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quinta-feira, 17 de março de 2011

Nacional e Universal


Começo este breve ensaio enunciando a contradição relativa ao movimento dialético que permeia toda a nossa história cultural baseada na antinomia do nacional e do universal. Entendo que esta perspectiva teórica é fundamental para que adequadamente se coloquem os problemas atinentes à nossa formação cultural. Aplicável ao conjunto dessa formação, ela me interessa, em particular, na consideração dos dois movimentos culturais decisivos da nossa cultura no século vinte: o modernismo paulista e o regionalismo recifense. Retomo portanto essa contradição para novamente conferir alguma atenção a esses movimentos e a seus dois líderes incontestes: Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Penso que Antonio Candido é o estudioso que melhor empregou esse esquema dialético na análise da nossa literatura compreendida em suas conexões essenciais com o contexto histórico-cultural. Seu emprego do método dialético consiste na função integradora, não excludente, dos polos contraditórios implicados no processo da análise. Nos termos que importam para este ensaio, os pólos compreendidos na relação entre o nacional e o universal não se relacionam de modo excludente, mas sim integrador. É por compreender a relação deste modo que represento o desdobramento histórico do modernismo e do regionalismo como forças que se negam continuamente ao mesmo tempo em que se alimentam manifestando-se de forma indissociável.

Não haveria modernismo paulista sem os fecundos empréstimos culturais provenientes dos movimentos da vanguarda européia. A própria inflexão nacionalista do movimento muito deve à contribuição de um europeu e vanguardista como Blaise Cendrars. Toda a teorização estética e cultural de Mário de Andrade, assim como de Gilberto Freyre, é em boa medida tributária do contato que estabeleceram com outras fontes de cultura e estudiosos que confessadamente os influenciaram. É por adotar este ponto de vista que discordo da tradição nacionalista ou regionalista ciosa de conceber nossa história cultural como autônoma, como explicável baseada apenas em fatores dissociados e até hostis a nossos vínculos com a cultura ocidental. O que pressuponho como atitude fundamental de análise das culturas é a interdependência necessária entre elas observável.
Ainda hoje, não obstante o acelerado processo de globalização cultural em que vivemos, há quem pretenda sustentável uma noção de nacionalismo dissociada do intercâmbio entre valores culturais. Há ainda quem critique a importação de ideias, ou a imitação cultural, como pura e simples subserviência de povo colonizado. Um dos mais lúcidos estudiosos da história das ideias no Brasil há muitos anos corretamente assinalou que
“A inteligência brasileira formou-se pelo mesmo processo que plasmou o povo brasileiro, isto é, graças às contribuições estrangeiras. Eduardo Prado diz que ´escrever a história do Brasil é escrever a história da imigração neste país`. Escrever a história de suas ideias é, também, descrever as aventuras das ideias estrangeiras no Brasil. Nesse lento processo de formação intelectual é natural que tenha havido e que haja imitação. Era compreensível que imitássemos os colonizadores. Estes, porém, ao exercerem a sua ação, sofreram também a influência das condições novas que o meio lhes oferecia e aí já se encontra uma primeira modificação do modelo original europeu. Certos autores, muito ciosos de originalidade, costumam denunciar a imitação como a fonte dos nossos defeitos e erros. É mister, porém, não esquecer que a imitação é um fenômeno social natural e universal”. (Cruz Costa. Contribuição à História das Idéias no Brasil. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 6).
Acredito que o melhor da obra dos nossos escritores expressa a interação fecunda dos empréstimos culturais. Além disso, procuro demonstrar que o nacionalismo adotado por Mário de Andrade está longe de algumas interpretações redutoras tendentes a figurá-lo como um nacionalista avesso à cultura universal. O próprio herói Macunaíma, símbolo maior do nosso nacionalismo literário e cultural, foi descoberto graças aos vínculos profundos que Mário de Andrade estabeleceu com a cultura alemã. Lido por muitos como sendo pura e simplesmente o símbolo cultural do brasileiro, realização suprema do nosso Modernismo nacionalista, Macunaíma é todavia muito mais complexo. No estudo crítico que reputo o melhor e o mais agudo já produzido sobre este herói, argumenta Gilda de Mello e Souza precisamente no sentido de ressaltar o sentido universalista ou europeu da obra. Este sentido está de resto explícito no título do seu estudo, composto de um binômio, tupi e alaúde, empregado por Mário de Andrade num poema de Paulicéia Desvairada para traduzir sua identidade bifronte, isto é, nativa e européia. Como ela certeiramente observa,
“... o núcleo central de Macunaíma, não obstante os mascaramentos de toda a ordem que despistam ininterruptamente o leitor, permanece europeu, ou, mais exatamente, universal, e se liga ao tema eterno da busca do objeto mágico, de que a Demanda do Santo Graal representa no Ocidente a realização mais perfeita.” (Ver Gilda Mello e Souza. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma, p. 92)
O nacionalismo de Mário de Andrade é, por conseguinte, universalista. Dizendo o mesmo de um outro modo, observou Anatol Rosenfeld ser supra-regional e cosmopolita. Segundo este crítico, Mário de Andrade buscava dentro da sua concepção de nacionalismo isento de etnocentrismos, assim como Herder, reconhecido como o pai do Nacionalismo Cultural, “...a autodefinição nacional no pluralismo positivo das culturas”.
Levando em consideração a amplitude dos estudos já consagrados às obras de Mário de Andrade e Gilberto Freyre, é curioso que tão pouco ou quase nada se tenha feito no sentido de associá-los de modo mais franco à obra de Herder. Dado o papel fundador que este desempenha na história do nacionalismo cultural, caberia aqui esboçar as linhas profundas que o aproximam sobretudo de Mário de Andrade. Como salienta Hans Kohn, o nacionalismo moderno surge no século 18 diretamente associado à democracia e ao industrialismo. Seu advento representa o primeiro momento da história de alcance propriamente universal. ( Hans Kohn, Historia Del Nacionalismo). Quanto ao desenvolvimento particular do nacionalismo cultural, observa que este prevalece nos países carentes de soberania política e culturalmente dependentes. Isso torna historicamente compreensível o fato de a Alemanha da segunda metade do século 18, politicamente retalhada em inúmeros principados e culturalmente dependente da França, distinguir-se como matriz dessa fecunda tradição identificada como nacionalismo cultural. É portanto nesse contexto que se materializa a obra de Herder, herói intelectual de um dos maiores estudiosos das idéias no século 20, Isaiah Berlin.

