sexta-feira, 29 de abril de 2011

Máximas e Mínimas IV


Eu é outro. Eu também
Sou tantos que nem me sei
Que até no outro ninguém
Sou o outro que em mim neguei.

O insucesso sempre me sobe à cabeça, sobretudo quando ouço os vencedores ostentando as excelências de suas glórias.

Inscrição lida no retrovisor de um táxi: “Todos falam mal de Joca. O difícil é ser Joca”. E lá se foi Joca atropelando sinal vermelho e bloqueando faixa de pedestre. Se Joca nada sabe do código de trânsito, o que dizer da estupidez humana?

Acho que foi Chesterton quem observou que quando as pessoas deixam de acreditar em Deus passam a acreditar em qualquer coisa. Nada mais verdadeiro. Basta ligar a televisão ou simplesmente atentar para a vida corrente.

Se eu saísse pelas ruas do Recife gritando que sou o maior folião do mundo, prontamente me tornaria alvo de gozação e ridículo. Talvez os mais exaltados recomendassem meu internamento imediato num manicômio. Se no entanto um publicitário produzisse um videoclipe alardeando que o carnaval do Recife é o melhor do mundo, isso seria prontamente endossado como pura expressão da verdade e fonte de orgulho para a maioria dos pernambucanos.

Inteligência é o que sobra do que se esgota em vaidade.

Se o voto é um direito, como então conceber que seja obrigatório? Somente na democracia à brasileira os legisladores entendem que o titular de um direito é forçado a exercê-lo.

Há muito o Big Brother, compreendido como símbolo de uma sociedade totalitária, instalou-se na nossa subjetividade. Mas não ao modo da distopia concebida por George Orwell. Nesta, a teletela e outros dispositivos de controle acionados pelo poder totalitário nos são impostos. Hoje somos nós que servilmente renunciamos à nossa liberdade mais radical e privada e tudo entregamos ou vendemos ao poder abstrato e onipresente do Big Brother.

A renúncia à privacidade, último baluarte da liberdade individual contra a tirania exercida pelo Estado e pelo mercado, chegou a tal ponto que já confundimos invasão da privacidade com evasão da privacidade.

Há quem viaje apenas pelo prazer de voltar para casa.

Minha casa é o único mundo que possuo e todavia nem nela posso livremente exercer minha soberania.

O Brasil registra uma rica e comovente linhagem de romantização da nossa pobreza – não raro acrescida de outro tanto de pura e simples miséria. Sintomaticamente, é obra de pessoas bem nutridas, com presente e futuro imunes à necessidade dos que raspam o fundo de panelas vazias, quando não pura e simplesmente o esgoto das ruas. Em suma, como reza o dito popular, é fácil romantizar a fome de barriga cheia.

O brasileiro é portador do pior tipo de preconceito: o preconceito de não ter preconceito.

O sonho do brasileiro típico é tornar-se funcionário público mediante concurso que se tornou lotérico. Por nepotismo é ainda melhor. Depois disso terá a vida inteira para viver de parasitismo estatal.

Millôr Fernandes desmente liminarmente a ideia generosa segundo a qual todo cínico ou cético foi antes um grande idealista. Aos nove anos, quando caiu na vida, Millôr era já um homem liberto das nossas ilusões correntes.

Leia também
Máximas e Mínimas I
Máximas e Mínimas II
Máximas e Mínimas III

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Sextilhas para Clarice


Clarice, quem foi que disse
Que a voz do amor era triste
Mais triste do que ninguém?
Há quem na vida, Clarice
Morra de dor e velhice
Só, sem amor de alguém.

A tua prosa, Clarice
Tece a tristeza mais triste
Tece alegria também.
Que outra mulher resiste
Agora que te partiste
No azul humano e além?

Se tantas foste, bem mais
Na tua mina és capaz
De outros Outros lavrar.
Sobre meu céu tua estrela
Brilha na noite mais bela
Clarice: deusa do mar.

Na noite longa, em Recife
Houve a menina Clarice
Vinda de mundos ausentes.
A vida reinventada
Nasce das formas do nada
Forjada no amor que sentes.

Adeus é a falta demente
De quem abole o presente
Depois de tudo perder.
Por isso não leio adeus
Nas linhas dos livros teus
Que são teus modos de ser.

Recife, 12 de abril de 2008.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

O Triunfo da Música


Suponho que a maioria dos curtidores contemporâneos da música acredita com santa inconsciência que os músicos foram sempre elevados às alturas celestiais correntes no nosso tempo. Começo frisando partir de uma distinção deliberada entre amantes da música, ou melômanos, e curtidores, termo que aqui emprego para referir-me ao público de massa. É claro que a distinção contém um juízo de valor que preciso explicitar já de saída porque algo do que escreverei sobre o livro O Triunfo da Música, de Tim Blanning, implicará essa distinção. O amante da música ou melômano, no sentido aqui acentuado, é um apreciador esclarecido da música. Destaco, em tempo, que ele também existe como público de massa, dado o fato óbvio de que vivemos em sociedades lastreadas por veículos de difusão e recepção de massa. Por mais que invista emoção na sua recepção da obra musical, o melômano nunca se confunde com o mero curtidor da música. Este é aqui compreendido antes de tudo como o receptor que se vale da música como simples diversionismo ou veículo de extravasamento de energia psíquica. Para este, o problema da qualidade estética da música nunca se coloca, ou simplesmente inexiste. Ele curte Ivete Sangalo, por exemplo, com o espírito de um atleta de academia de musculação. Logo, o que busca na música desse tipo, pois é isso o que de resto ela fornece, é fonte de excitação e extravasamento de energia.

O livro de Tim Blanning, em muitos sentidos excelente, ignora por completo a distinção que acima faço. Embora considere indireta ou implicitamente a música enquanto expressão artística esteticamente qualificada, preocupa-se antes de tudo em descrever o longo processo histórico através do qual o músico transitou das funções socialmente subordinadas que exercia na sociedade para o triunfo singular que alcançou na cultura contemporânea. Esse triunfo se traduz em sucesso elevado à sacralização da música e do músico, na riqueza econômica e na fama ostentadas pelos músicos e na soberania da música sobre as demais artes.

Quando ocasionalmente roça a questão da qualidade estética da obra ou do artista, ele o faz baseado numa distinção supostamente simples e inquestionável. O leitor pode conferir melhor o ponto de vista de Blanning se for à página 345 e observar o que ele aí escreve sobre avaliação subjetiva (o exemplo de que se ocupa é o dos Beatles), baseada em critérios estéticos, por definição transitórios, e fato objetivo, isto é, o teste da durabilidade, ou do tempo, que assegurou aos Beatles um lugar excepcional na história da música. Outro critério supostamente objetivo que endossa, típico da ideologia consumista que domina nosso tempo, é o quantitativo. Quando afirma a importância extraordinária de artistas como Paul McCartney e John Lennon, assim como de Bach ou Mozart, ou ainda uma canção como Yesterday, lança mão apenas de dados estatísticos.

Voltando ao ponto de partida deste artigo, Tim Blanning demonstra com abundância de exemplos e meticulosa exposição histórica o processo através do qual o músico, não a música, ascendeu da condição de mero serviçal da nobreza, do clero ou do patrocínio individual de algum poderoso ao estado de deificação observável no presente. Se um exemplo famoso pode resumir esta questão, bastaria lembrarmos John Lennon afirmando, com razão, que os Beatles eram mais famosos do que Jesus Cristo. Muitos crentes ficaram chocados, mas a verdade é que Lennon e ídolos de igual fama inspiram estados de fanatismo e devoção de massa para os quais não sei de equivalentes religiosos na cultura ocidental contemporânea.

