segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Elogio da Inutilidade


George Steiner ressalta num dos seus ensaios extraordinários a força corruptora que um regime totalitário – o nazismo, no caso – exerce sobre a língua que falamos. Antes de tudo, ele corrompe a possibilidade de a utilizarmos para expressar a verdade. Embora não exista felizmente nenhum regime totalitário regendo nosso presente, há no entanto certas características dele rondando obscuramente nossas vidas. Consideremos novamente o problema da linguagem. Vivemos numa época dominada pelo discurso publicitário, cujo objetivo maior é vender tudo, não raro ao preço de ilusões completamente infundadas, mentiras que não resistem a um minuto de análise sensata. O discurso publicitário contamina a mídia em geral, que por sua vez atua sobre nossas consciências incautas, ou simplesmente carentes de auto-engano. Assim, passamos a empregar livre e correntemente palavras e conceitos que servem antes de tudo para embaçar nossa relação com a realidade, representá-la turvada por uma rede de mentiras e ilusões nesse sentido afins ao discurso totalitário. Bastaria pensarmos no sentido verdadeiro de expressões correntes como fogo amigo, bala perdida (digam isso a quem foi atingido por uma, ou a quem perdeu uma pessoa amada atingida por uma) ou terceira idade. Pensemos ainda nos clipes publicitários que a toda hora, a todo minuto, representam o consumidor como um ser investido de onipotência. O limite é o nosso desejo. Se tomo uma coca-cola, converto-me milagrosamente num super-herói; se tomo uma Skol, o prazer desce redondo milagrosamente convertendo-me num Casanova de botequim...
Mas meu objetivo é concentrar a matéria deste artigo em algumas das implicações submersas na expressão terceira idade e variantes como boa idade e adultescente. Este talvez seja um neologismo que eu possa humildemente reivindicar como sendo de minha autoria, pelo menos no sentido em que o emprego. Para mim, o adultescente é apenas um adulador da adolescência. Esta idade, a adolescência, elevada pelo discurso publicitário a ideal de vida, converte a velhice (usei enfim a palavra obscena, o termo impronunciável) em autêntico pavor, espécie de assombração do processo biológico que precisa ser a todo custo abafada. Isso nos leva de volta ao uso da linguagem como exercício de uma forma de vida mentirosa, uma forma de vida baseada na ilusão e na mentira. O mais grave é que, no caso, lidamos com experiências humanas inescapáveis, modos de ser que são constitutivos do processo biológico que todos fatalmente vivemos. Trocando em miúdos, qualquer pessoa que tenha o privilégio (ou desgraça, depende sempre do ponto de vista de quem fala e vive) de viver uma vida longa inevitavelmente atravessa os ciclos da infância, da juventude e da velhice. Mas parece que agora, possuídos pela cultura narcisista e hedonista, refizemos o processo da seguinte maneira: infância, adolescência, juventude e adultescência (agora no sentido de regressão ao irregressível, já que desconheço o milagre do velho efetivamente adolescente). Em suma, abolimos a velhice e estamos a caminho de abolir a morte, obscenidade ainda mais impronunciável. Como todavia a realidade é sempre imperativa, não há como suprimir a velhice. E já que é impossível suprimi-la, resta-nos criar uma linguagem que a recusa, uma linguagem que a representa como se não fosse, ou fosse outra coisa. É aí que o publicitário entra em cena e cunha expressões do tipo terceira idade, ou boa idade. Outro recurso empregado pela ideologia corrente consiste em representar o idoso (perdão, quis dizer o membro da terceira idade) como um ser útil ou como um consumidor feliz. Observem a felicidade combalida dos idosos filmados em bailes da terceira idade. Observem ainda as reportagens onde aposentados falam orgulhosamente do que fazem para conservar-se ativos como parafusos lubrificados a serviço da grande e monstruosa máquina do consumo.
Diante do quadro feliz e harmonioso acima esquematicamente esboçado, incorro agora na atitude herética de reivindicar para mim próprio o direito de envelhecer e morrer conscientemente, envelhecer e morrer liberto do peso dessas ilusões lucrativas... para os publicitários e comerciantes que nelas investem. Falando baixinho, para não escandalizar os jovens que têm pavor da velhice e os velhos que se refugiam no espelho de uma juventude esgotada, um dos meus grandes sonhos é aposentar-me para me entregar luxuriosamente, para me entregar deliciosamente à minha inutilidade. Como dizia Mário de Andrade, ele que ironicamente trabalhou feito um mouro, quero desfrutar da divina preguiça. Quero ser um aposentado para enfim conquistar a liberdade de ser inútil, de não precisar mover-me como um parafuso disciplinado dentro da cadeia imperativa que move a sociedade. Quero ser um velho aposentado liberto para desfrutar de prazeres suprimidos pela mentalidade utilitária que vê em cada poema uma evasão criminosa da realidade, em cada canção um desperdício de desocupado, em cada leitura de romance uma rendição à mentira ou ao faz de conta. Melhor dizendo, quero ser um velhinho. Quero que minha namorada e meus amigos me chamem velhinho. Se a tanto posso aspirar, quero que me amem como amamos um velhinho, que em mim considerem a dignidade e o respeito que devemos a um velhinho humilde e humanamente vivo. Quero ser um aposentado para ler e reler todos os livros que requerem um tempo incogitável nesse mundo regulado pelo tempo útil, o tempo dinheiro, o tempo competitivo, o tempo a serviço de alguma finalidade alheia a quem o vive. Quero o tempo do aposentado inclusive para encarar minha velhice sem falsas ilusões, como essas que a mascaram sob a face neutra de termos como terceira idade e boa idade. Quero enfim conquistar na velhice um privilégio suprimido pelo mundo mesquinhamente utilitário em que vivemos: quero viver o privilégio da inutilidade que pulsa na poesia de Drummond, num romance de Machado de Assis, numa sonata de Beethoven, na música sublime de Bach, numa caminhada à beira mar quando a noite desce com seus sortilégios e promessas inefáveis...

