quinta-feira, 29 de abril de 2010
O Nobel e a Culpa do Ocidente
Li um artigo de jornal no qual o autor especulava sobre alguns possíveis vencedores do prêmio Nobel de Literatura. Cogitava romancistas famosos como Philip Roth e Mario Vargas Llosa, embora este figurasse em posição improvável. Logo depois li o anúncio da premiação, atribuída a Jean-Marie Le Clézio, um francês que desconheço completamente. Aliás, lembrando palavras da Academia Sueca no ato formal da premiação, ele é antes um nômade, um desenraizado, do que um francês. Longe de mim presumir que minha ignorância constitua em algum sentido evidência de premiação injusta. De qualquer modo, causou-me estranheza o fato de o Nobel ser conferido a um ilustre desconhecido, pelo menos para leitores desinformados como eu. Intriga-me ainda a evidência de Le Clézio publicar romances e ensaios desde o início dos anos 1960 sem que eu todavia retivesse sequer o nome dele acaso lido em algum artigo, ensaio, livro de quem quer que fosse.
Marcelo Rezende escreveu um artigo logo em seguida publicado na Folha de S. Paulo que de certo modo me consola de minha ignorância, se é que não a justifica. Segundo ele, a premiação traduz antes de tudo um ato de culpa não declarada do Ocidente diante de culturas periféricas que este espoliou durante séculos. Sendo Le Clézio um europeu desenraizado, além de crítico impenitente da hegemonia cultural exercida pela Europa sobre culturas que ele ama e exalta nas páginas de sua obra, a atribuição do Nobel simbolizaria tanto um reconhecimento implícito de culpa quanto um gesto de valorização das culturas espoliadas ou pelo menos abafadas pelo colonialismo europeu.
Longe de mim desculpar os crimes históricos perpetrados pelo colonialismo, mais ainda sendo eu originário de uma cultura periférica cuja história foi profundamente oprimida pela dominação européia e, mais recentemente, norte-americana. Daí não cabe todavia presumir minha adesão à ideologia multiculturalista, muito menos minha resistência à cultura européia. De qualquer modo, parece evidente que a atribuição do prêmio a Le Clézio confere prioridade à mensagem sobre a forma, aos critérios de natureza social e política em prejuízo dos estéticos.
Sei que todas as qualificações que acima esboço são objeto de controvérsia. Mencionando um único exemplo, li também a meio desses artigos um assinado por Eric Hobsbawm no qual investe sua competência insuspeita, como europeu e notável estudioso dos problemas de identidade cultural, para questionar e no limite refutar o conceito de identidade européia. À parte isso, nunca endossei o discurso anticolonista e anti-imperialista que se estende ao extremo de exaltar nossa herança indígena e africana em detrimento da européia. Este ponto de vista deplorável trai, entre outras coisas, uma grande ignorância da nossa constituição cultural. Neste sentido, sinto-me há muito identificado com a perspectiva de iluministas e liberais como José Guilherme Merquior, Sérgio Paulo Rouanet, Octavio Paz, Vargas Llosa e mesmo nacionalistas dialéticos, que vá o qualificativo discutível, do tipo de Antonio Candido e Roberto Schwarz.
Em suma, entendo que somos também e antes de tudo ocidentais. Representantes de um outro Ocidente, acentuo, mas ocidentais. Para mim, toda perspectiva ou ideologia que despreze essa filiação está contaminada por uma noção estreita e no limite desastrosa de particularismo cultural. Infelizmente, a inteligência brasileira tem alimentado com fartura obsessiva uma concepção de nacionalismo que me parece em muitos casos autoritária e irracionalista no pior sentido do irracionalismo, isto é, no sentido em que privilegia valores de base emotiva incompatíveis com o exercício fundamental da crítica racional, além de justificador do atraso e da ignorância. Devido a razões históricas compreensíveis, O Nordeste brasileiro tem sido pródigo na defesa de uma ideologia de fundo nacionalista e antes de tudo regionalista que, em termos práticos, funciona como uma rede de resistência desastrosa à nossa modernização sócio-cultural. Na outra ponta, visa conferir legitimidade a muitas tradições que conviria superarmos.
Uma das modas do nosso tempo consiste em atos de penitência pública feitos por governantes de países investidos de glorioso passado colonial. Aliás, também de alguns países de constrangido passado colonizado, como é o caso do Brasil. O presidente Lula, por exemplo, já se esmerou em desculpas públicas a povos africanos oprimidos pelo colonizador português e em seguida pelos escravistas brasileiros. Atos dessa natureza são sem dúvida comoventes, mas inoperantes, para não dizer descabidos. Expressam antes a retórica hipócrita da política do que qualquer mudança efetiva. Num país cujo presente espelha ainda traços tão iníquos e rotineiros dessa nossa herança maldita, importaria arquivar essa retórica da hipocrisia, com ou sem pretexto do prêmio Nobel, em benefício de atos políticos concretos passíveis de progressivamente suprimirem as marcas vergonhosas do nosso legado escravista.
Quanto ao Nobel, volta a premiar um escritor de universalidade discutível enquanto solenemente despreza nomes como os de Philip Roth e Vargas Llosa. A propósito, quem conhece estes escritores: Giosuè Carducci, Rudolf C. Eucken, Karl Adolph Gjellerup, Carl Spitteler, Jacinto Benavente, Grazia Deledda, Sigrid Undset, Ivo Andric? Foram todos agraciados com o Nobel. Poderia acrescentar muitos outros igualmente esquecidos. Em contrapartida, cito alguns cuja permanência e universalidade estão bem comprovadas pelo soberano exame do tempo: Thomas Hardy, Henry James, Joseph Conrad, Marcel Proust, James Joyce, D. H. Lawrence, Auden, Paul Celan... Nenhum destes recebeu o Nobel. Se é para reparar culpas, a Academia Sueca bem que poderia corrigir a tempo parte das suas premiando os injustiçados do presente.
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Realmente, Fernando, a ausência de Roth na lista dos premiados é inconcebível. Estou numa "fase Roth" (recentemente comprei suas obras completas) e, a cada novo livro, me surpreendo com sua compreensão da natureza humana. Isso para não falar do estilo.
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