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domingo, 16 de julho de 2017

No Mural do Facebook XXXII


Esperança e apatia:

Esta é uma verdade óbvia: um país, sobretudo bem sucedido, é fruto da ação coletiva da maioria. No Brasil, entretanto, poucos se dão conta disso, poucos agem norteados por esta verdade. Aqui é o país da esperança. E a esperança, também é óbvio, é no geral passiva. Poucos dizem: tenho esperança num futuro melhor e por isso vou lutar para que se realize. A verdade é o oposto. Quando invocamos a esperança, é porque nos sentimos impotentes diante da realidade.
No Brasil, país da esperança, vivemos, desde Dom Sebastião, daí o famoso mito sebastianista, a espera da volta ou milagre do pai salvador, do herói redentor, do Estado provedor. Em face da natureza, dos desastres e do caos que produz, notadamente por força da nossa baderna social, invocamos a ação divina, ou a de algum santo. As chuvas juninas no Nordeste, sempre devastadoras, são obra e solução celestial.
Por isso não me canso de dizer: o Brasil é muito atrasado, um escravo da força da tradição. Quando a coisa sai dos eixos frouxos que sustentam nossa sociedade anômica (privada de ordem civilizacional efetiva), esticando a corda da insegurança e do desespero, então apelamos até para o ditador que, na nossa mentalidade de servos, é o restaurador da ordem e do progresso, um insulto que pregaram na bandeira nacional. Como alguém já disse aqui no Facebook, é deprimente ler o que escrevo. Concluindo, o problema é o meu psiquismo depressor ou deprimido, não o país incapaz de realizar um projeto de real modernidade.
(Publicado no Facebook, 1 de julho de 2017).

O mal é estrutural:
Quase sempre deixo claro que não critico os impasses políticos e econômicos brasileiros restrito à sua esfera. Nossos problemas fundamentais, que remontam à nossa origem e nunca foram efetivamente enfrentados, são de ordem estrutural. A injustiça e a violência, a desigualdade iníqua e nosso atraso crônico, são apenas sintomas de nossas irresoluções estruturais. Sem reformas profundas nas esferas essenciais da sociedade, nunca seremos uma nação verdadeira, nunca uma democracia moderna. Os males estão em tudo, inclusive na esfera das relações íntimas, a começar pela família.
Já me cansei de afirmar que, bem longe desses mitos consoladores que envaidecem nossa mentalidade nacionalista e provinciana, somos uma sociedade anômica, isto é, privada de normas que imprimam sentido à nossa existência social e individual. Com ou sem a podridão que vaza de todos os esgotos do poder político, quase nada no Brasil funciona, ou funciona segundo princípios básicos de respeito aos direitos humanos, à efetiva noção de cidadania, à interação de cidadãos de fato, não de letra vazia gravada na Constituição e nos códigos que são modelos de modernidade. Mas isso existe e sempre existiu no papel. E papel, dizia Graciliano Ramos, que sofreu a brutalidade real avessa à letra da lei, papel aceita tudo. O que não nos falta é lei para tudo, tudo bonitinho no papel. No mundo real, somos ainda um fazendão de bacharéis e doutores, de mandantes e subordinados.
É óbvio que a realidade é muito mais complexa. O fazendão tem tecnologia de ponta, medicina idem e muito do que de mais avançado proveio e prevalece nas nações modernas. Mas o que de fato importa é que essa modernidade periférica se realiza sem superar as forças retrógradas e contrárias a tudo que em princípio é símbolo dos avanços e aperfeiçoamentos da ordem social contemporânea. Aqui a arquitetura de ponta se eleva espremida entre mocambos e favelas; o carrão top, provido da tecnologia mais avançada, esbarra no carroção do catador de lixo, o luxo e o lixo são indissociáveis, atrelados numa imagem de horror surreal que dissolve todas as teorias explicativas. Nem somos atrasados nem modernos. Por isso Kafka e sua imaginação ambígua e profética estão praticamente ausentes de nossa literatura. Quem precisa de literatura kafkiana quando ela é nossa própria realidade?
(Publicado no Facebook, 6 de julho de 2017)

A sensação de morrer:
Já ouvi vários relatos relativos à visão ou sensação de morrer. Há quem tenha visto uma figuração do céu ou além; há quem tenha ressuscitado convertido a alguma fé e experiências ou visões semelhantes. A minha, de alcance bem menos místico ou extremo, foi de uma serenidade indescritível. Depois de escapar por milagre de uma violenta colisão, provocada por uma amada seduzida pelo extremo da vida e da droga, voltei a mim numa sala de hospital entre máquinas congeladas (era a minha sensação).
De repente, tive uma estranha sensação de morte. Achei que estava morrendo. Só que essa sensação não me causou nenhum medo ou pânico. Pelo contrário, foi a maior experiência de serenidade e paz que senti na minha vida. Daí, salvo do desastre e da morte, mais tarde deduzi que a morte em si nada tem de aterrorizante nem anunciador de qualquer transcendência religiosa. Isso não quer dizer que me libertei do medo da morte. Reflito sobre ela com frequência e isento de medo. A ela devo alguns dos melhores poemas e meditações que escrevi. Nada mais além disso. Epicuro dizia não haver motivo para temê-la, pois quando somos ela ainda não é e quando ela é, já não somos. A formulação metafísica é bela, mas duvido que nos reconcilie com o medo da morte. São raros os que morrem com a serena coragem de Sócrates, Montaigne, Epícuro e os grande estoicos.
(Publicado no Facebook, 15 de julho de 2017).

Um mundo enfermo:
Detesto medicalizar a sociedade, até por por reconhecer a distinção elementar entre indivíduo e sociedade. Mas não há dúvida de que estamos vivendo numa sociedade doente. Grande parte da nossa doença individual, dos sintomas patológicos que sofremos, deriva de um estado de anomia e aridez espiritual que tem raízes socioculturais. Poderia expor uma infinidade de evidências para que isso não pareça mero subjetivismo.
Antes de tudo, a história humana foi sempre mutável. Algumas das suas crises mais profundas foram fundamentais para a renovação da sociedade. Esta que vivemos, no entanto, é de uma aceleração e de uma profundidade sem precedente. No curto intervalo de uma geração ocorreram mudanças para as quais somos incapazes de nos adequar positivamente. Estamos doentes porque a sociedade está doente.
E o mais grave é constatar que não sabemos o que fazer da nossa desorientação, do nosso desgoverno, do nosso mergulho sem âncoras em direção a um país cujo abismo não tem fundo. Sei que tudo isso que escrevo é deprimente, mas é real. Estou vivendo isso todos os dias, dentro e fora de mim. Quem quiser ou precisar, que se engane. Desafio qualquer gênio ou deus a assinalar uma saída para o caos em que vivemos.
O povão, regido pela alienação do rebanho, não está nem aí. Quanto mais o abismo se abre, mais fazem festa, se drogam, desprezam a realidade. Quanto à " elite", que Evaldo Cabral de Mello, justamente chama de clientela, escava ainda mais o abismo. O mais grave é a indiferença humana que se agravou, fruto da tecnologia digital. As pessoas estão cada vez mais solitárias e desamparadas. Por isso amam gatos e cachorros. Privados biologicamente de liberdade, estes são mais dóceis e servis ao nosso egoísmo. É isso aí. Deprimente ou não, é assim que grosseiramente percebo o mundo em que vivemos.
(publicado no Facebook, 16 de julho de 2017)