sábado, 23 de janeiro de 2010

Machado e Graciliano por Luciano Oliveira


Entre humor, rabugice e alguns entretons

Uma sucessão de acasos afortunados cruzou minha vida com a de Luciano Oliveira e desde então temos nos divertido imensamente juntos. Não vou reconstituir tais acasos apertado nos limites de um breve prefácio de resto singular. Digo singular por estar absolutamente convencido de que, pela primeira vez na história editorial do Brasil - ou do mundo, corrigiria de pronto Julião Tavares entrançando as pernas sob a cadeira rangente – o prefaciador é que se beneficia do prefaciado. Importaria ainda ressaltar que Luciano é um verbo que costumo conjugar no plural, melhor diria no gerúndio: Lucianando. Pois sua mobilidade, antes de tudo imaginativa e sempre impregnada de humor, vela e desvela múltiplas camadas de personalidade e prática da vida. Antes de ir adiante, conviria piscar o olho para o leitor de Manuel Bandeira alertando-o para o fato de que estou apenas parafraseando um poema mínimo consagrado a Teodora.
Agora vou adiante. Condensando num parágrafo o que intento acentuar na minha memória dos acasos felizes que me associam a Luciano, frisaria que de imediato me acerquei do sociólogo autor de um artigo sobre Cidadão Kane, celebrando assim sua cinefilia. Acerquei-me ainda mais do autor de Brasil via Paris, um imaginoso e penetrante ensaio, por isso infelizmente inédito, no qual ele traça alguns paralelos entre a cultura brasileira, em particular nordestina, e a francesa. O outro sociológico de Luciano, o que lhe rendeu notoriedade intra e extra-acadêmica como autor de livros e ensaios embasados em investigações empíricas e outros ossos do ofício, este ocupa lugar bem mais discreto na nossa amizade e na linha dos interesses intelectuais que prioritariamente compartilhamos. Mas mesmo nesta parte de sua obra o leitor atento tem pronta ciência de que não lê um autor de estilo convencionalmente acadêmico. Pois o fato é que ele, dotado de virtudes literárias irreprimíveis, reveste com forma inventiva e singularmente sua os assuntos mais áridos catalogados nos escaninhos acadêmicos como sociologia do direito, ciência política, criminologia, jurisprudência e outras especialidades solenes.
Um dia Luciano me trouxe das margens do Sena uma frase assinada por Alphonse Allais. Veio enquadrada em uma moldura que conservo em lugar visível de minha sala.A frase: “Les gens qui ne rient jamais ne sont pas des gens sérieux”. Se Allais tem razão, de minha parte não duvido, Luciano é um autor muito sério. Recolheu num vasto registro da expressão humana, que vai da chanchada brasileira a Machado de Assis - ele cruza rotineiramente esses extremos da cultura isento de qualquer preconceito - a sábia lição de que a existência humana seria intolerável apartada do riso que a reinventa e lhe alivia o fardo. Mas presumo ser esta uma lição enraizada na própria disposição temperamental espontaneamente encaminhando-o para o humor e o riso que tudo transfiguram e iluminam a realidade e suas materializações mais sisudas com tons e entretons antes neutralizados ou obscurecidos. Penso que é bem essa disposição temperamental, evidentemente somada a seu olhar de leitor penetrante e interrogante, que explica algumas das vias através das quais aproxima dois escritores na aparência tão divergentes.
Depois de muito debruçar-se sobre a obra do Bruxo do Cosme Velho e a do Rabugento de Palmeira dos Índios, eis que um dia se dá conta de que obscuras linhas convergentes aproximam autores tão na aparência canonicamente separados. E o que mais surpreende é o fato de empenhar-se na tarefa de extrair ou trazer à luz a componente de humor subtraída das leituras correntes de Graciliano Ramos. Talvez a primeira pista que lhe tenha ocorrido se prenda à figura sórdida de Julião Tavares. Julião, bem sabem os leitores do velho Graça, é o sedutor vulgar que finda por subtrair Marina das garras devaneantes de Luís da Silva, o atormentado narrador de Angústia, tão exasperado e corrosivo quanto o protagonista de Notas do Subsolo, de Dostoiévski.
Com seu olhar clinicamente cômico, também por vezes cinicamente cômico, imagino Luciano relendo Angústia dentro de uma certa manhã ensolarada de Recife. De repente, uma luz insofreável rebrilha no centro do seu olhar matreiro. Eis que defronta Julião Tavares, com as pernas entrançadas sob a cadeira, vertendo disparates sobre as grandezas ilusórias de Maceió. O tom aparente do narrador – Luís da Silva, evidentemente – é de pura e áspera rabugice. Muitos leitores decerto atravessaram essa passagem retendo sua percepção na linha crua da entonação ácida que percorre o conjunto da narrativa. Talvez tenham ido além, talvez tenham figurado na persona de Luís da Silva uma projeção da rabugice do próprio autor reiteradamente enfatizada em testemunhos e anedotas de contemporâneos e críticos demasiado aderentes às chaves biográficas da obra literária.
Em mais de uma passagem do seu livro Luciano argumenta com propriedade em defesa de linhas convergentes observáveis na obra de Machado de Assis e na de Graciliano Ramos. Sua argumentação é sólida e ademais necessária, já que é sabida a resistência do segundo à obra e antes de tudo à biografia do primeiro. Diria que esta contamina a apreciação criticamente isenta daquela. Luciano vai antes de tudo à obra, que é o que de fato importa para a atividade crítica, e aí destaca e ilumina aproximações bem fortes entre ambos. Importaria ainda acentuar que a resistência de Graciliano a Machado encobre sentidos bem mais abrangentes. Quero dizer, outros escritores contemporâneos do Rabugento, igualmente importantes e reconhecíveis pela penetração com que apreciaram muito da nossa literatura, incorreram em reservas semelhantes que ao cabo comprometem o apreciador, eles, não o apreciado, Machado.
É o caso ainda mais significante do famoso ensaio de Mário de Andrade igualmente considerado por Luciano. Seria ainda o caso de lembrarmos Gilberto Freyre, sobrepondo José de Alencar, Euclides da Cunha e José Lins do Rego ao mestre supremo do Cosme Velho; também Jorge Amado, que reparte nossa tradição narrativa em duas vertentes, uma representada por José de Alencar, outra por Machado, para em seguida coerentemente alinhar-se com a primeira. Há certamente outros que omito, pois não é minha intenção recensear o assunto numa breve consideração espremida nas linhas de um prefácio. A menção a este fato parece-me todavia importar na medida em que aponta para um reconhecimento mais sólido e consensual da singularidade estética de Machado no conjunto da nossa história literária.
Presumo que atualmente nenhum crítico, salvo a fração residualmente provinciana dos que lhe medem a excelência indiscutível, erra na avaliação substancial de sua universalidade tantas vezes no passado incompreendida por estudiosos ora turvados por nossa renitente tradição atada ao par romantismo e nacionalismo cultural - doença crônica e camaleônica da cultura brasileira, como observou Sérgio Paulo Rouanet em tom polêmico - ora por outras formas de estreiteza ideológica ou ainda psicológica, como aparenta ser o caso de Lima Barreto e a resistência de Graciliano Ramos já acima sublinhada. Resumindo, o fato imperativo é que a recepção da obra de Machado de Assis vale hoje como medida de sensibilidade e inteligência literária. No Brasil, como no estrangeiro, sucedem-se estudos de qualidade unânime no reconhecimento de valores artísticos que elevam Machado à altura dos seus melhores contemporâneos e pósteros. Luciano tem ciência disso. Essa é uma das razões de em vários pontos da sua obra centrar o foco argumentativo em críticos como Augusto Meyer, Roberto Schwarz, John Gledson, Sérgio Paulo Rouanet, José Guilherme Merquior, Alfredo Bosi e outros que tanto concorreram para consolidar um ponto de consenso em torno da obra de Machado.
Sem querer abusar da elasticidade do conceito de obra aberta, acredito que muitas leituras, mesmo aquelas mais aderentes às linhas de sentido objetivamente aferíveis na obra do autor analisado, projetam em graus variáveis algo da personalidade e até diria das idiossincrasias do crítico. Desconfio de que isso efetivamente ocorre no modo como Luciano Oliveira nos devolve sua recriação de Graciliano Ramos. O aspecto dessa recriação ou releitura que objetivo salientar prende-se aos elementos de humor acaso espelhados na obra do Rabugento. Este designativo já por si trai o vinco de humor intencionado pelo crítico. Visando melhor articular meu argumento, valho-me da longa intimidade que tenho o privilégio de compartilhar com Luciano para sugerir em linhas menos turvas a medida em que um traço decisivo da sua personalidade incide sobre as camadas de humor supostamente inscritas na obra do Rabugento.
Esperando ainda não incorrer numa chave psicologicamente redutora, ressalto o fato de que Luciano é um dos seres mais entranhadamente engraçados que conheço. Seu senso de humor – o termo vai aqui compreendido também na sua acepção inglesa, cuja expressão brasileira mais plena está contida na obra do Bruxo do Cosme Velho – tende sempre a desatar-se ao estímulo do primeiro contato. Mais que senso de humor, nele se somam e sobrepõem o galhofeiro, o palhaço de picadeiro (ele de resto deplora não ser na vida efetivamente um deles), o menino trocista rebelde às convenções impostas pela sociedade e a experiência acumulada pelo profissional maduro. Se Oswald de Andrade perdia um amigo para não perder uma piada, Luciano perde ambos, amigo e piada, contanto que ele e os circunstantes riam. Ora, essa matizada e irrefreável força de humor e galhofa pulsa no centro da vida e da personalidade do nosso crítico. É assim compreensível que a projete num estudo de apreciação literária. O que de certo modo desorienta o leitor mais austero é a circunstância de Luciano, operando num quadro no qual livremente se mesclam os sentidos objetivamente dados pela obra e sua indócil personalidade de crítico, ressaltar no velho Graça precisamente essa tão inesperada componente de humor e riso inscrita no cerne de alguns dos ensaios aqui reunidos. A tudo adicionaria, tanto em defesa do meu argumento quanto em defesa das pérolas que recolhe e exibe ao cabo de sua jornada, que eu próprio aprendi com ele a enxergar nas pernas entrançadas de Julião Tavares uma irresistível cena de humor. Foi lendo e ouvindo Luciano, sobretudo acompanhando sua alegre e ao mesmo tempo angustiada tarefa de composição do livro, que passei a reler Julião Tavares, assim como outros personagens e cenas descritas na obra do Rabugento, que enfim assimilei à minha leitura de uma obra sempre apreciada como áspera e opressiva esse ingrediente de humor tão original e desconcertante inscrito nas linhas de O Bruxo e o Rabugento.
O que Luciano acrescenta às leituras correntes no paralelo que ensaia entre Machado de Assis e Graciliano Ramos é precisamente essa camada de sentido dentro da qual subitamente irrompe uma gargalhada inusitada. Que o leitor confira por si próprio. No caso de concordar com o autor, atestando que somente as pessoas sérias gozam do privilégio de rir dos disparates de Julião Tavares narrados por Luís da Silva, concluirá assim que fora antes traído pelas aparências quando opunha Machado de Assis a Graciliano Ramos preso a incompatibilidades sem dúvida aferíveis, mas nunca substantivas. De humor e de riso já se disse muito quando a obra em questão era a de Machado de Assis. Luciano Oliveira sem dúvida altera e enriquece a fortuna crítica de Graciliano Ramos, a quem isento de qualquer cerimônia trata como o velho Graça, quando nela ilumina uma sombra que nenhum rabugento ou leitor inocente antes notara. Acrescentaria que nem mesmo o velho Graça, dizem que rabugento demais para fazer humor e provocar riso à custa do que odiava ou desprezava. Se for o caso, mais uma vez estaremos diante de um autor traduzido a contrapelo de si próprio. Espero, por fim, que o leitor se divirta, que ria muito como rimos Luciano Oliveira e eu. Afinal, somos gente séria demais.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O Último Humanista