Houve já quem identificasse Herder como o pai do nacionalismo cultural, tamanha é a sua importância na história das ideias atinentes à tradição romântica e ao papel do intelectual como agente dos processos de autonomia cultural nos países dependentes. Se é fato que concebia o Estado como uma nação com caráter nacional, entendia isso como um meio orientado para um fim universalista. A isso caberia acrescentar que, de acordo com Isaiah Berlin, o nacionalismo proposto por Herder é cultural, não político, isto é, tem como fundamento os grupos humanos naturais, baseados nos vínculos de sangue, vizinhança, valores empíricos, mas mutáveis, constituintes do que enfim podemos conceber como a cultura viva de um povo. Entendendo o nacionalismo nestes termos, opõe-se a toda forma de dominação exercida em nome de qualquer espírito de conquista política. Por isso coerentemente rejeita o ideal do conquistador, seja o antigo, como Alexandre Magno, seja o contemporâneo, como Frederico o Grande, ou os pósteros, incluídos os que invocaram os ideais do nacionalismo cultural para dominarem outros povos e culturas.

Importa reter criteriosamente esse traço do nacionalismo originário de Herder porque, dentro de suas múltiplas manifestações históricas, ele foi apropriado por correntes políticas de extrema-direita inspiradas pela dominação guerreira e a destruição de particularidades, nacionais ou étnicas, qualificadas como inferiores ou degeneradas. Em suma, como objeto de supressão, como alteridade justificadora de operações de guerra e conquista. O exemplo mais devastador desse tipo de nacionalismo é naturalmente o nazismo. Faço aqui esta breve menção, cuidando de ressaltar a distinção necessária observável entre ele e o nacionalismo cultural proposto por Herder, para que não se perca de vista o fato de que há muitos modos e formas de apropriação do nacionalismo.

