quinta-feira, 15 de abril de 2010

Um Passeio pela Cidade




Como toda a classe média motorizada, já não ando pelas ruas do Recife. Somos habitantes em trânsito, hermeticamente protegidos dentro de nossas máquinas que são mais que meros meios de transporte. Na cidade brasileira, o carro reveste-se de muitas outras funções. A principal, depois da de meio de transporte, é a de proteger-nos da ameaça das ruas. Antes de tudo, da ameaça da miséria, seja ela violenta ou não, armada ou não. A miséria tornou-se perigosa e ameaçadora devido ao simples fato de ser miséria. Entramos nos nossos carros e neles nos fechamos porque há muito vigora um estado de medo disseminado pelas ruas, um estado de guerra latente entre a minoria motorizada e a massa movente das ruas.

Se consideramos as ruas e seus pedestres, enquanto pilotamos veículos que mais se assemelham a fortalezas móveis, aq ueles, os pedestres, têm bem mais razões de medo. Para começar, circulam expostos à permanente ameaça de veículos regidos pelo código do salve-se quem puder. No meu carro, contudo, retenho ainda certas aparências anacrônicas. Quero dizer que transito com os vidros arriados, salvo quando o calor me constrange a ligar o ar. Também me recuso a usar vidro fumê, arma que torna o motorista invisível ao olhar das ruas. Recuso-me ainda a instalar alarme automático no meu carro, assim como utilizo a buzina em situações estritamente necessárias. Além disso, exponho-me ao contato com os miseráveis concentrados nos sinais de trânsito mais movimentados.

A despeito de toda a violência que vejo nas ruas, acrescida daquela exposta na mídia e na conversa dos que a reportam em todo o tipo de contato social, recuso-me a proceder como a maioria dos que dirigem nas nossas ruas. Embora procure compreender as razões do seu medo, penso que a maioria pratica uma das formas mais cruéis de humanidade. Refiro-me a uma estranha mescla de desprezo e medo identificável em quem, ao avizinhar-se de um desses sinais temidos, refugia-se na brecha menos insegura do asfalto, isto é, a mais distante, preferivelmente a mais inacessível ao assédio dos miseráveis.

O acaso obriga-nos a pisar no freio diante do sinal vermelho aceso nessas vias mais movimentadas. É nelas que a miséria compreensivelmente se concentra para acionar seus meios precários de sobrevivência. É a experiência rotinizada da nossa barbárie urbana. Ainda assim, recuso-me a tratar essa pavorosa massa de miseráveis como o esgoto de nossas ruas. Embora certos sociólogos da Fundação Getúlio Vargas tenham recentemente inventado, com sua hilariante ciência empírica, um país de classe média, a miséria insiste em brotar como mosca em todo o nosso cenário urbano. Portanto, não preciso ir longe para percebê-la.

Longe de mim desprezar o risco presente em certos pontos da cidade. Longe de mim idealizar os miseráveis. Deixo isso para os populistas líricos que todavia se acautelam o bastante para fazer do lirismo de classe um confortável e prestigioso meio de vida. Sei dos perigos presentes nas nossas ruas e estou pessoalmente longe do brasileiro heróico. Acredito, no entanto, na força dessa atitude de reconhecimento humano elementar que se traduz num gesto banal de atenção ao miserável. Essa gente está afeita a ser tratada como o lixo das ruas. O desprezo de que é vítima está inscrito no nosso olhar, no vidro dos carros hermeticamente blindados. Um simples gesto de reconhecimento tem o poder de restituir-lhe por uns breves segundos uma noção obscura de dignidade suprimida, um lampejo de humanidade que logo se dissolve na crua realidade do asfalto brasileiro.

Voltando ao meu passeio, quando andamos um pouco pelas ruas nitidamente percebemos o estado geral de degradação do espaço urbano. Impossível caminhar algumas dezenas de metros sobre calçadas seguras. O esgoto e o odor fétido são visíveis a céu aberto e se alastram diante de nossa indiferença. Como em quase todos os bairros da cidade, constato que este onde ando não cresceu, inchou, ramificou-se por ruas sujas e maltratadas. Em tudo surpreendo a mancha da pobreza, não raro da miséria. O mais grave, porém, eu o surpreendo nesse modo de desleixo típico do brasileiro, não importa de que condição social. Trata as ruas, a cidade onde vive, como algo dissociado de sua existência, como matéria alheia apenas digna de descaso e destruição. É triste morar numa cidade desse tipo, mover-me dentro dela como se dela não fizesse parte, como se ela, num certo grau, não fosse uma extensão da minha casa. Somos estranhos hostis, quando não inimigos declarados. Quando afinal seremos uma cidade no sentido pleno do termo, uma cidade construída e habitada por cidadãos?

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