Fui mordido por um cachorro quando tinha três anos de idade. É uma das mais remotas e traumáticas memórias de minha vida. Talvez por isso costume lembrar com prazer a definição do uísque proposta por Vinícius de Moraes, uma das maiores autoridades no assunto: o uísque é o cachorro engarrafado. Traduzindo-a a meu modo, não gosto de cachorro, não confio em cachorro. O único cachorro que tenho como amigo é o uísque. Indo adiante, sou um humanista impenitente. Olhando à minha volta, todos os dias, começo a desconfiar de que sou o último. Meus semelhantes, decerto desiludidos do convívio humano, preferem cada vez mais a companhia dos cachorros.
Quem lembra ainda uma canção de Waldick Soriano, o rei do brega, num tempo em que a classe média letrada tinha o pudor de ser confundida com esse tipo de música, e antes de tudo padrão de comportamento, na qual ele orgulhosamente se distinguia do cachorro? “Eu não sou cachorro não”, gemia o cantor magoado com o sofrimento que a amada cruel lhe impunha. Hoje uma canção dessas seria inconcebível. Não por ser brega. Bem pelo contrário, a julgar pela qualidade corrente do que se ouve, a canção de Waldick seria hoje louvada como um clássico da canção popular. A canção seria inconcebível porque o cachorro foi elevado a uma condição de privilégio amoroso invejável. Falando por mim (por quem mais poderia falar?) passei a invejar caninamente os cachorros. Todas as tardes saio para caminhar no calçadão da praia e assisto sempre, de coração cortado, a esse espetáculo invariável: meus semelhantes, sobretudo mulheres, passeiam exibindo orgulhosamente seus cachorros. Muitos saem enfeitados com coleiras coloridas, penteados caprichosos, todos talvez zombando da indiferença com que nós humanos nos tratamos.
Outro dia fui visitar um amigo internado na UTI (U Teu Inferno, segundo minha tradução). Diluído num círculo de parentes e amigos do enfermo, fiquei sem assunto durante mais de uma hora. Afinal, fui sem cachorro na coleira, sem cachorro no coração, sem misantropia na ponta da língua. Todos os presentes falavam amorosamente dos seus cachorros: de salão de beleza para cachorro, comida para cachorro, clínica idem, toda uma rede de serviços para cachorro. Ninguém mencionou sequer (juro!) o nome do meu amigo enfermo, que aliás morreu poucos dias mais tarde.
Mudo de cenário. O condomínio onde moro. Quase ninguém se cumprimenta, quase ninguém se conhece ou manifesta interesse em conhecer o vizinho, literalmente o próximo. Descobri, no entanto, um meio infalível de me darem atenção. Entro no elevador e esbarro na vizinha atada à coleira do seu cão. Observo casualmente: como é lindo o seu cão... Ela muda automaticamente. Graças ao cão amado (por ela, claro) recolho dois grãos de atenção ou dois dedos de conversa de alguém que me ignorava e continuaria a fazê-lo, não fosse a dissimulada atenção que concedi a seu objeto de amor.
Não há dúvida de que está em processo uma experiência de deslocamento afetivo na cultura hiperindividualista em que vivemos. A isso se soma uma noção generalizada de hedonismo que agrava ainda mais relações humanas já por si difíceis. Embora não duvide do amor que meus semelhantes devotam a seus cães, acredito antes de tudo que a devoção é sintoma de indiferença pelo próximo, sintoma de uma crescente dificuldade de convívio com o outro humano. Longe de mim idealizar esse outro humano no qual me reconheço. Sei dos horrores de que somos capazes. Mas sei também da grandeza, de uma gama de expressões humanas que nos salvam ou atenuam o avesso cruel da nossa condição. Bem ou mal, é com meu semelhante que me entendo e desentendo, já que compartilhamos uma língua comum, um código de sentido opaco e instável, mas sempre reconhecível. Além disso, já não tenho idade para aprender a latir e sujar de cocô as calçadas da cidade. Não bastasse tanto, sinto ainda na orelha os dentes do cão que me mordeu quando eu não passava de uma inofensiva criança de três anos. Em suma, fico com o cão engarrafado de Vinícius de Moraes.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Autor, Leitor e Seguidora