Visando melhor traduzir a concepção de nacionalismo cultural de Herder, lembraria a metáfora naturalista que propõe. Afirma, em suma, que as culturas são como um jardim composto de muitas flores, cada uma dotada de características próprias e irredutíveis (cf. Isaiah Berlin, Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. O ensaio que tomo como referência é Herder e o Iluminismo, pp. 379-446). É impressionante observar-se a equivalência que guarda com a metáfora musical proposta por Mário de Andrade ao reivindicar o nacionalismo cultural brasileiro como fundamento da nossa universalidade ainda irrealizada. Inspirado por essa mesma noção de nacionalismo cujo fim seria o universal, valeu-se Mário de Andrade de uma metáfora musical com o propósito de ressaltar que o Brasil somente se realizaria como cultura própria quando fosse capaz de contribuir com seu acorde singular, um acorde exclusivamente brasileiro, para o concerto das nações civilizadas:
“De que maneira nós podemos concorrer prá grandeza da humanidade? É sendo franceses ou alemães? Não, porque isso já está na civilização. O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que nós formos inteiramente brasileiros e só brasileiros a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas. As raças são acordes musicais. Um é elegante, discreto, cético. Outro é lírico, sentimental, místico e desordenado. Outro é áspero, sensual, cheio de lembranças. Outro é tímido, humorista e hipócrita. Quando realizarmos o nosso acorde, então seremos usados na harmonia da civilização.” (A Lição do Amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 15).
Ao propor acima sua noção de nacionalismo, Mário de Andrade acentua nitidamente a compatibilidade que julga estar contida na relação entre o nacional e o universal. Seu correspondente – Drummond, no caso – como tantos estudiosos que consideram este problema, tende a identificar oposição ou contradição onde, segundo o entendimento de Mário de Andrade e de Herder, há perfeita congruência, já que uma coisa pressupõe a outra: o universal é irrealizável sem o nacional que para ele converge, assim como o nacional se converterá em exotismo, e no limite xenofobia, se não visar o universal como seu fim. Melhor devolver a palavra a Mário de Andrade que assim corrige Drummond:
“...você fala em ´apertado dilema: nacionalismo ou universalismo. O nacionalismo convém às massas, o universalismo convém às elites`. Tudo errado. Primeiro: não existe essa oposição entre nacionalismo e universalismo. O que há é mau nacionalismo: o Brasil pros brasileiros – ou regionalismo exótico. Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser nacional. O que mais simplesmente ainda significa: Ser. Ninguém que seja verdadeiramente, isto é, viva, se relacione com o seu passado, com as suas necessidades imediatas práticas e espirituais, se relacione com o meio e com a terra, com a família etc., ninguém que seja verdadeiramente deixará de ser nacional.”
Tanto Herder quanto Mário de Andrade, confirmando sua concepção supra-regional e universalista do nacionalismo, tiveram fina sensibilidade para a apreensão e o entendimento crítico do singular. Sendo assim, não apenas estudaram e teorizaram apaixonadamente as culturas particulares de que faziam parte, mas toda expressão singular de cultura. Basta observar, por exemplo, o zelo e curiosidade empática com que Herder se debruça sobre culturas de todos os quadrantes, das africanas às indígenas, das terras desérticas às regiões frias, assim como das diferentes épocas, indo das mais antigas às contemporâneas. (Cf. Herder. Idées sur la philosophie de l´histoire de l´humanité. Ver em particular Livre VII, pp. 45-82).

No que se refere ao brasileiro, estendeu seu espírito de pesquisador por todo o Brasil, como o demonstram suas viagens etnográficas ao Norte e Nordeste, além dos seus estudos folclóricos, etnográficos, sócio-antropológicos e linguísticos. Mas o fato é que nunca se fechou etnocentricamente dentro das fronteiras nacionais. Pelo contrário, desde cedo, nutrido por autêntica e rara formação católica, religião fundada sobre o princípio da universalidade, aprendeu línguas e outras culturas cuidando sempre de iluminar sua compreensão do Brasil relacionando-o com o diferente, o estrangeiro, o outro através do qual reconhecemos nossa singularidade. Isaiah Berlin, a quem sigo na minha compreensão do caráter universalista do nacionalismo cultural professado por Herder e Mário de Andrade, observa que para Herder é graças ao advento do cristianismo que os horizontes da humanidade se alargam extraordinariamente. Sendo uma religião de cunho universal, estende-se doutrinariamente a todos os seres humanos superando assim todas as formas de lealdade e identidade fundadas em valores locais. Segundo Isaiah Berlin, a tese acima era francamente adotada pelo iluminismo cristão da Alemanha. Conforme acrescenta,
“...apesar de tudo o que se tem dito em contrário, Herder nunca abandonou esse ponto de vista. Sua crença central foi expressa perto do fim da vida com palavras semelhantes às de seus primeiros escritos: ´Gabar-se do seu país é a forma mais estúpida de bazófia... O que é uma nação? Um grande jardim silvestre cheio de plantas boas e ruins; vícios e loucuras se misturam com virtudes e méritos. Que Dom Quixote vai quebrar uma lança por essa Dulcinéia?` O patriotismo era uma coisa, o nacionalismo outra: uma ligação inocente com a família, a linguagem, a cidade, o país, suas tradições, não deve ser condenada. Mas ele prossegue dizendo que o nacionalismo agressivo é detestável em todas as suas manifestações e que as guerras não passam de crimes”.
Considerando ainda o ponto referente à singularidade das culturas, Herder argumenta baseado no próprio saber do seu tempo para realçar a singularidade observável no reino da natureza e também das culturas. Mas também ressalta, ao mesmo tempo, a realidade empírica da variedade infinita a esta acrescentando o fato igualmente observável da permanente mutabilidade. Ele acomoda a aparente contradição aí contida afirmando haver sobre a terra “... uma única e mesma espécie de homens”. Afirma adicionalmente que não se deve oprimir o dessemelhante, em cujo conceito identifica nominalmente o negro e o americano.

