Mostrando postagens com marcador Rubem Fonseca. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Rubem Fonseca. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Nos Murais da Internet III


A ditadura e seu legado
Caro Carlos Orsi: Muito bom o seu artigo sobre a ditadura e seu legado. As distinções que você faz, tendo como eixo o valor suprimido da democracia, esclarecem de forma sumária, como seria inevitável dentro dos limites do artigo, algumas confusões frequentes nos debates sobre o assunto. Acrescentaria apenas que a ditadura foi mais do que militar-civil. Ela foi também amplamente apoiada pelo povo, sobretudo pela via da passividade ou indiferença. Acho que a explicação deste fato, no geral silenciado até pelos críticos mais lúcidos e isentos, deriva do autoritarismo constitutivo da nossa formação social. Vivi boa parte dos “anos de chumbo” trabalhando numa fábrica e convivendo intensamente com operários, gente da classe média baixa e habitantes da zona açucareira de Pernambuco, linha de ponta da revolução que não houve nem poderia haver, salvo nas avaliações fantasiosas da esquerda e da direita paranóica, que usou isso como instrumento para justificar o golpe. Vivi com o outro pé na universidade estudando direito. Afora os gatos pingados que opunham alguma resistência à ditadura, antes de tudo no plano da consciência, o apoio à ditadura era massivo. Cansei de ouvir elogios rasgados a Médici e aos militares. Seria engano supor que essa mentalidade autoritária mudou muito. A democracia que você ressalta, e inteiramente aprovo, é de fato muito restrita, pois o Brasil mantém fora dela a maioria que somente poderia exercê-la se nossa noção de democracia se estendesse efetivamente para o plano social. Noutras palavras, precisamos ainda da democracia que nunca tivemos: a social, a que removeria a maioria do povo do estado de tirania social e econômica a que continua submetido. Não preciso acrescentar que somente ele, o povo, pode conquistá-la. (Blog Amálgama,27 de março 2014)

Estatismo brasileiro
Acho que só existe uma solução para o problema das estatais bem desenhado no editorial desta semana: privatizá-las. Privatizá-las, acrescento, impondo ao capital privado regulações efetivas impostas pelo Estado. Propor isso, no entanto, seria propor uma revolução que não interessa a ninguém, nem ao povo espoliado pelo modelo estatizante que sempre prevaleceu na nossa economia. Esse modelo, sabem os economistas e historiadores bem melhor que eu, remonta a Getúlio Vargas e nunca foi substancialmente alterado. Hegemônico na esfera econômica e política, sustenta-se sobretudo na mentalidade geral, que encara qualquer proposta de modernização segundo modelos como o anglo-saxônico como neoliberalismo – noutros tempos foi entreguismo. O modelo estatizante inabalável no Brasil serve antes de tudo como instrumento poderoso de espoliação do povo. (Revista Será?, 28 março 2014).

Petrobrás e estatais
Existe solução para as estatais que se servem da sociedade (do dinheiro do contribuinte, melhor dizendo), quando deveria ser o contrário. Existe solução, mas é difícil e de resto ninguém quer sequer pensá-la. A solução seria privatizar as estatais. Mas antes seria preciso submeter o Estado brasileiro a uma reforma profunda, que seria na verdade uma revolução: converter suas estruturas patrimoniais em instituições democráticas modernas características de uma autêntica social-democracia. No Brasil tal como é, esta solução é inconcebível. Portanto, tudo vai continuar como sempre foi. Como observei algures, nunca subestimem o poder de inércia social do Brasil. Noutras palavras, a força das nossas tradições retrógadas. Somente a organização democrática do povo poderia forçar essas mudanças. Mas o povo nada sabe nem quer saber. O povo, domesticado por cinco séculos de tirania patrimonialista e catequese que afinal nos valeu um santo, continua achando que tudo deve vir do governo: o governo pai, atualmente mãe Roussef, e provedor. Com um Estado como o nosso, o Brasil continua sendo o paraíso do capitalismo sem risco, também das multinacionais e corporações que aqui fazem o que querem. (Revista Será?, 28 março 2014).

Radicalização e violência
Discordo da estranheza acentuada no Editorial da Revista Será?: Radicalização e Violência. A democracia que temos de fato é e sempre foi restrita. Ela exclui a maioria dos brasileiros. Liberdade de expressão, por exemplo, é um direito que importa apenas para a minoria que pensa e opina no Brasil. Não significa nada para a maioria que vive um cotidiano factualmente opressivo e violento. Nossa violência é endêmica e impregna nossos modos correntes de vida. É tão endêmica que nem a percebemos. O que me espanta é a persistência dessa percepção mítica de um país sempre representado como alegre, feliz e festeiro. Somos também isso, mas tudo isso convive com a violência. Portanto, nada de estranhável. Aliás, acho mesmo é que devemos nos inquietar não só com o que está acontecendo, mas também com o tom dos dois comentários dos leitores que precedem este meu, que diante deles é sinceramente banal e previsível, vindo de quem vem. Acho que o leitor de Será? deveria ler com muita reflexão o tom dos comentários acima. Eles são a faísca de uma violência social há muito reprimida neste país que me inquieta e transtorna minhas medidas de compreensão. (Revista Será?, 3 maio 2014).