Valho-me de um outro exemplo para caracterizar na outra ponta, a da subordinação social do músico, os extremos seguidos pelo conjunto da exposição desenvolvida por Blanning. O exemplo que agora apresento refere-se ao pontapé na bunda que Mozart sofreu quando foi literalmente expulso dos serviços que prestava ao arcebispo de Salzburgo (p. 19). Entre este célebre pontapé e a frase de Lennon se interpõem mais de 200 anos de história. Mas importa ressaltar que o livro cobre um intervalo de tempo bem mais amplo. Dentro dele podemos apreciar a subordinação social, agravada por ocasionais humilhações, de que foram vítimas gênios da música como Bach, Haydn e Mozart. Liszt e sobretudo Beethoven e Wagner desempenham nesse processo papéis fundamentais como pioneiros do reconhecimento do músico como gênio e objeto de veneração, além de inequívoco prestígio conferido pelas instituições sociais do tempo.

O agente fundamental dessa mutação observável no papel social desempenhado pelo músico é o capitalismo. Foi graças a ele que se constituiu um mercado de arte capaz de assegurar ao músico a distinção e os privilégios de que hoje desfruta numa escala sem precedente histórico. Antes do desenvolvimento do capitalismo, como já assinalei, o músico, assim como o artista em geral, vivia subordinado ao poder da nobreza e do clero. É portanto curioso, senão irônico, o fato de tantos artistas lutarem no decorrer do século 20 pela destruição do capitalismo. O ideal de muitos deles era o comunismo que produziu sociedades totalitárias nas quais o artista era impiedosamente fiscalizado, censurado, instrumentalizado ideologicamente e no limite silenciado pelo Estado. Os exemplos são tantos que poupo o leitor do trabalho de ler alguns que de imediato me vêm à memória. Mas aqui vai um: quem viu o filme A vida dos outros sabe muito bem do que estou falando.

É claro que processos semelhantes também ocorreram nas sociedades de economia capitalista nas quais foram impostos regimes autoritários ou ditatoriais. Sofremos essa experiência em tempos recentes no nosso próprio país. Artistas como Geraldo Vandré, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, para ficar em alguns exemplos restritos à música popular, foram vítimas de diversas formas de controle ou perseguição política. Mas não há como objetivamente situar no mesmo patamar a situação do artista num regime totalitário, como foi o caso da União Soviética, com a do artista que sofre as opressões impostas por ditaduras de regime econômico capitalista. Se a ditadura é imposta para controlar a liberdade do artista em benefício dos interesses do capitalismo, o controle com frequência entra em conflito com os próprios interesses da economia que a ditadura defende. Poupando-me de entrar nos detalhes desse tipo de processo social, encurto o assunto lembrando que isso foi frequentemente teorizado por críticos marxistas como expressão característica das contradições econômicas e culturais do capitalismo.

Seguindo no veio da realidade brasileira, que naturalmente inexiste no livro de Tim Blanning, podemos melhor apreciar a relação acima indicada entre o lugar social ocupado pelo músico e o desenvolvimento do capitalismo. Como aqui o desenvolvimento deste foi muito tardio, somente a partir da década de 1960, com o surgimento da televisão, da cultura jovem e de um amplo mercado de massa, o músico em geral passou a desfrutar dos privilégios invejáveis que agora plenamente detém. É verdade que antes, digamos a partir da década de 1930, já se constituíra um ralo mercado da música baseado na difusão dos programas de rádio, na indústria fonográfica e no mercado alimentado pelo carnaval.

Diante do que já expus, fica evidente que o livro de Blanning, como ele aliás cuida de esclarecer, não é uma obra de musicologia destinada ao leitor de formação técnica e teórica em música. Citando o próprio autor,
“Prestígio, propósito, lugares e espaços, tecnologia e libertação: estas são as cinco categorias que explorarei para explicar a marcha da música até a supremacia cultural. O que se segue é um exercício de história social, cultural e política, não de musicologia – nenhum conhecimento técnico de música é requerido” (p. 20).
Além de dedicar a cada uma das categorias acima especificadas capítulos exclusivos e extensos, Blanning acrescenta à obra uma introdução e uma conclusão sumárias nas quais ousa explorar até com algum ânimo polêmico questões de prestígio e poder, gosto e consumo característicos da realidade musical contemporânea.

Já considerei brevemente a questão do gosto musical, que ele menciona sem explorar mais amplamente a relação entre gosto e fundamentação estética e sociológica do gosto. Propondo a questão noutros termos: o gosto é puramente subjetivo, ou mensurável a partir de critérios puramente mercadológicos, ou se apoia de algum modo em critérios esteticamente objetivos? Como já assinalei, ele encara os critérios estéticos como se fossem meramente subjetivos, ou transitórios, passa recibo ao leitor e vai adiante. Quando se arrisca a discutir questões de gosto, apoia-se apenas na durabilidade assegurada pelo tempo, juiz sem dúvida supremo, ou na quantificação mercadológica da obra e do artista. O tempo, como venho de observar, é o juiz supremo da arte, mas é impraticável como critério restrito ao presente, que é de resto onde de fato vivemos. O tempo importa apenas como medida obviamente temporal. Logo, vale apenas quando fixamos relações comparativas entre épocas distintas, ou intervalos de tempo amplos o suficiente para que se possa com segurança afirmar a duração da obra ou do artista no tempo ou na linha da tradição.
Tim Blanning salienta com razão o papel decisivo desempenhado pela revolução tecnológica para que a supremacia da música se tornasse realidade na cultura contemporânea. O fato de torná-la acessível a massas de receptores incalculáveis supõe questões estéticas que ele prudentemente contorna ou finge ignorar. Por exemplo: a relação entre democratização da cultura e qualidade estética. Blanning celebra a supremacia da música, recorre a dados quantitativos e factuais para confirmá-la, mas não se atreve a ensaiar uma crítica ou interpretação que deslizariam para um terreno movediço e polêmico.

Enquanto lia o livro, em particular passagens que roçavam questões como as que indico nos dois parágrafos precedentes, pensei por associação no clima musical brasileiro. Confesso haver considerado a possibilidade de me valer da crítica ao livro para introduzir neste artigo algumas questões de gosto, também fatos caracterizadores da realidade musical em que vivemos, que com certeza inflamariam os ânimos do leitor que leva a sério o grosso da música correntemente consumida no mercado brasileiro. Foi com essa intenção que logo no início do artigo introduzi uma distinção, já de cara polêmica, entre o amante da música, ou melômano, e o mero curtidor, que constitui o grosso do nosso público. Mas deixo o dito pelo não dito e encerro o artigo por aqui. Antes, porém, reitero as qualidades excelentes da obra de Blanning enquanto exercício de história cultural da música, ou ainda de sociologia da música. Além disso, a exposição é clara e envolvente, fato que sem dúvida importa para o leitor que busca a leitura como meio de aprendizagem temperada pelo prazer.

Acrescento em tempo algumas ponderações finais ao artigo para não silenciar completamente sobre a relação entre a música e as demais artes, relação que ficou implícita na evidência da supremacia da música bem demonstrada no livro. Um fator já ressaltado para a realização dessa supremacia é a revolução tecnológica. Em países do tipo do Brasil, de baixa tradição letrada e relações sociais tão pouco regulamentadas, para não dizer de funcionamento anômico ou desregrado, a música alcança um grau de difusão impensável no contexto de um país como a Inglaterra, onde nasceu e vive o autor do livro. Aqui a música, geralmente de baixa categoria, invade todos os espaços sociais, inclusive aqueles tradicionalmente consagrados às outras artes. Bastaria considerarmos a moda das feiras literárias, cada vez mais badaladas, cada vez mais concorridas e cada vez mais subordinadas ao império da música e dos músicos.