segunda-feira, 12 de junho de 2017

No mural do Facebook XXXI


Os males do Facebook:
Os poucos que me concedem atenção no Facebook por certo já notaram que deixei de falar de política, o assunto dominante na rede. Confesso que a maior parte do que vejo, há muito deixei de ler, não tem nenhum sentido para mim. Antes que me acusem de omissão, como já o fizeram, não acho que tagarelar compulsivamente sobre toda essa lama, essa bandidagem que afunda o Brasil, seja participar da política no sentido de orientá-la positivamente.
Os poucos que me leram, e no geral convergem com minha perspectiva política, assim como no modo de praticá-la na rede, sabem muito bem o que penso. Já postei aqui com nitidez o que penso de todo esse processo de degradação da política e do país. Tanto é verdade, que perdi vários "amigos" ou oponentes ideológicos. Também fui com frequência incompreendido por opinar isento de qualquer vinco de intolerância ou partidarismo.
Sempre concebi e usei o Facebook como uma tribuna de livre opinião, um exercício de reflexão pública. Em suma, queria doar meu grão de civilidade à barbárie na qual vivo sitiado. Por isso não acho que a linha dominante do que falam, denunciam e até caluniam concorra em nada para melhorar nossa interação e o estado inqualificável da nossa crise política cada vez mais degradada e degradante.
Isso tudo que há de negativo tornou-se apenas conversa de salão no pior sentido do termo, isto é, tagarelice dos que se associam para verter o que a realidade e eles próprios têm de pior. Aliás, muitos assim procedem por não saberem o que fazer de suas vidas, do seu tempo diluído em aridez e futilidade.
Ao escrever isso, e sobretudo declarar meu distanciamento ainda maior (continuarei lendo e ocasionalmente comentando apenas o que corresponde à escolha da minha liberdade ética e subjetiva), estou me tornando ainda mais isolado socialmente. Privado de viver uma vida normal, a rede virtual era (é) meu vínculo principal com as poucas pessoas que são parte da minha vida.
Mas que fazer? Quem escolhe sua liberdade possível, cada vez mais difícil, escolhe também o preço que ela implica. Enfim, amigos do Facebook, estou saindo ainda mais. De resto, poucos notarão esse fato e aceito que assim seja.
(Publicado no Facebook, 27 de maio de 2017).

O reinado da psicologização:
No início dos anos 1960 Philip Rieff escreveu sobre a emergência da cultura terapêutica, ou do homem psicológico. Sua antevisão é hoje incontestável. Hoje tudo parece ser explicável ou diagnosticável pela psicologia. A evidência orgânica da doença, comprovada por exames sofisticados, não isenta o paciente de ouvir este diagnóstico fatal: seu problema é de cabeça, ou emocional. Os médicos também incorrem nesse diagnóstico, sobretudo quando não sabem o que fazer com o paciente e seus males. Afinal, apesar da soberania profissional e cultural que passaram a exercer, sua suposta ciência é bem mais inexata do que presumem muitos dos seus críticos.
Tenho um amigo sofrendo de problemas orgânicos inquestionáveis. Como a doença alterou radicalmente sua vida, hábitos, formas de convívio etc, é evidente que há no seu quadro clínico fatores psíquicos cuja apreensão depende apenas de bom senso. Mas o problema é que médicos, amigos, no geral com a intenção de o ajudar, invocam reiteradamente os fatores psíquicos. Tanto o fizeram que ele concordou em tomar um antidepressivo. Se estava mal, ficou ainda pior.
Saltando para outros contextos, já me cansei de ouvir amigos falando apreensivos da depressão de filhos ainda crianças. Hoje mesmo um me disse que a filha, com apenas 11 anos de idade, está tomando medicação antidepressiva. O sofrimento da perda de alguém que amamos também passou a ser diagnosticado como depressão. Poderia multiplicar os exemplos ao infinito. Vários presos da Lava Jato foram diagnosticados como padecendo de depressão, alegação usada por seus advogados para que fossem libertados. Enfim, Philip Rieff anteviu esta banalidade: a psicologização da nossa cultura, da doença em geral, de estados emotivos que são simplesmente parte constitutiva da natureza humana. Quem perde um amor sofre, se entristece, pode até ficar deprimido. Mas agora a depressão tornou-se um conceito clínico que passou a recobrir e supostamente explicar todos esses sintomas. Como todo absoluto, acaba não tendo mais nenhuma operacionalidade. É como afirmar, como tantos já o fizeram, que tudo é político. Ora, como explicar a realidade na sua totalidade com um conceito de sentido absoluto? Uma coisa acaba anulando a outra.
(Publicado no Facebook, 07 de junho 2017).

O que é democracia?
A democracia não é apenas um regime regido por valores e práticas restritos às instituições políticas. Ela só existe verdadeiramente quando esses valores e práticas se tornam normas correntes balizando o conjunto das nossas relações sociais. É por isso que a Inglaterra, o país mais democrático que conheço, nunca teve uma Constituição formal. Ela é fruto de uma longa e complexa invenção coletiva.
É devido às razões acima grosseiramente esboçadas que insisto em dizer que não somos, nunca fomos uma democracia. Basta observar questões fundamentais como o exercício dos direitos humanos, a relação entre o Estado patrimonial e os direitos individuais, a relação essencial entre a realidade e o que prescrevem as leis do país. Estamos cansados de ler e ouvir os que falam do divórcio real entre o Brasil real e o Brasil legal. No papel somos, sim, uma democracia. Mas papel aceita tudo, como dizia Graciliano Ramos, que amargou de muitas formas o gosto da nossa democracia.
É também devido à definição grosseira de democracia aqui proposta que não me canso de citar os grandes intérpretes do Brasil, notadamente Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Se o faço, é porque tiveram fina percepção do país baseados nos princípios da história de longa duração, na relação entre as instituições sociais e a vida cotidiana. É nesta que melhor captamos nossa "democracia". Seremos uma democracia quando o povo for capaz de a inventar não apenas reformando radicalmente as instituições políticas, mas praticando-a nas práticas e valores cotidianos.
(Publicado no Facebook, 10 de junho de 2017).

quinta-feira, 1 de junho de 2017

No mural do Facebook XXX


A solidão da noite:
Acesso o Facebook porque neste momento me sinto muito sozinho, sofrendo um modo de solidão raro. Previa encontrar a tagarelice política de sempre. Também eu me indigno, me desolo assistindo a tudo isso que vai ao mais fundo esgoto do país. Mas essa obsessão com tudo que há de podre no que estamos vivendo não é também um sintoma da aridez das nossas vidas? Vejo tanta gente solitária e infeliz, tanta gente carente de amor, amizade, dos gestos de humanidade que dão sentido a nossas vidas. Mas quase todos se prendem a tudo que há de pior na nossa realidade, aos apelos de mudança e justiça abstratas enquanto nos ignoramos e mudamente acenamos para o vazio na solidão das ilhas que habitamos.
Queria simplesmente uma voz amiga, alguém em quem me reconhecesse e reconhecesse minha humanidade, um modo de vida e país que estão devastando. Estou nauseado de tanto ler ou ouvir falar dessa política suja, de todos esses bandidos que estão destruindo o que resta de vida bela e decente neste país. E assim, solitário e carente no deserto da cidade sem gente, me perco do meu senso de discrição e privacidade e assim desabafo sem esperança de um eco humano que replique: "Aqui, Fernando, aqui também fala no deserto da noite outra voz carente de humanidade, de um senso de presença e delicadeza que estamos suprimindo do solo quotidiano de nossas vidas".

Qual é a sua droga?
Drummond escreveu num poema que cada um tem sua droga. A dele, está no poema, é a poesia. Freud morreu viciado em charuto. Fumava uma média de 20 por dia mesmo sofrendo estoicamente de câncer na mandíbula e mais de 30 cirurgias durante seus últimos 16 anos de vida. Também ele dizia: o ser humano não pode viver sem algum tipo de droga. Qual é a sua?
Tenho as minhas e algumas são muito saudáveis. Sem elas, minha vida seria mais infeliz, ou menos tolerável. Portanto, deixemos que cada um viva de suas drogas. Mas escolho meus drogados.
Confesso que ando fugindo dos drogados pela política. Estes parecem ignorar que atacando, perseguindo, odiando todos esses bandidos incontáveis, os que convertem a grandeza da vida em esgoto e sarjeta, estes indignados obsessivos estão injetando o que a vida tem de pior no recesso da sua liberdade, naquela esfera única de nossas vidas onde podemos ser mais livres e saudáveis.
Jamais permiti nem permitirei que esse esgoto da vida contaminasse o melhor do que sou, vivo, penso, compartilho com os que elegi para fazer de minha vida algo melhor. Pense nas drogas que você injeta na sua subjetividade. Pense ainda em se curar ou pelo menos manter à distância tudo que você odeia e deforma sua percepção e vivência da realidade. Saiba que, se não fizer isso, a vítima maior será você. Por isso quero ser fiel ao cultivo do meu jardim,como diria Voltaire. Todos os dias rego algumas drogas preciosas. São elas que conferem sentido e beleza à minha vida.
(Publicado no Facebook, 20 de maio de 2017).

