em geral. Mas confesso que por vezes muito me custa, não raro às bordas da angústia, articular minha compreensão do Brasil, com seus impasses insolúveis, tendo as categorias dialéticas de Schwarz como norte.

Elas me parecem abstratas demais, a partir do próprio conceito de dialética que, como certa vez observou José Guilherme Merquior, é uma dama de bem pouca virtude. De fato, o conceito foi vítima de tanto uso e abuso que gente como eu, mal escolada no radicalismo teórico da academia, tende a encará-la como indigesta. No mais, descendo a um exemplo extraído do ensaio sobre Caetano Veloso, surpreendeu-me ler o tom elogioso com que Schwarz menciona um longuíssimo período de Verdade Tropical (cf. pp. 35-6) que é estilisticamente uma das passagens mais infelizes na prosa clara e lúcida de Caetano. Depois de qualificar o período como um autêntico “olé dialético”, Schwarz afirma que “... a síntese procura sugerir, ou captar, a complexidade do processo real. Pela abrangência da visão, pela sua potência organizadora, pelo teor de paradoxo e pela capacidade de enxergar o presente no tempo, como história, é uma façanha”. (p. 72).

Por fim, embora com razão tanto critique o radicalismo inoperante da cultura acadêmica, Schwarz pratica uma crítica dialética exposta ao risco de resvalar na impotência e no desespero político. Afinal, onde se inscreve o solo social da sua dialética inspirada numa ideologia que sempre insistiu sobre a necessidade de mudarmos o mundo? Como sabemos, o agente histórico dessa suposta mudança revolucionária pregada por Marx seria o proletariado urbano. Onde se esconde esse sujeito histórico na dialética de Schwarz? Até onde sei, não é mais o proletariado do ABC paulista, cujo líder chegou ao poder e nele se manteve e mantém aliado às forças mais retrógadas da política brasileira. Portanto, Lula Sarney ou Lula Maluf é carta fora do baralho dialético. Quem é, afinal, o sujeito histórico da dialética tropical tão refinadamente burilada e reiterada pela crítica de Roberto Schwarz?
Recife, 15 de julho de 2012.

domingo, 1 de abril de 2012

José Miguel Wisnik


Foi um prazer pouco comum conhecer José Miguel Wisnik. Ele veio a Recife participar de um seminário promovido pela Fundação Joaquim Nabuco sobre futebol. Adicionalmente, lançou seu livro mais recente, sobre o mesmo assunto, alvo de acolhida elogiosa nas páginas de cultura da Folha de S. Paulo. Surpreendeu-me saber que o futebol era assunto que o interessava intelectualmente ao ponto de a ele dedicar anos de pesquisa e estudo. O resultado está no seu livro relativamente volumoso publicado pela Companhia das Letras.
Alguns amigos, agora interessados pelo futebol como matéria acadêmica, falaram-me elogiosamente do livro, que de resto ofereceram-me de empréstimo. Agradeci mas recusei, pois sinceramente não me ocorre privilegiar assunto que me interessa apenas enquanto espetáculo esportivo vinculado aos veículos especializados em entretenimento para as massas. Longe de mim desprezar a óbvia significação cultural desse esporte, notadamente no país que se orgulha ainda de ostentar o melhor futebol do mundo, mas minhas prioridades intelectuais foram e sempre serão outras.
Voltando a Wisnik, ele veio diretamente do aeroporto para o meu apartamento trazido pela mediação generosa da minha amiga Valéria Torres. Aliás, nossa amiga comum que o conheceu em Berkeley durante os dois períodos em que ele lá esteve como professor visitante. Essa circunstância propiciou um conhecimento indireto entre nós, já que amigos comuns radicados em Berkeley dele me falaram e vice-versa. Assim que chegaram, ele e Valéria, seguimos para o Restaurante Leite, onde almoçamos também acompanhados por Danielle.
Minha simpatia por Wisnik foi automática. Pelo que dele percebia, através de referências de amigos, além de uma palestra excelente que gravou para a Tv Cultura sobre Mário de Andrade, esperava que fosse mais ou menos como se me apresentou: amável, receptivo, sensível ao convívio inteligente e espontâneo, isento de qualquer afetação. Nossa conversa foi variada, em vários momentos divertida e ampla o suficiente para incluir intelectuais e assuntos do nosso interesse comum: Mário de Andrade, Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Arthur Nestrovski, Drummond, Guimarães Rosa, João Cabral, Chico Buarque, Caetano Veloso... Pena que estava então ainda me refazendo de uma bruta virose associada a rinite alérgica. Isso impediu-me de gozar mais folgadamente a companhia dele e de minhas lindas amigas Valéria e Dáni. Encerrado o almoço, deixamo-lo no hotel onde pouco mais tarde seria levado por um carro da Fundação Joaquim Nabuco diretamente para o cenário programado para acolher o seminário e o lançamento do seu livro. De minha parte, resignei-me a voltar para casa e para a cama. Somente alguns dias mais tarde é que soube, através de Dáni, que, ao saírem do seminário, vieram beber e conversar animadamente nas mesas do Biruta. Embora doente, disse a Dáni, não teria relutado em acompanhá-los, se acaso soubesse do encontro.
A música tem conferido a Wisnik uma fama, ainda que confinada a um público demasiado restrito, incogitável na trajetória de um intelectual de atuação puramente acadêmica. Embora parte de sua obra há muito encontre acolhida em periódicos como a Folha de S. Paulo, notadamente nos cadernos culturais, nem mesmo seus escritos sobre música alcançaram repercussão significativa. Afinal, apesar de tanto enfatizarmos a importância da música na nossa cultura, somos quase iletrados em matéria de história, teoria e crítica musical. Foi depois que passou a exibir-se em casas de espetáculo e a gravar sua própria música que Wisnik passou a desfrutar de alguma fama. Conheço bem pouco suas composições, mas ressalto a belíssima “Assum branco”. Dentre seus muitos intérpretes – citaria o próprio Wisnik e Gonzaga Leal – destacaria Cecília Leite. Surpreendeu-me saber que ele não tinha conhecimento do cd de Cecília Leite, que também compõe um belo dueto com Chico Buarque cantando “Dis-moi comment”, versão francesa de “Eu te amo” escrita pelo próprio Chico.
O momento mais divertido do meu encontro com Wisnik ocorreu quando nos falou de uma visita recente que fez a Antonio Candido. Este, que é na intimidade um talentoso imitador de personagens célebres do seu convívio, começou servindo vinho do porto a Wisnik enquanto se punha à vontade para rememorar encontros com gente como Mário de Andrade, Guimarães Rosa e outros. Ia então recortando na memória episódios dos quais extraía a nota de pitoresco ou humor acentuada por seu dom histriônico. Assim, imitou certos trejeitos adamados (qualificativo por ele empregado) de Mário de Andrade. Rimos muito vendo Wisnik imitar Antonio Candido imitando Mário; também Guimarães Rosa, o “untuoso” (termo empregado por Antonio Candido). Antonio Candido imitou-o reproduzindo um encontro social ligado à juventude de ambos. Participavam de uma festa de intelectuais quando Guimarães, dele se acercando, tomou-lhe a mão e disse enquanto a alisava de modo “untuoso”: “Antonio Candido, autor de Brigada Ligeira, um pequeno grande livro que é minha leitura de cabeceira”. Antonio Candido logo encontra um jeito de se safar das mãos untuosas de Guimarães e deslizar para outro espaço da sala. Pouco depois ouve às suas costas Guimarães repetindo o mesmo ritual pegajoso e hipócrita com um outro escritor.
E assim somos todos, é o que me sugerem essas anedotas tão divertidamente recriadas por Wisnik na mesa do restaurante. Pequenos ou grandes, célebres ou obscuros, em cada um de nós palpitam essas notas humanas e banais, no caso também engraçadas, que ao cabo nos dissolvem numa humanidade comum. O olhar mais severo de um moralista, digamos Machado de Assis, decerto acrescentaria a este breve parágrafo uma máxima de corte menos complacente.
Por fim, uma nota de memória se insinua nessas ligeiras anotações de um encontro prazeroso. É que as alusões de Wisnik a Antonio Candido levaram-me inadvertidamente a um momento inesquecível. Visitando-o em 1995, graças a meu amigo José Luiz Passos, entretivemos uma longa conversa na sala da sua casa acompanhados pela presença discreta de Gilda de Mello e Souza. Como já anotei em textos postados no meu blog algo do melhor que conversamos e ouvi, prendo-me aqui a uma observação particular. É que assim sem mais me dei conta de que Antonio Candido sobreviveu a todos os seus melhores amigos: Oswald de Andrade, Paulo Emílio, Sérgio Buarque de Holanda e, acima de todos, sua mulher e companheira da vida inteira, Gilda de Mello e Souza. Receio que, para além da perda indizível a tudo se sobreponha a consciência dolorosa de sobreviver a todos que com certeza mais profundamente deram sentido à sua vida. Também aqui sei que Machado introduziria uma anotação mais apropriada. Tivesse eu a paciência de catá-la numa de suas obras, não me custaria muito extraí-la das páginas de Dom Casmurro ou do Memorial de Aires.

Recife, 05 de setembro de 2008.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Impacto e Permanência de CG&S


Impacto e Permanência de Casa Grande & Senzala

Resumo: Objetivo, neste artigo, caracterizar, de um lado, o impacto causado por Casa-Grande & Senzala (doravante assim abreviada: CG&S) nos quadros da produção intelectual dos anos trinta desde o momento de sua publicação; de outro lado, acentuar a permanência desta que é, segundo o insuspeito juízo de Darcy Ribeiro, “a obra mais importante da cultura brasileira”. No que se refere ao impacto anotado no título do artigo, intento acentuar que os nomes e setores mais significativos da inteligência brasileira de imediato identificaram na obra de Gilberto Freyre sua força e originalidade. A incompreensão de que ele próprio mais tarde tantas vezes veio a se queixar derivou seja de críticos menores, seja de fatores ideológicos que serão explicitados no corpo deste artigo. Quanto à permanência de CG&S, nenhum fato contemporâneo talvez melhor a comprove do que o progressivo ressurgimento de estudos e interpretações inspirados pela ambição de acentuar a posição tanto seminal quanto clássica da obra que, compreendida na sua autonomia epistemológica e estética, transcende os rumos e posições contingentes do seu autor.
Nota: este artigo foi antes publicado na revista Estudos de Sociologia, da pós-graduação em Sociologia da UFPE, Ano 1, No. 1, Recife, janeiro/junho de 1995. Tomei a liberdade de suprimir algumas notas bibliográficas, além do parágrafo final. As notas que me pareceram necessárias à clareza do artigo foram incorporadas ao texto.