Depois de 45 dias mourejando neste blog, atravesso ainda noites em claro indagando-me atormentado se acaso conquistei um leitor fiel. Privado de evidência que me ajude a reconciliar o sono, recorro a Brás Cubas, que no prólogo de suas célebres memórias duvida de que seu livro seja acolhido por mais de cinco leitores. Essas aflições que aqui desato meio constrangido sugerem o quanto o autor é escravo do leitor. Salvo gênios movidos pela necessidade imperiosa de expressão, como é o caso de Kafka e Fernando Pessoa, é muito improvável que um autor, órfão de leitor, persista em escrever para paredes vazias, ou para a esfinge de uma posteridade que lhe recusa um magro grão de certeza. Se Italo Svevo, meu escritor italiano preferido, deixou-se abater pela falta de leitor ao ponto de renunciar à literatura, o que dizer de mim? Svevo foi salvo por Joyce, leitor que por certo vale por mil, ou um milhão. Quem no entanto me salvará?
45 dias trabalhando sem ganho, como um subempregado faminto, e além de tudo insone. Como saber se depois de tanto conquistei de fato um único leitor fiel, um que me ampare na minha obscuridade e me transmita a certeza de que essa garrafa que lanço às ondas de um oceano de indiferença me salvará do naufrágio que dentro da noite figuro na solidão da biblioteca? Não sei sinceramente se conquistei um único leitor fiel. Diante da incerteza, que felizmente não me paralisa como paralisou Svevo, insisto daqui em piscar o olho para esse leitor invisível, insisto em rodar minha bolsinha nos vãos da noite deserta esperançoso de que esse leitor improvável pisque de volta para mim e simplesmente me diga: estou todos os dias no seu blog. É como eu disse: o autor é um escravo do leitor que ele de resto nem sabe quem é. Pior: nem sabe se existe.
Escravidão por escravidão, talvez a menos impiedosa seja a que Balzac escolheu, ou o destino lhe impôs: a escravidão imposta pela própria literatura. Quem dera eu fosse tocado por esse sinal invisível do destino, essa estrada ou calvário que seguimos por dever de ação e vocação. Assim esqueceria um pouco meu improvável leitor, ou pelo menos não dependeria dele ao ponto de me valer das muletas do Lexotan para enfim dormir em paz. Como canta Aldir Blanc: “Toma Peter Pan / só um Lexotan / pra que tanto amor não te enlouqueça”. A essa altura já começo a desconfiar de que meu único leitor, se é que ele existe, já anda me confundindo com folião de parada gay. Logo, convém passar para a seguidora que completa o título da crônica.
Como observa Machado de Assis, a gente precisa explicar tudo. Por que leitor e seguidora, por que a discriminação de gênero? Bem, no caso do leitor limitei-me a seguir a convenção literária e linguística, convenção que no caso vale por tradição. No caso da seguidora, um neologismo que entra afinal nas minhas crônicas, preciso explicar-me melhor. Começando pelo neologismo, confesso envergonhado que ignoro ainda o sentido exato deste termo na linguagem dos blogues. Optei por seguidora por ter o consolo de registrar três seguidoras no total de seis que arduamente logrei subornar. São Andrea, Lillian e Mariana. Tenho adicionalmente três seguidores: Dirceu, Pedro Gabriel e... eu próprio. Como meu código de gênero é prioritariamente feminino, se há empate as mulheres ganham. Por isso escrevi seguidoras no título.
Se o leitor, meu improvável único leitor, leu acima subornar, leu corretamente. Confesso que subornei minhas seguidoras. Foi trabalhoso, pois algumas ergueram barreiras quase incorruptíveis, mas ao cabo venci. Para isso mobilizei os engenheiros dos mensalões, mobilizei publicitários, até a turba da Uniban. Entre a sedução e a intimidação, acabei dobrando todos. Menos eu, claro, já de partida dobrado. Bastaria dizer que sigo a mim próprio. Um homem que segue a si próprio é capaz de tudo para seguir o blog que ele próprio escreve.
Mas chego ao fim da crônica sem bem saber o que é seguidora. Já que minhas seguidoras não me esclarecem, resta-me concluir supondo que convém seguirem antes a mim, ainda que não saiba para onde vou, do que esses pastores de igreja que nos tratam como meros depositantes de suas contas bancárias. Antes eu do que esses filósofos da autoajuda escolados em um único e vil ofício: o de ajudar a engorda de suas próprias rendas. Em suma, fujo desses mercenários que confundem meu bem com meus bens.
Recife, 14 de janeiro de 2010.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Deus e o Ateu


