segunda-feira, 5 de abril de 2010
Recife era uma festa
A partir de meados dos anos 1970, muita gente com quem convivia caiu numa grande festa nas noites de Recife. Vínhamos todos, ou quase, da esquerda política que era a tônica nos círculos da classe média universitária. Penso que dois fatores decisivos concorreram para a emergência dessa inflexão cultural: a ditadura militar e a simultânea irrupção da cultura narcisista. Esta mereceu de Christopher Lasch um estudo fundamental das ciências sociais contemporâneas: A Cultura do Narcisismo, pouco adiante desdobrado num livro igualmente fundamental: O Eu Mínimo, entre nós traduzido como O Mínimo Eu. A ditadura suprimiu do horizonte da nossa vida durante os anos de chumbo, momento que aqui considero, qualquer possibilidade de atuação política legal. Essa supressão também concorreu, sem que o notássemos, para que nossa energia pulsional fosse canalizada para a grande explosão dos costumes ocorrida nos anos 1970. Aludi um pouco a esse fenômeno em tom de memória num outro texto postado no meu blog (ver Olinda Era uma Festa). Considero agora uma dimensão paralela do mesmo fenômeno, só que restrito à atmosfera festiva do Recife.
Uma fração minoritária da esquerda com a qual convivia refugiou-se em fantasias revolucionárias insolúveis. Impotente diante da repressão política dissimulada ou patente em todo o círculo em que nos movíamos, inteiriçou-se numa percepção intolerante e fantasiosa da realidade. A pretexto de resistir à opressão, fechou-se num círculo inacessível a tudo que fosse ou parecesse valor ou mentalidade burguesa. Diria antes de tudo pequeno-burguesa, pois os atores desse círculo eram sintomaticamente egressos dela. Daí seu ressentimento social orientado antes de tudo contra a própria classe de origem. Que eu saiba, ninguém concedeu ainda o peso analítico devido a uma categoria psicológica essencial à compreensão dos grupos revolucionários e pseudorrevolucionários: a categoria do ressentimento social. Trocando em miúdos, muitos dos rugidos de ódio revolucionário que corriqueiramente ouvia nas livrarias Dom Quixote e Livro 7, sobretudo nas mesas de bar exclusivas das seitas pseudorrevolucionárias da época, não passavam de ressentimento social. Em nome de um ideal louvável, a luta contra a opressão de classe, liberamos nosso ódio contra tudo o que não temos e invejamos. Vejam onde acabaram tantos revolucionários depois bandeados para o PT. Vejam o oportunismo e a cafajestice de esquerda hoje fartamente recompensada com dinheiro público usado nos processos de anistia.
A outra fração, objeto primacial deste artigo, a outra fração caiu na festa. Ela expressou inconscientemente o que acima designei como a irrupção da cultura narcisista. Era força social tão inconsciente desse papel que seguiu pela vida farrando movida pela boa consciência de que a farra era uma força de contestação, de que a rebeldia no plano dos costumes representava um poder minando a hegemonia decadente da cultura burguesa. Nutrida pela realidade e sobretudo pelo mito da revolução, essa geração precisava imprimir sentido de contestação a tudo, até à aderência (ou cooptação, como então se dizia) à dominação burguesa. Daí nossa incapacidade de percebermos que éramos também expressão e sintoma da decadência. Sugiro que também aqui se observe no presente onde muitos desses contestadores de festa e rebeldia narcisista acabaram. Assim como o mito do ideal social, no geral identificado com a revolução, foi característico da minha geração, a carência de ideal é característica da geração presente. Ruim por pior, nisso eu penso que fomos mais afortunados.
Um dos palcos simbólicos dessa farra, que alguns retardatários liam ainda como contestação, foi o “Depois do Escuro”. O nome do bar é aliás simbólico. Foi obra de Álvaro, ou Alvinho. Infelizmente, nunca me ocorreu perguntar-lhe o sentido simbólico preciso do bar, mas acredito que o Escuro simbolizava a ditadura. O que veio depois dela foi o bar, situado na Rua das Creoulas, bairro das Graças. Para quem vinha das noites “marginais” do “Maconhão” de Olinda, como eu e tantos dos meus amigos, o “Depois do Escuro” era como a tomada do Palácio de Inverno. Medindo os extremos, pois os bares eram extremos, embora a clientela fosse substancialmente a mesma, saltávamos da marginalidade chique para a classe média francamente consumista e narcisista. Era sintomático, por exemplo, o fato de o bar ser revestido com tantos espelhos e as meninas se produzirem, como então se dizia, como se fossem desfilar numa passarela. A rua, congestionada por carros policiados, era já uma antevisão do presente.