O lançamento do último livro de Harold Bloom nos Estados Unidos, The Western Canon, teve entre nós, aparentemente, uma repercussão de alcance puramente jornalístico. Inspirada na lista canônica proposta por Harold Bloom, a revista Veja convocou quinze intelectuais solicitando-lhes que compusessem listas individuais das vinte obras mais representativas da cultura brasileira (Ver Veja, 23 de novembro de 1994, pp. 108-112). Feitas as listas, delas Veja extraiu um conjunto canônico “definitivo” composto de vinte e duas obras. Embora valha aqui destacar que os intelectuais convocados a propor um cânon (note-se que não escrevo “o” cânon) da cultura brasileira figuram, salvo um ou outro nome discutível, entre os maiores da nossa inteligência, não interessa aos fins visados por este artigo discutir a consistência e legitimidade dos critérios adotados para a seleção canônica.

Se é verdade que iniciativas dessa natureza estão sempre a um passo do consumismo mais banalizador, já que é corriqueiro votarem dentro desse objetivo geral tanto os dez livros que um intelectual levaria para uma ilha deserta quanto as dez mais gostosas penduradas nas sórdidas paredes de uma oficina de automóveis, muita coisa útil pode ser discutida para além do blablablá consumista que pulveriza nosso cotidiano cultural. Se se considera, por exemplo, o contexto cultural anglo-saxão, do qual deriva o livro de Harold Bloom, há que se admitir que a polêmica em torno da definição de um cânon literário, ou mais abrangentemente cultural, encerra implicações da mais alta relevância para a redefinição e realinhamento dos quadros culturais contemporâneos. Pois o que aí está em questão não é meramente a legitimidade estético-cultural de uma obra tida como canônica, mas também, senão sobretudo, os fatores de ordem ideológica que recortam a identidade do cânon nos quadros da cultura. E se hoje tantos ventos polêmicos varrem o Olimpo onde antes mais solidamente se firmara o perfil canônico da cultura anglo-saxônica, ou mais amplamente ocidental, tal fato resulta fundamentalmente da redefinição do lugar ocupado por grupos até recentemente submetidos a uma posição de inferioridade sócio-cultural. Na medida em que agentes intelectuais procedentes desses grupos passam a intervir num espaço antes praticamente monopolizado pela cultura que, em tom francamente depreciativo, se tem caracterizado como WASP (White Anglo-Saxon Protestant), a solidez do cânon passa a ser questionada com veemência suficiente para inquietar as correntes mais elitistas e conservadoras empenhadas no debate cultural contemporâneo.

Mas meu assunto é cultura brasileira e mais especificamente o lugar ocupado por CG&S nos seus quadros gerais. Pareceu-me oportuno principiar pela menção ao livro de Harold Bloom e ao cânon da cultura brasileira precisamente porque a obra-prima de Freyre ocupa no cânon da Veja uma posição privilegiada, ficando abaixo apenas, e imediatamente, de Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Seria porém efetivamente necessário recorrer à enquete da Veja para se reconhecer a magnitude da obra de Gilberto Freyre? Estou certo de que não. Desde 1933, ano em que pela primeira vez foi submetida ao escrutínio do leitor brasileiro, CG&S se impôs como uma obra-prima. E deriva essa qualidade inequívoca não da circunstância, própria de certas obras-primas, de integrar-se a uma categoria de grandes obras cujos méritos e valores predominantes estão já estabelecidos nos quadros clássicos da tradição cultural. Se parte dos seus méritos deriva dessa corrente, ou a ela se associa, outra parte, talvez a mais significativa, intervém nos quadros da cultura brasileira distinguida pela força estilística impressa à empresa de reinterpretação do passado patriarcal brasileiro. Deriva ainda dessa combinação inédita entre o tom ensaístico firmado na sólida formação sócio-antropológica do autor e o raro domínio dos instrumentos expressivos hauridos na intimidade que Freyre desde cedo sedimentara no estudo apaixonado das artes e da filosofia, das línguas e da literatura.

Uma apreciação genérica da fortuna crítica de CG&S de pronto revela que a recepção da obra tem sido quase unanimemente favorável. Se digo quase unanimemente é porque tenho em mente duas ordens de restrição que merecem ser explicitadas e discutidas. A primeira remete ao tom reprovador proveniente da crítica de feição mais conservadora. Um exemplo frisante seria o artigo publicado por Afonso Arinos de Melo Franco em 1934. Embora tenha a lucidez de identificar na obra de Freyre a marca do grande livro, repele no livro a linguagem nele adotada, que lhe soa de pouca dignidade. Nas suas palavras,
“... sua língua deve ser simples e nossa, não julgo indispensável que seja chula, impura e anedótica, tal como aparece em tantas das suas páginas. É pouco técnico esse linguajar. Pouco científico. Dá ao livro um aspecto literário que o seu assunto e as suas graves proporções não comportam”. (“Uma obra rabelaisiana”, in Edson Nery da Fonseça, ed., Casa-Grande e Senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944).
Caberia ainda agregar a este item a crítica praticada por intelectuais de peso menor, quando não simplesmente nulo. Quem hoje sabe dos críticos de formação católica mais conservadora que acolheram com indignação o tratamento conferido por Gilberto Freyre ao papel desempenhado pelos jesuítas no processo da formação colonial brasileira de par com o relacionamento entre vida religiosa e sexualidade no âmbito da família patriarcal?

A segunda ordem de restrição deriva da crítica que, demasiado aderente às circunstâncias em que é produzida, tende a reduzir a obra à ideologia, tanto a ideologia nela própria identificável quanto a que exprime seu autor enquanto cidadão e indivíduo atuante no debate político e cultural. A melhor ilustração seria, neste ponto, a crítica vigorosa, lastreada em grande força argumentativa, desfechada por Dante Moreira Leite no seu admirável O Caráter Nacional Brasileiro e a de Carlos Guilherme Mota em Ideologia da Cultura Brasileira. Sintomaticamente, ambas as críticas, entre as mais duras e ressoantes já lançadas contra a obra de Gilberto Freyre, foram publicadas nos anos 1960 e 1970, momento em que mais se patentearam, contra o pano de fundo do regime militar, as posições mais reacionárias do autor de CG&S.

Embora consciente de que, no trato dessa matéria, já se vai banalizando a referência ao prefácio assinado por Antonio Candido em 1967 e agregado à 5ª. edição de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, parece-me impossível aqui omitir trechos do seu ensaio-depoimento, já que ninguém melhor que ele soube sintetizar o significado profundo que CG&S, Raízes do Brasil e Formação do Brasil Contemporâneo, este de autoria de Caio Prado Jr., tiveram para a sua geração e para as que a sucederam.
Referindo-se aos três livros acima, cuja integridade canônica não foi ainda refutada por nenhum estudioso de mérito, assim se exprime Antonio Candido:
“São estes os livros que podemos considerar chaves, os que parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo”. (“O Significado de Raízes do Brasil, in Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. 8ª. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1975, pp.XI-XII
)
Logo em seguida, referindo-se especificamente ao impacto causado por CG&S junto à geração de que fazia parte, externa o crítico um juízo que, deliberadamente expresso no plural, traduz não só um ponto de vista pessoal, mas um modo de leitura e apreciação compartilhado por toda uma corrente geracional:
“Era justamente um intuito anticonvencional que nos parecia animar a composição libérrima de Casa-Grande & Senzala, com a sua franqueza no tratamento da vida sexual do patriarcalismo e a importância decisiva atribuída ao escravo na formação do nosso modo de ser mais íntimo. O jovem leitor de hoje não poderá talvez compreender, sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente pelo seu autor, a força revolucionária, o impacto libertador que teve este grande livro”. (Idem, pp. XI-XII).
Há nesta citação um ingrediente de fundo ideológico que interessa explorar no contexto dos propósitos norteadores deste artigo. Receoso de que o leitor contemporâneo não alcançasse apreender a real importância “daquele” Gilberto, o Gilberto Freyre que no entender de Antonio Candido passara a adotar atitudes francamente identificadas com as forças mais conservadoras da sociedade brasileira, enfatiza o crítico o caráter revolucionário e impactante contidos em CG&S. Como tantos que têm intentado caracterizar ideologicamente Gilberto Freyre, me parece que aqui confunde ele as posições momentâneas tomadas por Gilberto Freyre com o que muito inapropriadamente chamarei de “caráter ideológico” do autor. Ora, parece-me um equívoco distinguir ideologicamente “este” “daquele” Gilberto. Pois se o leitor põe entre parênteses as posições políticas momentâneas do autor e lê a “ideologia” que lhe percorre de ponta a ponta o conjunto da obra produzida, sem muita dificuldade se vai dando conta de que o Gilberto mais profundo é entranhadamente um conservador. Desde os escritos da juventude até os da velhice, aqui incluídos os escritos do Gilberto que ostensivamente emprestou apoio intelectual e moral ao regime militar, nitidamente se desenha o perfil de um intelectual ostensivamente imantado ao culto da tradição, sempre resistente às forças socioculturais passíveis de transpor o Brasil para um mais avançado padrão de modernidade cultural. A questão que neste ponto me parece mais relevante, diria a questão verdadeiramente decisiva, foi proposta, embora não resolvida, por Darcy Ribeiro.