A música ocupa agora praticamente todo o nosso espaço de convívio ou até de solidão harmônica ou simplesmente barulhenta. Em termos de hegemonia cultural, ela perde apenas para a televisão, que aliás não é uma arte ou forma de arte, mas um veículo de difusão de muita coisa, sobretudo de lixo cultural, no caso preciso do Brasil. Valendo-se da televisão para exercer supremacia ainda maior, a música reduziu as artes da palavra, em particular a literatura, a uma posição de servilismo comparável, dentro das distinções de contexto histórico óbvias, à que o músico sofreu nas sociedades de corte da Europa nos séculos que precederam o pleno desenvolvimento do capitalismo. Dependendo da solidão e do silêncio como meios essenciais de fruição, a literatura perde por completo o rebolado quando ouve o bater de um tambor, o sopro de um clarim ou o acorde ressoante de uma guitarra elétrica.

Se há hoje uma ditadura no Brasil, não tenho dúvida de que é a da música aliada à televisão e outros meios de difusão de massa isentos dos controles impostos nas sociedades onde se respeita a distinção democrática fundamental entre espaço público e espaço privado. Neste país de mãe Joana, onde invadimos de mil modos possíveis e impossíveis a privacidade e a liberdade do outro, há circunstâncias nas quais sequer podemos dormir em paz, imagine ler em paz ou até mesmo ouvir música em paz.
Recife, 20 de fevereiro de 2011.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

O Baobá Daniel Lima


Se houvesse eternidade na natureza, o sinônimo perfeito da eternidade seria baobá. Dizem que um baobá pode viver mais de mil anos.

Quão pobre é nossa ciência
Da eternidade do tempo
Pois tudo passa e o que fica
É a permanência do vento.

Quando a floresta e Dáni
Ficarem muito velhinhos
As folhas do baobá
Hão de abrigá-los num ninho.

A valsa no bandolim
Povoará o deserto
E eu plantarei um jardim
No céu azul e aberto

A mata reflorirá
Sua paisagem frondosa
E o canto do sabiá
Será gravado na prosa

Da mais humana harmonia
Quando a idade de Dáni
Num sopro de poesia
For baobá, natureza.


E quem viver colherá
Na mata que ele plantou
A idade do baobá
O solo que fecundou.

E um mundo de outra grandeza
Sem que me traia ou engane
Semeará a beleza:
Obra brotada de Dáni.

E quando enfim a memória
No tempo se dispersar
Os frutos dessa história
Hão de viver no rebento
Do tronco do baobá.

Fernando da Mota Lima
Recife, 3 de novembro 2009.

domingo, 10 de abril de 2011

Criação


Criação (Creation) é um filme que recria com admirável força dramática os tormentos morais e psíquicos de um gênio. Este termo está mais do que barateado no mundo de linguagem corrompida e falsas etiquetas em que vivemos. No caso de Charles Darwin, porém, o termo se justifica plenamente. Mesmo um leigo como o que escreve este artigo, um leigo que ouse ver o mundo com olhos limpos e livres, tem alguma consciência do significado revolucionário de A Origem das Espécies (The Origin of Species). Publicada em 1859, foi sem exagero uma revolução na história da ciência e do pensamento humano. Há na história alguns pensadores que de fato revolucionaram o mundo modificando assim de forma irreversível nossa percepção da realidade. Darwin é um desses poucos.

No entanto, como o filme bem nos revela, ele se consumiu num surdo tormento durante cerca de 20 anos dividido entre suas convicções científicas e o temor de perpetrar um crime ao dar forma e publicidade a uma teoria que sua própria consciência cristã encarava como uma afronta a Deus e à verdade revelada pela Bíblia. Homem típico do seu tempo, não obstante seu gênio, Darwin (Paul Bettany) descendia de uma família de posses e forte tradição cristã. Esse sólido enraizamento cristão da família se expressa em Emma (Jennifer Connelly), prima em primeiro grau e esposa de Darwin. A filha predileta Annie (Martha West) desempenha decisiva função dramática no filme. Além de desencadear a dor pungente da perda sofrida por Darwin quando morre prematuramente, Annie funciona na narrativa como a “consciência científica” de Darwin contraposta aos temores cristãos que o atormentam e paralisam encarnados em Emma e no Reverendo Annis (Jeremy Bentham).

É este, em suma, o nó dramático do filme: o conflito entre a convicção científica, aprisionada num baú que Darwin somente depois de uma luta prolongada ousa abrir para, baseado na pesquisa e matéria ali acumuladas, dar forma definitiva à sua obra revolucionária e a trava da consciência cristã, acrescida da poderosa pressão moral e religiosa ambiente. Além da função simbólica que Annie desempenha em favor da ciência e da consciência que por fim liberam o gênio de Darwin, pesam nesse lado da balança os apoios combativos de Joseph Hooker (Benedict Cumberbatch) e Thomas Huxley (Toby Jones).

O espectador tocado pela curiosidade que o filme aciona pode com grande proveito valer-se da leitura de uma excelente biografia de Darwin traduzida e publicada no Brasil em 1995: Darwin: a vida de um evolucionista atormentado, escrita por Adrian Desmond e James Moore. Os autores estabeleceram um plano de composição e divisão de trabalho que lhes facultou apresentar um retrato abrangentemente rico e complexo de Darwin. Enquanto Desmond, segundo declaração de Moore extraída de uma entrevista publicada na Folha de S. Paulo, explorou o contexto histórico e os aspectos da história da ciência pertinentes à composição da biografia, Moore ateve-se aos problemas de ordem religiosa e à visão de mundo de Darwin.

A tradição romântica vincou de forma indelével a perspectiva através da qual enquadramos nossa compreensão do indivíduo. Esse fato ressalta de forma mais nítida no gênero biográfico. Através dele representamos nossa noção da vida individual, notadamente a dos homens excepcionais. A concepção romântica tende a individualizar, num sentido idealizador, a vida do biografado. Antonio Candido, com sua argúcia crítica habitual, acentua essa deformação corrente ao corrigir certa visão romântica de Machado de Assis num ensaio de título modesto em face das intuições profundas que contém: “Esquema de Machado de Assis”. A associação é pertinente porque me foi sugerida pelo filme sobre Darwin, também sobre a biografia de Desmond e Moore e a ela me conduz de volta. Quero dizer, desbastado das tintas idealizadoramente românticas, Darwin foi um homem do seu tempo. Seu modo de ser e viver reflete com vincos profundos a mentalidade vitoriana que configurava a Inglaterra em que viveu.

Atormentado pela convicção científica de uma teoria que representaria um golpe tremendo sobre a religiosidade dominante no seu ambiente social, quando as questões de natureza religiosa eram questões públicas, sofreu tormentos prolongados, não raro paralisantes, até decidir-se a imprimir forma definitiva à Origem das Espécies. Como a maioria dos seres humanos, ele temia a opinião alheia, no filme expressa por agentes intimamente ligados à sua vida. O freio mais poderoso e temido era a própria Emma, profundamente fiel a suas convicções cristãs.

O filme contém uma imagem que sintetiza com extraordinária economia plástica o sentido essencial da teoria de Darwin. Refiro-me à cena em que ele toca com o indicador do braço estendido o indicador da macaca Jenny, que morre num dos momentos mais comoventes do filme. Aliás, essa morte fixa um paralelo similar ao que em seguida exporei. A morte de Jenny compõe com a de Annie um paralelo essencial à compreensão do filme, assim como o dos indicadores que se tocam remete a um paralelo óbvio com A criação de Adão, de Michelangelo, suspensa no teto da Capela Sistina como um dos momentos supremos da história da arte.

Darwin fez o possível para dissociar sua teoria das disputas ideológicas a que poderia prestar-se. Segundo Adrian Desmond, ele era um paranoico cioso de preservar sua respeitabilidade de disputas públicas que com certeza a comprometeriam. Essa questão aparece de modo nítido no filme, embora seja explicitada antes por Emma do que por ele, que se recolhia ao silêncio e à doença constante e abatedora. Esta, de resto, constituía uma somatização dos conflitos psíquicos e morais que o atormentavam.