Radicalização e violência II
Não resisto ao desejo de fazer uma adição ao meu comentário. O comentário de César Garcia parece o fragmento de um conto de Rubem Fonseca, escritor que ousaria dizer profético. Como sabemos, ele teve um livro de contos (Feliz Ano Novo) censurado pela ditadura. Se não soubesse um pouco de política, acharia irônica a censura a uma obra literária sobre a violência brutal no auge de uma ditadura. Acho sintomático o fato de o escritor que melhor traduziu literariamente a violência brasileira ter sido um delegado de polícia. Continuo achando que o conjunto da obra de Rubem Fonseca é o que melhor explica os formigueiros urbanos que habitamos. A classe dirigente brasileira, herdeira do colonialismo e do escravismo, continua governando a sétima economia do mundo com a mentalidade dos engenhos cujo fogo já se apagou há muito tempo. Essa é uma das contradições desconcertantes entre a história das mentalidades e a econômica. (Revista Será?, 3 maio 2014).

O despertar do gigante
Teresa Sales: Você tem razão ao assinalar distinções significativas entre dois tempos do Brasil “despedaçado”. No entanto, acho que sua apreciação é otimista demais ao traduzir as explosões sociais agora correntes com o despertar do gigante. Sem dúvida, ele está despertando em muitos sentidos. Mas o trote da carruagem, a julgar pelos fatos cotidianos, tende mais para a reação desordenada, para explosões sociais que, na falta de melhor expressão, designaria como movimentos pré-políticos. Um dos aspectos inquietantes dessas manifestações, como aliás ressalta o Editorial desta semana, é a violência, é a depredação anárquica do nosso frágil tecido social. Noto na revista uma concepção um tanto difusa de democracia que tende, salvo erro de avaliação minha, a confundir democracia com funcionamento das instituições políticas. Ora, isso é muito pouco para definir a estabilidade democrática de um país como o Brasil. Sustento a opinião de que a maioria, apesar do bolsa família e outras mudanças positivas, continua vivendo à margem de um Estado efetivamente democrático.
Enquanto não tivermos democracia social para valer, e estamos ainda muito longe disso, as forças de instabilidade, potencialmente anárquicas, são sempre uma ameaça possível. Minha perspectiva, como frisei discutindo com Sérgio Buarque, é a da longue durée, até porque não tenho competência como alguns da revista, para opinar com segurança sobre os processos vivos e conjunturais da política e da economia. Por observar o Brasil do ângulo acima acentuado, não consigo ser otimista. Uma análise mais adequada teria que incorporar as mudanças profundas do capitalismo global e o modo como ele funciona num país periférico como o Brasil, que nunca foi capaz de ajustar suas contas com a modernidade. Tentei sugerir algo disso no comentário que postei sob o título Consumo vs. Civilização. (Comentário sobre o artigo de Teresa Sales, O despertar do gigante, Revista Será?, 17 maio 2014).





sábado, 28 de julho de 2012

A Vida Mesquinha


Alguém disse, com razão, que a vida é curta demais para ser mesquinha. Suponho que todos concordariam com isso. No entanto, a maioria das pessoas tende para a mesquinharia e assim vivendo concorre, claro, para tornar a vida geral mais mesquinha. Vivemos pouco e mal. Friso que o advérbio não remete à medida quantitativa corrente na nossa mentalidade estatística, mas sim à medida da qualidade, também já corrompida pela força onipresente e corruptora do mercado.

Longe de mim a presunção de definir plenamente o que seria a vida mesquinha, menos ainda ditar regras sobre o seu avesso, a vida generosa, a vida vivida com a plenitude que conferisse sentido à vida curta. Aliás, como dizê-la curta sem antes precisar um sentido de medida? Entendo que o autor da frase – suspeito tenha sido Shakespeare, embora lembre agora que um amigo costumava atribuí-la a Disraeli – usa o termo curta no sentido temporal, mas sobretudo qualitativo, fixando assim uma relação simetricamente oposta entre o ser curta e o ser mesquinha. Já que é temporalmente curta, deduzo, cuidemos de vivê-la com espírito avesso à mesquinharia do avarento, do ressentido, de todos que vivem envenenados por sentimentos, intenções e atos que apequenam a vida.

Até onde percebo, a maioria das pessoas tende a associar automaticamente a vida mesquinha à avareza. Sem dúvida, há um vínculo semântico forte entre o ser mesquinho e o avarento. Mas penso ser enganosa a identificação redutora entre os termos. Conheço muitas pessoas generosas no trato com as coisas materiais que, não obstante, são pessoas mesquinhas. São ressentidas, invejosas, incapazes de atos morais generosos. Além disso, usam a generosidade material não raro com fins espúrios: a ostentação, o comércio pequeno dos interesses e relações, o exercício inconfessado de poder sobre o outro. Quantos políticos corruptos não são generosos com o dinheiro que roubam? Quantos pais tirânicos ou indiferentes às práticas básicas da paternidade e do amor não enchem seus filhos de excessos materiais? Quanto não vemos de consumo conspícuo nas famílias infelizes e hostis? O generoso avarento é inconcebível, mas não o perdulário mesquinho, aquele que reduz as relações humanas ao fácil comércio e ao desperdício dos bens materiais tão corrente na sociedade de consumo.

Penso que somente a inconsciência com que vivemos, a inconsciência do que somos, pode justificar a justaposição banal do discurso romântico com o comércio mesquinho das relações humanas. Vivemos docilmente subjugados às pressões onipresentes do mercado e todavia continuamos falando de amor como relação de gratuidade, avesso dos cruéis interesses mercantis, com a mais completa inconsciência do mundo. O exemplo emblemático poderia ser esta frase: amar é dar presente, refrão socializador de toda criança.