Quando Gilberto Freyre era abertamente execrado pela nossa inteligência de esquerda, atitude que de resto me pareceria acertada se restrita às contingências ideológicas que a inspiravam, generalizou-se em torno à sua obra uma situação similar àquela que na Argentina afetou a obra de Borges. Foi então que se tornou moeda corrente combatê-lo e negá-lo não a partir de uma análise efetiva da sua obra, mas sim a partir de uma atitude de negação fundada na ignorância pura e simples. Em suma, intelectuais e estudantes, estes frequentemente por aqueles inspirados no que me parece ser um dos mais deploráveis modos de intolerância, tratavam a pontapés uma obra e um autor dos quais tudo ignoravam.

Foi dentro dessa atmosfera de hostilidade iletrada movida contra Gilberto Freyre que Darcy Ribeiro escreveu um ensaio de apreciação geral incorporado, em forma de prefácio, à edição venezuelana de CG&S. (Ver “Gilberto Freyre: Casa-Grande & Senzala”, in Darcy Ribeiro, Ensaios Insólitos. Porto Alegre: L&PM Editores, 1979).
Começando pelo registro bem-humorado do narcisismo insaciável de Freyre, cita o antropólogo alguns elogios, merecidos, a ele feitos no Brasil e no estrangeiro por figuras intelectuais de renome. Embora frisando somar-se contrafeito à corrente dos louvores, não reluta entretanto em enunciar o elogio máximo: CG&S é “...a obra mais importante da cultura brasileira”.

Esboçada a apresentação desse ensaio que importa aqui comentar, retomo afinal o que acima referi como sendo a questão verdadeiramente decisiva proposta, se bem que não integralmente resolvida, por Darcy Ribeiro. Formulando-a em termos de franca perplexidade, assim a enuncia:
“Sempre me intrigou e me intriga ainda que Gilberto Freyre sendo tão tacanhamente reacionário no plano político – em declaração recente chega a dizer que a censura da imprensa é, em geral, benéfica e que nos Estados Unidos a censura é mais rigorosa do que em qualquer outro país do mundo – tenha podido escrever esse livro generoso, tolerante, forte e belo”. (Idem, p. 64)
A questão decisiva consistiria, pois, em explicar o relacionamento contraditório entre o autor e a obra. Somente a crítica primariamente ciosa de deduzir explicações positivistas simplificadoras das complexas mediações inscritas no relacionamento entre esses dois termos, o autor e a obra, ousaria presumir que a obra não passaria, no final das contas, de uma expressão necessária da ideologia abraçada pelo homem que a escreveu. Tanto a história das artes e da literatura quanto a própria história do pensamento social encerram notórios exemplos de obras revolucionárias assinadas por autores conservadores, assim como, contrariamente, obras irrelevantes inspiradas por belos e generosos propósitos de natureza político-ideológica.

Intentando decifrar o enigma imposto pela obra, algo muito além da distinção feita por Antonio Candido entre “aquele” e “este” Gilberto, reitera Darcy Ribeiro no corpo do seu ensaio a questão que confessadamente o intriga. A decifração resultante das reiterações e argumentos que desenvolve residiria num artifício metodológico peculiar à legítima investigação de base antropológica: a divisão epistemologicamente fecunda entre o familiar e o estranho, entre o movimento de empatia confundindo o investigador com o seu objeto e o movimento de estranhamento desdobrando-se na direção contrária. Melhor dar a palavra ao próprio ensaísta:
“Voltemos, porém, à nossa indagação original: o que teria permitido a GF escrever CG&S? A razão preponderante é ser ele um ambíguo. Por um lado, o senhorito fidalgo evocativo de um mundo familiar, de um mundo seu. Por outro lado, o moço formado no estrangeiro, que trazia de lá um olhar perquiridor, um olho de estranho, de estrangeiro, de inglês. Olho para quem o familiar, o trivial, o cotidiano – e como tal desprovido de graça, de interesse, de novidade – ganhava cores de coisa rara e bizarra, observável, referível. Combinando as duas perspectivas nele interiorizadas, sem fundi-las jamais, GF viveu sempre o drama, a comédia – a novela, na verdade – de ser dois: o pernambucano e o inglês”. (p. 73)
A ênfase com que Darcy Ribeiro revisa Gilberto Freyre para o pensamento de esquerda, depois de assentadas as apreciações vigorosamente negativas contidas em obras como O Caráter Nacional Brasileiro e Ideologia da Cultura Brasileira e o tom de alto louvor que imprime à sua celebração do sociólogo pernambucano aparentam haver deslocado para um plano de irrelevância as muitas e severas restrições que lança contra interpretações contidas em CG&S. Assinala, por exemplo, como o emprego de instrumentos analíticos cedidos pela psicologia à obra de Freyre presta-se, em alguns momentos, a exercer papel puramente psicologizante no plano da interpretação efetiva de fenômenos socioculturais brasileiros. Seria o caso da função explicativa atribuída ao sadomasoquismo. No entender de Darcy Ribeiro, que me parece acertado, para Gilberto Freyre o despotismo das nossas classes dominantes “não seria mais que um atavismo social”, uma evidência do masoquismo característico do brasileiro comum (conferir pp. 70 e 86). Tiradas desse tipo, apressa-se Darcy Ribeiro em o demonstrar, iluminam com inequívoca nitidez no corpo de certas interpretações de CG&S “uma tara direitista gilbertiana”.

Os guardiães provincianos da glória de Gilberto Freyre, que hoje interferem entre o leitor e a obra de modo tão negativo quanto antes interferia a identidade ideológica viva e atuante do autor, tanto aparentam deleitar-se com o tom predominantemente celebratório do ensaio de Darcy Ribeiro que as restrições nele contidas, tal como a exposta no parágrafo acima, lhes passam despercebidas, como que rebaixadas a um nível de improcedente irrelevância, repousando diluídas sob o verniz dos justos louvores firmados pela letra apaixonada do autor de Maíra.

Retomando porém a recepção crítica dos anos trinta, foi enorme o impacto causado de imediato por CG&S no ambiente intelectual brasileiro. Baseado nas evidências fornecidas pela fontes documentais que reúne e comenta em Casa-Grande & Senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944, assinala Edson Nery da Fonseca a repercussão alcançada pela obra-prima de Gilberto Freyre nos círculos da crítica nacional durante esse período. A leitura dos documentos por ele reunidos comprova, sem dúvida, a consagração conferida a CG&S pelos nomes mais eminentes da inteligência brasileira. Entre as duas datas acima referidas assistiu-se à publicação de artigos e ensaios nos quais se manifesta a recepção entusiasmada da melhor crítica militante. Embora bastante diferenciados do ponto de vista da formação intelectual e ideológica, escritores como Manuel Bandeira, João Ribeiro, Roquette-Pinto, Miguel Reale, Agrippino Grieco, Nelson Werneck Sodré, Edison Carneiro, Sérgio Milliet, Álvaro Lins, Wilson Martins, entre tantos outros, convergem no tom elogioso com que aprovam a obra de Gilberto Freyre. Observa-se aqui, entretanto, uma omissão intrigante: Mário de Andrade.

Personagem central do Modernismo proveniente da Semana de Arte Moderna, estudioso e pesquisador insaciável, ávido de tudo ler, divulgar e criticar, não deixa ele, contudo, nenhum trabalho dedicado à apreciação de CG&S ou às duas outras obras de Gilberto Freyre publicadas nos anos trinta: Sobrados e Mucambos e Nordeste. Dada a centralidade do papel que desempenhou no processo cultural brasileiro entre 1922 e 1945, ano em que morreu, acrescida da excepcional amplitude de sua formação de intelectual militante, seria absurdo supor que Mário de Andrade não leu CG&S. Tanto é isso verdade que a mais notável estudiosa de sua obra, Telê Porto Ancona Lopez, anota esta observação no livro em que trata precisamente de rastrear o processo de formação intelectual e ideológico de Mário de Andrade:
“Na bibliografia, no Prefácio e nas notas para a Introdução de Na Pancada do Ganzá, cita principalmente Tylor, Frazer, Lévy-Bruhl, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre. Foram esses autores os que formaram a base dos conhecimentos antropológicos e sociológicos que aplicou no Brasil”. (Mário de Andrade: Ramais e Caminho. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1972, pp. 86-7).
Logo, fica aí comprovado que o silêncio de Mário de Andrade de modo algum se explica pelo desconhecimento da obra. É sem dúvida intrigante esse silêncio interposto entre os dois escritores que foram provavelmente os mais importantes e influentes intelectuais brasileiros nos anos trinta. Haveria aí algo mais que a discreta, sobretudo de parte de Mário, rivalidade entre dois intelectuais disputando posições de liderança? Como me confesso incapaz de satisfatoriamente responder à questão por mim próprio introduzida, deixo-a suspensa no ar ou na mente do leitor curioso.
Considerando todas as evidências disponíveis, este artigo registra apenas algumas entre as mais notórias e notáveis, me parece desnecessário insistir ainda sobre o impacto provocado por CG&S desde sua publicação em 1933 e sua intocada permanência na linha do presente. Intentei considerar, ainda que muito genericamente, dois fatores negativos interpostos entre a obra e o leitor: a tacanhice reacionária de Freyre, para valer-me aqui de uma expressão empregada por Darcy Ribeiro, e, mais recentemente, o controle intolerante da sua glória exercido por guardiães provincianos capazes da proeza de serem ainda mais gilbertianos do que o próprio Gilberto. Se contra o primeiro fator, dominante nas décadas de 1960 e 1970, investiu certa corrente crítica de esquerda fixada mais no ajuste de contas ideológico do que na apreciação isenta da obra, daí resultando erros de enfoque e atitudes de intolerância neste artigo anotados, contra o segundo se batem em especial estudiosos independentes atuantes no Recife tanto louvado e amado por Gilberto Freyre.