A inconsciência nacional brasileira:
Quando Macunaíma perde Ci, a Mãe do Mato e único amor de sua vida, e em seguida a muiraquitã, pedra mágica presenteada pela amada, viaja para São Paulo à caça do Gigante Piaimã, que se apropriara da pedra. Antes, porém, deixa a consciência na ilha de Marapatá.
Segundo a lenda, os que iam para a floresta amazônica explorar os seringais deixavam a consciência na ilha antes de mergulhar na aventura em busca da riqueza. Aventurar-se voluntariamente sem consciência significa fazer qualquer coisa por dinheiro. Pensemos aqui nos "seringueiros" da nossa classe dirigente. Depois que mata o Gigante e retorna à floresta, Macu vai recolher a própria consciência, mas não a encontra. Então pega a de um hispano-americano e se dá bem do mesmo jeito. Sei que é possível ler o texto de muitos modos. O que ressalto é que também traduz a inconsciência do herói da nossa gente.
Precisei espremer o contexto do meu argumento para chegar ao presente que mais importa. Estamos mergulhados na mais grave crise da nossa história republicana, que aliás, nunca chegou a ser isso. Num país cujo povo tivesse consciência nacional, haveria no mínimo uma reação popular que forçaria uma mudança radical. Aqui, no entanto, a maioria, assiste ainda bestificada (como diz certa frase famosa sobre a Proclamação da República, que não passou de um golpe de Estado) à podridão sem precedente vazando dos esgotos e invadindo as ruas.
O povo continua bestificado. Imaginem como reagiriam os corinthianos, por exemplo, se o time caísse para a 2a. divisão, ou simplesmente fosse ameaçado por tamanha tragédia. O povo no Brasil continua constituindo unidade nacional se se trata de futebol ou carnaval. O que estamos vivendo é para mim uma prova de que estamos ainda longe de constituir, enquanto povo, uma entidade nacional.
(Publicado no Facebook, 24 de maio de 2017).

quarta-feira, 24 de maio de 2017

No Mural do Facebook XXIX:


A beleza pura:
A beleza que mais amo e cultuo é a beleza pura, isto é, isenta de adereços e artifícios. Ela é como é, transparente como a luz que a revela na pureza das linhas em que é moldada. Refiro-me antes de tudo à beleza da mulher, que é a forma suprema da beleza. Contemplá-la adormecida, ou acordando tocada pela primeira luz do dia, foi sempre um momento de mistério e emoção inefável na minha vida.
Produto e expressão da natureza, ela é mutável como tudo que é da ordem da natureza humana. Portanto, muda sem dissimular o seu ser mutável. Infelizmente, no mundo de simulacro em que vivemos, ela é cada vez mais rara. Hoje, até na plenitude do seu esplendor ela já não se contenta com sua forma de esplendor. Por isso quer sem além do que é e acaba sendo apenas simulacro, além de valer-se de todas as formas de artifício para ser o que apenas parece. Por isso nunca é.
(Publicado no Facebook, 30 de abril de 2017).


Relendo Macunaíma
Ci, ó Ci, ó Mãe do Mato
Gemia Macunaíma,
Imperador da Amazônia,
Amor primeiro, ó Ci
Nunca terá companheiro.
Seja no céu, seja aqui
És meu gozo e cativeiro.
(Publicado no Facebook, 7 de maio de 2017).

Nossa orfandade política:

Embora tão grande e velho, meu Deus, o Brasil continua sendo um país de órfãos políticos. Digo um porque o fenômeno é extensivo à América Latina. Não explicito as raízes históricas desse fenômeno (dissecado, entre outros, por Octavio Paz) porque aqui a gente tem que ser curto (não falta quem seja curto e grosso).
O mito do rei Dom Sebastião, lá dos fins do séc. 16, continua bem vivo no presente. O povão, o povo e até a maioria da nossa suposta intelligentsia aguarda ainda o salvador da pátria. Já houve muitos e outros virão, à esquerda quanto à direita.
E assim vamos à deriva variando do delírio otimista à perplexidade expressa em frases que deveriam ser gravadas na nossa bandeira cujo lema, aliás, deveria ser Desordem e Regresso. As frases? Por exemplo assim: Que país é este? Por que o Brasil não deu certo? Por fim há também as frases consoladoras do tipo: Deus é brasileiro; Brasil, país do futuro; Com jeito vai; Deus é fiel...
Nenhum país é fruto de um pai salvador. Nenhum país se constrói vivendo de ilusões consoladoras. O verdadeiro agente fundador de qualquer país é o seu povo. Portanto, o que precisa mudar é a nossa mentalidade, as nossas instituições, a consciência coletiva. Em suma, a conversão do órfão em sujeito da sua história.
(Publicado no Facebook, 9 de maio de 2017).

A história tem sentido?

Observo de passagem os posts em louvor da família, do dia das mães, de todos os valores típicos da sociedade burguesa que os rebeldes da minha geração queriam destruir. O auge dessa "onda revolucionária" (com as devidas aspas) foram os anos 1960 e 1970. Também joguei esse jogo com razões pessoais ponderáveis, pois minha família se desintegrou de fato. Mas conheci muita gente careta (como dizia a gíria da época) que não passava de rebelde financiado. Quanto a esses, nunca me enganei. Sabia que voltariam para casa e para o aconchego do mundo burguês tão logo a chuva passasse. Escrevi alguns artigos dizendo isso no jornal anarquista O Rei da Notícia. Aliás, era anarquismo patrocinado pelo Estado, o que é típico do Brasil.
Saltando para o presente, há muito noto que todo mundo se reacomodou com total inconsciência no mundo que negava radicalmente. Parece que a real herança daqueles anos loucos e inconsequentes foi o vale tudo em que passamos a viver. De fato, reduzimos a poeira os valores mais sólidos da família e das instituições integradoras dos indivíduos na sociedade, mas voltamos a celebrar a família e tudo que ela tradicionalmente representava como se tudo fosse como antes. Parafraseando Shakespeare, inconsciência, teu nome é Brasil.
(Publicado no Facebook, 16 de maio de 2017).

O Horror, o horror:

Sei que esta frase aparentemente banal já está mais do que banalizada. Ela condensa o sentido de O Coração das Trevas, de Joseph Conrad, uma das obras fundamentais da literatura moderna. Corro os olhos pelos comentários do Facebook, quando o Brasil mergulha cada vez mais no abismo, e me desola a aceleração da histeria maniqueísta. Noutras palavras, tudo serve de munição para o Fla X Flu ideológico que já não suporto. Poucos vislumbram o horror perpetrado pela classe dirigente que governa este país há séculos garroteando e alienando o povo.
horror parece a muitos invisível ou até inexistente, fruto da imaginação de quem leu Conrad em excesso. Mas ele lateja e sangra nas ruas, nos hospitais, nos crimes inomináveis praticados por um Estado parasita e cruel. Ele depreda e impede qualquer processo efetivo e sustentável de reformas substanciais que nos libertariam da canga do passado, do horror que condena à miséria e ao desamparo um país rico onde a riqueza criminosa e a bandidagem nos condenam à condição de uma republiqueta de terceira classe. É esse o horror que governa o Brasil.
(Publicado no Facebook, 19 de maio de 2017).