O sentido da mutabilidade permanente de tudo o que vive, na natureza quanto nas sociedades humanas, encontra correspondente na obra de Mário de Andrade na distinção que propõe entre tradição móvel e tradição imóvel. Objetivando esclarecer que sua identidade de líder do movimento modernista não supõe desprezo pela tradição, por todo o legado cultural brasileiro que passa expressamente a defender a partir de 1924 com espírito proselitista, como sua correspondência com Drummond e outros escritores limpidamente evidencia, assim distingue os dois tipos de tradição que propõe: “O que a gente carece é distinguir tradição e tradição. Tem tradições móveis e tradições imóveis. Aquelas são úteis, têm importância enorme, a gente as deve conservar talqualmente são porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que têm. Assim por exemplo a cantiga, a poesia, a dança populares”. ( Mário de Andrade, O Turista Aprendiz, p. 254).

Passando a Gilberto Freyre, não sei de nenhum estudo que sequer insinue algum paralelo entre ele e Herder. O melhor estudo que sobre ele conheço, sobretudo por se tratar de investigação ampla e profunda no âmbito da gênese das ideias que fecundaram a composição de Casa-Grande & Senzala, não faz qualquer alusão a Herder (cf. Maria Lúcia Pallares-Burke, Gilberto Freyre: Um vitoriano dos trópicos). O que podemos sem mais detido exame reconhecer é que também Gilberto Freyre revela aguda sensibilidade para captar e traduzir sociologicamente o sentido do singular assim como da infinita variedade das culturas.

Houve já quem observasse, penso em Darcy Ribeiro, que sua fina percepção do singular, dos entretons que tecem o multifacetado tecido da cultura, seria decorrente não do cristianismo universalista tal como assimilado por Herder e Mário de Andrade, mas de sua formação protestante dentro de um contexto tradicionalmente católico. Nele, entretanto, não diviso a mesma acentuação do sentido universal das culturas particulares que surpreendo na leitura das páginas de Herder e Mário de Andrade, menos ainda o entrelaçamento complexo do nacional e do universal. Como acima fica bem explícito, tanto Herder quanto Mário de Andrade visavam o universal como fim do nacional. Quanto a Gilberto Freyre, seu ponto de vista me parece haver sido sempre o do nacional ancorado nas fontes do regional. De qualquer modo, o pouco que expus justifica minha estranheza diante do fato de tão pouco ou quase nada existir na bibliografia de Mário de Andrade e Gilberto Freyre com relação a este ponto.

Concluo essas notas soltas acima designadas como um breve ensaio ressaltando os elos que identifico entre a cultura europeia e cultura universal. Seguindo de resto formulações correntes, por que identifico o universal, no âmbito da cultura erudita, com o europeu? Antes de tudo, porque preciso fatalizadamente me posicionar dentro dos horizontes de minha percepção da realidade. Noutras palavras, a realidade que percebo e intelectualmente apreendo está enraizada na tradição europeia. A ela devemos, preliminarmente, a língua que nos exprime e através da qual nos exprimimos. A ela devemos ainda os fundamentos da tradição dentro da qual elaboramos nossa formação científica e literária. Lembrando uma platitude todavia oportuna, não haveria sociologia no Brasil, e por conseguinte nossa formação, emprego e produção acadêmica, dissociada de toda uma tradição relativa a esse campo gestada na Europa e a partir dela difundida por grande parte do mundo.

Refutar esses vínculos que tomo como evidentes, e empiricamente aferíveis, em nome de algum suposto exclusivismo particularista – de região, nação ou identidade cultural – é deslizar irrecorrivelmente para o solo minado já aqui indicado. Assim procedendo, logo nos enredaremos nas contradições e paradoxos embutidos na falsa disjuntiva nacional versus universal. Outra poderosa razão para que eu identifique o universal com o europeu deriva do reconhecimento de que a proposição e defesa de valores universais são características marcantes da cultura européia.
Recife, 7 de setembro de 2009.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

O Caráter Nacional Brasileiro


O Caráter Nacional Brasileiro. História de uma ideologia. 2a. ed. revista, refundida e ampliada. São Paulo: Pioneira, 1969.