Apesar da sua tibieza, das linhas de fuga de que se valeu para escapar ao combate público, sua teoria repercutiu, como seria previsível, no clima ideológico da época. Quem mais se empenhou para que isso acontecesse foi Thomas Huxley, que aliás acabou conhecido como o buldogue de Darwin. Embora participe bem pouco da trama, devido às opções dramáticas bem claras feitas pelo diretor Jon Amiel e o roteirista John Collee, Thomas Huxley e Joseph Hooker fazem e falam o suficiente para que o espectador atento componha uma noção razoável das implicações religiosas e políticas da teoria da evolução.

Houve quem temesse, suponho que fosse esse um dos tormentos de Darwin, e tema ainda que a teoria da evolução represente um golpe mortal sobre o mito criacionista contido na Bíblia. O próprio Darwin adotou posição contemporizadora quando declarou não haver incompatibilidade entre a teoria da evolução e a crença religiosa no criacionismo bíblico. Do ponto de vista científico e racional, acredito que ele está errado. Isso, no entanto, não impediu nem impede que as pessoas continuem equilibrando os dois pratos da balança – ou opondo um ao outro, como é o caso dos racionalistas científicos militantes, bastaria pensar em Richard Dawkins, e na outra ponta os religiosos obscurantistas.

Pessoalmente, não encontro razões científicas que sustentem a crença na explicação bíblica da nossa origem. Mas importa no caso considerar não propriamente a verdade cientificamente aferível, até porque a religiosidade ancora em motivações de crença inconciliáveis com a objetividade fria da ciência, em motivações psicológicas profundas do ser humano. Trocando isso em alguns miúdos, pois há outros que sequer vislumbro nesse terreno minado sobre o qual deslizo sem maiores especificações analíticas, quanto de verdade suportamos sobre a nossa condição? Quanto de verdade objetivamente verificável suportamos sobre nossa mortalidade e a vida falível que antes dela precisamos suportar no mundo? Num verso famoso dos Quatro Quartetos, Eliot afirma, com razão, que nós, seres humanos, somos incapazes de suportar a verdade. Traduzo livremente, esclareço.

Observem o próprio drama psíquico e moral de Darwin. A ciência privou-o da capacidade de continuar acreditando na fé que nutriu sua existência, abalando seu amor pela mulher e os filhos, sua necessidade de aceitação e reconhecimento no ambiente social em que vivia e conquistou respeitabilidade e prestígio. Seu heroísmo, expressão final do gênio mais poderoso do que as imposições do meio, consistiu na capacidade de afinal vencer suas dúvidas e irresoluções, dar forma à sua obra-prima e com isso provocar uma das maiores revoluções científicas de toda a história humana.

A questão que continuará nos interrogando e atormentando é a seguinte: quanto você suporta de verdade? Quanto de realidade isenta de crença consoladora na transcendência, numa imortalidade que nos salvaria da consciência para muitos insuportável de que somos apenas pó e ao pó regrediremos? Posso responder pelo meu ateísmo, mas longe de mim a presunção de doutrinar o crente, muito menos impor-lhe minhas convicções.
Recife, 10 de março de 2011.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Alcoolfobia


Alcoolfobia
Severo Machado

Odeio Nietzsche que odiava bebida alcoólica. Nietzsche odiava o álcool com a mesma intensidade com que odiava o cristianismo. Com uma diferença, porém: este era sintoma de sua ambivalência, já que foi poderosamente influenciado por ele. O álcool ele o odiava de forma coerente, pois nunca se meteu com esse tipo de má companhia. Se há uma má companhia que longamente frequentei, além das mulheres que tenho o dom de tornar piores do que são, é a má companhia do álcool. Há muito sei que ele é incompatível com meu organismo. Quando com ele me meto em bares, festas e outros ambientes pouco recomendáveis, no dia seguinte pago a conta com multas e juros extorsivos. O álcool sempre me deixa de ressaca, não importando sua qualidade. Pior: detona minha rinite alérgica, me castiga o corpo e me abate com o peso da sonolência e da dor de cabeça.

Por que então com ele me meto, se comprovadamente me faz mal infalível e previsível? Antes de tudo, ele tem o poder mágico de tornar as pessoas interessantes, como apropriadamente observou certo alcoólatra inglês. Como não as suporto a cru e sóbrio, preciso beber para torná-las o que não são ou tornar-me eu o que elas gostariam de ser ou que eu fosse. Além disso, ele é o mais eficaz corretivo da timidez que conheço. Sei que falam de mim, sei que zombam de mim quando baixo a guarda e confesso esta fraqueza: sou tímido incorrigível. Não me acreditam simplesmente porque dou em cima das mulheres antes que cruzem as pernas, também porque sou grosseiro e não raro brutal. Como há muito desisti do divã de Lúcio Astrolábio, que me extorquiu uma montanha de salários sem me fornecer o mais vago sinal de cura, preciso ocasionalmente fazer das minhas crônicas um divã sem guichê.

E assim vou eu bebendo. Houve um tempo em que bebia mais que o razoável ignorando todo tipo de sinal vermelho. Fazia mal antes a mim do que ao próximo, mas era a via mais curta para a cama das mulheres que cruzava na noite, no bar, na festa e até no bordel, pois sou do tempo em que o bordel era uma instituição espacialmente estabelecida para salvaguardar a estabilidade e permanência da família. Depois que todo mundo passou a fazer em todo o mundo o que antes era privativo do bordel e do quarto da empregada, a família não se desagregou, mas sofreu mutações tão radicais que algumas passaram a confundir-se com um bordel.

Melhor voltar ao copo já quase vazio. O que preciso é esvaziá-lo de vez. Quero dizer, preciso aprender a odiá-lo com a mesma intensidade coerente de Nietzsche. Aliás, é difícil imaginar filósofo mais incoerente do que ele. Quando estou sozinho comigo, pouco me custa esvaziar o copo ou simplesmente prescindir de enchê-lo. Não que eu me considere boa companhia para mim próprio. O que de mim me salva e comigo me reconcilia é a poderosa força narcísica que nos governa. Sendo assim, racionalizo o que sou de pior, abraço minhas mais baixas baixezas e acabo sempre vendo no espelho o melhor ser humano que conheço.

O problema é conviver, embora Drummond tenha escrito que viver é conviver. Aí vai outra incoerência típica desse povo que pensa, que pensa mais do que vive, como é o caso dos intelectuais. Drummond gostava tanto de conviver que se refugiou na poesia, sua via de fuga do suicídio, ou pelo menos da incapacidade crônica de tolerar as formas rotineiras de convívio. Como não sou poeta e de resto odeio a poesia, salvo quando empregada para levar mulher para a cama, reconheço minha necessidade do outro sem sacrificar a coerência em benefício de um verso ou frase citável. O problema é que em mim a necessidade se traduz em via de colisão, em timidez mascarada nas vestes da grosseria e da brutalidade sem cálculo. Recorrendo ao menor dos males, prefiro quase sempre encher o copo e logo esvaziá-lo. Quem estiver por perto que se cuide.

E assim vou eu bebendo e me sofrendo. No dia seguinte estou inutilizado. Dói-me a cabeça, dói-me o corpo lasso, dói-me a dor que arrebenta em espirros, secreção irritante, a incapacidade de governar minha vida rotineira. E tudo por causa do álcool do qual dependo para tornar o outro interessante e me dar coragem para dar em cima das mulheres. A ressaca me engrossa o sangue contra o álcool fazendo-me jurar juras que logo desacredito diante da primeira garrafa que me aparece. Afrouxo meu ódio contra Nietzsche como se essa artimanha imprimisse eficácia a meu ódio contra o álcool fazendo-me assim negá-lo para sempre. Mas logo sobrevém outra bebedeira logo seguida de outra ressaca acachapante e novas juras de ódio e suspensão da dependência.