A colonização mercadológica das relações íntimas, das relações afetivas em geral, é também patente no reboliço com que a mídia e toda a rede complexa do mercado orquestram o consumo delirante em datas fabricadas para vender o amor e sentimentos correlatos: dia das mães, dia dos pais, dia da criança, dia dos namorados e não sei mais quantos. Ah, também já inventaram o dia dos amigos. Enfim, nada escapa à força voraz do consumo. Tudo é mercadoria, ou pelo menos veste o corpo sedutor do mercado. Consumir, vender e vender-se tornaram-se tão onipresentes que se converteram numa espécie de segunda natureza humana, a que recobre a propriamente natural. Como entretanto acima observei, nada disso afeta a inconsciência com que continuamos reiterando um discurso amoroso completamente corroído pelo mercado.

O contexto acima explica por que alguém pode sem contradição ser mesquinho e perdulário, cobrir filhos e parceiro, conjugal ou não, de presentes e todavia ser mesquinho ao extremo da incapacidade amorosa. Esses fenômenos de dissociação estão presentes numa infinidade de situações humanas. Também na literatura, claro, que talvez nos traduza melhor que qualquer outro discurso. Bastaria considerar dois curtos contos de Rubem Fonseca. Refiro-me a “Passeio noturno (Parte I)” e “Passeio noturno (Parte II)”, incluídos no livro Feliz ano novo. Talvez precise ressaltar, para quem conhece os contos citados, que o exemplo dos contos de Rubem Fonseca vai a um extremo confundível com o mal imotivado. Ademais, como toda obra literária de qualidade, encerra múltiplos significados, entre os quais o que ressalto em benefício do meu argumento não é com certeza o mais importante.

Descendo a expressões mais pedestres da vida mesquinha, ocorre-me lembrar a matéria das nossas conversas correntes, também de muito do que se fala no convívio entre amigos íntimos, entre pessoas ligadas por vínculos afetivos profundos. Custa-me ainda compreender nossa fixação nos aspectos mesquinhos da vida. Por isso não me conformo com a conversa dominante no nosso convívio corrente. Falamos invariavelmente do que a vida encerra de pior, quando não simplesmente brutal. Falamos da violência em suas infindáveis e chocantes formas de manifestação. Falamos do outro mordidos pelo veneno da fofoca, da hostilidade e do ressentimento confessos ou latentes. Falamos de amor e sexo como experiências banais reduzidas a suas materializações mais mesquinhas, traduzível na moeda universal do mercado.

Não bastasse tanto, amesquinhamos ainda mais a vida domesticados pelo sentido de duração fabricado pela publicidade farmacêutica. Segundo esta, o que importa perseguir é o ideal da vida longa e saudável. Novamente, não importa aqui a vida que vivemos, mas sua duração. O que nos prescrevem - da proscrição do cigarro à infinita obsessão preventiva confinante com a paranoia e a hipocondria – é a utopia da sociedade terapêutica que lembra a assepsia totalitária de Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.

Ora, o mero bom senso, que portanto prescinde das lições pretensiosas ditadas pelos especialistas de todo tipo, basta para que a gente se dê conta desta verdade elementar: não se vive sem risco; não se vive uma vida digna de ser vivida, se possível bem e prazerosamente vivida, sem uma margem necessária de exposição ao risco. Melhor dizendo, isenta dos danos que fatalmente causamos ao outro e a nós próprios quando nos aventuramos a amar, perseguir nossos desejos, sonhos, ideais e nossas melhores ambições. Somente um covarde paralisado pelo medo à vida pode seguir ao pé da letra as prescrições de vida saudável hoje impostas pela sociedade terapêutica em que passamos a viver.

Essas considerações acima me fazem lembrar uma anedota envolvendo dos farristas incorrigíveis: Vinícius de Moraes e Antônio Maria. Segundo lembro, voltavam bêbados, para variar, de mais uma noitada. Era já manhã clara na praia de Ipanema. De repente, vislumbraram um corpo correndo, um corpo fiel ao ideal da vida saudável correndo areia e praia afora à primeira luz do dia. A simples visão daquele corpo atlético e disciplinado era o avesso do que faziam com o próprio corpo, a negação do que viviam como relação entre a vida intensamente vivida, a vida votada ao prazer, e o corpo. Por isso ali mesmo, estarrecidos diante daquele sacrilégio, prometeram solenemente nunca ceder àquela tentação intolerável.

Friso que o relato da anedota não supõe adesão ao modo de vida de pessoas como Vinícius e Antônio Maria, cujos excessos, familiares a quem sabe da vida de personalidades tão célebres, são o oposto simétrico dos excessos que caracterizam a sociedade terapêutica alvo da minha crítica. Quando circunstancialmente vivi durante alguns anos excessos semelhantes aos que constituíam marca distintiva desses artistas, errei através de bares, festas, badalações infindáveis, droga e sexo movente e sem aderência não bem por escolha, menos ainda ideal de vida, mas por força de circunstâncias pouco subordinadas à minha consciência e vontade.

Retomando o plano das relações íntimas, do cotidiano que compartilho com os amigos, quando ainda os vejo e converso, perdi a memória de quando compartilhei momentos de pura epifania. Não exagero ao escrever este termo que entrou no meu vocabulário através de minha leitura da obra de James Joyce. Aludo a um estado de revelação espiritual, de sensação momentânea e inefável no convívio com o outro. O móvel desse estado de epifania pode emergir subitamente de um momento de intensa intimidade amorosa, sexual, ou simplesmente de uma conversa singular, dessas apenas concebíveis na companhia de alguém a quem nos prendem elos profundos de afinidade, de compreensão não raro isenta de palavras.