Relutante entre iniciar ou concluir meus comentários a partir da epígrafe do livro ("Existe é homem humano", Guimarães Rosa) acabei por adotar uma solução de compromisso que consiste em começar pelo comentário de alguns usos e funções da epígrafe no âmbito da produção intelectual acadêmica. Um dos usos mais correntes a que se presta a epígrafe é o da ostentação de cultura. Mais que uma exibição de credenciais, muitas vezes infundadas, vale tal ostentação tanto para impressionar leitores pouco críticos quanto para validar relações de legitimação de saber no círculo dos pares. Como veremos, não é este o caso da epígrafe adotada por Dante Moreira Leite. Recortada com fino senso de propriedade crítica, condensa ela efetivamente o sentido fundamental da obra. Se a importâcia da epígrafe consiste no seu poder de concentrar em algumas palavras o significado essencial de uma obra, ou a tese central nela contida, não hesito em repetir que o autor procedeu com rara ciência de síntese crítica.
Em suma, desdobrando agora alguns dos significados implícitos na epígrafe, o objetivo perseguido por Dante Moreira Leite é submeter a noção "caráter nacional", que no seu entender não passa de uma ideologia, como já o indica o subtítulo da obra, a uma crítica inspirada no universalismo iluminista. Essa concepção epistemológica percorre o conjunto da argumentação proposta pelo autor mas é sobretudo evidente no capítulo 6, cujo título é "Método de análise das ideologias".

Valendo-se nos cinco capítulos precedentes de instrumentos críticos emprestados à Antropologia, à Psicologia Social, à Sociologia e à História das Idéias, compõe o autor o cenário teórico-conceitual sobre o qual articula seu projeto de crítica ideológica aplicado a um expressivo conjunto de obras destacadas do corpus da cultura brasileira. Bastaria dizer, visando sugerir a abrangência temporal e temática do objeto, que parte da Carta de Pero Vaz de Caminha, documento fundante da nossa tradição letrada, para vir ancorar na produção crítico-nacionalista e universitária dos anos 50 e 60.

Ilustrando um pouco o caráter processual da obra, parte Dante Moreira Leite de uma crítica do que designa como sendo "As raízes do caráter nacional". Dá aqui relevo a categorias de uso corrente na Antropologia: o estranho e o conhecido, de características similares às que Walter Benjamin identifica nas figuras do viajante e do artesão sedentário no ensaio "O Narrador"; etnocentrismo e autoritarismo; nacionalismo; racismo; caráter nacional. Operando com muita perspicácia crítica, não se limita a uma mera contraposição de termos tais como o estranho versus o conhecido. Indo além da aparência imediata, demonstra como à relação de oposição se sobrepõe uma rede de ambiguidades segundo a qual o estrangeiro, que num momento inspira reação de desconfiança ou medo, noutro inspira fascínio e um rico registro de desejos e realidades virtuais. Doutro lado, se o conhecido supõe sentimentos básicos de segurança e familiaridade condensados na experiência de sentir-se parte integrante de um grupo portador de valores e práticas compartilhados pelos membros que o compõem, é também verdade que aqui se insinuam a ambiguidade e a ambivalência sugeridas nos provérbios "ninguém é profeta em sua terra" e "santo de casa não faz milagre".

Aplicando tratamento crítico semelhante aos conceitos de xenofilia e xenofobia, patriotrismo, chauvinismo e autoritarismo, passa o autor à consideração do nacionalismo e do caráter nacional. Refutando William Graham Sumner, afirma que o nacionalismo é forjado pelas elites ilustradas, que por sua vez o transmitem às massas (ver p. 17). A passagem do etnocentrismo ao nacionalismo, fenômeno típico do século XIX, não é contínua ou espontânea. Se o indivíduo tende a vincular-se afetivamente ao meio social imediato (vizinhança, aldeia, cidade onde vive ou viveu experiências significativas), a vinculação com a nação se realiza num grau abstrato. Sendo assim, supõe que o nacionalismo é inculcado através dos meios educacionais e comunicativos acionados pelo Estado moderno. Acrescenta que, embora seja costumeira a distinção entre nacionalismo defensivo e ofensivo, o fato é que o nacionalismo traduz sempre uma atitude de superioridade perante outros grupos ou nações. (cf. p. 18).