De algum tempo para cá, somei ao ódio crescente ao álcool uns bambos exercícios da vontade sempre vulnerável ao prazer, ao mínimo esforço, ao caminho mais curto entre o desejo e seu objeto, entre o bêbado e a garrafa. O diabo é que a tentação salta sobre mim em cada canto da casa, em cada esquina de rua, em cada TV ligada. Como no Brasil há TV ligada até nos sanitários, igrejas e bibliotecas, como escapar dos publicitários implacáveis na sanha de me corromper, de me tornar um alcoólatra? Pior é que não me vendem a cerveja suadinha escorrendo volúpia e prazer. Vendem-me a gostosa suadinha que a imaginação libidinosa confunde com a lata ou garrafa.
Sei que dirão que a culpa é minha, a culpa é de todo alcoólatra que não tem caráter nem energia para resistir à tentação. Afinal, como sempre dizem depois da orgia, “beba com moderação”. Fazem da hipocrisia mercadológica o mesmo que um puritano faria num bordel. Como beber com moderação quando tudo me convida, quando tudo me provoca a beber imoderadamente? Pensando bem, vou parar de odiar Nietzsche para concentrar meu ódio nos publicitários e na maldade do semelhante, causa real das minhas bebedeiras incuráveis.
Olinda, Bar do Batata, 2 de abril 2011.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Valores Lusos na Cultura Brasileira


A Continuidade de Valores Portugueses na Cultura Literária Brasileira

O propósito deste texto é traçar as linhas gerais de uma série de exposições relativas à continuidade de valores culturais lusos, e amplamente ibéricos, na cultura literária brasileira. Embora o título acima proposto especifique a literatura como horizonte e limite dos argumentos a seguir esboçados, importaria desde já acentuar que a ela, a literatura, se incorpora a cultura compreendida na sua dimensão socioantropológica. Se tal propósito, aparentemente ambicioso, amplia acaso em demasia as proporções do que intento livremente expor, é no entanto indispensável para que se logre compreender satisfatoriamente os valores aqui discutidos e a real natureza dos dois movimentos culturais dominantes na primeira metade do século xx no Brasil: o Modernismo de extração paulista e o Regionalismo de Recife. Demarcados estes limites gerais, a eles acrescentarei, como apreciação conclusiva da nossa exploração panorâmica, uma atualização da matéria fundamental estendendo-a, noutras palavras, ao cenário sociocultural contemporâneo.

Começando pela relação observável entre o Modernismo e nossa herança portuguesa, talvez o estudioso apressado tendesse a anular de pronto qualquer associação relevante entre os dois termos propostos. Afinal, prevalece ainda hoje nos quadros da historiografia do Modernismo uma leitura orientada para a caracterização do movimento pautada pelo critério da renovação estética, pelo ânimo da mudança e atualização artística e cultural. Como bem sugere a síntese proposta por Oswald de Andrade, o fim visado pelos modernistas era acertar os ponteiros do relógio do Brasil com os da vanguarda européia. Dito de outro modo, a ambição dos modernistas era superar o peso da nossa herança portuguesa suprimindo o descompasso entre a modernidade européia e as condições de atraso sociocultural dominantes nos trópicos brasileiros.

Se pensamos no Modernismo da primeira hora, tocado pela euforia dos impulsos renovadores, tal caracterização é sem dúvida sustentável. As evidências disponíveis são fartas e solicitam um registro genérico passível de apoiar o argumento em questão. A consciência teórica do movimento, associada antes de tudo à obra e atuação intelectual de Mário de Andrade, enfatiza os fatores de renovação e ruptura. O periódico Klaxon, criado logo depois da Semana de Arte Moderna, ressoa de ponta a ponta a euforia vanguardista dos modernistas. Os temas que frequentam e pontuam nosso processo cultural – herança lusa, nacionalismo e identidade cultural, por exemplo – cedem o passo ao cinema como expressão da modernidade e da renovação expressiva das artes, à temática urbana marcada por traços típicos da vida moderna: o culto da civilização técnica, da velocidade, da indústria, da cultura do imigrante, da internacionalização das artes. É significativo que neste momento, assim como no decorrer da década de vinte, a questão da autonomia linguística seja a única matéria de debate e rejeição explícita da nossa herança literária portuguesa.


Supondo porém que o estudioso proceda a um exame mais detido do processo, modulando acentos e pontos de continuidade e mudança, logo fica claro que o desdobramento da dinâmica modernista é bem mais complexo. Se é verdade que seu momento inaugural obedece aos traços acima indicados, pouco mais tarde, em 1924, ocorre a inflexão nacionalista que desloca o movimento do cosmopolitismo inicial para a cena brasileira. Os sintomas dominantes de tal inflexão radicam na busca sistemática dos temas e particularidades da cultura brasileira, na teorização e pesquisa da identidade nacional, na retomada da tradição, do mundo provinciano e rural do Brasil. Retendo ainda o exemplo dos periódicos representativos, bastaria assinalar o sentido nacionalista da linha que vai de Klaxon a Terra Roxa e outras terras passando por Estética.
Mário de Andrade, a personalidade paradigmática de todo esse processo, empenha-se numa ação sistemática e continuada de pregação nacionalista da qual resultarão seus estudos sobre o barroco mineiro e a música brasileira, o folclore e a defesa de uma linguagem literária especificamente brasileira. Daí resultam obras de criação artística cuja expressão suprema é Macunaíma, publicado em 1928. Sob seu influxo, poetas como Drummond vão harmonizar renovação estilística com temas da província impregnados dos valores da tradição.

Saltando para a década seguinte, observamos que o conjunto da produção literária reitera e amadurece as tendências e expressões de nacionalismo cultural emergentes na década anterior. O nacionalismo, compreendido na moldura onde se desenham seus motivos correlatos: a reinvenção da tradição brasileira e a busca da identidade cultural, torna-se hegemônico em todos os sentidos e modos de expressão do país. João Luiz Lafetá sintetiza o conjunto desse processo muito bem quando afirma que na década de trinta o projeto ideológico do Modernismo se sobrepõe ao projeto estético prevalecente nos anos vinte.

É nesta década, sobretudo a partir de 1933, ano da publicação de Casa-Grande & Senzala, que o ideário e as realizações do Regionalismo de Recife alcançam amplitude nacional. Mais do que isso, definem a medida da hegemonia de um discurso literário nacional na medida em que escritores como José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos estabilizam e difundem uma forma de narrativa que se impõe aos próprios modernistas empenhados em fundar um modo renovado de narrativa ficcional no Brasil. Ora, o que a narrativa nordestina realiza, noutros termos, é a retomada dos temas da região e da tradição, para usar os termos que dão título a um livro polêmico de Gilberto Freyre publicado bem no início dos anos quarenta. Ao reunir em volume os ensaios que compõem esta obra, seu objetivo, francamente polêmico, foi não apenas proceder à apologia do nacionalismo ancorado na especificidade regional brasileira, mas também reivindicar para o Regionalismo de Recife o papel pioneiro de agente formulador e estabilizador da moderna cultura nacional do país.