Mas o balanço geral que se poderia fazer, e aqui não faço, seria indiscutivelmente animador. Combatido e negado notadamente durante os anos 1960 e 1970, em larga medida devido ao deplorável apoio que ostensivamente emprestou ao regime militar, já agora se nota a emergência de estudos orientados para o objetivo de reavaliar, à margem de implicações ideológicas momentâneas, o significado mais permanente da obra de Gilberto Freyre.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Vinícius de Moraes




Vinícius é um documentário que encanta, diverte e sobretudo comove o espectador. Esses efeitos decorrem antes de tudo do personagem que se move no centro da trama. Se a tradição romântica, datemo-la a partir de Rousseau e Herder, elevou o artista à condição de polo da realização estética, tão ou até mais importante do que a própria obra de arte, Vinícius cedo se destacou como um poeta cuja força narcisista converteu a obra que produziu numa derivação ou projeção da sua personalidade. Mário de Andrade, valendo-se de outras palavras, acentua esta verdade ao criticar em 1939 a poesia de Vinícius num artigo mais tarde enfeixado no volume O Empalhador de Passarinho. E logo comprova seu argumento citando estes versos exemplares:
“Homem sou belo
Macho sou forte, poeta sou altíssimo
E só a pureza me ama e ela é em mim uma cidade e tem mil e uma portas”.

Os versos acima são extraídos do “Poema para todas as mulheres”. Não bastasse o tom afoito, ou até arrogante, ele demonstra, como romântico impenitente que sempre foi, o quanto a obra é antes de tudo uma expressão da sua individualidade soberana. E o fato é que isso é ainda bem pouco, se consideramos, no desdobramento da sua vida e obra, o quanto espraiou esse tom afoito em tudo que viveu e poeticamente realizou, uma coisa sendo na verdade indissociável da outra. O documentário que doravante acompanho constitui prova cabal do que acabo de afirmar.

O documentário começa nos bastidores do teatro que serve de palco para a encenação da vida e da obra de Vinícius. Os atores que o interpretam, Camila Morgado e Ricardo Blat, mesclam ao longo da obra a leitura de fragmentos de poemas de Vinícius, infelizmente vários carecem de identificação, e matéria de cunho biográfico e histórico alternada com a interpretação de canções compostas pelo próprio Vinícius e seus parceiros mais frequentes: Tom Jobim, Baden Powell, Carlos Lyra, Edu Lobo, Francis Hime, Toquinho.

Não bastasse a excelência dessa amostra da história recente da música brasileira, comparecem ainda, como depoentes e comentadores, nomes definitivos da nossa cultura como Antonio Candido, Tom Jobim, Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Maria Bethânia e vários outros. Dentre os poemas cujos fragmentos são declamados sem a devida identificação, menciono três que de resto figuram entre os melhores que escreveu: “Poema de Natal”, “O haver” e o também longo e comovente “Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão”. Aproveito a deixa para aqui enfiar uma nota de espanto e protesto diante do fato de que o segundo poema citado, “O haver”, não consta da minha edição da Poesia Completa & Prosa de Vinícius de Moraes, editora Aguilar. Friso que minha edição é de 1986, lançada portanto 6 anos depois da morte do poeta.

Da infância à idade tardia, apesar das muitas ausências impostas pela vida de diplomata e outras circunstâncias, Vinícius acompanhou as transformações do século que profundamente alteraram a paisagem urbana do Rio de Janeiro, além de ser personagem de muitas delas. Nascido ainda quando as luzes da belle époque já se apagavam no horizonte de modo catastrófico, cedo impregnou-se da cultura francesa que tão nitidamente desenhou o perfil de várias gerações da elite carioca. Mas esse processo de impregnação foi sempre impuro, notadamente no seu caso. Quero noutros termos ressaltar o caráter da mestiçagem que no conjunto da nossa história cultural sempre entreteceu a tradição cultural de corte europeu, antes de tudo francês, com os ingredientes africanos e indígenas que tão singularmente nos diferenciam da Europa e do conjunto da tradição ocidental.

O pai de Vinícius, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, a quem dedicou o poema acima mencionado, foi poeta anônimo de extração erudita, enquanto a família da mãe era muito achegada à boêmia e à música popular de tão viva presença no universo social do Rio de Janeiro. Já aí se nota como o ambiente que enquadrou a sua infância livremente conciliou na origem dos seus próprios ancestrais traços culturais divergentes. A isso importaria acrescentar seus estudos, desde pequeno, no Santo Inácio, colégio jesuíta intimamente associado à formação da elite carioca.

Sua poesia da primeira fase, de nítido viés metafísico, transpira a atmosfera mística assimilada no contexto católico que vincou a maior parte da sua juventude. A isso se soma a poderosa influência que sofreu de Octávio de Faria, notável romancista católico politicamente reacionário, o que quase soava como truísmo no clima ideológico e cultural do Brasil da década de 1930. Mais tarde, já na Faculdade de Direito, aproximou-se do integralismo, a ideologia de corte direitista hegemônica à época. Evidentemente sua íntima ligação com Octávio de Faria tinha muito a ver com esses traços ideológicos dos quais mais tarde se dissociará.

Ferreira Gullar observa com irreprimível humor que Vinícius traçou na vida uma trajetória singular. Poeta de marcada aprendizagem erudita e francesa na juventude - mais tarde acrescida da literatura inglesa, antes de tudo romântica, assimilada durante seus estudos em Oxford - à medida que amadurece vai progressivamente se despojando de toda essa herança pesada e asfixiante. O peso maior, em termos de tradição opressiva e conservadorismo político, procede de sua já referida formação católica. Entretanto, mesmo quando católico confesso e praticante já vivia uma vida dupla, aliás comum à religiosidade tingida de tradição patriarcal, que tendia a isolar e comprimir a mulher no recesso da casa enquanto tecia com rédea frouxa, para não dizer desatada, uma ética masculina no geral pontuada pelo desmando e a duplicidade hipócrita. Como era de conveniência corrente para os homens, Vinícius pagou farto tributo a essa divisão injusta atribuível aos gêneros bem característica das culturas de raiz patriarcal.

Depois dos livros ancorados na metafísica de intensa impregnação católica, reponta na poesia de Vinícius a influência de Manuel Bandeira. Também da sua primeira mulher, Tati, de ideias políticas e estéticas avançadas. Ele próprio reconhecia o quanto foi transformado pela intimidade amorosa com Tati. Sua amizade com o socialista americano Waldo Frank, lavada na água suja da miséria nordestina que vieram conhecer de perto, também decisivamente concorreu para mudar sua visão da realidade. Isso se traduzirá na sua poesia que, sobretudo a partir de A Saudade do Cotidiano e O Encontro do Cotidiano, ata as matrizes eruditas à matéria impura e até sórdida da vida tal como já expressa nos títulos que acabo de indicar. É a partir daí que dominam na sua poesia a matéria carnal do cotidiano, os bordéis sórdidos da Lapa, a paixão erótica elevada a expressões de lirismo saturadas pela realidade sem máscaras e isentas de transfigurações religiosamente idealizadas. Assim grosseiramente descrevo o processo através do qual Vinícius se desprende das amarras conservadoras do catolicismo e dos vínculos tradicionais que lhe abafaram a infância e a juventude.

Antonio Candido, sempre agudo e preciso, projeta mais alguma luz sobre as linhas incertas desse quadro quando ressalta que Vinícius soube, mais que qualquer outro poeta modernista, harmonizar sua fidelidade às formas poéticas da tradição com o mergulho no cotidiano, a imersão na corrente da vida isenta dos artificialismos que tanto recobrem a tradição erudita. Vinícius consolidou, em suma, a ponte entre a tradição erudita e a matéria do cotidiano postulada e também largamente praticada desde os primeiros ecos do modernismo por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e nossos poetas mais sólidos e renovadores. Mas ninguém avançou tanto nessa linha quanto Vinícius, notadamente a partir do momento em que definitivamente se desgarra da poesia canônica e impressa e todo se entrega à poesia posta a serviço da música popular num momento de extraordinária inflexão qualitativa no veio fecundo e democratizante da cultura brasileira das décadas de 1950 e 1960.
Drummond confessou com tocante franqueza e generosidade a inveja que a vida de Vinícius lhe inspirava. Segundo ele, Vinícius foi o único poeta que viveu integralmente como poeta, aquele que teve a coragem de converter a paixão antes em matéria de vida do que de poesia. Sem dúvida, um personagem desse porte constitui um prato cheio, ou já feito, para um bom documentário ou uma boa biografia, como é a que José Castello escreveu.

A vida passionalmente vivida se traduz antes de tudo na sua fome infrene de amor, na sua determinação de viver desgovernado pelo princípio da paixão. Daí resultaram nove casamentos, reviravoltas mirabolantes e loucuras que raros ousariam cometer em nome da paixão carnal e do amor incendiado por uma intensidade romântica que requeima de inveja os românticos frustrados e inspira estranheza ou reserva ao racionalista regulado por seu senso de conveniência e medida. Vinícius casou tanto quanto Oswald de Andrade, outra figura lendária que, como tal, também sobrepôs a vida vivida à obra realizada, que, também como é de praxe, resultou muito imperfeita.

No que se refere a esse ponto, há quem tenda a depreciar essa verdade na obra de Vinícius. É um fato marcante no documentário. Todos que se pronunciam sobre a obra, antes de tudo sobre o autor, silenciam ou são incapazes de reconhecer o quanto há de imperfeição e fragilidade no romantismo exaltado que sustenta e move a poesia de Vinícius. O erro de apreciação é parcialmente compreensível, se se considera que o documentário objetiva antes de tudo realçar em tom de encantamento e paixão a grandeza singularmente humana do personagem. Mas cabe ao crítico consistente e isento também assinalar o quanto a obra de Vinícius está complacentemente saturada de lugares comuns típicos do romantismo desregrado, que privilegia antes a expressão da subjetividade criadora do que a realização formal da ideia ou daquilo que Mário de Andrade, também contaminado pelo fascínio das forças líricas inconscientes, louvava enquanto impulso desgovernado da criação poética.

