sábado, 28 de julho de 2012

A Vida Mesquinha


Alguém disse, com razão, que a vida é curta demais para ser mesquinha. Suponho que todos concordariam com isso. No entanto, a maioria das pessoas tende para a mesquinharia e assim vivendo concorre, claro, para tornar a vida geral mais mesquinha. Vivemos pouco e mal. Friso que o advérbio não remete à medida quantitativa corrente na nossa mentalidade estatística, mas sim à medida da qualidade, também já corrompida pela força onipresente e corruptora do mercado.

Longe de mim a presunção de definir plenamente o que seria a vida mesquinha, menos ainda ditar regras sobre o seu avesso, a vida generosa, a vida vivida com a plenitude que conferisse sentido à vida curta. Aliás, como dizê-la curta sem antes precisar um sentido de medida? Entendo que o autor da frase – suspeito tenha sido Shakespeare, embora lembre agora que um amigo costumava atribuí-la a Disraeli – usa o termo curta no sentido temporal, mas sobretudo qualitativo, fixando assim uma relação simetricamente oposta entre o ser curta e o ser mesquinha. Já que é temporalmente curta, deduzo, cuidemos de vivê-la com espírito avesso à mesquinharia do avarento, do ressentido, de todos que vivem envenenados por sentimentos, intenções e atos que apequenam a vida.

Até onde percebo, a maioria das pessoas tende a associar automaticamente a vida mesquinha à avareza. Sem dúvida, há um vínculo semântico forte entre o ser mesquinho e o avarento. Mas penso ser enganosa a identificação redutora entre os termos. Conheço muitas pessoas generosas no trato com as coisas materiais que, não obstante, são pessoas mesquinhas. São ressentidas, invejosas, incapazes de atos morais generosos. Além disso, usam a generosidade material não raro com fins espúrios: a ostentação, o comércio pequeno dos interesses e relações, o exercício inconfessado de poder sobre o outro. Quantos políticos corruptos não são generosos com o dinheiro que roubam? Quantos pais tirânicos ou indiferentes às práticas básicas da paternidade e do amor não enchem seus filhos de excessos materiais? Quanto não vemos de consumo conspícuo nas famílias infelizes e hostis? O generoso avarento é inconcebível, mas não o perdulário mesquinho, aquele que reduz as relações humanas ao fácil comércio e ao desperdício dos bens materiais tão corrente na sociedade de consumo.

Penso que somente a inconsciência com que vivemos, a inconsciência do que somos, pode justificar a justaposição banal do discurso romântico com o comércio mesquinho das relações humanas. Vivemos docilmente subjugados às pressões onipresentes do mercado e todavia continuamos falando de amor como relação de gratuidade, avesso dos cruéis interesses mercantis, com a mais completa inconsciência do mundo. O exemplo emblemático poderia ser esta frase: amar é dar presente, refrão socializador de toda criança.

A colonização mercadológica das relações íntimas, das relações afetivas em geral, é também patente no reboliço com que a mídia e toda a rede complexa do mercado orquestram o consumo delirante em datas fabricadas para vender o amor e sentimentos correlatos: dia das mães, dia dos pais, dia da criança, dia dos namorados e não sei mais quantos. Ah, também já inventaram o dia dos amigos. Enfim, nada escapa à força voraz do consumo. Tudo é mercadoria, ou pelo menos veste o corpo sedutor do mercado. Consumir, vender e vender-se tornaram-se tão onipresentes que se converteram numa espécie de segunda natureza humana, a que recobre a propriamente natural. Como entretanto acima observei, nada disso afeta a inconsciência com que continuamos reiterando um discurso amoroso completamente corroído pelo mercado.

O contexto acima explica por que alguém pode sem contradição ser mesquinho e perdulário, cobrir filhos e parceiro, conjugal ou não, de presentes e todavia ser mesquinho ao extremo da incapacidade amorosa. Esses fenômenos de dissociação estão presentes numa infinidade de situações humanas. Também na literatura, claro, que talvez nos traduza melhor que qualquer outro discurso. Bastaria considerar dois curtos contos de Rubem Fonseca. Refiro-me a “Passeio noturno (Parte I)” e “Passeio noturno (Parte II)”, incluídos no livro Feliz ano novo. Talvez precise ressaltar, para quem conhece os contos citados, que o exemplo dos contos de Rubem Fonseca vai a um extremo confundível com o mal imotivado. Ademais, como toda obra literária de qualidade, encerra múltiplos significados, entre os quais o que ressalto em benefício do meu argumento não é com certeza o mais importante.