O caráter nacional, por sua vez, decorre do Pré-Romantismo alemão, aqui destacando-se a figura intelectual de Herder cujas idéias vão confessadamente influenciar o nacionalismo militante de Mário de Andrade. Como se observa nas expressões gerais do nacionalismo cultural e do caráter nacional, Herder enfatiza o desenvolvimento orgânico das nações, que se exprime numa língua própria. Daí o relevo conferido à originalidade de cada povo condensada nas tradições populares. Como afirma o próprio Dante Moreira Leite,
"Essas teses de Herder, como de modo geral as inovações românticas, eram fundamentalmente ambíguas: de um lado, conduziam à valorização da arte e das tradições populares e, nesse sentido, representavam um enriquecimento da sensibilidade e da inteligência; de outro, conduziam também à valorização do passado e a uma fuga diante da vida moderna. Sob outro aspecto, poderiam conduzir à valorização da individualidade e da nacionalidade, o que era maneira de fugir à monotonia do racionalismo e do formalismo no pensamento e na Arte, na medida em que o sentimento e a intuição pessoal encontrariam meios de expressão; no outro extremo, isso conduzia à incomunicabilidade interindividiual e a uma separação entre culturas supostamente heterogêneas". (p. 30)
A consideração sumária dos conceitos acima justifica-se na medida em que o autor entende que a categoria caráter nacional, objeto central do seu ensaio, finca raízes no solo comum de onde brotaram tais conceitos. Dado que esta resenha, assim como o próprio livro de Dante Moreira Leite, intende concentrar a análise no caso brasileiro, não irei além das referências já expostas. Importaria entretanto acrescentar que o autor concebe o nacionalismo como uma mera justificativa ideológica empunhada por grupos que através dele visam legitimar conflitos pré-existentes localizados nas esferas seja da política, da religião, da economia ou da cultura. (ver p. 25).

Apoiado nos avanços feitos pela Antropologia, a Psicologia Social e a Sociologia, critica Dante Moreira Leite as teses racistas produzidas no contexto cientificista que caracterizou a segunda metade do século passado. Refuta, por exemplo, qualquer relação de causalidade entre raça e características psicológicas, que na verdade se explicam a partir da cultura. Salienta ainda como o desenvolvimento desses saberes, baseados na observação empírica, levou os especialistas em Ciências Humanas a superar o conceito de caráter nacional, que entretanto persiste em estudos de historiadores, ensaístas e filósofos da cultura. Embora frise bem este ponto (cf. p. 41), os capítulos seguintes tratam precisamente do modo como antropólogos, sociólogos e psicólogos sociais prosseguiram desenvolvendo estudos sobre caráter nacional e personalidade básica apoiados em descrições de natureza empírica. Logo, contrariamente ao que sustenta o autor, os estudos sobre caráter nacional não ficaram de modo algum confinados ao domínio dos historiadores, ensaístas e filósofos da cultura. A diferença efetiva que aqui se observa deriva do procedimento adotado (análise intuitiva, no caso destes, contra descrição empírica, no caso daqueles).

Como acima observei, antes de grossseiramente sumariar o conteúdo básico dos cinco primeiros capítulos da obra, é no capítulo 6 que o autor melhor justifica no plano teórico o significado da epígrafe "Existe é homem humano". Partindo da distinção entre teoria e ideologia, acentua que aquela pode ser compreendida em nível bem geral com fundamento no saber objetivo que não seria, por isso, confundível com o nível ideológico ou a racionalização. De outro lado, há entretanto quem afirme que todo saber sobre o homem é inevitavelmente ideológico, isto é, não se realiza independentemente da perspectiva e valores do sujeito cognoscente. Dante Moreira Leite ilustra o primeiro ponto lembrando que as teorias racistas do século XIX não passavam de uma justificação ideológica de interesses colonialistas das nações européias mais avançadas. Tal fato seria demonstrado pelo desenvolvimento de um saber objetivo (não-ideológico, portanto) decorrente dos avanços observáveis na Antropologia Cultural e na Psicologia Diferencial. A ideologia racista seria assim superada por uma "teoria objetiva da cultura, e pela explicação de diferenças de inteligência através de recursos econômicos e educacionais. Também neste caso seria possível demonstrar que a teoria culturalista apresenta um esquema objetivo e universal, pois afirma que as teorias racistas seriam apenas formas complexas do etnocentrismo". (p. 131)