Vinícius era passional demais para se contentar em reter a vida ardentemente consumida nos limites convencionais do amor conjugal e da família. Viveu sempre possuído por uma sede de presença, de vida passionalmente movente que o impelia a abrir literalmente as portas de sua casa para a festa e a música e a farra sem hora ou medida. Daí o cortejo de amigos que foi arrebanhando ao longo da vida. Daí a paixão pelo cinema e pelo jazz, em especial durante os anos em que viveu em Los Angeles como diplomata. Daí as viagens que se repetiam e renovavam devido à profissão de diplomata, mas também à margem dela. A vida em trânsito contínuo levou-o do Rio a Oxford, de Paris a Los Angeles, de algum lugar a Montevidéu, daí aos candomblés da Bahia, da Itália à Argentina, de São Paulo ao deus dará... Toda essa viagem trepidante dentro da vida era acelerada pelo álcool, do qual se tornou dependente e ao qual foi fiel até a morte. Se foi fiel a alguma coisa, digamos que o foi ao uísque. Como disse numa de suas definições definitivas, o uísque é o cachorro engarrafado, isto é, o verdadeiro amigo do homem. Sem deixar de acrescentar que nunca viu amizade nenhuma germinar em leiteria.

Tudo isso visto e sorvido num documentário é belo, sedutor e estonteante. Os amigos celebram Vinícius, sua vida de desgoverno e paixão, e se rendem deliciados a seu narcisismo generoso e absorvente. As mulheres imagino, e o invejo, o quanto não se entregaram enlouquecidas à sua fome de carne e amor, carícias, gozo e outros inefáveis da intimidade amorosa. E o que dizer das incontáveis que antes e ainda no presente e por tempos improváveis se abandonaram, ouvindo seus poemas musicados, às fantasias mais indizíveis e extremas? Evocando os versos modelares de Chico Buarque: “O que não tem governo / nem nunca terá / o que não tem vergonha / nem nunca terá / o que não tem juízo”.

Mas o documentário abafa os danos decorrentes da paixão infrene, silencia ainda sobre o que meu amigo Luciano Oliveira chama de os anexos do amor ou ainda as agruras do amor casado e atado a filhos que, como escreveu o próprio Vinícius, é bem melhor não tê-los. E complementa: sem tê-los, como sabê-los? Ora, não é preciso ir a tanto para avaliar o quanto nos custam e o quanto lhes custamos. O que intento melhor salientar é que o filme compõe um retrato puramente sedutor e deslumbrante de Vinícius, um retrato que nos faz espontaneamente cair de riso enlevados diante da própria loucura inconsequente, diante da porra louquice que com certeza muito vincou a vida aventurosa e passional de Vinícius. Noutras palavras, ao silenciar sobre os danos e anexos da vida passionalmente desgovernada, o documentário suprime a dimensão ética da nossa experiência amorosa. Essa dimensão poderia ser menos vagamente sugerida se formulasse a seguinte questão: até onde posso ir na minha fome de amor e sexo, de desejo e realização do desejo?

Todos sabemos, salvo os ingênuos e omissos diante da vida, que é impossível amar sem causar algum dano ao outro. Mas isso não nos isenta desta interrogação angustiante: até onde posso em nome do meu desejo e do meu amor causar dano ao outro que me ama e sobretudo amo? Ninguém pode em sã consciência legislar sobre isso, determinar a priori o limite arbitrário entre a busca do amor e as consequências dessa busca. Mas a questão de fundo ético é real, ainda quando, por pura cegueira egoísta ou compreensível prevalência do princípio do prazer, convenha empurrá-la para debaixo do tapete e entregar-se ao impulso do gozo imediato da vida. Como afirmei, esse problema ético é central na vida aventurosa de um homem como Vinícius e não penso que propô-lo consista em incorrer em simples interpelação moralista.

Como todo grande sedutor, como todo romântico que escolheu viver a vida para além das convenções que nem sempre podem ser descartadas como artificialismos atravancadores da liberdade humana, do empenho em realizar uma vida autêntica, como tanto prezavam sustentar os existencialistas sartreanos, Vinícius aparentemente nunca perdeu o sono atormentado por esses obstáculos éticos inscritos na esfera da intimidade amorosa. Que me lembre, nenhum grande sedutor relutou entre a mulher desejada, não importa a que preço, e os limites éticos da realização do desejo. Tônia Carrero, que foi grande amiga de Vinícius desde o primeiro casamento deste, afirma sem nenhuma reprovação moral aparente que ele era capaz de qualquer baixeza para conquistar uma mulher.

De Casanova a Vinícius, traçando um limite temporal arbitrário, não sei de nenhum grande sedutor que tenha refreado sua sede de conquista cerceado pela questão ética que aqui proponho. Portanto, fechando ou abrindo as pernas, a alternativa fica a critério ético de quem me leia, é fato que a sedução colide com a ética, quando não simplesmente a ignora. Esticando ainda mais a corda, para que essa digressão não se exceda em ponderações morais que de ordinário descambam para o leito apertado do moralismo, convenhamos que o desapreço pelo limite ético convém tanto ao sedutor quanto ao seduzido, tanto a quem vive e realiza a vida na linha do excesso descrito pela biografia de Vinícius quanto ao sedutor comprimido malgré-lui que foi, por exemplo, Drummond. O fato é que a ética, em assuntos dessa natureza, constitui sempre um constrangimento ou impedimento que agride nossa natureza indomavelmente egoísta. É por isso que tantas vezes adoecemos quando renunciamos a desejos e tentações demasiado desejáveis. Ninguém precisaria ler Freud ou deitar num divã para ter consciência dessa banalidade recorrente na nossa economia erótica e moral.

O fato é que, reitero e amplio, caímos no laço da sedução que pontua a trajetória biográfica de Vinícius. É isso o que pulsa no cerne da recepção encantatória e deleitosa com que viajamos deslumbrados no bojo dessa cadeia de imagens e sons, de fantasias e pulsões que compõem a tessitura do documentário. O receptor generoso, na linha de Drummond, admira ou inveja Vinícius no melhor sentido da inveja ao reconhecer que ele foi o único poeta investido do desejo e da coragem de fazer de sua vida um largo e absorvente poema passional. O invejoso, pelo contrário, vê o filme roendo a corda de suas frustrações e na inveja ressentida com que abarca a vida e a obra do poeta projeta no que ele viveu tudo o que gostaria de ter vivido. É uma prova variável, convenhamos, do desejo de ser Vinícius.

Saindo um pouco das ponderações éticas insolúveis que acima esbocei, salvo em alguma medida a ética e Vinícius ao introduzir neste ponto um outro comentário de Ferreira Gullar. Rememorando Vinícius, afirma não conseguir lembrá-lo senão rindo, senão entregue ao prazer do riso, da atitude afirmativa e gozosa diante da vida. O próprio Gullar se ilumina na moldura de um riso espontâneo ao exprimir o sentimento com que evoca o amigo morto. Vislumbra-o sempre no avesso do desespero, sempre na faixa iluminada da vida. Indo adiante, afirma que esta é uma invenção, isto é, depende da atitude positiva ou negativa com que a encaramos e vivemos. Por conseguinte, é inútil e mesmo indesejável procurar no fundo da nossa experiência o sentido de uma verdade objetiva e universal relativa à vida. Isso é coisa de chatos como Beckett, citado literalmente por Gullar, ou intelectuais sombrios que se enredam e se atormentam – pior ainda, nos atormentam – buscando ou mesmo traçando na obra que criam um hipotético e de resto improvável sentido para a vida. Somos nós que a cavaleiro de nossa subjetividade arbitrária propomos um sentido para a vida e vivemos movidos pela determinação de realizá-lo. Vinícius teria feito isso ao decidir-se pela vida que viveu comunicando aos amigos e a todos tocados por sua vida um sentido de vida alegre e prazerosa.

Não que tenha sido feliz, como Chico Buarque certeiramente observa. Afinal, reiterando o óbvio, Vinícius foi romântico por temperamento, convicção e diria até determinação. Ora, um dos traços definitivos do romântico radica precisamente na busca intransigente do ideal: a mulher ideal, o amor ideal e outros ideais que são por definição inalcançáveis na vida. É isso, em suma, o que me assegura na convicção de que Vinícius não foi nunca feliz. De resto, felicidade é sempre um estado provisório, nunca uma fortuna confundível com a duração que seria permanência. A propósito, ele inventa a quadratura do círculo ao conciliar a duração provisória e o infinito nos dois versos que são talvez os melhores que escreveu e fecham seu mais belo e mais citado soneto: “Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”.
Ficha técnica:
Direção: Miguel Faria Jr.
Elenco: Camila Morgado e Ricardo Blat.
Roteiro: Miguel Faria Jr. e Diana Vasconcelos
Colaboração de Eucanaã Ferraz.
Texto final: Eric Nepomuceno.
Fotografia: Lauro Escorel.
Direção musical: Luiz Cláudio Ramos
Direção de arte: Marcos Flaksman
Montagem: Diana Vasconcelos.
Recife, 14 de outubro de 2010.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Machado e alguns críticos




Leio no avião, voando de Recife a Salvador, o livrinho sobre Machado de Assis que Alfredo Bosi escreveu para a coleção Folha Explica. Com elegância e estilo, traços que distinguem os grandes intelectuais uspianos, ele introduz duas fortes objeções: uma contra o método crítico de Antonio Candido sintetizado na sabida fórmula: conversão do fator externo (ou sociológico) em interno (ou estético); a outra, contra o famoso esquema do descompasso entre base escravista e ideologia liberal proposto por Roberto Schwarz para analisar o conjunto dos romances de Machado.

Retomo a anotação precedente iniciada em pleno voo. Bosi estica a primeira objeção ao extremo de caracterizar o método crítico de Antonio Candido como determinista. Não bastasse tanto, associa os fundamentos do sociologismo crítico deste a Louis de Bonald, o notório pensador reacionário francês. Bosi não se detém uma linha sequer na demonstração do vínculo ideológico entre os dois autores, deixando assim no ar a suspeita de um tom de maledicência crítica. Diz isso e vai adiante como que insinuando que o estilo e a elegância uspiana consistem na leviandade da crítica que morde soprando, ou atinge o alvo evitando nomeá-lo.