À diferença do Modernismo, cujo processo de desenvolvimento foi acima grosseiramente esboçado, o Regionalismo se distingue pela coerência e espírito de continuidade que o vinculam aos valores de extração portuguesa. Desde quando Gilberto Freyre retorna ao Recife em 1923, depois de cinco anos dedicados a estudos realizados nos Estados Unidos, as expressões de regionalismo que logo se empenha em produzir e orientar obedecem a uma confessa e entusiasmada filiação lusa e genericamente ibérica. Embora isso explique a oposição que o divide das linhas de atuação estabelecidas pelo Modernismo, sua ação e influência ficam restritas ao âmbito regional, sobretudo recifense. A partir do momento em que publica sua obra-prima, e consequentemente se projeta como intelectual renovador em escala nacional, Gilberto Freyre se torna, com inteira justiça, um intelectual cuja interpretação do nosso passado nos reconcilia com uma condição cultural – lusa, antes de tudo – que por muito tempo pesou na consciência das elites nacionais como fator de constrangimento, quando não de vergonha dissimulada por certa expressão de bovarismo cultural assinalada pela representação ilusória de uma identidade européia.

Talvez mais que qualquer outro intelectual individualmente considerado, Gilberto Freyre concorreu para que o brasileiro, constrangido pelas suas condições de atraso social e miscigenação invariavelmente castigada por diagnósticos e prognósticos racistas, se reacomodasse na carne do seu corpo mestiço e revisasse seu passado português não somente como uma expressão bem-sucedida de acomodação do europeu somado a outros grupos culturais, mas até com o orgulho de quem se identifica com um ethos contemporizador de conflitos. Usando uma expressão muito do gosto do próprio Gilberto Freyre, o colonizador português distingue-se por sua capacidade de equilibrar antagonismos.

Na medida em que projeta tal identidade intelectual, sendo encarado e antes de tudo encarando a si próprio como o grande explicador do Brasil, Gilberto Freyre não reluta em ler e revisar certos fatos da nossa história cultural movido antes pelo desejo de reivindicar méritos próprios e discutíveis pioneirismos do que pela fidelidade aos fatos objetivamente aferíveis. Dois exemplos, em particular, merecem registro nesta exposição, já que ainda muitos dos seus seguidores mais passionais ou desatentos ratificam sua versão indiferentes à história cultural documentada. O primeiro refere-se à acusação infundada com que sempre pretendeu desmentir o caráter pioneiramente nacionalista do Modernismo ao qualificá-lo como europeizante, votado ao desprezo da tradição e das nossas características mais definidamente brasileiras. Como antes procurei ressaltar, tal acusação é sustentável na medida em que se atém à fase inicial do Modernismo. O próprio Gilberto Freyre valida meu ponto de vista quando já no fim da vida incorre em flagrante contradição ao referir-se ao assunto numa passagem do prefácio assinado para a última edição de Order and Progress:
“The beginning of a systematic search for Brazilianness (Brasileiridade) is recent, dating from the modernist movement, which originated in São Paulo in 1922 and spread to Rio two years later, and from the regionalist and traditionalist (and, in its own way, modernist) movement in Recife (1924) which gave us the first modern teaching of sociology and social research (1927) and launched the First Congress of the Study of Afro-Brazilian subjects (1934).” (Order and Progress, p. xxv).

O segundo exemplo concerne à verdadeira data de publicação do Manifesto Regionalista. Segundo Gilberto Freyre, o manifesto de sua autoria, que ele logrou estabelecer como o documento fundante do Regionalismo de Recife e, por extensão, de todo o processo de renovação nacionalista da cultura brasileira, foi lançado em 1926, durante a realização do Congresso Regionalista de Recife por ele organizado e liderado. Joaquim Inojosa, à época seu principal adversário intelectual em Recife, há anos provou com documentação irrefutável que o texto do manifesto correntemente conhecido somente foi publicado em 1952, data da sua publicação efetiva em opúsculo prefaciado pelo próprio Gilberto Freyre.

Evidentemente, estas correções em nada afetam a magnitude da obra realizada por Gilberto Freyre. Precisam entretanto ser explicitadas, e até reiteradas, por servirem, entre outras coisas, como advertência para o estudioso que por vezes acata sem qualquer exame crítico inéditos do autor publicados por ele próprio muitos anos depois da suposta redação original. O caso de Mário de Andrade, por outro lado, é de natureza totalmente oposta, pois seus inéditos de publicação tardia, no geral póstumos, foram publicados por pesquisadores que os submeteram a critérios rigorosos de apreciação textual.

Procurei acima sugerir, ainda que de forma pouco ordenada, que o nacionalismo cultural, associado à tradição lusa, permeia o conjunto do processo histórico no qual se inscrevem os dois movimentos fundamentais da primeira metade do século vinte no Brasil. Sua presença é de fato mais abrangente. Como certa feita observou Antonio Candido em uma passagem muito citada de um ensaio de síntese sobre o desenvolvimento geral da vida espiritual brasileira, nossa história tem sido marcada pela dialética do cosmopolitismo vs. nacionalismo. A atmosfera de globalização cultural agora extraordinariamente acelerada repõe esta antinomia no cerne da nossa realidade sociocultural. Ao mesmo tempo em que o país mais e mais se vincula aos circuitos de produção globalizados, assiste-se à retomada de um discurso fundado nos valores da particularidade irredutível a qualquer horizonte de natureza universalista.

A dissolução dos antagonismos ideológicos provocada pelo desabamento do socialismo totalitário em 1989 teve reflexos inevitáveis na cena cultural brasileira. Este fato, associado à recente celebração do centenário do nascimento de Gilberto Freyre, concorreu significativamente para que sua obra fosse positivamente reavaliada. Dar a Freyre o que é de Freyre é questão de justiça histórica e intelectual que os leitores e admiradores da sua obra devem saudar com entusiasmo. Do mesmo modo, importa reter da tradição firmada pelo Modernismo paulista o seu legado positivo. Em ambos os casos, o legado é indissociável de valores nacionalistas que atuaram no sentido de renovar e enriquecer nossa história cultural concorrendo, de outro lado, para a modernização social do país.

Feitas porém estas ressalvas, as questões e dilemas fundamentais clamam ainda por mudança e resolução. Dados os limites visíveis desta exposição, que são noutras palavras os meus próprios, fica à margem da argumentação aqui esboçada qualquer análise de fundo especificamente político e econômico que de resto escapa à minha competência. O que intento ensaiar nas linhas finais desta exposição é a proposição de um debate passível de em modesta medida esclarecer algo das relações complexas entre o nacionalismo cultural, a teorização sociológica da cultura e os vínculos que ambos retêm com as condições de manutenção do atraso social brasileiro. Noutras palavras, de que modo a tradição cultural acima esboçada concorre para alterar ou manter as condições de dominação e desigualdade observáveis no conjunto da sociedade brasileira? Até que ponto o ideário nacionalista brasileiro, tão múltiplo e contraditório na recorrência de suas manifestações, constitui um obstáculo para a realização de um projeto substantivo de modernização social ou exerce uma função social e culturalmente positiva?

Tentando especificar um pouco estas questões formuladas de modo demasiado abstrato, proporia que se debatesse duas das alternativas culturais propostas como meios de resolução dos nossos impasses mais dramáticos. Refiro-me à polaridade iberismo vs. americanismo. Ela tem permeado com intensidade variável o conjunto dos estudos e interpretações da cultura brasileira desde o século xix. No primeiro pólo situam-se os que reivindicam a especificidade de valores e práticas culturais originários da colonização ibérica nos trópicos e inconciliáveis com valores e práticas entendidos como especificamente europeus, sobretudo quando derivados da tradição anglo-saxônica. No segundo, em contrapartida, alinham-se os adeptos de uma incontornável integração brasileira à corrente central do Ocidente, com ênfase sobre a América de formação inglesa.
Esta polaridade desenha-se, noutras palavras, em torno de conceitos genéricos e polêmicos tais como modernidade, modernismo, modernização e derivados correntes. Os que se identificam com a permanência de valores ibéricos, ou restritamente lusos, resistem em maior ou menor grau à adoção ou aprofundamento dos nossos vínculos com o Ocidente reclamando para o Brasil uma identidade oposta aos valores do individualismo liberal; contrapondo o ludismo, a magia, a expressão emotiva e vínculos de base comunitária ao utilitarismo, à ciência e à tecnologia, às relações abstratas da gesellschaft. Emprego este termo de longeva presença na história da teoria sociológica porque, contraposto a seu avesso gemeinschaft, cristaliza as oposições e antagonismos básicos compreendidos nos dois tipos de cultura aqui considerados. Difundidos pela obra homônima de Ferdinand Tönnies, publicada em 1887, expressam idealmente, no sentido derivado dos tipos ideais propostos por Max Weber, dois modos fundamentais de organização sociocultural.