sexta-feira, 28 de abril de 2017

No Mural do Facebook XXVIII


A barbárie é nossa:
Em 2010 a universidade tornou-se já uma provação para mim. Provação intelectual, humanista, estética... Em suma, ela cotidianamente negava todos os valores que nortearam minha vida. Esses valores se foram compondo em plena ditadura. Fui trabalhar numa fábrica (não era, nunca fui comunista) e dentro das condições mais adversas nutria a convicção de realizar os ideais humanistas assimilados através da literatura e da melhor tradição cristã, iluminista e marxista. Que dizer do que é o Brasil hoje?
Meus ideais igualitários implicavam, por exemplo, a crença na aliança entre o melhor da tradição erudita e a popular. Como todos os grandes humanistas, de qualquer vertente, acreditava que lutar por um mundo melhor era realizar uma conciliação para o alto, não para baixo, democratizar o melhor, não o pior. Que dizer do Brasil de hoje? Hoje, e desde muito, sinto-me um completo estrangeiro no Brasil e em muito do mundo que consigo apreender.
Essa reflexão grosseira decorreu de um mero acaso: acabo de assistir a um show de Joyce no You Tube revivendo a música de Sidney Miller, que desde muito é apenas o nome de uma sala de show no Rio de Janeiro. Dentre todo mundo que conheço, João Rego é o único que conhece e canta Sidney Miller. Eu, que conheci a música de S. M. trabalhando numa fábrica, pensei que ela tinha acabado com o esquecimento dele na história da nossa música. Foi comovente ouvir músicas que nem sabia que ele havia composto depois que o mundo e o Brasil começaram a deslizar barbárie abaixo. Não faltará quem leia, se é que lerão, estas palavras como expressão de um humanista deprimente. Deprimente é a realidade que se tornou nossa. Tão nossa que se fez membro eleito pela família. Não tenho família. Aliás, tenho e sempre terei: os ideais humanistas que elegi e morrerão comigo. Ainda que nada mais me reste.
(Publicado no mural do Facebook, 27 de abril de 2017).

A barbárie é nossa - II
Alongo meu post precedente porque, entre outros mal-entendidos, incorri num lapso tão óbvio que me espanta o fato de tantos o lerem ao pé da letra e, pior, deduzirem coisas que o texto não autoriza. Não sou ainda imortal, mas também não tão velho para me desiludir com a universidade em 1910. Não bastasse tanto, houve quem concluísse que acredito em Idade de Ouro. Suponho que a minha teria então acabado em 1910.
Já que me leram com tanta imaginação, vou espichar a minha. A única coisa que poderia justificar o fim da minha suposta Idade de Ouro em 1910 seria a frase célebre de Virginia Woolf segundo a qual o caráter humano teria mudado neste ano. Como ela não apresenta nenhum argumento convincente, desmancho o que nem me passou pela cabeça.
Queria portanto deixar claro que meu humanismo é negativo, pessimista, como queiram chamá-lo os que continuam acreditando que somos uma espécie destinada a realizar algum ideal grandioso de humanidade reconciliada. Quando jovem, tolo como todo jovem, nutri esse tipo de humanismo. A experiência refletida levou-me a revisá-lo radicalmente. Nem sequer acredito em felicidade individual como um estado durável, muito menos permanente. Como então acreditaria ainda em Idade de Ouro?
Por fim, meu mal não é a pressa diante da história. Pelo contrário, se alguma coisa aprendi com ela foi precisamente a relevância da longue durée e a infinita inventividade do ser humano para tramar catástrofe e nada aprender com a história. Na minha adolescência me ensinaram uma das definições mais insanas da história: a mestra da vida. Ora, a história é feita por uma espécie antes de tudo insensata, doente de compulsão repetitiva e desmemoriada ou ignorante.
(Publicado no mural do Facebook em 27 de abril de 2017).


quinta-feira, 20 de abril de 2017

No Mural do Facebook XXVII


A cultura da depressão:
Nos anos 1960 Philip Rieff escreveu um livro antecipando o advento da cultura terapêutica, hoje uma banalidade transpirando sintoma a olhos vistos. Dentro dessa cultura, a depressão ocupa lugar especial. Há uns 20 anos, participei breve e discretamente de um trabalho em favor de reformas no Hospital da Tamarineira, Recife. Dentre outras atividades, fui debatedor com psicanalistas e psiquiatras num ciclo intitulado: Depressão: a doença do século XXI. E por aí anda ela, tão onipresente e banal que é confundida com tristeza, outros sentimentos naturalmente humanos e portanto banalizada ao extremo do irreconhecível.
Há até indícios de que está migrando para o terreno da crítica social. Noutras palavras, se você é um crítico negativo, se intervém no debate público (sejamos condescendentes) adotando posições autônomas e assim resistentes ao enquadramento no jargão ideológico reinante, não se espante se for lido num registro psicologizante alheio à matéria da sua crítica. Se escrevo algo que contraria ou ameaça as certezas e defesas psíquicas do leitor, ele salta do texto para o autor qualificando-o como depressivo.
Ora, se lhe causo esse mal involuntário, bem mais prático é ignorar o que escrevo e deixar minha "depressão" em paz. Abusar de um termo como o fazem, serve apenas para banalizar e corromper o sentido cada vez mais precário da semântica que rege a cadeia de sentidos que precisamos tecer para conferir direção à nossa vida. No mais, conheci e acompanhei de perto os infernos psíquicos de pessoas verdadeiramente vitimadas pela depressão. Não degradem o sentido da experiência tão dolorosa e desesperante dessas pessoas confundindo-as com minhas doenças benignas.
(Publicado no Facebook. 22 de janeiro 2017).

A dor de ser, disse alguém
Congela as águas do mar.
Tudo que morre quer ser
Tudo que é ser, acabar.

A dor ensina:
A doença prolongada e semi-incapacitante abalou-me muito e me fez revisar muito do que penso. É difícil suportar a doença quando se vive só e habituado a cuidar de si próprio. Não sei se a dor e a solidão involuntária, quase isolamento, ensina alguma coisa. Sei que não quero nunca tornar-me um ressentido, remoendo frustrações ao constatar o quanto nossas supostas amizades e afetos são falíveis. Procuro fixar-me no que a doença me propicia de revelação humana comovente. Antes de tudo, a bondade dos estranhos, sobretudo dos humildes, cujo sofrimento humilha minha fraqueza. Agora compreendo melhor o que Montaigne e Tolstói queriam dizer quando tomavam os pobres e oprimidos como modelo de sabedoria. É comovente ver o quanto é doloroso e humildemente heroico o cotidiano dessas pessoas. Não apenas suportam estoicamente a privação e a dor, mas são solidárias, generosas sem cálculo. Elas e a minha dor me ensinam que a mais bela virtude humana é a bondade, a compaixão desinteressada.
(Publicado no Facebook, 09 de abril 2017).

Fatos e Versões:
Fatos são versões. Aristóteles: O homem é um animal racional. É na medida em que somos a espécie biologicamente mais dotada para o exercício da razão. Adotar este fato como fundamento da definição de um ser é um erro, pois somos escravos das paixões. Nietzsche: não existem fatos, existem versões. Se você acredita que a Lava Jato é uma versão, não importa a razão, ela será o que você quiser. Mas isso tem consequências. Freud: o princípio da realidade é imperativo. Você pode acreditar que fatos são versões e fazer dos primeiros o que convier a seus interesses e convicções partidárias, religiosas etc. Mas a podridão do fazendão chamado Brasil é um fato. Acredite no que quiser e lhe convier; lute pela versão que corresponder à paixão dos seus desejos. Os fatos são fatos. Portanto, existe pelo menos uma verdade imperativa: a verdade factual. Se a sua paixão adota o partido das versões, você está objetivamente contribuindo para destruir um país que já não tem o que destruir.
Publicado no Facebook, 13 de abril 2017).



segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

No Mural do Facebook XXVI


Consciência e alienação:
Tudo já foi dito, mas importa repetir o que não deve ser esquecido ou é ignorado pela maioria. Esta é de Bernard Malamud: Não é a loucura que põe o mundo às avessas, mas a consciência. Revolucionou a minha quando eu era jovem e vi o filme O homem de Kiev, baseado no livro cujo título é The Fixer. Foi traduzido no Brasil pela Bloch Editores. É irônico que o marxismo, a ideologia cujo objetivo era dissolver a alienação humana através da consciência de classe, se tenha degradado numa religião secular. Portanto, numa farsa da religião. Por isso disse que o religioso sabe que crê, enquanto o ideólogo que crê que sabe. O Brasil está vivendo essa repetição da ideologia como farsa religiosa que não ousa dizer o seu nome. Melhor dizendo, é tão alienada que não sabe que é religião.
(Publicado no Facebook, 29 de dezembro 2016).