É curioso observar como os parâmetros da crítica literária de fundamentação sociológica propostos por Antonio Candido tem suscitado mal-entendidos. Enquanto uns erradamente, no meu entender, confundem sua concepção da crítica ao identificarem-na com uma forma espúria de formalismo sociológico, outros, é o caso de Bosi, criticam-no por subordinar os valores estéticos da obra aos sociológicos. Que me lembre, todavia, nenhum dos que se colocam na última categoria chega ao extremo de qualificar a obra crítica de Candido como determinista.

Pessoalmente sustento minha convicção de que Antonio Candido é a mais alta realização da crítica literária e cultural formada nos quadros da nossa ainda rala tradição acadêmica. Além dos seus dotes extraordinários de crítico, já evidentes no perfil precocemente sólido espelhado na crítica de rodapé que escreveu ainda quando estudante, seus ensaios de fundamentação metodológica, reunidos no volume Literatura e Sociedade, encerram a mais lúcida, penetrante e flexível reflexão teórica de que dispomos sobre o assunto. Nos ensaios aos quais aludo, notadamente os dois primeiros – Crítica e sociologia e A literatura na vida social – não encontro formulações que justifiquem as duas deduções acima assinaladas, isto é, o formalismo sociológico e, menos ainda, a crítica de base sociológica de cunho determinista.

Passando a Roberto Schwarz, o mais distinto discípulo de Antonio Candido, aqui Alfredo Bosi tem o zelo de proceder de modo mais criterioso. Depois de ressaltar o argumento do descompasso entre base econômica escravista e adoção do ideário liberal europeu no Brasil imperial, suporte teórico da obra de Schwarz sobre Machado de Assis, observa a ausência de tratamento dialético da antítese proposta. No entender de Bosi, Schwarz é incapaz de captar as expressões diferenciadas do liberalismo brasileiro, o que põe em xeque o argumento da desfaçatez e volubilidade das elites, dado estrutural da análise desenvolvida por Schwarz. Ademais, refutando o esquema deste, baseado no pressuposto da homologia entre forma estética e estrutura social como uma peculiaridade da formação sócio-econômica brasileira, ressalta que a conjunção liberal-escravista é identificável em “todas as formações da monocultura exportadora pós-coloniais, como o Brasil do açúcar e do café, as Antilhas do açúcar, particularmente Cuba e Jamaica, e todo o Velho Sul algodoeiro dos Estados Unidos” (p. 21). Acrescenta que em todos os casos mencionados a economia e a ideologia de base liberal conciliaram-se com o tráfico e o trabalho escravista. Restaria então indagar sobre a pertinência e eficácia teórica do esquema formulado por Roberto Schwarz, por muitos distinguido como a melhor contribuição ao estudo da obra de Machado de Assis.
O assunto me lembra, a propósito, um ensaio de Sérgio Paulo Rouanet incorporado ao volume O Mal-estar na Modernidade. Trata-se de “Contribuição, salvo engano, para uma dialética da volubilidade”, apreciação geral de Um Mestre na Periferia do Capitalismo, segundo livro de Schwarz dedicado ao romance de Machado. Que eu saiba, o extraordinário ensaio de Rouanet não teve maior repercussão entre os especialistas, incluído o próprio Schwarz. Aparentemente, sobretudo nas páginas de abertura e fecho, é uma peça de alto louvor crítico ao livro do grande machadiano da USP. Todavia, à medida que avança na leitura, o leitor perspicaz se vai dando conta de que o desdobramento da argumentação obedece a um princípio irônico similar a tantas das armadilhas irônicas que o sutil Machado interpõe na linha entre a aparência e o fundo, entre o ato e a intenção, ou ainda entre o fato apreendido em sua mera exterioridade e sua significação profunda. Pois o fato é que Rouanet – na abertura e na conclusão, como já frisei – não poupa elogios à obra e a à fina inteligência crítica de Schwarz. Contudo, à proporção que subordina o método elogiado ao crivo da recepção crítica, vai o leitor gradualmente se apercebendo de que, no conjunto, o ensaio é uma admirável operação de desmonte de toda a obra a princípio louvada. Em suma, Rouanet aprofunda com argumentação mais sólida e ampla as objeções condensadas no livrinho de Bosi que é objeto destas anotações. Sublinho, porém, uma diferença crucial: o ensaio dele é em tudo superior ao de Bosi, diria que superior a toda a crítica que conheço contra ou a favor da obra de Roberto Schwarz relativa a Machado de Assis.

Salvador, 13 de agosto de 2004.

domingo, 6 de junho de 2010

Mário de Andrade e alguns contemporâneos


Mário, G. Freyre, Graciliano...

Durante anos fui leitor apaixonado e acrítico de Mário de Andrade. Somente bem mais tarde me dei conta de que a paixão, fundada em altas motivações intelectuais e humanas, praticamente anulara em mim a percepção crítica de algumas insuficiências flagrantes no caráter e na prática intelectual de Mário. Poderia hoje com segurança assinalar alguns exemplos. Foi lendo com maior escrutínio crítico a obra de escritores como Gilberto Freyre e Graciliano Ramos que me apercebi do silêncio aparentemente inexplicável com que Mário tratou a ambos. Poderia ainda acrescentar, ocorre-me agora, Monteiro Lobato, além da corrente introspectiva e metafísica das décadas de 1930 e 1940 , na qual sobrelevam nomes como Lúcio Cardoso, Cornélio Pena e Clarice Lispector.

Como explicar que um crítico e leitor tão generoso e onívoro tenha ignorado de público ou considerado muito parcialmente a obra de contemporâneos tão importantes? No que se refere a Monteiro Lobato, é claro que o affair Anita Malfatti, inscrito nas origens remotas do movimento que Mário desde cedo liderou identificando-se confessadamente com seus ideais mais profundos, desempenhou papel decisivo. É compreensível que a luta por hegemonia estética e intelectual tenha dividido ambos em campos convencionalmente opostos. Digo convencionalmente opostos por ter hoje nítida consciência de que Lobato não era um pré-modernista, para ficar numa distinção superficial consagrada pela historiografia oficial do modernismo. É portanto compreensível que se tenham enfrentado nestes termos; não é porém aceitável o fato de Mário não haver nunca reconhecido de público os méritos literários e intelectuais do seu adversário, que de resto supera boa parte da corte medíocre que cercou o autor de Macunaíma. Mais que isso, os méritos do grande agente modernizador do Brasil que foi Monteiro Lobato. A omissão é ainda mais intrigante se consideramos o quanto a prática pública de ambos convergia.

A omissão de Gilberto Freyre na obra de Mário é uma injustiça ainda mais grave, indigna de um intelectual que pelejou por ser isento de paixões mesquinhas no trato das questões culturais. Decerto afetado pela antipatia recíproca que desde cedo os separou, é também compreensível, dentro destes limites, a reserva e frieza com que tratou o pernambucano. Quando porém Casa-Grande & Senzala vem a público, já não há como objetivamente silenciar sobre a grandeza do feito de Gilberto Freyre. Se a isso acrescentarmos o fato de que compartilhavam ideais nacionalistas convergentes, como explicar que Mário jamais tenha escrito e publicado sequer uma nota crítica reconhecendo os méritos extraordinários da obra marco de Freyre?

Ocorre-me neste passo evocar dois fatos provindos de fontes insuspeitas para evidenciar a parcialidade crítica de Mário e sua vulnerabilidade à ação ressentida contrária a tudo que de público pregou em nome do seu humanismo cristão. O primeiro está contido em Ramais e Caminho, ensaio de biografia intelectual assinado por Telê Ancona Lopez, zeladora fiel da obra e do acervo de Mário. A pesquisa em que o livro se apóia deixa claro não somente o fato de que Mário leu cuidadosa e anotadamente Casa-Grande & Senzala, mas que também distinguiu a obra como uma das fontes do seu projeto cultural em defesa dos valores nacionalistas.

O segundo fato provém de uma longa conversa com Antonio Candido e Gilda de Melo e Souza, que em 1995 franquearam-me o privilégio de uma demorada visita à sua casa. Conversamos livremente sobre muitos assuntos. Por motivos óbvios, os dominantes foram Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Confesso que me retirei levando comigo algumas grandes revelações e surpresas ouvidas do nosso grande crítico. Registrei um tanto extensamente a visita e a conversa no diário que então escrevia em São Paulo, onde provisoriamente residi, pela última vez, no primeiro semestre de 1995. Dada a oportunidade do assunto, aqui registro de memória o que importa para os argumentos desta entrada.

Ouvi de Antonio Candido a revelação de que Casa-Grande & Senzala era o livro que gostaria de ter escrito. Embora tenha feito severas restrições a Gilberto Freyre e a seu comportamento ideológico, sobretudo nos anos tardios deste, restrições que substancialmente endosso, foi de isenção exemplar no reconhecimento dos méritos da obra na medida em que independem da biografia do autor. Pena que de público tenha sido omisso por tanto tempo, o que novamente prova que o juízo e a ação de nenhum intelectual se manifestam integralmente a salvo do ressentimento e até das paixões mesquinhas.

Mas o que desejo observar a propósito de Mário é o fato de que, ainda segundo Antonio Candido, lá pelos idos em que Gilberto sofreu tenaz perseguição do interventor do Estado Novo em Pernambuco, Agamenon Magalhães, Sérgio Buarque de Holanda tomou a iniciativa louvável de mobilizar publicamente a opinião intelectual paulista em defesa do escritor pernambucano. Teve então a idéia de circular um abaixo-assinado recolhendo assinaturas ilustres como ato de denúncia contra o arbítrio do interventor. Mário de Andrade recusou-se a assinar o documento, recusou-se a assumir qualquer posição pública em defesa de Freyre.