O “Depois do Escuro” foi espontaneamente ensaiado nas festas monumentais sediadas na casa de Alvinho e Iracema, em Casa Forte; no apartamento de outro Alvinho, o Jucá, na Rua Setúbal, Boa Viagem, e em várias outras casas onde as festas pipocavam madrugada adentro. Os ouvidos dos vizinhos que nos aguentassem, como de resto continuam aguentando agora um alarido perto do qual nosso ruído seria carícia. O excesso e a demanda eram tais que houve um momento em que Alvinho e Iracema pragmaticamente decidiram emitir convites pagos para festas privadas. Talvez daí tenha brotado a ideia do “Depois do Escuro”. Também o primeiro rebento da Arcádia e outras luxuosas casas de recepção que hoje fazem fortuna transformando qualquer festa de formatura num simulacro ridículo da festa do Oscar. Algumas meninas de classe média, sedentas de excitação e novidade, toparam trabalhar no “Depois do Escuro” e similares frequentados pela classe média embalada na orgia narcisista dos anos 1970. Algumas encontravam mais prazer nas cantadas dos paqueradores bêbados do que no salário, que era uma porcaria. Sorte delas que dele não precisavam.
Muitas mulheres lindas e gostosas frequentavam o “Depois do Escuro” e outros bares do circuito festivo do Recife. A Musa Muda era uma das mais notáveis. Como Danuza Leão em Terra em Transe, abria a boca apenas para beber. Diziam as más línguas que a explicação era simples: não tinha o que dizer. Diziam outros que as más línguas eram apenas a expressão da verdade. Mas eu me perguntava se com tanta beleza etc, com aquele corpo que o tempo e a natura inclemente já dissiparam, se depois de tudo ela precisaria dizer alguma coisa. Antes que uma feminista de plantão me puxe as orelhas, lembro que a mulher objeto e até a mulher abjeta não eram raras naquelas noitadas. Aliás, apesar de toda a luta pelos direitos da mulher que integralmente endosso, elas se tornaram hoje ainda mais comuns.
No bojo dessa folia assistimos ao renascimento festivo do Pátio de São Pedro. De repente, velhas casas do bairro antigo, quietamente preservadas à sombra da imponente fachada da Igreja de São Pedro dos Clérigos, foram convertidas em bares e o pátio tornou-se um palco fervente de festa e bebedeira. Até famílias que frequentavam as melhores colunas sociais da cidade, hoje confundidas com as colunas policiais, passaram a encenar casamentos espetaculosos no Pátio de São Pedro. Lembro-me até de um ilustrado pela figura magnética e narcisista de Gilberto Freyre. Vi-o adentrar o pátio cercado pela corte habitual, acenando sorridente para pessoas que o cumprimentavam com o servilismo sintomático das nossas tradições escravistas e autoritárias. Longe de mim chegar perto, pois era ainda um “marginal rebelde”, farrista contumaz do pior bar do pátio, que batizei com meus amigos comunistas como Proletario`s Bar.
A farra irradiou mais tarde para o Recife antigo. Era então o foco da prostituição segregada, que hoje está na internet e outros lugares chiques, tão chiques que prostituta já não é mais puta, é modelo ou acompanhante. Bem, as herdeiras das segregadas, as que fazem ponto nos becos e ruas da cidade, estas continuam identificadas como putas. São o lumpen da prostituição. O capitalismo à brasileira produz requintes distintivos dessa natureza. Eis aí um caso exemplar da profissão que não ousa dizer seu nome.