A diferença entre o religioso e o ideólogo:
O religioso sabe que crê, enquanto o ideólogo crê que pensa. Como tudo já foi dito pelo menos desde o Eclesiastes, com certeza alguém escreveu isso antes de mim.
(Publicado no Facebook, 29 dezembro 2016).

A bondade dos estranhos:

Tenho um amigo que se diz afortunado por receber a bondade dos estranhos. Embora tenha ajudado a tantos amigos e conhecidos, nas horas adversas nunca esses lhe prestaram a ajuda de que precisava. Sua sorte, portanto, é quase sempre aparecer-lhe o estranho bondoso na hora da carência ou necessidade. A bondade dos estranhos é não-só imprevisível, mas também desinteressada. Feliz do necessitado que, desamparado pelos supostos amigos, encontra um ancoradouro na bondade dos estranhos. Mais que impagável, o bem que lhes deve, e para sempre guardará na memória da gratidão, renova sua precária confiança na imperfeita natureza da nossa condição.
(Publicado no Facebook, 20 dezembro 2016)

Vida, amizade e reciprocidade:
Comentando meu post mais recente, A bondade dos estranhos, alusivo à peça e filme escritos por Tennessee Williams, Heloisa Pait observou com razão que a vida não é feita de ações baseadas na reciprocidade. Relacionando a vida estritamente ao tema um tanto vago que aqui discuto, entendo a vida como uma rede complexa de ações e reações imponderável. Encurtando a rédea do meu galope toscamente filosófico, a ponderação ética que me ocorre ressaltar consiste no reconhecimento de que é insensato fazer o bem movido pela intenção de reciprocidade. O ideal seria praticá-lo como disse fazê-lo o estranho bondoso. Este, até por não conhecer a quem doa, faz o bem de forma desinteressada. Se no entanto consideramos a amizade neste contexto, suponho que ela implica reciprocidade. Não digo que isso esteja implicado no plano da intenção do amigo que faz o bem, mas na natureza da amizade. Se de fato sou amigo de alguém, este pode contar comigo na hora da necessidade, naquela ordem de circunstância que diferencia a amizade da mera relação de conveniência, interesse ou cálculo. Entendo, portanto, que a reciprocidade está necessariamente compreendida na amizade, não na vida compreendida no sentido genérico com que acima intentei caracterizá-la.

Declaração de omissão:

Que os militantes da minha geração me desculpem, mas declaro que optei pela omissão. Quero dizer, não quero e nunca quis envelhecer frequentando o Facebook e coisas semelhantes para desabafar minha revolta e impotência diante dos impasses insolúveis do Brasil. Já vivi e refleti o bastante (detestaria viver uma vida sem exame e revisão impiedosa da minha experiência e de minhas ilusões) para repetir o que há muito penso: o Brasil é inviável. Poderia expor evidências históricas e pessoais infindáveis para justificar esse juízo que para muitos não passa de pessimismo ou omissão. Para mim é apenas realismo. A história do Brasil nem chega a ser farsa, lembrando a frase célebre de Marx; é apenas a comprovação de que somos "the centre of paralysis", como escreveu o "apolítico' Joyce definindo a Dublin que imortalizou na sua obra.
O Brasil é um fazendão incivilizável. Falta-me o pessimismo (isto é, realismo) heroico de Antonio Callado e o otimismo delirante, também heroico, de Darcy Ribeiro. Fico com o primeiro, diante de quem me envergonho de propor qualquer comparação pessoal. Depois de tanto lutar para civilizar o fazendão, ele, que foi um modelo de civilidade e coragem, afirmou que o Brasil tinha apenas grandeza geográfica.
Melhor voltar a cultivar o meu jardim. Minhas flores não brigarão comigo como brigaram tantos "revolucionários, amigos, democratas, salvadores da pátria, órfãos da utopia, comissários do povo, viciados no otimismo a qualquer preço". Fico com a minha omissão, meu jardim voltariano, minha arrière boutique montaigniana.
Pena que tudo isso sequer nos ajude a reconhecer nossa intolerância, nossa indiferença à realidade iníqua que alegamos combater, nossa servidão voluntária, nossa sujeição eterna à esperança. Não foi à toa que, no auge da ditadura, um show intitulado "Brasileiro: profissão esperança" alcançou tanto sucesso. É a nossa cara. Vivemos de esperança, futebol, carnaval e retórica vazia. O Brasil perdeu o trem da modernidade de forma tão aberrante que nos restaram apenas as rodovias (obra de empreiteiras corruptoras associadas a políticos corruptos) e o inferno do trânsito nosso de cada dia. Espero que todos continuem brigando em paz.
(Publicado no Facebook, 10 de janeiro de 2017).

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

No Mural do Facebook XXV


Tribalismo e consenso:

Acabo de ler um artigo luminoso de Contardo Calligaris postado por Anco Márcio Tenório Vieira. Tentando traduzi-lo em termos próprios, os maiores obstáculos à liberdade de pensar são de natureza subjetiva, ou constitutivos da nossa condição. Criticando a opinião geral apreensível no Facebook e nas redes sociais, Calligaris demonstra como precisamos até inconscientemente aderir a um "pensamento consensual", isto é, formamos um grupo ou massa compacta de opinião, que naturalmente se nutre da hostilidade a um outro grupo. E continuamos iludidos pela suposição de que pensamos com a nossa própria cabeça.
Ele argumenta ainda, com inteira razão, que sempre culpamos os conglomerados da mídia, indutores do pensamento unidimensional ou manipulado. Bastaria pensar na longeva demonização da Globo, não por acaso o conglomerado hegemônico da mídia brasileira. Ora, se essa fosse a verdadeira razão da nossa incapacidade de pensar com autonomia, o Facebook seria logicamente um painel de opiniões múltiplas e elasticamente críticas. A evidência demonstra exatamente o contrário. Conto nos dedos os que aqui escrevem com autonomia visando promover a discussão crítica e isenta. Portanto, contrariando um outro consenso corrente, não é por culpa da manipulação midiática e das conspirações obscuras dos poderosos que tendemos a pensar de forma unilinear. Sem depreciar o peso desses fatores (excluídas as conspirações, que raramente são reais), a causa última da nossa servidão é voluntária, como já dizia Etienne De La Boétie no século XVI. Precisaria a tempo acrescentar que são também de natureza inconsciente, argumento predominante na argumentação de Calligaris, não obstante implícito. A matriz deste último tipo de argumento ou fator é Freud. Só nos tornamos capazes de pensar com a própria cabeça quando nos libertamos subjetivamente das tutelas externas: as ideologias, partidos e religiões institucionalizadas e todas as forças sociais geradoras de conformismo e consenso.
(Publicado no Facebook, 30 de setembro 2016).