Quanto a Graciliano Ramos o juízo do tempo o confirma como a expressão máxima da corrente literária hegemônica a partir dos anos trinta: o Romance Social do Nordeste. É certo que à época era bem maior o prestígio de José Lins do Rego, prestígio confirmado e reforçado pela apreciação crítica de Mário que chegou ao extremo de nele identificar o maior romancista brasileiro. Isso está explicitamente anotado num artigo que dedicou à obra de Lins do Rego, como qualquer interessado poderia comprovar lendo O Empalhador de Passarinho. Que eu saiba, Mário nunca escreveu qualquer artigo sobre Graciliano Ramos. É um outro fato de difícil explicação. Seus contemporâneos de mais alto valor crítico (como Carpeaux, Álvaro Lins, Antonio Candido, para ficar na menção dos mais notáveis) foram unânimes em reconhecer o valor da obra de Graciliano. O juízo do tempo, como acima ressaltei, veio apenas confirmar a melhor apreciação literária brasileira. Hoje pode-se com segurança afirmar que o prestígio de Lins do Rego encolheu um pouco. O de um outro concorrente de peso, Jorge Amado, encolheu ainda mais, pelo menos aos olhos da crítica especializada. Eu mesmo há muito me desinteressei pela obra do baiano, que hoje releria muito seletivamente.

Dado o fato de que a orientação crítico-ideológica fundamental de Mário estava associada a esta corrente hegemônica da literatura brasileira, não há como explicar por aí sua resistência ou silêncio perante a obra de Graciliano. Embora dissentindo da orientação dos nordestinos quando estes tendiam a sobrepor a ideologia regionalista e política aos valores prioritariamente estéticos da obra, Mário alinhou-se substancialmente a esta tendência, tanto que foi talvez o crítico mais entusiasta da obra de Lins do Rego. Ora, dentre todos os nordestinos Graciliano foi o mais coerentemente literário no sentido de que sempre se recusou a subordinar a obra a interesses ideológicos. Qualquer leitor corrente da nossa literatura sabe que foi único entre seus pares na prioridade que sempre conferiu aos valores estéticos da obra, único no rigor ideológico e formal com que construiu sua obra sem qualquer concessão às pressões políticas do tempo. Seria um motivo adicional para Mário reconhecer-lhe a superioridade perante os outros, já que este era um dos critérios inegociáveis da crítica militante que exerceu no período. Como então explicar o fato de que nunca dedicou qualquer estudo ou artigo à apreciação do romancista alagoano?
Era por identificar-se com as tendências e valores expressos na corrente do romance nordestino, assim como na literatura compreendida em geral como uma complexa articulação de valores estéticos e pragmatismo social, que Mário fazia reservas ao romance socialmente desinteressado. Isso explicaria, presumo, suas restrições – às vezes asperamente injustas, como foi o caso da sua apreciação de Lúcio Cardoso – ao romance de corte psicológico e metafísico. Que eu saiba, não registrou de público, com o entusiasmo devido, a extraordinária estréia de Clarice Lispector. Outros contemporâneos, igualmente sensíveis aos valores ideológicos da obra, souberam identificar em Perto do Coração Selvagem um sopro surpreendente e renovador da ficção brasileira. Foi o caso de Sérgio Milliet – acho que também Álvaro Lins, não lembro agora com certeza – e sobretudo o então jovem crítico Antonio Candido, que soube perceber os méritos extraordinários da estreante. Mário, entretanto, passou ao largo de Clarice e de um outro importante romancista de orientação artística similar: Lúcio Cardoso.

Durante muito tempo, como principiei assinalando nesta entrada já extensa, não me apercebi destas insuficiências de Mário, algumas comprovadamente indignas do grande homem e escritor que foi. Não as percebia devido a minhas limitações intelectuais. Mas pondero haver um outro fator concorrente, talvez mais decisivo. É que li Mário com grande paixão desde que tomei contato com sua obra. Admito que a influência que exerceu sobre mim foi imensa, provavelmente maior que a exercida por qualquer outro escritor. Hoje conscientemente dou prioridade a vários outros, tanto brasileiros quanto estrangeiros. A importância e influência da obra e da vida de Mário persistem em mim, claro, pois é em muitos sentidos um escritor definitivo na nossa cultura e literatura. Mas posso hoje medi-lo com uma isenção e uma consciência crítica que sem dúvida pesam no sentido de encurtar sua medida. Noutras palavras, acredito ler hoje mais a medida real e falível, como de resto a de qualquer indivíduo criador, do que a ideal nutrida por um leitor inexperiente, menos cultivado intelectualmente e demasiado apaixonado pelas virtudes humanas do escritor. Por isso já escrevi, e repito, que Mário de Andrade é um dos raros escritores que gostaria de ter conhecido. Segundo minha experiência, antes lida do que vivida, a maioria dos escritores importa pela obra que realiza, não a vida que viveram. Aliás, esta é com frequência decepcionante do ponto de vista ético e amplamente humano. Por isso há muito aprendi que o que verdadeiramente importa é a obra. É ela quem salva o melhor da nossa humanidade, a começar pela dos próprios que a inventam.

A paixão a que aludo deriva em particular da humanidade generosa que Mário de Andrade imprimiu a tudo que criou e escreveu. Neste sentido, diria ainda que é um artista único. Apesar de hoje pôr o dedo em algumas das suas insuficiências mais evidentes, acima grosseiramente indicadas, continuo distinguindo-o como nosso escritor mais generoso, como um artista tocado por valores humanistas palpitantes na obra quanto na biografia. É esta associação que me parece excepcional na maioria dos artistas. Até onde minha experiência de leitor e minha experiência de convívio intelectual (esta bem mais modesta) me autorizam ajuizar sobre o assunto, afirmo hoje com serena convicção que me desinteressei largamente das possibilidades de convívio com intelectuais. A razão disso, como acima salientei e não me poupo de repetir, radica na consciência de que o melhor deles está contido na obra produzida, não na biografia, não no convívio convencional com seus pares ou com o semelhante em geral. Vistos e vividos de perto, os artistas denunciam no que são e fazem as mesmas imperfeições da nossa humanidade pouco atraente ou edificante, se a despimos das idealizações narcisistas com que a vemos e nos vemos.

Mário de Andrade é talvez o único exemplo de artista cuja vida no sentido acima proposto é passível de ombrear com os méritos da obra, senão mesmo superá-la. Esta verdade é aferível antes de tudo na leitura da sua correspondência e no depoimento muitas vezes comovente dos que tiveram o privilégio de merecer sua amizade e dedicação. Sua correspondência, documento único na cultura brasileira, está aí para quem queira verificar o quanto imprimiu de humanidade generosa a tudo que criou e sobretudo às amizades que soube conquistar e manter. É esta para mim a grandeza maior da obra de Mário de Andrade. A ela devo, quando ainda mais jovem e carente de um sopro de humanidade substitutiva na minha solidão amargada no meio em que vivi, uma inesquecível experiência de beleza e generosidade simbolicamente compartilhada.

31 de julho de 2004.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Modernismo e Ciências Sociais


Para César e Brenno, por tudo que só a amizade convivida traduz.

Como há ainda quem confunda o modernismo brasileiro com um movimento restrito ao campo das artes e da literatura, talvez convenha começar este artigo ressaltando seu caráter de movimento cultural muito mais amplo. Antes de tudo, por ser esse o modo adequado de fazer justiça à sua real amplitude; em seguida, porque meu propósito, já explícito no título deste artigo, é descrever algumas das suas conexões mais fortes com o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Antonio Candido frisa num dos seus ensaios mais citados, "Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, que a literatura ocupou posição central no desenvolvimento da nossa vida espiritual. À diferença de outros países, onde a filosofia e mesmo as ciências sociais desempenharam papel similar, aqui a literatura incorporou à sua expressão propriamente estética um caráter de função socialmente interessada à margem da qual seria impossível compreender o sentido abrangente e sociologicamente relevante da obra de autores como José de Alencar, Machado de Assis, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Mário de Andrade, Gilberto Freyre... Suponho que duas razões óbvias desse fenômeno radicam na ausência de uma sólida tradição universitária e no consequente desenvolvimento tardio das ciências sociais. Privado de uma tradição rica e intelectualmente diferenciada, o escritor brasileiro sente-se investido de uma missão socialmente elástica inexistente nas culturas cujas instituições e processos de divisão do trabalho intelectual já estão consolidados. Este é um fato facilmente aferível na obra dos autores acima citados, assim como em muitos dos seus contemporâneos.

O ensaio de Antonio Candido acima referido contém ainda uma outra intuição que igualmente tomarei como ponto de apoio para muitas das considerações deste artigo. Aludo à intuição segundo a qual ele sugere que o conjunto da nossa vida espiritual é regido pela dialética entre localismo e cosmopolitismo. Variando os termos, até por melhor convirem a escritores como Mário e Oswald de Andrade, diria nacional versus universal, que no caso equivale à tradição intelectual europeia. A distinção parece-me exata para que melhor se compreenda a evolução do modernismo que logo nitidamente se diferenciará dos congêneres europeus nos quais de resto se inspirou.

Mesmo os estudiosos aderentes a uma perspectiva nacionalista do modernismo reconhecem que ele se formou sob o influxo das correntes vanguardistas de procedência europeia. Mário de Andrade, por exemplo, reconhece este fato no seu ensaio de síntese do movimento, “O Movimento Modernista”, no meu entender ainda insuperado não só como lúcida apreciação panorâmica do movimento, mas diria que sobretudo devido à intensidade dramática do texto que, nas suas páginas finais, reveste-se de inusitado tom de exame e exasperação moral. É nesse ponto que Mário procede a um impiedoso balanço ideológico do movimento, chegando mesmo às raias de uma injustificada apreciação autopunitiva.

Embora rebata no seu ensaio os críticos que acusam o modernismo de excessiva subordinação às modas e correntes estéticas europeias, Mário de Andrade não deixa de reconhecer o quanto os impulsos iniciais do movimento deviam à Europa, notadamente à França. Talvez sua crítica visasse indiretamente Gilberto Freyre, já que à altura da sua conferência de celebração de vinte anos do modernismo, cujo texto é o já citado “Movimento Modernista”, Freyre e seus discípulos, sobretudo José Lins do Rego, reivindicavam para o regionalismo nordestino um papel de pioneirismo nacionalista e de valorização da cultura brasileira opostos ao modernismo paulista, que erradamente caracterizavam como subserviente às modas culturais europeias.