Era uma vez um ateu que, como todo ateu, não acreditava em Deus. O ateu costumava argumentar mais ou menos assim: como acreditar que Deus existe se o mundo é tão imperfeito, se o mundo é esse vale de sofrimento e injustiça? Como conciliar a existência de Deus com a dor dos inocentes, o castigo dos justos, quando tantos injustos não apenas escapam à justiça e à punição, mas também são celebrados, admirados, invejados etc.? Assim o ateu pensava e assim seguiu pela vida indiferente a um Deus que nunca diante dele se manifestou.
Talvez Deus não tenha mesmo como explicar as interrogações dolorosamente verdadeiras do ateu. Mas os tempos passaram e eis que um dia, às vésperas de completar 58 anos, o ateu teve a ventura de conhecer uma linda jovem de 24 anos, de olhar iluminado, por vezes infantil e travesso, um modelo de perfeição movente. O ateu suspirou, já calejado de descrença, e voltou para casa pensando: por pouco não vi Deus existindo nessa mulher. Os dias foram passando, os destinos se consertando (ou concertando?) e aquela mulher foi como que milagrosamente entrando nos reinos solitários do ateu, que aliás um dia compôs um poeminha assim:
Se eu fosse outros, não eu
fosse o que sonho e não vejo
fosse na igreja o ateu
fosse no teu, meu desejo.
Mas nada sou, salvo só
o que na sombra pelejo.
O que eu sou de melhor
é o que sonho e não vejo.

Mas isso, o poema acima, veio bem antes da mulher que se chama Beatriz. E os dias indo, os dias passando. E Beatriz chegando cada vez mais, iluminando cada vez mais a vida obscura do ateu, que aliás, esqueci de dizer, mentiu sobre sua idade. Temeroso de não conquistá-la, de perder qualquer chance de a amar, abateu 8 anos de sua idade real. E Beatriz vinha e o mundo cada vez mais se iluminava. Já às portas da revelação, o ateu tremeu diante de uma igreja, vacilou diante da Bíblia e disse de si para si próprio, ou para Deus próprio, ou dos outros: Deus, se Deus existe, está me desafiando, quer abalar uma vida de ateísmo sereno, de descrença sem drama e tormento.
Eis que ontem Deus decidiu desafiar o ateu no terreno em que este fincou as fundações de sua descrença. Deus decidiu revelar-se ao ateu dentro do materialismo deste. Como se dissesse: vou convertê-lo revelando-me a ele como matéria. Então Deus convocou o anjo arquiteto e das mãos deste brotou um bloco de suprema matéria na forma da mulher que se chama Beatriz. Não bastasse isso, que seria já tanto, Deus transportou-a numa nuvem à luz da tarde de verão e no silêncio miraculoso do dia depositou-a linda e nua na cama solitária do ateu. Quando deu por si, ou pelo milagre, o ateu tocou e acariciou aquele esplêndido bloco de matéria feita mulher, de divindade transfigurada em beleza humana e tangível, e então ele perdeu de repente todas as forças da descrença, toda a fortaleza granítica do ateísmo que o sustentou durante a vida inteira.
Então o ateu humildemente curvou-se, ajoelhou-se diante de sua deusa e pediu a Deus que o perdoasse e o poupasse. Depois um arrepio ou temor correu-lhe a alma num átimo e ele, como que desamparado no jardim das tormentas, se indagou pequenino como naquela manhã remota em que os céus de Igarapeba se fecharam sobre sua infância perplexa: meu Deus, e se for tarde? Mas não pôde sequer esboçar espanto ou relutância, pois um outro milagre desceu sobre sua cama e ele tropeçou bêbado no ar, rolou sobre os lençóis suados e caiu de baque sobre o piso vencido pelos estertores de um orgasmo como há muito não vivia e gozava. Foi quando Deus retirou-se para seus reinos impalpáveis. Sabendo porém da inconstância dos ateus, lançou-lhe Deus aos ouvidos sua última revelação: Vou, mas te deixo minha prova material, a encarnação humana de minha existência.
Dizem que desde então o ateu é visto nas ruas da cidade ajoelhando-se diante de paredes nuas, soprando vela nas trevas, catando estrelas cadentes nas águas dos mangues e caindo de joelhos diante dos esplendores de Beatriz que a tudo assiste iluminada e compassiva, acariciando a cabeça perplexa do seu amante ateu e dizendo assim como que num sopro de pacificação das águas: meu velhinho adorado endoidou de amor...
Fernando da Mota Lima – Recife, 12 de outubro 2006