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

No Mural do Facebook XXIV


O brasileiro e seus hábitos culturais:

Embora brasileiro já cansado de guerra e de tentar decifrar nossos códigos culturais, sou ainda e certamente morrerei como um aprendiz perplexo da minha própria cultura. Como ninguém consegue viver sem conferir sentido e expectativa às formas de convívio que estabelece com o semelhante, tento sempre traduzir certas atitudes básicas ou cotidianas, mas com frequencia me confundo ou sigo meu caminho solitário sem explicações convincentes. Espremo o assunto demasiado complexo num único item: a amizade.
Um dos mitos culturais do qual muito nos orgulhamos refere-se à facilidade com que fazemos amigos. Ora, essa facilidade já por si só diz muito do sentido da nossa amizade. Amizade é uma conquista rara e preciosa. No entanto, dela falamos como se fosse algo banal. Isso já me parece uma evidência do quanto somos volúveis e inconsequentes nas nossas relações afetivas. Há muitos anos, quando era idiota ao ponto de confundir amizade com coisas apenas semelhantes, disse a alguém que tinha quatro grandes amigos. Ele prontamente respondeu: então você tem muita sorte, pois não tenho nenhum. Achei isso estranho porque esse alguém é uma das pessoas mais queridas, sedutoras e engraçadas que conheço. Depois compreendi melhor sua resposta e, pior, a experiência dissolveu meus quatro amigos, reduzidos a um, que aliás morreu há alguns anos.
Como preciso concluir, antes que desistam de ler o que segue, somos demasiado gregários, demasiado presos aos vínculos de família, cujos valores contaminam nossas relações públicas, para construir amizades verdadeiras. Não nego que existam, claro, mas numa cultura tão familista e gregária como a nossa, tão afeita a resultados fáceis e imediatos, a amizade não é nada fácil como parece. Se parece tão comum num país onde estranhos se tratam calorosamente como "amigões" e "amigos do peito" é porque quase sempre a confundimos com outra coisa.
(Publicado no Facebook, 23 de agosto 2016).

Vítimas da democracia:

Sérgio Buarque de Holanda, que para a maioria dos brasileiros supostamente cultos é apenas o pai de Chico Buarque de Hollanda (tão mais importante que dobrou um l no sobrenome), disse que no Brasil a democracia não passava de um lamentável mal-entendido. Errou apenas no tempo verbal, isto é, a democracia continua sendo um mal-entendido. Acentuo apenas duas das múltiplas faces desse mal-entendido: o abuso da democracia e o culto da vitimização. Como a democracia nunca se entranhou de fato na nossa cultura, ela existe antes de tudo como institucionalização formal. Longe de mim depreciar a que temos. Antes ela do que nada ou a regressão a estados de exceção ou autoritarismo nu e cru.
Mas convenhamos: o que é mesmo que Dilma Rousseff, essa carpideira da história (ou da istória, como escrevia Millôr Fernandes), quer dizer quando clama contra o golpe de que é vítima em nome da democracia? Ela, seu criador e todos seus fieis sectários clamam contra um golpe político em curso perpetrado em nome da democracia. Martelam essa denúncia obsessiva ao mesmo tempo em que legitimam democraticamente todo o processo de impeachment, já que participam dele segundo todas as regras estabelecidas pela lei. Não desdobro a argumentação por saber que quem está do outro lado confunde, intencionalmente ou não, lógica argumentativa com fé dogmática.
Passando ao segundo ponto, a vitimização, não vou falar das vítimas da história recente, que são muitas. Abusando um pouco da imaginação histórica, já que hoje tantos abusam da imaginação histérica, fico pensando no que hoje seria o Brasil, se ele houvesse lutado nos campos de batalha como a Alemanha, Inglaterra, Rússia, Estados Unidos... Em suma, acho que estaríamos ainda carpindo nossas vítimas entre as ruínas literais da grande devastação. Como ninguém vive apenas de chorar, milhões estariam nas filas do INSS requisitando pensão de vítima da guerra. Fico por aqui porque vou pegar meu lugar na fila: vou requerer pensão por ser vítima da democracia. E ai do INSS se não acatar e remunerar substancialmente meus direitos. Afinal, sou também vítima da democracia, esse lamentável mal-entendido.
(Publicado no Facebook, 29 de agosto de 2016).


sexta-feira, 26 de agosto de 2016

No Mural do Facebook XXIII


Jane Austen no cinema:

Alberto Manguel atribui o sucesso das adaptações dos romances de Jane Austen para o cinema ao fato de o público representar o universo social dessas obras como uma forma de regressão utópica ao passado. Vivendo no presente as aflições e incertezas impostas pelo estado de anomia cultural contemporâneo, conforta-o a representação de uma sociedade rigorosamente normatizada. Essa normatização observável no universo ficcional de Jane Austen estende-se às relações amorosas fixando normas de conduta para todos os personagens.
Recentemente uma amiga revelou-me seu desejo, ou fantasia, de viver na era vitoriana. Na verdade, acredita ser uma mulher vitoriana. É sintomático que ouça essa confissão irrealizável de alguém para quem quase tudo deu errado: o amor, o casamento, as relações de família, a frustração materna, a dor de suportar um conflito permanente entre desejo e satisfação. Daí sua compreensível fantasia compensatória: no mundo vitoriano que idealiza, a relação entre o seu universo subjetivo e o social seria harmoniosa.
(Postado no Facebook, 26 de julho 2016).

A cultura da irresponsabilidade:

Um dos poucos enunciados de validade universal que conheço é este: o sol nasceu para todos. No mundo em que vivemos, as pessoas passaram a isentar-se de qualquer responsabilidade culpando as circunstâncias ou o imperativo princípio de realidade, como diria Freud, por tudo que não podem ou não querem ser. Portanto, não me espantarei se logo começarem a culpar a natureza nas regiões temperadas, por não ensolarar o mundo, ou simplesmente por chover nas regiões tropicais. Talvez a maior sandice, no que concerne a esta questão, consista no que passaram a chamar de direito à felicidade. Ora, a felicidade não é um direito. A felicidade é um estado, não uma condição, sempre momentâneo. Só uma pessoa que nada sabe da condição humana pode reivindicar a felicidade como direito. Como disse alguém, em princípio qualquer pessoa de bom senso, não estamos aqui para ser felizes.
(Postado no Facebook, 30 de julho 2016).

Felicidade - Uma reflexão à toa

Um dos paradoxos da felicidade consiste no fato de que precisamos perdê-la para então nos dar conta de sua existência... perdida. Deste paradoxo decorre uma idealização provável: eu era feliz e não sabia,como canta Ataulfo Alves. Quando um adulto infeliz relembra a infância, dou por favas contadas a correspondência entre relembrança e idealização.
Impaciente com a metafísica desesperada de Beckett, Ferreira Gullar afirmou que não queria ter razão, queria ser feliz. Também eu. Mas o diabo é que intelectuais tendem a buscar a felicidade através da especulação metafísica. O mais provável é perderem a primeira nos labirintos da segunda. Há ainda, por certo a maioria, quem simplesmente despreze esses paradoxos e labirintos correndo da razão como via de busca da felicidade. O que importa para quem adota essa forma elementar de vitalismo irracionalista é deixar rolar e entregar-se à corrente cega da vida.
Um degrau acima, e eis-nos de volta ao labirinto especulativo. Foi o que ocorreu com a cultura da espontaneidade, florescente em Greenwich Village nos anos 1950 e banalizada na década seguinte. Entre seus cultores figuravam Miles Davis, Jackson Pollock, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e os contraculturalistas em geral. Sendo intelectuais e artistas, tinham que converter a espontaneidade numa forma alternativa de metafísica. O intelectual e a razão são tão indissociáveis que até para negá-la ele precisa dela. Parecem o drogado que se casa com a droga que o consome, mas sem a qual não suporta viver.
(Postado no Facebook, 7 de agosto 2016).





sexta-feira, 15 de julho de 2016

No Mural do Facebook XXI


A Solidão e seus Avessos:

Leio uma pesquisa sobre os efeitos nocivos da solidão. Esses efeitos seriam não apenas psíquicos, mas também orgânicos. Não discuto isso, até por não ter competência para tanto. O que discuto é o conceito de solidão implícito nessas pesquisas que ocasionalmente leio. É como se o sentido da solidão fosse evidente. E daí para as confusões rotineiras a passada é bem curta. Por exemplo: o solitário, compreendido negativamente, é o que vive ou está sozinho. No Brasil em particular, onde ainda são fortes os vínculos de família e gregarismo, o solitário é visto com um vinco de preconceito inegável. Se você é solitário, não casado ou não casou, não tem família identificável, é provável que seja uma pessoa difícil, complicada, no limite deslize para a misantropia.
Como sou parte da categoria dos solitários reconhecíveis, esclareço que os momentos mais belos e prazerosos de minha vida foram momentos de convívio, momentos inconcebíveis sem o outro que é meu semelhante e amo ou amei. Por isso fico à vontade para desmentir os preconceitos acima, embora pouco articulados. Além disso, falo um poucos dos que estão do outro lado da cerca, para que fique claro que essas distinções nunca são simples.
Não conheço nenhuma família feliz, contrariando o inesquecível capítulo de abertura de Anna Karenina, de Tolstoi. Também ressalto a solidão dos que vivem em família, como foi meu próprio caso. A solidão dos amantes, mesmo os que se amam de verdade. E quantas vezes não ouvi confissões intransmissíveis de amigos de ambos os sexos no momento em que desce o pano das convenções hipócritas?
Só um exemplo recente: a meio de uma consulta médica com um amigo, disse que gostaria de casar. Aleguei estar ficando velho, etc. Ele retrucou imediatamente: "Não faça uma loucura dessas. Estou casado há 25 anos e vivo de mentiras e conflitos. Não me separo porque não sei viver sozinho, como você".
Em suma, não recomendo solidão a ninguém. O que sei é que amo a minha, na medida em que é voluntária, na medida em que a tornei parte dos meus mais rotineiros e indispensáveis ofícios e prazeres: a leitura, a arte, a música, a reflexão, a carência pura e simples de ser comigo o que somente comigo posso ser. Mas existe também a solidão involuntária, que é dolorosa, mesmo na vida de quem escolheu e ama a solidão. Quem acaso tiver interesse em refletir melhor sobre o assunto, recomendo o livro Solitude, de Anthony Storr. Soube que foi traduzido no Brasil, não sei se com o mesmo título. É um livro belo, sensato e isento dos preconceitos correntes sobre a solidão e seus avessos.
(Publicado no Facebook, 10 de julho de 2016).

Literatura não é biografia:

O poema não é um documento biográfico, me disse meu amigo poeta. A frase lhe saiu com sabor de queixa, do desânimo de quem se sente incompreendido pelo leitor. Como todo autor, ele precisa do leitor, é em parte por este que escreve, mas seus poemas não são documentos biográficos. Lidos nestes termos, o leitor concluiria que seus poemas são a confissão de um homem solitário e insone, atormentado por memórias dolorosas. Foi isso o que lhe disse uma amiga com a comovente intenção de o consolar de suas dores derivantes do modo como ela leu o poema. Era um poema, claro, sobre a solidão e a insônia.
Mas o poema, repisa o poeta, não é um documento biográfico. Ele dorme bem, vive em paz com sua memória, embora sofra a carência do amor, a aridez desses tempos difíceis que vivemos: tanta infelicidade e solidão gritadas e dissimuladas nas redes sociais contra os políticos corruptos, com perdão da redundância, contra as mazelas insanáveis do Brasil.
O poeta, ser sensível decerto em demasia, lamenta não apenas a incompreensão da leitora que desastradamente o consola, mas a realidade sem vias de fuga. Ora, dirá quem me lê, como um poeta não encontra na imaginação vias de fuga da realidade? É outra incompreensão que também desola o poeta. Como é banal o preconceito de que a poesia é uma fuga do real. Lembrou-me o dia em que, cuidando de um amigo operado num hospital, recebeu a visita de uma médica enquanto lia Drummond para o enfermo, gravemente enfermo. Nunca esqueceu o que ela disse: "Por favor, não me fale de Drummond. Estou farta de realidade".
Em suma, todo poema verdadeiro é necessariamente belo, mas talvez insuportável para quem se contenta em viver na superfície da realidade ou simplesmente não suporta a provação do mergulho para o fundo da superfície. Por fim, reiterando ainda a queixa do poeta, o poema não é o reflexo do que o poeta vive. O poeta é uma antena do que é humano, não Narciso enamorado de si próprio nas águas da arte.
(Publicado no Facebook, 14 de julho de 2016).

sábado, 9 de julho de 2016

No Mural do Facebook XX


Marilena Chaui e a normalidade do fanatismo:

No frigir dos nervos, quando leio certas coisas cretinas aqui no Facebook, já afirmei que Marilena Chuá Chuá, vulgo Chaui, era uma desvairada. Não retiro o qualificativo, mas esclareço que o desvairismo dela é perfeitamente normal. A universidade brasileira, suposta consciência esclarecida do Brasil, age massivamente em defesa da "narrativa" conspiratória de Marilena. Aspeio a narrativa por se tratar de um termo de origem literária que hoje contamina a terminologia das chamadas ciências sociais, que no Brasil tornaram-se ideologia descarada.
Marilena narra uma conspiração que não me espanta porque conheço um pouco a história do comunismo no século XX. Perto das conspirações inventadas por Lenin, Trotsky, Stalin e outros tiranos, a historinha dela é até pouco imaginativa. O que a compromete é o contexto histórico, algo desconcertante numa pensadora marxista que muitos consideram a maior do Brasil.
A Santíssima Trindade da revolução era genial. Tiranos impiedosos, com perdão do truísmo, escreveram um capítulo fundamental da história sanguinária do século XX. Além disso, viveram num mundo de conflitos extremos, mais tarde desdobrados na guerra fria que dividiu o mundo em duas frações antagônicas e belicosas entredevorando-se durante mais de quatro décadas.
Marilena e grande parte da esquerda brasileira continuam tramando conspirações como se a gente vivesse ainda no contexto da guerra fria. Seu delírio é antes de tudo o delírio dos fanáticos, que nenhuma razão tem o poder de despertar. A esquerda brasileira sonha ainda as revoluções que outros já fizeram e a história dissolveu em ruína. É uma esquerda que não despertou ainda das ilusões sepultadas em 1989.
(Publicado no mural do Facebook, 5 de julho de 2016).

Uma reflexão negativa sobre os intelectuais

Cresci num mundo assolado pela incultura intelectual. Um dia, sem que ninguém me guiasse, cheguei por acaso a uma estante de livros e esse fato mudou radicalmente minha vida. Através dos livros, dos autores que li e transfiguraram minha vida infeliz e corroída pela rotina e o tédio, passei a ver o mundo com outros olhos. Graças à literatura, expandi imaginariamente os horizontes de minha vida e a solidão, que até então fora uma fonte de sofrimento e carência, tornou-se um modo intraduzível de convívio simbólico com mundos remotos e sonhados, não obstante reais para o ser extraviado que eu era.
Mais tarde descobri a figura do intelectual como agente de transformação política da realidade e me persuadi de que ele era a consciência de um mundo alienado, um mundo no qual sempre me senti estrangeiro. Os intelectuais que então me pareciam modelares foram combatentes de ditaduras e tiranias, defensores, por conseguinte, da liberdade e de um mundo mais justo, quando não utopicamente além das formas de dominação que têm castigado a história humana através de milênios. No século XX, muitos desses intelectuais foram marxistas militantes, nas suas muitas variáveis facções, ou pelo menos companheiros de viagem, com perfil ideológico igualmente variável.
Despertei para a política exatamente quando irromperam os anos de chumbo da última ditadura brasileira. Mero companheiro de viagem, eclético e cético por formação e talvez temperamento, nunca aderi ao marxismo. O mundo dividido pela guerra fria enfim desintegrou-se em 1989. Embora há muito fosse muito crítico com relação ao marxismo, foi depois disso que conheci as formas mais brutais das tiranias impostas em nome do comunismo ao longo do século XX.
Lendo a historiografia mais recente, renovada pela revelação de arquivos até então inacessíveis, notadamente no que foi a União Soviética, tomei consciência mais precisa dos horrores perpetrados em nome de belos ideais utópicos que marcaram de forma profunda a minha geração e algumas precedentes. Esse balanço crítico, também uma revisão de minhas ilusões humanistas, convenceu-me de que os intelectuais são antes cúmplices e agentes da tirania do que a consciência libertária da sociedade. Em suma, não mais me iludo com eles. O que me conforta na minha descrença é saber que são desmascarados também por intelectuais. De tudo resta, portanto, minha percepção do intelectual como figura ambígua.
No momento em que escrevo, assisto no Brasil a mais uma traição dos intelectuais, em especial os acadêmicos. A expressão “traição dos intelectuais” é uma alusão, claro, ao livro famoso de Julien Benda. No meu entender, e aqui sigo tendencialmente a noção do intelectual adotada e defendida por Benda, o papel do intelectual é defender os valores universais do espírito orientados para a busca da verdade, ainda que esta seja sempre parcial e até enganosa. Por isso o intelectual sempre trai sua função quando se converte à militância em nome de uma causa ou ideologia particular. O exemplo mais catastrófico dessa traição consistiu na adesão do intelectual ao comunismo no século XX. Iludido pela crença de servir a uma concepção científica da história, ele negou a religião compreendida no seu sentido tradicional e sagrado para converter-se a uma religião secular que nunca ousou dizer o seu nome.