Pondo à margem essas disputas polêmicas, não raro deformadoras do real sentido aferível na análise do processo cultural efetivo, os fatos evidenciam que, a partir de 1924, o modernismo desloca sua rota em direção a um nítido nacionalismo programático. É a dialética do nacional e do universal mais uma vez operando no desenvolvimento da nossa vida espiritual, como assinalaria Antonio Candido. Pois, se de fato precisou beber nas fontes europeias para atualizar-se esteticamente, para produzir uma arte consentânea com a realidade urbano-industrial emergente sobretudo na capital paulista, logo ficaram também evidentes as especificidades artísticas e sociais observáveis entre os movimentos de vanguarda europeus e o brasileiro.

De certo modo, foi a própria presença no Brasil de um dos símbolos da poesia de vanguarda europeia que favoreceu o deslocamento do modernismo para a realidade brasileira. Aludo, noutras palavras, à presença de Blaise Cendrars no Brasil, sobretudo à viagem que fez às cidades históricas mineiras ciceroneado pelos modernistas de São Paulo. Essa viagem foi tão decisiva para a nacionalização do modernismo que seus próprios líderes passaram significativamente a designá-la como a viagem de descoberta do Brasil. Dela procedem não apenas a redescoberta do barroco mineiro, a composição de um poema seminal como Noturno de Belo Horizonte, de Mário de Andrade, mas também o contato fecundo dos paulistas com a nova geração de escritores mineiros. É daí que nasce a correspondência entre Mário e Drummond, documento valioso para que melhor se compreenda o amadurecimento da poesia do segundo, que em Mário encontrou um orientador qualificado e generoso, além de evidências do adensamento de uma consciência nacionalista na obra de Mário e na daqueles expostos à sua influência. Eis aí mais uma vez reposta a dialética do nacional e do universal. Trocando em miúdos, a presença viva e concreta do outro europeu, Blaise Cendrars, atua como rebatedor especular no qual os próprios intelectuais brasileiros melhor reconhecem sua diferença.

Importaria ressaltar, tendo em vista os propósitos deste artigo, que a inflexão nacionalista do modernismo não fica de modo algum restrita ao campo artístico e literário. Maior que a ambição explícita de criar uma arte nacional, o que Mário e os modernistas mais consequentes ambicionam é realizar um projeto de cultural nacional, pesquisar suas fontes e definir sua identidade, combater ostensivamente a influência europeia para reforçar um sentido de diferenciação particularista típico, aliás, de todos os movimentos de inspiração romântica. E aqui ressalta um outro dado significativo: a revalorização da nossa tradição romântica. Ela se traduz na ênfase sobre a particularidade ou diferenciação da cultura brasileira compreendida em sentido amplo: diferenciação artística, linguística, musical, histórica, etnográfica etc.

Uma das expressões mais nítidas dessa valorização entusiasta do Brasil, da busca de suas raízes populares mais profundas, espelha-se nas duas viagens que Mário de Andrade empreendeu através do Nordeste e Norte do Brasil entre 1927 e 1929. É sintomático que ele as identifique como viagens etnográficas. De fato, elas representaram um outro capítulo, ainda mais amplo e rico, das suas explorações, da pesquisa, descoberta e interpretação da cultura brasileira e daquilo que muitos estudiosos, não apenas Mário, presumem ser a nossa identidade cultural. Muito da documentação que então coligiu foi assimilado à composição de Macunaíma, obra suprema do modernismo nacionalista.

A leitura atenta das matrizes sócio-antropológicas de Macunaíma demonstra isso que venho assinalando como sendo o caráter abrangente do modernismo. Se os escritos de Mário convencionalmente classificados como literários encerram tantos elementos de interesse para as ciências sociais, sua obra de interesse diretamente sociológico reforça o sentido que venho reiterando para a justa compreensão do movimento. Além de pioneiro na compreensão sócio-antropológica do folclore nacional, assim como no conjunto das nossas expressões culturais, Mário distinguiu-se como musicólogo, crítico de arte, agente modernizador do aparelho institucional da educação e da cultura brasileira.

O estudo dos periódicos produzidos pela história do modernismo, que infelizmente não caberia apreciar nos limites deste artigo, também representa outro dado significativo para a compreensão do caráter amplamente nacionalista do modernismo. Na história desses periódicos, assim como no rico processo de institucionalização da cultura nos anos 1930, que Antonio Candido apropriadamente designou como o processo de rotinização do modernismo, ou sua conversão de movimento de desagregação em movimento triunfante, ou assimilado às estruturas de poder social, atuaram intelectuais cuja obra transbordou para o plano das ciências sociais. É o caso de Sérgio Buarque de Holanda, que se inicia precocemente como crítico literário e co-editor de um dos periódicos mais importantes do movimento, a revista Estética, e acaba escrevendo uma das obras fundamentais de interpretação do Brasil. Daí orientou seus estudos de forma definitiva para a pesquisa histórica, da qual resultaram obras marcantes da historiografia brasileira. Outro que também orientou parcialmente sua obra para os estudos de sociologia e história foi Sérgio Milliet. Antes dele, um paulista da geração precedente, mas ostensivamente vinculado ao modernismo desde suas origens, escreveu um ensaio de interpretação histórico-sociológica também fundamental num gênero típico do processo de constituição das ciências sociais no Brasil: o ensaio de interpretação da nossa formação cultural e histórica. Refiro-me evidentemente a Paulo Prado e sua obra mais importante: Retrato do Brasil. Alias, acrescentaria assim de passagem que a crítica não deu ainda atenção devida aos vínculos observáveis entre esta obra e Macunaíma, de resto publicadas no mesmo ano, 1928.

Do processo de institucionalização cultural acima aludido brotaram a Universidade de São Paulo e a Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Um projeto ambicioso, infelizmente logo sufocado pelas forças políticas conservadoras, propiciou a mais renovadora experiência de democratização institucional da cultura, também em São Paulo. Refiro-me à instituição do Depto. de Cultura ideado e liderado por Mário de Andrade e Paulo Duarte. Para o seu sucesso contribuíram de forma decisiva vários dos modernistas provenientes dos anos 1920, como Sérgio Milliet, diretor da seção de pesquisa social, e Rubens Borba de Moraes, diretor da seção de biblioteconomia. A essas realizações poderíamos associar, em âmbito nacional, a instituição do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, baseado em projeto encomendado a Mário de Andrade, e o projeto da enciclopédia brasileira, também obra de Mário de Andrade.

Voltando ao exemplo da Universidade de São Paulo, acima indicado, seria sustentável afirmar que a solidez de sua eminência cultural e institucional deriva de duas fontes fundamentais: da lição dos professores franceses, formadores da geração fundadora da universidade, e do legado procedente do modernismo, notadamente aquele transmitido pela obra e a viva participação de dois nomes seminais: Mário de Andrade e Sérgio Milliet. O legado de Sérgio Buarque de Holanda é também notável, sobretudo na esfera da historiografia. Mas, como se sabe, sua atuação institucional mais decisiva ocorreu a partir dos anos 1950. Também o de Oswald de Andrade mereceria alguma menção, embora importe acentuar que foi muito limitado devido ao papel institucionalmente marginal que sempre desempenhou.

Importaria ainda acrescentar que Florestan Fernandes, expressão máxima da chamada escola de sociologia paulista, formou-se também sob os influxos do modernismo. Embora nitidamente se diferencie de Antonio Candido em termos de trajetória sociológica e formação, com quem consensualmente divide a honra de representar o legado intelectual mais elevado da USP, sofreu nítida influência de Mário de Andrade, sobretudo dos estudos deste referentes ao folclore e à etnografia.

Para que este artigo de síntese apressada não resulte demasiado omisso, importaria concluir relacionando em traços corridos o modernismo e o regionalismo nordestino que se concentra em Recife sob a poderosa liderança de Gilberto Freyre. Já acima brevemente aludi à atmosfera polêmica que cerca a relação entre ambos. A própria natureza polêmica que os cerca, assim como as relações de competição e luta por hegemonia cultural observável entre Mário de Andrade e Gilberto Freyre, tem de ordinário embaçado uma compreensão mais lúcida e isenta desses movimentos. Um dos primeiros a propor a questão em termos mais adequados foi José Aderaldo Castelo numa obra há muito esgotada: José Lins do Rego – Modernismo e Regionalismo. Mais recentemente, assentada a poeira de rivalidades antigas devido ao abrandamento das tensões ideológicas mais intransigentes, além da própria morte de Gilberto Freyre, pode-se felizmente observar a publicação de artigos e livros mais isentos na consideração do problema. Seria o caso de mencionar dois artigos assinados por Gilda de Melo e Souza e Antonio Dimas, além do livro de Valéria da Costa e Silva: A Modernidade nos Trópicos. Este, bem mais recente, constitui contribuição importante para o estudo da questão, embora reponha em tom por vezes francamente passional o caráter polêmico dessa desavença regional simbolizada no parentesco turbulento que divide e aproxima paulistas e pernambucanos. Como não sou daqui, deixo que se entendam, ou desentendam.

Nenhum desses estudiosos, diria ainda nenhuma pessoa hoje devidamente formada e bem informada, ignora a importância fundamental desses dois movimentos na história da cultura brasileira do século XX. Ambos, dentro de suas especificidades evidentes, concorreram como fontes seminais para a revalorização necessária da nossa cultura; ambos se inscrevem nesse longo e ainda atual processo de nacionalização da cultura brasileira, ou valorização nacional da nossa cultura em face da nossa ainda insuperada herança colonial crivada por relações de dependência e, internamente, relações de atraso, padrões iníquos de desigualdade social e privilégios também inconcebíveis numa sociedade legitimamente moderna. É esta, em síntese, nossa herança maldita, como por aí dizem os próprios que dela se beneficiam. Enquanto não superarmos esses problemas, que vão muito além dos generosos sentimentos e interpretações nacionalistas dos apóstolos da nossa identidade, continuaremos procurando o homem brasileiro, a mulher brasileira e a identidade de ambos no lugar errado.