Acentuando que o português realiza nos trópicos brasileiros uma experiência de colonização inspirada pelos valores da gemeinschaft, já que a cultura hegemônica que estabiliza é regida por valores comunitários enraizados na família patriarcal e na religião católica, livremente mescladas aos valores dos grupos dominados, sobretudo o escravo africano, os iberistas caracterizam sempre como postiços ou artificiais os contatos de assimilação de valores baseados no contrato social abstrato, na impessoalidade competitiva do mercado, em suma, na gesellschaft.

Há poucos anos Richard Morse, Simon Schwartzman e José Guilherme Merquior empenharam-se numa atualização inevitavelmente polêmica do confronto iberismo vs. americanismo.O debate foi provocado pela publicação de um livro de Morse, O Espelho de Próspero, no qual ele retoma a polaridade fazendo a apologia da tradição ibérica e repelindo com veemência as características fundamentais do americanismo, ou da tradição ocidental. Talvez sintomaticamente, o livro não encontrou editor no mercado americano, sendo então publicado no México e em seguida no Brasil. José Murilo de Carvalho, um crítico mais sereno, discute a obra de Morse acentuando os aspectos considerados por Schwartzman, Merquior e Lúcia Lippi Oliveira – esta, mais limitada, contenta-se em descrever as linhas gerais do debate isentando-se de avançar juízos mais pessoais ou categóricos. Como bem observa Murilo de Carvalho,

“O desapontamento com a sociedade individualista, racional e desencantada dos Estados Unidos talvez tenha sido a motivação principal da busca empreendida por Morse de uma alternativa que ele acredita ter encontrado ao sul do Rio Grande. Aí, na América ibérica, ele julga existir uma civilização distinta, portadora de valores, ou de um foco cultural, que por serem pré-modernos não seriam menos desejáveis. Pelo contrário, por ter esta civilização escapado da reforma protestante e da revolução científica, teria preservado elementos de comunitarismo, de organicidade, de encantamento, que podem constituir alternativas ao impasse do mundo anglo-saxônico.”

Murilo de Carvalho prossegue seu comentário destacando o fato de que os críticos de Morse atacam-no seja por compor uma imagem demasiado pessimista de Próspero, seja por propor uma descrição demasiado otimista da civilização ibérica. Seu crítico mais áspero, Simon Schwartzman, toma o conjunto da sua argumentação como grave equívoco de interpretação cultural, acrescentando ser obra de conseqüências politicamente danosas para a realidade latinoamericana. Citando ainda Murilo de Carvalho,
“A valorização do comunitário, do mitológico, do afetivo, do não redutível à racionalidade ocidental, seria para esse crítico uma receita para aventuras messiânicas, para populismos autoritários.”

José Guilherme Merquior, por outro lado, encara com sérias restrições a apologia ibérica de Richard Morse. Sendo um crítico de linhagem radicalmente racionalista, portanto vinculado à tradição crítica do Iluminismo, Merquior não concebe nenhuma solução para os impasses da América Latina à margem da modernidade ocidental. Corrigindo a versão canibalista com que Morse refuta o modelo civilizacional simbolizado na figura de Próspero, Merquior repõe a versão canibalista de inspiração oswaldiana, isto é, uma estratégia de interação com o colonizador assinalada pelo espírito de absorção crítica e adaptação dos valores ocidentais. Assim procedendo, o Brasil poderia realizar-se culturalmente como uma forma específica de modulação do Ocidente, não como sua negação irracionalista baseada numa compreensão equivocada de particularidade cultural irredutível.

Concluo este roteiro um tanto errático, em parte explicável pela complexidade e abrangência da matéria aqui tratada, citando mais uma vez Murilo de Carvalho:
“(...) O caráter mais humano que Morse atribui à cultura ibérica, o maior solidarismo, seriam compatíveis com o grau de miséria social que afeta as populações do continente? Inversamente, o unidimensionalismo do homem ocidental, para usar uma expressão da Escola de Frankfurt, cara a Morse, não teria também sido responsável pela geração da vasta riqueza que trouxe para os modernos países ocidentais níveis nunca vistos de progresso e bem-estar? Não correria Morse, ao enfatizar os traços não ocidentais, ou não modernos da cultura latino-americana, o risco de aproximar-se de Gilberto Freyre em detrimento de Sérgio Buarque de Holanda, contra suas próprias declarações de simpatia pelo último?” (Pontos e Bordados, pp.402-4).

Berkeley, 21 de outubro de 2002.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Carrington e o Amor Romântico


Começo citando uma definição do famoso grupo de Bloomsbury vazada em termos de humor primoroso: “ They were couples who lived in squares with triangular relationships”. Li-a antes num livro de Michael Holroyd, biógrafo de Lytton Strachey e George Bernard Shaw, com variações que merecem registro: “...all the couples were triangles and lived in squares”. Infelizmente a definição é intraduzível, pois sua engenhosidade e witticism, falta-me termo adequado em português, é fruto precisamente de um jogo de palavras sem correspondente na nossa língua.

O parágrafo acima está longe de qualquer laivo de pedantismo. Comecei por ele por acreditar que condensa muito do que o espectador apreciará num filme como Carrington. Dirigido e escrito por Christopher Hampton, um dos meus roteiristas favoritos, o filme é livremente baseado na biografia de Lytton Strachey escrita por Michael Holroyd. Além de ser um dos membros mais típicos do grupo conhecido como Bloomsbury, por envolver um grupo de intelectuais sofisticados que se reuniam em algumas casas deste bairro onde se situam o Museu Britânico e a Universidade de Londres, Lytton Strachey (Jonathan Pryce) viveu com Carrington (Emma Thompson) uma longa relação amorosa cuja excentricidade ilustra à perfeição alguns dos valores fundamentais adotados pelo grupo. A casa para a qual convergiam os membros do grupo era a da família das irmãs Virginia Woolf e Vanessa. Depois que esta casou com Clive Bell, doravante identificando-se como Vanessa Bell (Janet Mcteer) o grupo passou a frequentar prioritariamente dois endereços: Gordon Square, onde vivia o casal Clive e Vanessa Bell, e Fitzroy Square cujo número 29, antes ocupado por Shaw, tornou-se a residência de Virginia e seu irmão Adrian Stephen.

Dora Carrington conheceu Lytton na casa de campo de Vanessa e Clive Bell. Adotando atitudes deliberadamente masculinas, cabelos cortados de modo sexualmente ambíguo, Lytton confundiu-a à primeira vista com um rapaz e sentiu-se prontamente atraído por ela. As cenas que narram esse encontro inicial transitam do cômico para o embaraçoso desdobrando-se por vias imprevisíveis. Encurtando a história, pois não é minha intenção aborrecer o leitor comprimindo o enredo do filme neste artigo, Carrington, que detestava seu primeiro nome, e Lytton se envolvem numa história amorosa de características e desfecho absolutamente singulares.