sábado, 9 de janeiro de 2010

Máximas e Mínimas


Passamente
Ou Máximas e Mínimas

O título desta página visa traduzir algo do espírito da época: tudo passa e é fugidio, tudo passa na nossa mente exaurida pelo fluxo contínuo de imagens e palavras e muito do que nela passa mente sobre a realidade. No fundo de tantas mentes exauridas e confusas, o que sobra é niilismo tingido de barbárie, por vezes salvo na corrosão lúcida de alguns loucos dançando à borda do vulcão.

A razão fria e a irrazão cega são males equivalentes. Quando quer e onde quer que se manifestem, a catástrofe irrompe no mundo.

A razão é com frequência uma inconsciente serviçal das paixões. Por isso acredito que o racionalismo e a civilização constituem árduas, precárias e reversíveis conquistas do gênero humano.

O ceticismo atrai bem pouca gente. Afinal, como conceber amantes céticos, empresários céticos, guerreiros céticos, esportistas céticos... ? Em contrapartida, nunca soube de um crime passional cometido por um cético, de guerras de conquista empreendidas por empresários e guerreiros céticos, de qualquer tipo de conflito armado tramado por céticos. Mas eles decerto encorajam, quando não produzem, um estado existencial abominado pela humanidade: o tédio.

A arte logra e a vida mata.

Embora persigamos obstinadamente a felicidade, o que de ordinário encontramos é o seu avesso. Como observou Borges, a infelicidade sempre nos encontra.

Eu nada espero. Assim me poupo do infortúnio que é o desespero.

Já se disse tudo o que dizemos e prosseguiremos repetindo inconscientes dos que nos precederam. Isso se aplica, acredito, às questões substantivas concernentes à condição humana. Mas não mudará ela, se já não está mudando, com um sentido de radicalidade que desmentirá o que sempre fomos?

Fiel ao espírito da antropofagia oswaldiana, eu me aproprio de tudo o que não é meu e até do que é. Por exemplo assim: comer são as duas melhores coisas da vida.

Evocando o espírito das páginas que Dostoiévski escreveu sobre o Grande Inquisidor, se Cristo descesse a este mundo no Natal, até a cruz em que foi crucificado seria leiloada na bolsa de valores.

Uma das evidências mais fortes da cultura narcisista dominante no nosso tempo consiste no fato de que quase todo mundo agora se diz ou se pretende artista. A própria mídia atua no sentido de reforçar essa presunção tola. No noticiário esportivo, por exemplo, apaga-se a distinção entre público e atores, entre os atletas e a torcida. Todos são estrelas ocas, ou pelo menos alimentam a fantasia de fruir um minuto esportivo de estrelato. O mesmo fenômeno é observável na música. Nos shows que hoje mobilizam milhares de espectadores, também se dissolve a distinção entre palco e plateia, entre músicos e ouvintes. Qualquer anônimo – nulo ou talentoso, não importa – sente-se investido do direito de reclamar um grão de celebridade, não importa a que custo. Já não se sabe mais quem é Narciso, quem o espelho.

Concordo: nossas vidas são regidas pelo capitalismo transposto para um patamar de consumo e hedonismo que converte o conjunto das nossas relações sociais num vasto bazar ou bordel. Mas convenhamos: há gente indo um pouco além do excesso. Aludo aos que matam mãe ou pai; aos que leiloam a mãe no mercado; aos que leiloam tudo como se tudo fosse pura e exclusivamente mercadoria. Encurtando a transação: declaro que também estou à venda.

Quando me falaram do filme “Lula, o filho do Brasil” prontamente lembrei-me da famosa boutade de Oswald de Andrade. E logo assim a amplifiquei: nem vi nem gostei nem verei. Assim como ninguém precisa beber o mar para saber que ele é salgado, não preciso ir ao cinema para saber que falam da hagiografia (um Aurélio com caju para o presidente, por favor) de um pragmático afortunado. Como falar de estadista num país incapaz de criar um Estado moderno?

O recifense realizou um feito que eu julgava inconcebível: converteu os costumes públicos em algo bem pior que os privados.

If the water closet is our private opinion, what would you say about the public one? Traduzindo livremente para os brasileiros que não dominam nossa língua nativa: se a água da privada escorre sobre nossa opinião privada, o que dizer do esgoto que inunda nossa opinião pública?

Se já nem temos opinião privada, o que dizer da pública?

Fernando da Mota Lima
Recife, dezembro 2009.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Olinda Era Uma Festa


Num certo momento, a partir de meados dos anos 1970, Olinda foi cenário e fonte inspiradora de uma inusitada atmosfera boêmia. Nas suas ruas, sobretudo nas suas noites, além de algumas casas acolhedoramente abertas ao trânsito de todo tipo de gente, corria e trepidava um veio de vida e exaltação dissipadora e errática que se estendeu sem pausa durante alguns anos. Uma primeira leva dos personagens aqui considerados, no geral retratados mais como grupo do que individualidades nitidamente diferenciadas, tinha em comum, como pano de fundo opressivo, os traumas causados pela vigência difusa da ditadura militar. Liguei-me a esse grupo por vínculos de idade e afinidade ideológica e logo mais a um mais jovem e portanto alheio ou indiferente às repercussões explícitas ou latentes dos anos de chumbo.
O primeiro grupo convergia livremente no geral para a casa de Denis Bernardes, a meio caminho do Museu de Arte Contemporânea e dos Quatro Cantos. Lá, num certo momento, o clima era tenso, por vezes nitidamente depressivo. A sombra da ditadura, até suas garras visíveis, perturbava irremediavelmente os espíritos, mesmo os mais expansivos e sintonizados com as expressões gratuitas da vida. Mas penso que a atmosfera abafada derivava antes de tudo de características psicológicas e ideológicas bem marcadas de muitos dos presentes. Eram tipos severos, ensombrecidos por uma mirada austera ou pouco imaginosa da vida. Faltava, em suma, a muitos dos que frequentavam essa roda movente, o vinco de humor, música vivida, fantasia e compulsão erótica que fui encontrar mais tarde no grupo mais jovem.