Descendo a expressões mais pedestres da vida mesquinha, ocorre-me lembrar a matéria das nossas conversas correntes, também de muito do que se fala no convívio entre amigos íntimos, entre pessoas ligadas por vínculos afetivos profundos. Custa-me ainda compreender nossa fixação nos aspectos mesquinhos da vida. Por isso não me conformo com a conversa dominante no nosso convívio corrente. Falamos invariavelmente do que a vida encerra de pior, quando não simplesmente brutal. Falamos da violência em suas infindáveis e chocantes formas de manifestação. Falamos do outro mordidos pelo veneno da fofoca, da hostilidade e do ressentimento confessos ou latentes. Falamos de amor e sexo como experiências banais reduzidas a suas materializações mais mesquinhas, traduzível na moeda universal do mercado.

Não bastasse tanto, amesquinhamos ainda mais a vida domesticados pelo sentido de duração fabricado pela publicidade farmacêutica. Segundo esta, o que importa perseguir é o ideal da vida longa e saudável. Novamente, não importa aqui a vida que vivemos, mas sua duração. O que nos prescrevem - da proscrição do cigarro à infinita obsessão preventiva confinante com a paranoia e a hipocondria – é a utopia da sociedade terapêutica que lembra a assepsia totalitária de Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.

Ora, o mero bom senso, que portanto prescinde das lições pretensiosas ditadas pelos especialistas de todo tipo, basta para que a gente se dê conta desta verdade elementar: não se vive sem risco; não se vive uma vida digna de ser vivida, se possível bem e prazerosamente vivida, sem uma margem necessária de exposição ao risco. Melhor dizendo, isenta dos danos que fatalmente causamos ao outro e a nós próprios quando nos aventuramos a amar, perseguir nossos desejos, sonhos, ideais e nossas melhores ambições. Somente um covarde paralisado pelo medo à vida pode seguir ao pé da letra as prescrições de vida saudável hoje impostas pela sociedade terapêutica em que passamos a viver.

Essas considerações acima me fazem lembrar uma anedota envolvendo dos farristas incorrigíveis: Vinícius de Moraes e Antônio Maria. Segundo lembro, voltavam bêbados, para variar, de mais uma noitada. Era já manhã clara na praia de Ipanema. De repente, vislumbraram um corpo correndo, um corpo fiel ao ideal da vida saudável correndo areia e praia afora à primeira luz do dia. A simples visão daquele corpo atlético e disciplinado era o avesso do que faziam com o próprio corpo, a negação do que viviam como relação entre a vida intensamente vivida, a vida votada ao prazer, e o corpo. Por isso ali mesmo, estarrecidos diante daquele sacrilégio, prometeram solenemente nunca ceder àquela tentação intolerável.

Friso que o relato da anedota não supõe adesão ao modo de vida de pessoas como Vinícius e Antônio Maria, cujos excessos, familiares a quem sabe da vida de personalidades tão célebres, são o oposto simétrico dos excessos que caracterizam a sociedade terapêutica alvo da minha crítica. Quando circunstancialmente vivi durante alguns anos excessos semelhantes aos que constituíam marca distintiva desses artistas, errei através de bares, festas, badalações infindáveis, droga e sexo movente e sem aderência não bem por escolha, menos ainda ideal de vida, mas por força de circunstâncias pouco subordinadas à minha consciência e vontade.

Retomando o plano das relações íntimas, do cotidiano que compartilho com os amigos, quando ainda os vejo e converso, perdi a memória de quando compartilhei momentos de pura epifania. Não exagero ao escrever este termo que entrou no meu vocabulário através de minha leitura da obra de James Joyce. Aludo a um estado de revelação espiritual, de sensação momentânea e inefável no convívio com o outro. O móvel desse estado de epifania pode emergir subitamente de um momento de intensa intimidade amorosa, sexual, ou simplesmente de uma conversa singular, dessas apenas concebíveis na companhia de alguém a quem nos prendem elos profundos de afinidade, de compreensão não raro isenta de palavras.

Por que esses momentos de epifania há muito não se renovam na minha vida? Por que no próprio convívio íntimo, na companhia dos que mais amo e me dão prazer, fecharam-se as vias iluminadas por esses estados supremos de convívio e intimidade humana? Não encontro resposta satisfatória para minha interrogação. Sei porém que ela remete à prevalência da vida mesquinha no horizonte espiritualmente árido que habitamos.

Recife, 26 de julho de 2012.

Um comentário:

  1. Fernando, parabéns!
    Tbm não sei o que aconteceu sobretudo nas conversas...
    Bjo.

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