Por que esses momentos de epifania há muito não se renovam na minha vida? Por que no próprio convívio íntimo, na companhia dos que mais amo e me dão prazer, fecharam-se as vias iluminadas por esses estados supremos de convívio e intimidade humana? Não encontro resposta satisfatória para minha interrogação. Sei porém que ela remete à prevalência da vida mesquinha no horizonte espiritualmente árido que habitamos.

Recife, 26 de julho de 2012.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Diário (fragmentos)



08 de junho 2004
Releio uma tradução francesa de Dom Casmurro assinada por Francis de Miomandre e revista por Ronald de Carvalho. Trata-se, portanto, de uma tradução já velha, provavelmente a primeira em língua francesa, talvez a primeira em língua estrangeira. Embora seja um modesto leitor de francês, portanto sem a devida qualificação para ajuizar sobre a qualidade da tradução, reconheço e retenho na leitura de algumas páginas alguns dos traços que mais singularizam a prosa de Machado de Assis: a ironia, o humor, o toque inconfundível do moralista iluminando com a pena aguda os desvãos perturbadores da vaidade, da mesquinheza, da autodeleitação inconsciente com que irreparavelmente nos enganamos acerca do que somos e presumimos saber sobre o outro. Quanto mais releio Machado, em português e noutras línguas que freqüento, mais me convenço da sua grandeza única, do seu indiscutível gênio literário. Reiterando o que outros já ressaltaram, fosse ele um autor de língua inglesa, ou outra de prestígio e difusão similares, seu reconhecimento seria amplo e universal. Apesar da barreira da língua, é animador comprovar que sua obra mais e mais se impõe à admiração por vezes perplexa de grandes leitores e críticos de outras línguas. Vargas Llosa e Carlos Fuentes já registraram em espanhol sua grandeza gradualmente ampliada na esfera do reconhecimento internacional; na língua inglesa, caberia destacar antes de tudo a obra de esclarecimento e difusão desenvolvida por John Gledson, que aliás assina a retradução aprimorada de vários textos de Machado, além da contribuição crítica notável contida, antes de tudo, em The Deceptive Realism of Machado de Assis. Valeria ainda acentuar a obra crítica pioneira escrita por Helen Caldwell. Aliás, somente há poucos anos, depois de tantas referências feitas por estudiosos de Machado de Assis, foi afinal vertido para o português O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. Dois críticos ingleses, pouco conhecidos no Brasil, também dedicaram páginas surpreendentes a Machado: V. S. Pritchett e Martin Seymour Smith. Mais recentemente, importaria assinalar Susan Sontag, Salman Rushdie, John Barth e este crítico desconcertante e leitor pantagruélico que é Harold Bloom. Enfim, Machado eleva-se sobre nossa surrada tradição de nacionalismo literário na qual patinaram mesmo alguns dos nossos maiores escritores como Mário de Andrade e nossa melhor produção romântica, modernista e regionalista. A prova suprema do grande escritor é sobreviver ao tempo e no tempo submetido a continuadas, sucessivas e renovadas leituras.

09 de junho de 2004
Há pouco ocorreu-me evocar a expressão de Voltaire anotada no fecho do seu sempre atual Cândido, ou o otimismo: “...il faut cultiver notre jardin”. Dou-me agora ao luxo de me propor algumas normas pertinentes à sabedoria da jardinagem. A primeira consiste na necessidade da delimitação de uma fronteira necessária entre o mundo público e o íntimo, correspondente ao jardim. Se o jardineiro incorre no erro insensato que seria reproduzir a matéria e os valores daquele no solo em que aspira a cultivar seu mundo íntimo, será portanto inútil qualquer presunção ou ideal de vida alternativa. Noutras palavras, melhor continuar imerso no grande mundo com tudo que encerra de pequenas e grandiosas misérias. Recuso-me, por conseguinte, a trazer para dentro do meu jardim as ervas daninhas do cotidiano que me vejo forçado a viver na companhia do semelhante inevitável. Até o noticiário noturno da tv tenho me disciplinado para evitá-lo ao me dar conta de que me inspira antes de tudo indignação e ódio impotente em face das brutalidades rotineiras praticadas na nossa sociedade, sobretudo pela elite bandida deste país vergonhoso. Aponho a elite um qualificativo contraditório por não encontrar meio menos inadequado de referir-me a isso que tão impropriamente designamos por elite brasileira, notadamente a política. Talvez melhor convenha o termo proposto por Evaldo Cabral de Mello, que ao negar que ela exista de fato no Brasil opta pelo termo clientela. O noticiário brasileiro e, por extensão, o estrangeiro, ficam assim interditados no solo do meu jardim.