Ocorre-me aqui uma memória merecedora de registro. Voltava certa madrugada para casa quando cruzei com uma puta fazendo ponto numa esquina. Queixou-se da dificuldade de encontrar homem e por fim culpou indignada a liberação sexual das meninas de família. Demonstrou perceber com clareza como este fato explicava o desaparecimento de sua clientela que ao cabo a deixava chutando lata com a bolsa vazia dentro da madrugada deserta.
O Recife antigo vivia caindo literalmente. As fachadas dos prédios e sobrados seculares desfiguradas pelo tempo e a incúria das gentes, as escadas rangendo ao peso dos bêbados e putas que iam e vinham. Gente de todo tipo ali se misturava e se grudava e se perdia. A atmosfera geral era de uma decadência sombria. E era nisso precisamente que residia o fascínio que para lá nos puxava, o fascínio da decadência, o fascínio da marginalidade que tanto cultivamos de par com nossa adesão inconsciente à orgia consumista e hedonista que define o padrão cultural do presente. As meninas de classe média, incluída minha namorada, carentes de liberação e aventura, passaram também a frequentar os puteiros do Recife Antigo: o Bar do Grego, o Gambrinus, a Chantecler... Talvez vivessem esse modo de exotismo sexual na noite, quando todas as gatas são pardas, movidas por uma fantasia feminina muito poderosa: a fantasia de ser a belle du jour, a fantasia de ser uma outra abafada pela interdição da cultura.
Não bastasse a extraordinária riqueza da música brasileira dos anos 1970, muitos de nós descobriram maravilhados o jazz que ouvíamos também em muitas dessas festas. O acento recaía, claro, sobre o jazz dançante dos anos 1930, as big bands e o som lendário de Louis Armstrong. Lembro-me de uma festa no apartamento de Álvaro Jucá cujo grande momento e pretexto para a bebedeira foi a exibição de um documentário com alguns dos grandes nomes do jazz: Duke Ellington, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Miles Davis, Bill Evans, Oscar Peterson, Chet Baker... Hoje seriam com certeza Ivete Seugalo, Chiclete com Banana e coisas inomináveis. Saltamos do alguma coisa para o nada sem no trajeto sustentarmos grandeza nenhuma.
Depois da farra e da dissipação sobreveio a inevitável ressaca. Só que a minha ia cada vez mais além dos sintomas físicos. Era uma ressaca roendo-me a consciência, lembrando-me à força de pontapés que estava assim traindo a vida que me pensara viver, que projetara viver. Traindo antes de tudo a mim próprio, eu me negava a cada noite e farra sem rumo, a cada bebedeira errante nos labirintos da marginalidade recifense, a cada dia que dissipava em becos sórdidos. De repente, via o amor ruindo à volta e dentro de mim, via-me à deriva de uma vida sem centro ou propósito. Ecos insones de minhas festas de Olinda, ainda próximas, somavam-se a esses procedentes das festas de Recife e então me via assaltado por angústias e descontentamentos que passaram a desgovernar meu próprio sono.
De repente, já não me reconhecia no que procurei ser e viver. De nada sabia então, mas sabia que era hora de voltar para casa, para a casa que eu próprio precisava conquistar depois de anos errando de vida e endereço, batendo em portas erradas e saltando janelas à cata de ocos móveis de carne. A partir daí, procurei em suma encontrar e viver outros modos de festa. Diria que o que encontrei foi antes de tudo a solidão. Mas não mais a solidão do indivíduo diluído no grupo ou na massa sem norte ou centro. Aludo a uma outra ordem de solidão, a que buscava e conquistei: a do indivíduo que voluntariamente visa a solidão como um alvo, como estado de ser necessário, embora nunca autossuficiente; a solidão sem a qual sequer podemos tatear no escuro, na escuridão que nos habita e habitamos, as formas imprecisas do ser que somos e tão pouco conhecemos.
Um dia, já guardando alguma distância das festas que são o que mais se expandiu no cerne da sociedade de massas calibrada pelo hedonismo, cada vez mais circo até para quem não tem pão, um dia fui a uma festa de aniversário numa churrascaria em Boa Viagem. Então aconteceu algo que mudou por completo a minha vida. Mas isso seria assunto para uma crônica de amor, não mais de festa.
Recife, 10 de fevereiro de 2010.
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