Não podendo, nos limites deste breve comentário, estender-me na consideração desse problema, acrescento, seguindo sempre o autor, que se a primeira alternativa teórica implica a superação da ideologia pelo desenvolvimento do saber científico, a segunda, dado seu relativismo intrínseco, submete qualquer teoria ao princípio da dúvida que no limite torna insustentável qualquer teoria. Esta perspectiva relativista mereceu em obra recente de Sérgio Paulo Rouanet, iluminista mais radical que Dante Moreira Leite, uma crítica devastadora. (Ver O mal-estar na modernidade)

Na parte final do já referido capítulo há uma prova adicional do Iluminismo de Dante Moreira Leite. Propondo uma periodização do caráter nacional brasileiro, define como quarta e última fase "O desenvolvimento econômico e a superação da ideologia do caráter nacional brasileiro". Tal processo de superação do caráter nacional, compreendido enquanto ideologia que permeia um largo período da nossa história cultural, corresponderia à década de cinquenta.

Apesar de Dante Moreira Leite estar sempre criteriosamente matizando suas afirmacões mais categóricas, o final deste capítulo, e sobretudo o Capítulo 18: "Superação das Ideologias", cabalmente comprovam o que eu antes observara a propósito do seu universalismo iluminista condensado na epígrafe do livro. Assim como num dado momento Daniel Bell profetizou, em nome do liberalismo, o fim das ideologias (ver The End of Ideology) e há pouco Fukuyama, reatualizando o ideário liberal, procedeu como espetaculoso coveiro da história (ver O Fim da História), Moreira Leite decreta na sua refinada interpretação marxista de matriz universalista, o truísmo é apenas aparente, o fim da ideologia do caráter nacional brasileiro.

A superação das ideologias consistiria na passagem das interpretações baseadas em fatores psicológicos ou raciais para a explicação de base econômica. Moreira Leite ilustra o fenômeno no Capítulo 18 esboçando a trajetória ideológica de Monteiro Lobato. Partindo de uma explicação inicialmente psicológica, o que caracterizaria a fase propriamente ideológica da periodização proposta pelo autor, chega Lobato por fim, quando se converte em militante fervoroso da industrialização brasileira, à compreensão das verdadeiras causas dos nossos impasses nacionais, que radicam na esfera da economia (conferir pp. 311-2).

Um outro exemplo, referente a Caio Prado Jr., reforça a adesão do autor ao Iluminismo de raiz marxista. Formulando um juízo que se tornou consensual nos domínios da crítica cultural contemporânea, identifica na obra de Caio Prado, notadamente em Formação do Brasil Contemporâneo, uma efetiva ruptura em termos de renovação interpretativa da história brasileira. Seguindo as pegadas de Caio Prado, que adota o marxismo como matriz teórica e identifica no sistema econômico implantado desde os primórdios da colonização a causa última das nossas condições de dependência e atraso, assim se exprime Dante Moreira Leite
"...Caio Prado Júnior representa um momento decisivo na superação do pensamento ideológico: as características da colônia não são determinadas por misteriosas forças impostas pelo clima ou trazidas pelas raças formadoras, mas resultam do tipo de colonização imposto pela economia européia". (pp. 315-6).
No plano da literatura, o universalismo de Dante Moreira Leite se traduz na firmeza com que refuta a dicotomia regional-universal que até a altura da fase de superação das ideologias teria regido o conjunto do processo literário brasileiro. Ao dissolver a dicotomia acima aludida, a grande literatura contemporânea, simbolizada em autores como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, constituiria não mais uma tradução da alma brasileira, ou uma ordem de realidade confinada nos limites da nossa particularidade cultural, mas sim "as situações fundamentais dos homens de outras épocas e lugares". (p. 322)

Como já ressaltei noutra parte, quando Dante Moreira Leite erra, não erra por simplismo ou juízo redutor. Confirmando esta observação, ao procurar propor no fecho do seu livro uma explicação definitiva para a superação das ideologias do caráter nacional, pondera ele algumas possibilidades de explicação para ao cabo cautelosamente contentar-se em avançar uma hipótese sujeita a ulterior comprovação. Eis como a formula:
"... a ideologia do caráter nacional brasileiro passsou a ter menos significação e começou a desaparecer no momento em que as condições objetivas da vida econômica de certo modo impuseram a necessidade de um novo nacionalismo. Em outras palavras, à medida que se acentua a industrialização brasileira, é a economia do país que passa a ser posta em jogo e a luta pela independência econômica substitui as explicações da inferioridade nacional". (p. 327).
Sustentando embora que a obra de Dante Moreira Leite é regida por princípios universalistas, doutro lado assinalando alguns erros de enfoque resultantes dessa perspectiva, importa repetir, agora de um modo diverso, que o conjunto da sua argumentação não é linear. Noutras palavras, longe de atribuir aos fenômenos que analisa, e ao modo como se processa a inserção desses fenômenos no âmbito da história e da cultura, formulações e respostas simples, continuamente acentua a complexidade, quando não os tons contraditórios, com que se traduzem na ordem concreta da realidade. Sendo assim, embora acredite que a epígrafe do livro condensa a interpretação de um estudioso de corte iluminista, ideologia hoje sitiada pelo que uma convenção simplificadora denomina de crise de paradigmas nas Ciências Humanas, não faria justiça a Dante Moreira Leite se deixasse de observar que realiza a crítica de inspiração iluminista no seu mais fecundo e elevado sentido: a crítica que duvida do seu objeto ao mesmo tempo em que se submete ela própria ao exercício implacável da dúvida.