Dado que entendo a jardinagem como equivalente de uma estética da existência, outra norma fundamental radica no livre e continuado cultivo das artes. É dentro desse espírito que me disciplino para voltar a cantar todos os dias acompanhado pelo meu violão. Valendo-me com frequência dos meus livros de cifras, dou-me ao prazer diário de cantar meus compositores populares preferidos: Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Vinicius de Moraes, Lennon-McCartney... Outra flor cultivada no meu jardim é a literatura. Os poetas ocupam lugar especial no canteiro literário que se estende pela via central do jardim. Os mais lidos - no geral de viva voz, pois concordo com Harold Bloom que a poesia deve ser lida – são Drummond, Auden, Eliot, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Murilo Mendes. Outra atividade constante que imprime beleza, emoção e esclarecimento à atmosfera do meu jardim é a frequentação dos filmes de ordinário gravados em dvd: as adaptações de obras assinadas por Shakespeare, Henry James, Jane Austen, Graham Greene, E. M. Forster, Dostoiévsky, Tchekov, Charles Dickens, Balzac, Victor Hugo, Oscar Wilde e muitos outros. Além disso, entra nesta composição a obra cinematográfica obrigatória dos meus diretores e roteiristas de eleição. Cito apenas os que me vêm de imediato à memória: Hitchcock, Billy Wilder, Woody Allen, Ingmar Bergman, Fellini, Kubrick, Christopher Hampton, David Hare, Louis Malle, Truffaut, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, David Lean.

Há no jardim uma hora preciosa, antes de tudo porque cada vez mais rara, a hora da solidão voluntária livremente povoada pela meditação errática, a pura contemplação da noite ou do mar próximo, mas antes adivinhado que propriamente apreendido pelos sentidos. É esta uma hora rara e progressivamente difícil porque o mundo é cada vez mais sobressaltado por toda sorte de ruído: o ruído dos aviões que fazem dos céus sob os quais habito uma rota de voo obrigatória; o ruído dos vizinhos empenhados em infernizar a vida do próximo; o ruído dos carros e de suas buzinas ferozes; o ruído de semelhantes boçais e arrogantes que, atormentados por modos de vida no geral gestados pela própria insensatez com que vivem, vingam-se dos seus tormentos insolúveis atormentando impiedosamente o mundo disposto ao alcance do seu poder. Há que cultivar o jardim contra e à margem e acima disso tudo. O resto escapa a meu poder de governo do meu mundo íntimo.

21 de junho de 2004.
Li ontem o último romance de Rubem Fonseca: Diário de um Fescenino. Não é com certeza um grande romance, mas é um bom romance. Narrado na forma de um diário, como já sugere o título, nele observo a concentração da narrativa no universo da classe média carioca. Se isso não o isenta de alguns traços marcantes da ficção de Rubem Fonseca, traços associados à representação brutal da marginalidade, acentua a presença de um universo social familiar ao leitor típico brasileiro. Algo que muito prezo no conjunto da obra de Rubem Fonseca é seu afastamento consciente e confesso do forte veio regionalista presente na nossa tradição literária. Desde seu primeiro livro, Rubem Fonseca elege o Brasil urbano, notadamente o Rio de Janeiro, como provedor de temas, conflitos, linguagens e tons dilacerantes da sua literatura. Fiel a esta orientação geral, distinguiu-se antes de tudo como contista da cidade – o melhor dentre os contemporâneos – e também como romancista. Seu primeiro romance, O Caso Morel, exerceu uma influência decisiva sobre minha consciência e prática sexuais. Que mais se pode pedir ou esperar de um livro? Registrei em alguma anotação remota de um dos meus diários o significado que este romance teve sobre minha vida.
Lendo Diário de um Fescenino, assim como Pequenas Criaturas, seu último volume de contos, observei como sua veia de humorista tornou-se mais pronunciada. A meio da leitura de algumas páginas de ambos os livros, não contive o riso. Rio prazerosamente lendo Cervantes, Voltaire, Swift, Lawrence Sterne, Machado de Assis, Oswald de Andrade... Rubem Fonseca, dentre os contemporâneos, é um que me estimulam ao riso e ao prazer elevado da inteligência e do espírito que a boa literatura propicia.

22 de junho de 2004.
Hoje acordei às 4 da madrugada. É que fui dormir também muito cedo. Gosto de estar de pé nessa hora ambivalente, suspensa entre a treva da noite e as primeiras luzes do dia. É quase miraculoso ouvir o silêncio respirando no asfalto deserto das ruas, os tons vagos da aurora espanando as gotas de água do oceano. Depois o dia vai lentamente nascendo, lentamente os objetos emergem do sono profundo da noite. Vesti-me feliz, quase que às pressas, e aproveitei a trégua da chuva, que nos últimos dias privou-me do prazer de correr e bater perna no calçadão da praia, sobretudo do prazer de mergulhar na piscina. Alternando a corrida lenta e a passada longa, fui até a praça de Boa Viagem. Depois fiz o percurso de volta estendendo-o até os limites de Piedade. Quando cruzei a linha do prédio onde Ci e as meninas viveram, espremido entre dois grandes edifícios que miraculosamente não lhe suprimiram a visão do mar, respirei com saudável e comovida memória os anos mais belos e felizes de minha vida. É bom evocá-los assim, retê-los nas linhas concretas do prédio onde tudo se deu e se consumou, surpreendê-los vibrando na atmosfera da cidade insensível, sem qualquer dor, ressentimento ou nostalgia. Vivi o que pude, vivemos o possível, e assim espero assimilar à memória toda essa paisagem esplêndida que perdi sem no entanto perdê-la. Passarei sempre diante daquele prédio respirando no ar sem sombras toda a felicidade invisível que elas me deram. Mentiria se dissesse que a aceitação repousada do que nelas perdi anula qualquer traço ou desejo de volta no tempo, ou de atualização dos esplendores perdidos. O que digo é que procurei tudo aceitar e viver e agora apenas memorar tal como foi: temporário, falível e todavia inefável. Talvez inefável exatamente porque temporário e falível. Tudo que queria ainda, mas não depende de mim, era retê-las como amigas, expressar livremente em clave sublimadora todo o amor, o gozo e desejo que a elas definitivamente me prendem. Um dia escrevi um poema para Ci intitulado: Sempre. Já não lembro o poema e a preguiça impede-me de ir catá-lo numa pasta que nem sei bem onde se encontra. Lembro porém de que nele aspirei a traduzir o sentido de eternidade humana, se é possível assim dizer, do amor que a ela me prende e me prenderá enquanto eu viva. Não importa o fato de ela abafar nos desvãos da memória tudo o que poderosa e irreprimivelmente nos une. Afinal, perdemos a liberdade de nos esquecer.