Sem a intenção de depreciar o prazer ocasional dos nossos encontros, talvez não seja mero preconceito aludir a grupos políticos e ideologicamente identificáveis, sejam militantes ou não, como resistentes ao exercício do convívio gratuito, votado ao prazer puro e simples, até irresponsável. Sugerindo o peso dessa atmosfera com um exemplo extremo, lembro-me ainda de uma noite de sábado durante a qual bebemos e ouvimos música durante horas sem pronunciar uma palavra. Friso que o silêncio não decorria de nenhuma concentração musicalmente mística, ou estado de pura fruição estética, mas do peso opressivo que recobria o espírito dos presentes. Retirei-me mais tarde tão sufocado que logo respirei aliviado quando repus os pés na rua deserta.
Os momentos de maior prazer ou expressão mais espontânea vivi-os sempre à margem do grupo de fluida composição reunido na sala, geralmente nas noites de sábado. Quando de fato conversei, foi entretendo diálogos efetivos com Denis, também com o Filósofo Desvairado, um ou outro interlocutor ocasional. Aliás, ainda hoje, independentemente das circunstâncias históricas em que se processem relações de convívio, acredito que conversa é literalmente diálogo, isto é, conversa a dois. Não tenho dúvida de que conversamos mal porque nossa cultura propicia antes os encontros grupais pontuados por certo atavismo tribal que de ordinário converte nossas reuniões sociais em tagarelice estéril. Nesse sentido, Denis Bernardes se distinguia como um modelo de civilidade dialógica. Também o Filósofo Desvairado, à margem dos excessos em que sempre incorria movido pela droga e a temperatura exaltada do grupo, propiciou-me momentos de autêntica epifania percorrendo a meu lado as ruas desertas de Olinda nas madrugadas de recesso boêmio. Nessas ocasiões, animados pela bebida moderadamente ingerida, compartilhamos diálogos iluminados livremente sugeridos por nossas leituras filosóficas e literárias.
Suponho que fosse o mais desenraizado do grupo. Além de haver praticamente rompido todos meus elos de família e grupo primário, vivia de empregos instáveis e endereços provisórios. Era um judeu errante, salvo o fato de não ser judeu, embora espiritualmente assim me sentisse e ainda me sinta. Afinal, alguns dos espíritos que mais profundamente me marcaram são judeus. Depois de muito mudar de pouso nas ruas do Recife, compartilhei com o Filósofo Desvairado dois endereços em Olinda: um na Rua das Bertiogas, à borda da Ladeira da Misericórdia, outro no Largo dos Milagres. Conviria lembrar que durante esse período Olinda era uma cidade isenta dos riscos e temores que mais tarde passaram a percorrer-lhe as ruas e residências. Vivíamos de portas abertas, despreocupados de medidas de proteção hoje obrigatórias. Nas Bertiogas dormi muitas noites na rede pendurada no terraço aberto para a rua. Até com a minha namorada dormi algumas vezes assim, fazendo amor na rede nas noites escuras e desertas.
Foi durante o período em que morei com o Filósofo Desvairado que transitei do grupo “político”, de ordinário reunido na casa de Denis, para o grupo mais jovem proveniente em larga medida do Colégio de Aplicação. A partir daí a tônica passou a ser a vida de dissipação noturna, por vezes diurna, o excesso estendido ao sexo, à bebida, à badalação nos bares, à vida gasta pelo puro e destrutivo prazer da gastança. Esses eram sintomas do vácuo existencial em que nos movíamos privados de ideal e sonho que imprimissem sentido a nossas vidas. Mas falo provavelmente apenas por mim. Duvido que os outros assim se vissem e assim traduzissem nossa trepidação sem rumo dentro das noites insones.
O Bar Atlântico, depois estigmatizado como Maconhão, foi o grande palco e símbolo desse confuso e espontâneo experimento que pôs pelo avesso valores e angulações culturais e ideológicas expressas em toda a sorte de excesso ali encenado. Ali, numa sucessão de noites febris conturbadas pela droga e a sede desregrada de vida, muita virgem se perdeu (ou se achou), muito marxismo de manual se vestiu de desbunde, muito estetismo existencial rolou sobre as pedras, muita ilusão decadentista afogou-se em ressaca moral, muito sexo se fez e logo se desfez sem escolha ou aderência, não raro também sem gozo verdadeiro. Antes de tudo, o que se vivia e gastava era um teatro da liberação tão fluido e inconsequente quanto conflituoso e incontentado. Foi talvez sem exagero um grande momento de explosão cultural reprimida por uma longa tradição de família ainda pautada por valores patriarcais. Talvez ainda reação inconsciente contra a ditadura que suprimiu do horizonte rebelde daquela geração todas as vias políticas de efetiva atuação sobre a realidade. Dali saímos outros com algumas coisas irreparavelmente perdidas e outras tantas ganhas. Eis o que reconheço ser um fecho acaciano para um curto registro de memórias.