Apreciando agora a validade de sua tese em confronto com algumas das tendências mais recentes observáveis no horizonte da crítica da cultura, espero melhor explicitar o que no parágrafo precedente indiquei como erros de enfoque contidos na perspectiva norteadora da sua interpretação. Uma das tendências mais frisantes é a reavaliação crítica da obra de Gilberto Freyre. Mesmo no âmbito da USP, onde foi mais forte e consistente o movimento de oposição teórica à obra do sociólogo pernambucano, observam-se fatos que claramente sinalizam uma revisão positiva. O que Dante Moreira Leite assim como outros críticos mais "científicos" repeliam na obra de Freyre como sendo inconsistente interpretação impressionista, quando não mero discurso ideológico justificador do sistema de dominação de classe historicamente instituído na sociedade brasileira, merece agora dos estudiosos qualificações críticas mais diferenciadas.

No que se refere ao âmbito específico da historiografia, caberia salientar como, paralelamente à revisão crítica que se processa em torno às obras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, há uma certa retração da magnitude de Caio Prado Jr., unanimemente consagrado como nosso mais importante historiador marxista. Se ampliamos o campo de observação para a cena internacional, parecem também sintomáticos os percursos de Simon Schama, Peter Burke e Penelope Lively, historiadora convertida em celebrada ficcionista na Inglaterra. Para concluir, o fenômeno sem dúvida mais notável radica no amplo processo de revisão historiográfica denominado Nova História.

A dinâmica sob certos pontos de vista desnorteante da cena cultural contemporânea indica com clareza o que no debate acadêmico já se vai banalizando como expressão e sintoma de uma crise de paradigma nas Ciências Sociais. E essa crise é indissociável de um realinhamento geral do sistema ideológico e intelectual. Valores até há pouco ignorados ou hostilizados, como seria o caso de Gilberto Freyre, são agora considerados de um modo tal que o que fora antes visto como abuso subjetivista no plano epistemológico adquire estatuto de excelência interpretativa; o que no plano ideológico inspirava críticas acerbas, quando não puro e simples silêncio, agora é reintegrado ao horizonte crítico da cultura, como atestam o teatro de Nélson Rodrigues, o unânime reconhecimento do gênio de Jorge Luís Borges; a celebração de companheiros de viagem incômodos, como Ernesto Sábato; uma concepção de historiografia crítica liberta do compromisso de realizar a macro-história, ou ainda as grandes narrativas, como diria o epistemólogo pós-moderno François Lyotard, aderente aos feitos de uma suposta saga revolucionária inscrita na escala do tempo passado, desdobrada na linha do presente e por fim projetada na dimensão utópica do futuro.

Não obstante os erros contidos na interpretação proposta por Dante Moreira Leite, que decorrem fundamentalmente da perspectiva iluminista em que se situa, O caráter nacional brasileiro subsiste nos quadros da cultura brasileira como um dos nossos mais agudos ensaios de crítica ideológica, vertente à qual se seguiram nos anos setenta obras como Iseb - Fábrica de Ideologias, de Caio Navarro de Toledo, Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil (1920-1945), de Sérgio Miceli e Ideologia da Cultura Brasileira, de Carlos Guilherme Mota. Além de valer pela excelência da concepção e tratamento estilístico conferido ao amplo material analisado dentro do espírito do nosso melhor ensaísmo de síntese, realiza Dante Moreira Leite uma fecunda interpretação de cunho interdisciplinar recolhendo com largo senso de propriedade crítica elementos emprestados à Antropologia, à Psicologia Social, à Sociologia, à Literatura e à História das Idéias. Disso resulta um impressivo painel no cerne do qual as insuficiências decorrentes da tese central em nada abalam a construção e o mérito da arquitetura geral da obra.
São Paulo, maio de 1995.