24 de junho de 2004
O Diário Crítico de Sérgio Milliet cobre um período que se estende grosseiramente do início dos anos 40 a meados dos anos 50. Uma das lições que patenteia é a fugacidade da fama e do prestígio literário. Se nem tudo é moda, boa parte dos escritores lidos e celebrados numa geração – diríamos hoje num ano – cedo mergulha no esquecimento. Mesmo alguns distinguidos pelo reconhecimento geral, sobretudo pela crítica mais criteriosa, com o tempo dissolvem-se no silêncio das prateleiras, ou pelo menos são reduzidos a dimensões comparativamente insignificantes. É curioso lembrar, por exemplo, o prestígio indisputável da cultura francesa durante o período registrado no diário de Sérgio Milliet. Talvez o escritor mais contemplado nas entradas e comentários do crítico paulista seja André Gide. Era então extraordinário o prestígio internacional de que desfrutava. Milliet reitera tal prestígio dedicando-lhe algumas das melhores e mais elogiosas páginas do seu diário. Se Gide não mergulhou na obscuridade, é certo que é hoje muito pouco lido. Outros similarmente distinguidos, como Georges Bernanos e Charles Péguy, tornaram-se ilustres desconhecidos para os contemporâneos.

Dentre os brasileiros, Mário de Andrade e Gilberto Freyre merecem por certo as notas mais amplas e elogiosas. Também a crítica, de resto notável no período, é objeto de inúmeras considerações de Milliet. O destaque maior vai para Álvaro Lins e Roger Bastide. O primeiro era no geral reconhecido como o melhor crítico militante na literatura brasileira; o segundo, embora antes de tudo sociólogo, trouxe contribuição notável à renovação dos nossos estudos socioantropológicos e também literários, com ênfase, aqui, para a ponderação mais sistemática do papel que a sociologia desempenha na apreciação da obra de arte, em geral, e da literária, em particular. Sílvio Romero, Alceu Amoroso Lima, Lúcia Miguel-Pereira, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Rui Coelho e outros são contemplados com notas no geral elogiosas.
Outro assunto merecedor de breve registro liga-se à febre dos testamentos e plataformas dados a público pelas duas gerações concorrentes no cenário cultural brasileiro na primeira metade dos anos 40. Os termos que emprego, testamentos e plataformas, aludem, claro, a dois livros de ampla repercussão: Testamento de uma Geração, organizado por Edgard Cavalheiro, e Plataforma da Nova Geração, organizado por Mário Neme. Enquanto o primeiro reúne depoimentos e balanços literários e ideológicos da geração fautora do Modernismo, a segunda dá voz à geração ascendente, constituída antes de tudo por escritores e ensaístas de vocação crítica ratificada pelo desenvolvimento do processo cultural brasileiro. Fui dos poucos, na minha geração, a ler cuidadosamente estas obras. Encontrei-as no acervo precioso da Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife durante minha curta e desprezada passagem pelo curso no auge dos chamados anos de chumbo da ditadura militar. Aliás, a leitura de obras desta natureza, somada à descoberta da psicanálise e dos escritores modernistas, concorreu de forma decisiva para que eu nunca mais pusesse os pés no prédio histórico do Parque 13 de Maio. Outro fator decisivo foi a leitura de O Processo Maurizius, de Jakob Wassermann. Poucos livros que li, aqui incluído Dom Quixote, tiveram sobre minha imaginação ética e estética efeito tão poderoso. O livro de Wassermann é a história de um processo de injustiça afinal reparado pela luta de um personagem eticamente grandioso. Não podia ler um livros destes sem cotejá-lo com a experiência cotidiana que me oprimia na Faculdade de Direito e no Brasil policiado pela truculência dos militares. Fiquei tão abalado que desisti do curso, pois tinha consciência de que nunca teria força e grandeza intelectuais e morais para seguir o exemplo de Etzel Undergast (tenho sérias dúvidas sobre a correção do sobrenome) como representante da lei e da justiça no país da ditadura e da injustiça.
Por fim, um breve comentário sobre a hegemonia do romance nordestino no decurso do primeiro momento historiado pelo diário de Sérgio Milliet. Tecendo elogios notadamente a José Lins do Rego – talvez, dentre os nordestinos, o que gozava de maior prestígio literário naquele período, como atesta o juízo de peso emitido por Mário de Andrade, que o distinguiu como o maior romancista brasileiro - Milliet proclama a excelência dessa corrente da nossa produção romanesca ao reconhecer que os nordestinos realizaram a ficção que os paulistas propunham ou desejariam realizar.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Autoengano



Compareço à Arcádia, em Apipucos, para assistir a uma palestra de Eduardo Giannetti seguida do lançamento do seu último livro, Autoengano. Embora não conheça ainda o livro – falta-me de resto tempo para o ler em meio às tantas leituras acumuladas neste mês de férias sem efetivo repouso intelectual – fui à Arcádia já razoavelmente ilustrado pela discussão em torno do livro promovida pelo programa Roda Vida, segunda-feira passada.