Talvez possa redimi-lo, o fecho acaciano, espichando um pouco mais minhas memórias de Olinda. No Maconhão as identidades se faziam e desfaziam como num jogo de máscaras. O machão desmunhecava, ou pelo menos ia às bordas disso quando a droga o desatava das amarras identitárias convencionais. A menininha de família, orgulho casto de pais repressores, rodava a baiana quando ia alta a madrugada. As mais ousadas, já libertas das mordaças familiares, assumiam sua condição lésbica. Aliás, assumir e assumir-se tornaram-se então moeda corrente nas noitadas permissivas de Olinda. O comunista puritano, impenitente inquisidor da moral burguesa, rendia-se docilmente aos prazeres somente concebíveis nos reinos decadentes da burguesia. E assim rodava a roda da vida sem rumo, assim a louca rodava. Nos intervalos líricos, quase surreais, O Filósofo Desvairado vagava com seu coral de bêbados cantando pelas ruas: La notte è piccola per noi / piccola per noi / troppo piccolina. E assim miraculosamente o espírito de Efraim paira sobre o céu noturno das minhas memórias.
Em tudo pulsava a música. Havia sempre a ruidosa, a abafa conversa, mas nunca excessiva e ditatorial como no presente. No Maconhão eu dançava bêbado nos braços das mulheres. Mesmo na radiola de fichas do Maconhão, antro da marginalidade explodindo na torrente de breguice que hoje nos afoga, ouvia-se muito Chico Buarque, Maria Bethania, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Gal Costa...Cláudio Ferrário e Pernalonga, narcisos supremos das noites olindenses, desatavam momentos de puro delírio exibicionista ao converterem o rústico salão do Maconhão em palco de dança.
À margem do Maconhão, nosso guia musical era Flávio Brayner, sempre liderando o cordão de bêbados que aportava na casa de Bira e Plínio. Espanta-me hoje recordar a paciência, a tolerância risonha com que nos abriam a porta a qualquer hora da noite. A corrente de bêbados logo tomava-lhes de assalto a casa em cuja sala descansava um piano velho e desafinado. À volta dele e de Flávio Brayner, então ainda pianeiro batedor de martelo, desfiava um repertório que livremente mesclava euforia e dilaceração passional. Esta era sempre associada a Lupiscínio. O hino supremo da fossa, esgotada a noite de dissipação, era Ronda, de Vanzolini. Volta, de Lupiscínio, transportava-me imaginariamente para os seios arrogantes da musa inacessível, sempre presente a essas farras. Os contornos e proporções dos seus seios eram um puro milagre da natureza. Dizia-os arrogantes porque chegavam antes dela, antes que o corpo, beleza alongada da cabeça aos pés, entrasse no bar, casa, quarto, ou se convertesse em iluminada aparição deslizando sobre as pedras seculares de Olinda.
As mulheres. Quanta tontice e insensatez não cometi por elas, às vezes indo pelos becos e vias mais desastradas. Queria vingar em algumas semanas, ou alguns meses de trepidação dentro da noite, anos de repressão e aridez sexual. Mas cheguei como marinheiro de primeira viagem, levado ao sopro de figurações líricas fruídas no erotismo místico de Manuel Bandeira e Murilo Mendes, na tradição da erótica romântica que soava ridícula naquele pega pra capar. Logo minhas investidas tímidas de lírico foram corrompidas pelo metro da caça e da conquista sem aderência ou medida qualquer de amor. O que prevalecia era o sexo pelo sexo, o gozo fugaz e itinerante. Assim me vi às bordas de um donjuanismo de botequim, alienado do amor que tolamente buscava na pura fruição da carne movente. Tanto desci na renúncia à minha mitologia romântica que certa madrugada rolei pelas pedras entre o mar e o Maconhão e de lá foram resgatar-me enquanto gritava ao vento errante da noite: Sou o devasso. Quero mulheres... Mais tarde projetei esteticamente essa cena patética no tio louco e manso de Amarcord gritando do alto de uma árvore: Voglio una donna, voglio una donna...
Foi então que o carnaval de Olinda, mero anexo obscuro do de Recife, começou a expandir-se em energia, vibração febril e colorido. Vivi por dentro e desde o início as explosões dionisíacas do carnaval olindense. O “Segura a Coisa”, por exemplo, que até forneceu título e inspiração a um frevo de Miúcha, começou como criação espontânea de um grupo de boêmios e marginais de Olinda que saíam pelas ruas batendo lata, qualquer tipo de lata. O “Eu Acho é Pouco” tornou-se em poucos anos a grande concentração carnavalesca de grupos da classe média, antes recifense do que olindense.
Um dia, Marta, no esplendor de sua juventude apaixonante, despencou das nuvens e se confundiu com o mar de balões que pairava sobre a massa delirante do bloco concentrado na Praça da Preguiça. Fiquei paralisado, errante entre a embriaguês e a revelação mística. Ela tocou docemente no meu ombro e disse: Fernando, você é apenas uma criança. E se foi levitando, dissolvendo-se na paisagem azul dos balões soprados pela massa eufórica. Havia Marta e havia balões naquele tempo. Havia a deusa dos seios arrogantes. Havia sonhos, que eram antes delírios. Havia a arte banalizada em estetização pedestre da vida. Havia amizades que, cedo descobri, acabavam logo que os bares se fechavam. Mesmo ali, no cerne daquela loucura sem método, havia a mulher como fonte perene de minhas figurações míticas e estéticas. Havia tudo que era já poeira ou nisso se converteu.
Fernando da Mota Lima
Recife, 28 de dezembro de 2009.

A foto que ilustra estas memórias é um raro documento visual da época. Embora já fôssemos expressão inconsciente da maré narcisista que define a cultura do presente, ninguém andava com câmera a tiracolo. Nem mesmo Xirumba e Waldir, que eram fotógrafos profissionais. Muitos não teriam como comprá-la, enquanto outros, engajados no marginalismo antiburguês, desprezavam tudo que cheirasse a consumismo. Logo os rebeldes aquinhoados voltaram para casa com o rabinho burguês entre as pernas. Aliás, já me desdizendo, muitos continuam por aí, rebeldes inconscientes e incuráveis. Se José Ermínio de Moraes não se reconhece como membro da elite econômica brasileira, o que esperar dos antiburgueses festivos? Em tempo: a foto é uma paródia do esquerdismo narcisista então emergente sinalizado pela obra memorialística de Fernando Gabeira. Por isso nos fantasiamos de família Gabeira para uma das nossas festas habituais. Álvaro Carvalheira e Cláudio Ferrário, travestidos de filhas rebeldes da família Gabeira, ladeiam os pais idem: Sandra Branco e o memorialista que vos escreve. Tem mais não.
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