domingo, 1 de abril de 2012
José Miguel Wisnik
Foi um prazer pouco comum conhecer José Miguel Wisnik. Ele veio a Recife participar de um seminário promovido pela Fundação Joaquim Nabuco sobre futebol. Adicionalmente, lançou seu livro mais recente, sobre o mesmo assunto, alvo de acolhida elogiosa nas páginas de cultura da Folha de S. Paulo. Surpreendeu-me saber que o futebol era assunto que o interessava intelectualmente ao ponto de a ele dedicar anos de pesquisa e estudo. O resultado está no seu livro relativamente volumoso publicado pela Companhia das Letras.
Alguns amigos, agora interessados pelo futebol como matéria acadêmica, falaram-me elogiosamente do livro, que de resto ofereceram-me de empréstimo. Agradeci mas recusei, pois sinceramente não me ocorre privilegiar assunto que me interessa apenas enquanto espetáculo esportivo vinculado aos veículos especializados em entretenimento para as massas. Longe de mim desprezar a óbvia significação cultural desse esporte, notadamente no país que se orgulha ainda de ostentar o melhor futebol do mundo, mas minhas prioridades intelectuais foram e sempre serão outras.
Voltando a Wisnik, ele veio diretamente do aeroporto para o meu apartamento trazido pela mediação generosa da minha amiga Valéria Torres. Aliás, nossa amiga comum que o conheceu em Berkeley durante os dois períodos em que ele lá esteve como professor visitante. Essa circunstância propiciou um conhecimento indireto entre nós, já que amigos comuns radicados em Berkeley dele me falaram e vice-versa. Assim que chegaram, ele e Valéria, seguimos para o Restaurante Leite, onde almoçamos também acompanhados por Danielle.
Minha simpatia por Wisnik foi automática. Pelo que dele percebia, através de referências de amigos, além de uma palestra excelente que gravou para a Tv Cultura sobre Mário de Andrade, esperava que fosse mais ou menos como se me apresentou: amável, receptivo, sensível ao convívio inteligente e espontâneo, isento de qualquer afetação. Nossa conversa foi variada, em vários momentos divertida e ampla o suficiente para incluir intelectuais e assuntos do nosso interesse comum: Mário de Andrade, Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Arthur Nestrovski, Drummond, Guimarães Rosa, João Cabral, Chico Buarque, Caetano Veloso... Pena que estava então ainda me refazendo de uma bruta virose associada a rinite alérgica. Isso impediu-me de gozar mais folgadamente a companhia dele e de minhas lindas amigas Valéria e Dáni. Encerrado o almoço, deixamo-lo no hotel onde pouco mais tarde seria levado por um carro da Fundação Joaquim Nabuco diretamente para o cenário programado para acolher o seminário e o lançamento do seu livro. De minha parte, resignei-me a voltar para casa e para a cama. Somente alguns dias mais tarde é que soube, através de Dáni, que, ao saírem do seminário, vieram beber e conversar animadamente nas mesas do Biruta. Embora doente, disse a Dáni, não teria relutado em acompanhá-los, se acaso soubesse do encontro.
A música tem conferido a Wisnik uma fama, ainda que confinada a um público demasiado restrito, incogitável na trajetória de um intelectual de atuação puramente acadêmica. Embora parte de sua obra há muito encontre acolhida em periódicos como a Folha de S. Paulo, notadamente nos cadernos culturais, nem mesmo seus escritos sobre música alcançaram repercussão significativa. Afinal, apesar de tanto enfatizarmos a importância da música na nossa cultura, somos quase iletrados em matéria de história, teoria e crítica musical. Foi depois que passou a exibir-se em casas de espetáculo e a gravar sua própria música que Wisnik passou a desfrutar de alguma fama. Conheço bem pouco suas composições, mas ressalto a belíssima “Assum branco”. Dentre seus muitos intérpretes – citaria o próprio Wisnik e Gonzaga Leal – destacaria Cecília Leite. Surpreendeu-me saber que ele não tinha conhecimento do cd de Cecília Leite, que também compõe um belo dueto com Chico Buarque cantando “Dis-moi comment”, versão francesa de “Eu te amo” escrita pelo próprio Chico.
O momento mais divertido do meu encontro com Wisnik ocorreu quando nos falou de uma visita recente que fez a Antonio Candido. Este, que é na intimidade um talentoso imitador de personagens célebres do seu convívio, começou servindo vinho do porto a Wisnik enquanto se punha à vontade para rememorar encontros com gente como Mário de Andrade, Guimarães Rosa e outros. Ia então recortando na memória episódios dos quais extraía a nota de pitoresco ou humor acentuada por seu dom histriônico. Assim, imitou certos trejeitos adamados (qualificativo por ele empregado) de Mário de Andrade. Rimos muito vendo Wisnik imitar Antonio Candido imitando Mário; também Guimarães Rosa, o “untuoso” (termo empregado por Antonio Candido). Antonio Candido imitou-o reproduzindo um encontro social ligado à juventude de ambos. Participavam de uma festa de intelectuais quando Guimarães, dele se acercando, tomou-lhe a mão e disse enquanto a alisava de modo “untuoso”: “Antonio Candido, autor de Brigada Ligeira, um pequeno grande livro que é minha leitura de cabeceira”. Antonio Candido logo encontra um jeito de se safar das mãos untuosas de Guimarães e deslizar para outro espaço da sala. Pouco depois ouve às suas costas Guimarães repetindo o mesmo ritual pegajoso e hipócrita com um outro escritor.
E assim somos todos, é o que me sugerem essas anedotas tão divertidamente recriadas por Wisnik na mesa do restaurante. Pequenos ou grandes, célebres ou obscuros, em cada um de nós palpitam essas notas humanas e banais, no caso também engraçadas, que ao cabo nos dissolvem numa humanidade comum. O olhar mais severo de um moralista, digamos Machado de Assis, decerto acrescentaria a este breve parágrafo uma máxima de corte menos complacente.
Por fim, uma nota de memória se insinua nessas ligeiras anotações de um encontro prazeroso. É que as alusões de Wisnik a Antonio Candido levaram-me inadvertidamente a um momento inesquecível. Visitando-o em 1995, graças a meu amigo José Luiz Passos, entretivemos uma longa conversa na sala da sua casa acompanhados pela presença discreta de Gilda de Mello e Souza. Como já anotei em textos postados no meu blog algo do melhor que conversamos e ouvi, prendo-me aqui a uma observação particular. É que assim sem mais me dei conta de que Antonio Candido sobreviveu a todos os seus melhores amigos: Oswald de Andrade, Paulo Emílio, Sérgio Buarque de Holanda e, acima de todos, sua mulher e companheira da vida inteira, Gilda de Mello e Souza. Receio que, para além da perda indizível a tudo se sobreponha a consciência dolorosa de sobreviver a todos que com certeza mais profundamente deram sentido à sua vida. Também aqui sei que Machado introduziria uma anotação mais apropriada. Tivesse eu a paciência de catá-la numa de suas obras, não me custaria muito extraí-la das páginas de Dom Casmurro ou do Memorial de Aires.
Recife, 05 de setembro de 2008.
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