Giannetti é um economista de credenciais bem pouco ortodoxas na cena intelectual brasileira. Pois, não obstante pense aqui em Celso Furtado ou Caio Prado Jr., são poucos os que entre nós praticam uma economia distanciada de padrões econométricos demasiado ciosos de fidelidade à ciência positiva. Declarando-se ele próprio filiado à tradição da economia política, quando não francamente filosófica, faz questão de lembrar a obra pouco convencionalmente econômica de economistas como Adam Smith, John Stuart Mill e Karl Marx.

Seu distanciamento da corrente dominante deste século se evidencia ainda no próprio tratamento analítico conferido ao tema do autoengano. Pois ao frisar que o indivíduo é o locus desse fenômeno complexo, que investiga não só no âmbito das relações humanas, mas também no próprio reino animal – não humano, esclareço – e vegetal, Giannetti atenua o peso dos fatores especificamente sociológicos.

Algo que me inspira simpatia no seu comentário introdutório acerca da relação entre sua linha de abordagem da matéria e a filosofia analítica é o relevo que empresta na composição da obra a duas características básicas desta orientação teórica: a definição precisa do objeto e a clareza expositiva. Acrescenta, para ser exato, uma terceira característica que infelizmente me escapa à memória. Outro dado que igualmente me inspira simpatia é sua resistência a que se confunda sua exploração analítica com uma linha de produção editorial hoje largamente consumida, e no geral intelectualmente desonesta, banalizada sob o título de literatura de autoajuda.
Voltando ao ponto referente ao indivíduo encarado como o locus do autoengano, torna-se de fato difícil propor, ainda que à margem de qualquer intenção de receituário, medidas de efetiva superação das manifestações mais rotineiras de autoengano. Pois nossas práticas humanas, em qualquer terreno imaginável, aparentam pautar-se por desejos irremovíveis de autoengano. Embora modestamente me vincule à tradição racionalista, e possa no meu caso pessoal aferir como o exercício da razão analítica e sobretudo autoanalítica alterou decisivamente comportamentos de autoengano, julgo ter antes de tudo aprendido a impossibilidade de subordinar a inclinação imperativa para o autoengano aos dispositivos esclarecedores da razão.

Seria aqui interessante propor dois exemplos passíveis de atestar o quanto somos resistentes ao exercício dessa função corretiva da razão. O primeiro, o do autoengano ideológico gestado e difundido por intelectuais influentes, teve efeitos políticos desastrosos neste século. Apesar de se representarem como sismógrafos da consciência coletiva, Sartre é o exemplo paradigmático dessa consciência crítica autodelegada, esses intelectuais teimaram até o fim em acreditar, ou pelo menos publicamente declarar, as virtudes do socialismo e a magnitude intelectual e moral de tiranos do porte de Stalin.

Lembro-me de que minha própria geração se formou embalada por essas gigantescas mentiras. Um livro de Georges Pollitzer, Princípios de Filosofia, funcionou como manual de iniciação ao marxismo para mim e muitos dos meus amigos de esquerda. Nele Stalin era incensado como grande cientista, teórico social extraordinário e, literalmente, benfeitor da humanidade. Afrontar essas mentiras, e dissolvê-las com fatos acessíveis a qualquer observador isento, era fazer o jogo da direita, era concorrer para o enfraquecimento da luta revolucionária. Ademais, custava ao crítico, com frequência, a pecha de renegado, lacaio do capitalismo e desqualificações igualmente intolerantes. Intelectuais independentes e autenticamente dedicados ao livre exercício da razão como Bertrand Russell, George Orwell, André Gide, Albert Camus, Arthur Koestler foram alvo de desprezo e calúnia.

O dado irônico nesse autoengano do intelectual revolucionário consiste no racionalismo crítico que sempre reivindicou para sua prática ideológica. Identificando na sua crítica a materialização da razão histórica, jamais duvidou de que no seu modo de ser e atuar dentro da realidade a teoria e a prática encarnavam a expressão mais avançada da consciência autêntica e da energia revolucionária que no futuro instauraria os ideais fundamentais da razão, da justiça e da existência social verdadeira. Investido de tão poderoso autoengano, como poderia perceber as grandiosas mentiras que produzia ou validava, além da intolerância com que investia contra quem ousasse afirmar a verdade do socialismo real e do fracasso evidente que foram todas as tentativas orientadas para a sua realização no curso deste século?
Uma variante desse primeiro exemplo aqui já um tanto desenvolvido seria a ascensão do nazismo. Parece-me insuficiente a explicação correntemente proposta – inclusive pelo próprio Giannetti, que a reitera no curso da sua palestra – pela tradição historiográfica e sociológica satisfeita em atribuir a adesão dos alemães à ideologia nazista à humilhação imposta pelo Tratado de Versailles, à hiperinflação e à astúcia maquiavélica dos líderes nazistas. Esses fatos históricos concorreram sem dúvida para a ascensão do nazismo, mas estão longe de constituir uma explicação racional satisfatória.