O roteiro obedece a um princípio de divisão em sessões temáticas baseadas nos personagens mais importantes da trama: Lytton e Carrington, evidentemente; Mark Gertler (Rufus Sewell), pintor então famoso cujo envolvimento tumultuoso e malogrado com Carrington acabou em ruptura; Rex Partridge (rebatizado Ralph por Lytton e interpretado por Steven Waddington) componente de um dos triângulos fundamentais da vida promíscua de Lytton e Carrington; Gerald Brenan (Samuel West), um dos amantes de Carrington; Ham Spray, a casa onde Carrington e Lytton viveram até a morte deste e o consequente sucídio dela. O título da sessão final é simplesmente Lytton.
O filme é fascinante em muitos sentidos. Destacaria, por exemplo, a forma como recria a atmosfera de convívio das pessoas associadas ao grupo Bloomsbury. Algumas cenas são filmadas em Garsington, casa de campo de Ottoline Morrell (Penelope Wilton) e Philip Morrell, que aparece na sequência em que Lytton comparece ao tribunal que o intimou a depor por defender publicamente uma política pacifista contra a Primeira Guerra. O grande símbolo intelectual desta facção foi Bertrand Russell, por isso apropriadamente citado no filme, que foi condenado à prisão. Ottoline, figura excêntrica e lendária, foi a grande amante de Russell, a que teve o poder de desatar as amarras racionalistas do matemático que acabou se tornando o sátiro supremo da pouco libertina intelectualidade inglesa.

Já que aludi a Russell enfiando na alusão dois termos porejantes de sensualidade, um dos pontos fortes do filme é precisamente a vida sexual promíscua de Carrington e Lytton para muitos ainda hoje chocante, apesar da fachada permissiva de muitos moralistas que aparecem na televisão praticando a mercantilização dos costumes. Intentando ser breve na exposição deste assunto, volto ao parágrafo inicial deste artigo detendo-me nas relações triangulares compreendidas na definição do grupo de Bloomsbury. O filme compreende muitas relações triangulares, para não falar de outras que não saberia como adequadamente designar. A primeira compreende o trio Carrington-Lytton e Mark Gertler; a segunda, Carrington-Lytton e Ralph Partridge; a terceira, Carrington-Ralph e Gerald Brenan; a quarta, Carrington-Ralph e Frances, que mais tarde casou com Ralph; a quinta, Carrington-Lytton e Beacus (Jeremy Northam). Algumas dessas relações seriam quadrangulares, se compreendêssemos a relação amorosa entre Carrington e Lytton como uma relação sexual isenta de relação genital. Dentro desse mesmo critério, outras ainda seriam triangulares. Penso, no caso, nas várias relações homossexuais de Lytton mencionadas ou mesmo explícitas no filme.

Condensada a rede de relações eróticas no parágrafo precedente, cabe agora introduzir o que me parece ser o aspecto mais original do filme. Como explicar que um amor tão excepcional quanto o de Carrington e Lytton tenha perdurado até a morte? À parte o enredo acima esquematicamente descrito, que pode sugerir ao leitor moralmente estreito um filme de sacanagem, Carrington e Lytton tinham uma qualidade rara nas histórias amorosas do seu e do nosso tempo: a que os tornava capazes de aceitar o outro amado tal como é. Esta expressão está demasiado corrompida pelos arroubos românticos de amantes que inconscientemente a repisam de pés e corações juntos: amo você como você é. Isso dura até o momento em que o outro ousa revelar-se tal como é.

Há no filme uma cena na qual Carrington comenta com Lytton os transtornos que lhe causam o amor exigente e possessivo de Gerald Brenan. Depois de justamente ressaltar o mal que os idealistas de qualquer natureza causam ao mundo, Lytton faz uma crítica devastadora e certeira ao amor romântico. Observa, noutras palavras, que as pessoas que se amam passionalmente não devem viver juntas. Se o fazem, ou o amor acaba, corroído pela rotina e outros venenos letais da realidade, ou um amante enlouquece o outro. Penso que aí radica o cerne do filme. O amor que Carrington e Lytton compartilham é singular e a tudo sobrevive, até à frustração dolorosa sofrida por Carrington - que ama e devotadamente aceita amar e servir a um homem incapaz de lhe dar amor sexual, filhos e tudo mais que uma mulher apaixonada deseja – porque ambos se aceitam e se querem como são, ambos acolhem a medida imperfeita do amor humano.

Carrington amou devotadamente Lytton e desejou com ele viver dimensões impossíveis do amor passional, mas era uma mulher de personalidade notável. Ainda jovem, tinha consciência do malogro do casamento, do que há de sórdido e hipócrita no amor casado e corroído pelas engrenagens insidiosas da instituição e da rotina. Há cartas dela, ainda jovem, reveladoras dessa consciência arguta e corajosa. Tinha noção bem crítica do que era o casamento dos seus pais e nunca quis para si própria uma vida de amor convencionalmente casado. O filme, por outro lado, é em muitos momentos revelador da consciência que ambos tinham dos limites e imperfeições do amor. Isso decerto explica o bom senso e o pragmatismo com que negociam e contornam conflitos amorosos previsivelmente comuns na experiência erótica tão promíscua que viveram. Aposto como os moralistas sentimentais se arrepiam diante das cenas em que desatam conflitos decorrentes das demandas e turbulências geradas pelos amantes com quem se envolvem valendo-se de recursos como o egoísmo esclarecido e a franca negociação dos interesses que os românticos encaram como sórdidos e incompatíveis com o amor.

Sabemos que o ideal do amor romântico, de longeva existência cujas raízes modernas remontam a Rousseau e outros românticos da segunda metade do século 18, está vazando água por todos os canos e juntas. No entanto, a maioria das pessoas, sobretudo as mulheres, resiste às evidências gritantes da realidade. Vivendo numa etapa do capitalismo de consumo hedonista que funciona no sentido de promover a realização com frequência ilusória da felicidade compreendida num sentido ferozmente narcisista, continuamos atados à idealização romântica do amor. O clichê que melhor sintetiza esse delírio neurótico da felicidade perseguida através do amor romântico é a frase: encontrar minha alma gêmea. É preciso uma poderosa força de autoengano para acreditar nessa ficção que não resiste a um minuto de análise sensata. Aspirar à fusão com a alma gêmea é claramente aspirar a si próprio, ao amor narcisista que se consome na fantasia de reduzir o outro à nossa imagem e semelhança. Isso me parece assim clamorosamente evidente e todavia milhões de pessoas continuam vivendo embaladas por esse sentimentalismo barato, por essa compreensão absurda e desonesta dos sentimentos amorosos, da intimidade amorosa. Os amores se desmancham como sorvete exposto ao sol dos trópicos, os casamentos se dissolvem em traição, hostilidade e ressentimento, mas continuamos devorando a porcaria sentimental e hipócrita que nos vendem como mercadoria a serviço da felicidade. Basta pensar na produção em cadeia de revistas sentimentais e baratas, na engrenagem da ficção folhetinesca difundida em escala global pela mídia.

Ouça um bom conselho que lhe dou de graça: inútil refugiar-se no amor aos cachorros, gatos e outros objetos de projeção narcisista do amor nutrido pela engrenagem feroz desse sistema reificador das relações amorosas. É inútil porque a dor não passa, a dor produzida pelo amor romântico nutrido por fantasias como o encontro da alma gêmea não cessa de doer. Além disso, nosso destino humano é o outro. Não há aqui nenhuma alusão ao humanismo sentimental, que é de resto uma variante do sentimentalismo desonesto que corrói o amor romântico. Afirmo que nosso destino humano é o outro porque, gostemos ou não, é no convívio, na busca e no encontro e nos desencontros com o outro que realizamos nossa condição humana. Nesse sentido, acho que Carrington poderia ensinar-nos algumas lições preciosas acerca da sobrevivência do amor numa época de individualismo feroz, de narcisismo e consumismo infrenes absolutamente incompatíveis com os ideais de amor que nutriram os três últimos séculos da cultura ocidental.
Recife, 4 de fevereiro de 2011.