O segundo exemplo, solo fértil onde germina o autoengano entanto espantosamente quase silenciado tanto na palestra quanto no prolongado debate que a ela se seguiu, é o da experiência amorosa. Num dado momento, senti-me tentado a pedir a palavra para narrar uma passagem exemplar do conto “Corações Solitários”, de Rubem Fonseca. Um personagem, símbolo dessa anônima legião de infelizes manipulada pela máquina de enganos que são as seções de aconselhamento de revistas pouco ou nada recomendáveis, envia uma carta ao protagonista do conto, que vive do expediente enganador indicado neste período. Já que possuo o livro, será mais simples transcrever o episódio:
“Nathanael. Sabe o que é duas pessoas se gostarem? Éramos nós dois, eu e Maria. Meu prato predileto é arroz, feijão, couve à mineira, farofa e linguiça frita. Imagina qual era o de Maria? Arroz, feijão, couve à mineira, farofa e linguiça frita. Minha pedra preciosa preferida é o Rubi. A de Maria, estás a ver, era também o Rubi. Número da sorte o 7, cor o Azul, dia Segunda-Feira, filme, de Faroeste, livro O Pequeno Príncipe, bebida Chope, colchão o Anatom, clube o Vasco da Gama, música o Samba, passatempo o Amor, tudo igualzinho entre eu e ela, uma maravilha. O que nós fazíamos na cama, rapaz, não é para me gabar, mas se fosse no circo e a gente cobrasse entrada nós ficávamos ricos. (...) Mas não era apenas isso que nos ligava. Se você não tivesse uma perna eu continuaria te amando, me dizia ela. Se você fosse corcunda eu não deixaria de te amar, eu respondia. Se você fosse surdo-mudo eu continuaria te amando, dizia ela. Se você fosse vesga eu não deixaria de te amar, eu respondia. Se você fosse barrigudo e feio eu continuaria te amando, dizia ela. Se você fosse toda marcada de varíola eu não deixaria de te amar, eu respondia. Se você fosse velho e impotente eu continuaria te amando, ela dizia. E nós estávamos trocando essas juras quando uma vontade de ser verdadeiro bateu em mim, funda como uma punhalada, e eu perguntei a ela, e se eu não tivesse dentes, você me amaria? e ela respondeu, se você não tivesse dentes eu continuaria te amando. Então eu tirei a minha dentadura e botei em cima da cama, num gesto grave, religioso e metafísico. Ficamos os dois olhando para a dentadura em cima do lençol, até que Maria se levantou, colocou um vestido, e disse, vou comprar cigarros. Até hoje não voltou. Nathanael, me explica o que foi que aconteceu. O amor acaba de repente? Alguns dentes, míseros pedacinhos de marfim, valem tanto assim? Odontos Silva”. (“Corações Solitários”, in Rubem Fonseca, Feliz Ano Novo. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 36-7).

Várias vezes utilizei este episódio do conto de Rubem Fonseca em diferentes cursos da UFPE – psicologia, jornalismo, serviço social – com o propósito de proceder a uma crítica da idealização do objeto amado. Um prato cheio para analistas do autoengano, com certeza. Adotando esse ponto de vista negativo, talvez um sintoma da minha crença na necessidade da crítica racional desfechada contra as mistificações amorosas em que desmedidamente incorremos, certa feita fui surpreendido pelo comentário divergente de um amigo cuja opinião muito respeito: Daniel Lima. Enquanto, de minha parte, reiterava uma crítica sempre movido pela convicção de que amaríamos melhor se desenvolvêssemos a capacidade de amar o outro imperfeito tal como é, incorporando ao amor pelo amado a sua dentadura, esses míseros pedacinhos de marfim, como metaforicamente se exprime o contista, Daniel chamou minha atenção para o fato de que o amor carece do engano da dentadura. Dito de outro modo, o amor se realiza precisamente pela via do autoengano. No entender do meu amigo, que é decerto o entender da maioria, não existiria amor sem uma dose necessária de idealização e autoengano compartilhado pelos amantes.

Saindo agora do cerne da palestra, o que ouvi de Giannetti confirma a admiração que lhe tenho dedicado desde que passei a tomar contato com as ideias que postula. Contato precário, sei, já que restrito a intervenções ocasionais nas páginas de jornal e em debates veiculados pela televisão, mas ainda assim suficiente para que possa estimar seus méritos intelectuais e morais. Tratando de um tema tão relevante e atraente para o leitor, não cede ele entretanto no rigor da exposição analítica. De outro lado, fiel à tradição filosófica declarada no pórtico de sua palestra, e já acima explicitada, procede como um expositor exemplar. A ordenação dos seus argumentos, articulada a elementos ilustrativos extraídos da história da arte e da cultura, além do próprio domínio das ciências da natureza, pauta-se por critérios de clareza, integridade intelectual e sobretudo um ceticismo salutar sempre consciente de que o autoengano é uma necessidade transfiguradora, para o bem quanto para o mal, das máquinas imperfeitas que somos. Por isso, sem embora subestimar o papel corretivo exercido pela razão, sabe ele o quanto são precários nossos poderes racionais.

Diário - Recife, 26 de janeiro de 1998.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Rubem Fonseca para César Melo


Dedicatória para César num livro de Rubem Fonseca

Se leio Rubem Fonseca
Eu rio e faço careta
E o livro me faz feliz.
Esse malandro capeta
Ouviu as nossas conversas
Gravando o que a gente diz.

Nossa vingança e humor
O espinho picando a flor
Ah, como isso é cruel!
Fonseca vai reto e fundo
Revira as pernas do mundo
Com corte de faca e fel.

A gente lá na Jaqueira
Brechando a mulher faceira:
Carne solar e nudente.
E Rubem no nosso andar
Gravando as nuvens e o ar
Roubando os contos da gente.