Recife, 5 de julho 2016.



sábado, 2 de julho de 2016

No Mural do Facebook XIX


O exemplo de Drummond:

Penso que Drummond é o maior poeta brasileiro. Por isso leio seus poemas rotineiramente. Sua obra é a minha bíblia que não tenho e por isso não rezo. Quando irrompeu talvez a mais extrema crise da civilização nos anos 1930 e 1940, com o mundo dilacerado por totalitarismos de direita e esquerda, Drummond se engajou engajando também sua poesia. Disso resultou A Rosa do Povo, a obra poética que melhor harmonizou a estética e a política. Não tardou para que se desiludisse com o Partido Comunista Brasileiro e desistisse da política militante. Continuou participando enquanto cidadão e escritor público. Como todo intelectual liberto de fantasias ideológicas, foi sempre tentado pelo ceticismo e até o niilismo. Os exemplos contidos na sua obra poética são muitos. Cito o primeiro que me vem à memória: o belo Cantiga de enganar.
Um dia ele escreveu num poema: "meu verso é minha cachaça".
Também Freud, modelo no qual igualmente me inspiro, afirmou que o ser humano não suporta viver sem algum tipo de droga. O mundo é uma sucessão de desastres porque poucos são capazes de inventar um modo criativo de droga, o tipo de droga que concorre para melhorar o mundo ou pelo menos frear nossas pulsões destrutivas. Muitos dos que militam na política, notadamente os intelectuais, confundem-na com uma forma secular de religião. São idealistas, arrogantes portadores de ideologias libertadoras do povo oprimido e alienado. Não há como avaliar as devastações que provocaram ao longo da história humana, sempre, claro, em nome dos mais belos ideais. Confesso que a experiência ensinou-me a fugir desses idealistas. Aprendi a fugir deles, também a temê-los, pois sei que seus ideais sempre acabam em banhos de sangue e opressão.
Há quem louve a falta de convicção e caráter da maioria dos brasileiros. Alegam que isso nos imuniza contra a tentação das soluções extremas. Será que têm razão? Será que os males de formação do nosso povo nos poupam de males ainda maiores? Ainda que isso seja verdade, não me conformo em viver num país tão injusto e cruel ao ponto de me obrigar a reconhecer que o instituto da delação premiada, por exemplo, é um mal necessário. Quer dizer, o bandido faz carreira e fortuna corrompendo e roubando, depois grava tudo que conversa com os cúmplices, entrega todos à polícia e é premiado com prisão domiciliar numa mansão com garagem para dez carros, quadra de tênis e outros privilégios. Pensando bem, não vale a pena seguir o exemplo de Drummond.
(Postado no Facebook, 29 de junho de 2016).

Do Petrolão ao Safadão

Dizem que o Ministério Público e a Polícia Federal começaram a escavar o esquema de corrupção no poço dos megashows que se tornaram rotina em cidades interioranas. Se os serviços já são o que são nas capitais, imagine-se nos grotões que hoje fornecem circo eletrônico ao povo faminto. Espero que escavem o poço, todos os poços da bandidagem e depredação do Estado que vai do Petrolão ao Safadão. Logo ficará claro por que tantos artistas militam em defesa do PT alegando belas razões ideológicas. É claro que a corrupção também envolve os outros partidos, todos os partidos e o conjunto da sociedade brasileira.
Quem pensa que a podridão do reino da Dinamarca é obra do PT, nada sabe do país onde vivemos. Se brincarem, a única alma honesta que vai sobrar será a minha, não a de Lula. A culpa não é minha, mas de quem não tentou me corromper.
Por fim, já que tantos andam clamando contra a cultura do estupro, lembro que muito mais grave é o estupro da cultura. Só Deus sabe o que ela sofre todos os dias neste país de artistas safadões e políticos que reafirmam a genial criatividade brasileira. Sem serem cineastas (o Brasil tem algum?), os políticos inventaram um novo gênero cinematográfico: o da Política Mafiosa. Está em cartaz 24 horas por dia em todo o noticiário midiático. Censura livre, almoço grátis e delação premiada.
Como diria Macunaíma, o Safadão da cultura brasileira, tem mais não. Isto é, digo eu, tem ainda: ou os políticos acabam com a Lava Jato ou esta transformará o Brasil no país da da prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Quem sobrará para jogar bola e batucar o samba no pé no país do futebol e do carnaval?
(Postado no Facebook, 24 de junho 2016).


segunda-feira, 2 de maio de 2016

No Mural do Facebook XIII


A Ideologia do Cuspe

Abreu abriu em abril
a nova ideologia
que vai encher o Brasil
de uma suja cusparia.

Tu me cospes, eu te cuspo
e assim trocamos ideia.
Se com teu cuspe me assusto
o meu te acerta na veia.

A minha mão nunca solte
nem ande fora da pista.
Fora isso tudo é golpe
e o outro é sempre fascista.

A nova ideologia
é o fino da tolerância:
quem meu tom não assobia
cospe noutra militância.

Na pátria educadora
divino país de todos
até o lixo se doura
dos mais canalhas engodos. (Postado no Facebook, 25 abril 2016).

A Religião da Política:

Já que Dilma Gaga não se cansa de repetir disparate, vou também me repetir. Melhor dizendo, vou repetir uma citação, o que me isenta de dizer besteira depois de ler tanta. Chesterton: quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, passam a acreditar em qualquer coisa. A partir do Iluminismo, iluminado pela fé na razão e no progresso humano, o processo de secularização, característica fundamental da modernidade, varreu do céu a tradição religiosa que norteou o processo da civilização ocidental durante séculos. Mas logo tornou-se patente que o ser humano não suporta o peso de um céu sem deuses. Daí uns divinizaram a ciência, é o caso do cientificismo enquanto perversão ideológica da ciência, outros a Arte (com A) e tanto descemos ladeira que as massas acabaram divinizando Papai Noel, Xuxa e os ídolos da música e do futebol. Mas o maior e mais catastrófico substituto da religião tradicional é a ideologia política que ironicamente promove a crítica radical da religião para converter-se em religião secular. O exemplo emblemático é o marxismo. É fácil assinalar as correspondências teológicas ou místicas entre a religião tradicional e essa religião que não ousa dizer o seu nome. Por isso, meus amigos, desisti de argumentar contra militantes de ideologias que são de fato metamorfoses seculares da religião.
Fé e razão são categorias irredutíveis. A primeira remete antes de tudo à religião, a segunda à ciência e ao saber fundamentado na evidência testada e comprovada, ao saber que se vale apenas da argumentação racional. Portanto, é pura perda de tempo argumentar contra quem ainda acredita na desalienação universal do ser humano, na transposição do céu para a terra, na mentira que corrompe a verdade, na tortura e no cuspe que suprimem a liberdade de opinião e pensamento.
(Postado no Facebook, 23 de abril de 2016).

Homem versus Mulher:

No voo entre Curitiba e Recife assisti a uma entrevista muito interessante com a antropóloga Miriam Goldenberg. Há muito ela pesquisa as relações amorosas entre homem e mulher, com tudo que implicam de instabilidade e desorientação. Acho que ela faz observações muito sensatas sobre as diferenças entre homem e mulher, notadamente no que se refere às expectativas amorosas. Por exemplo: ela critica as mulheres por investirem em demasia na realização amorosa ou por reduzirem todas as outras ordens de realização à realização amorosa. Adicionalmente, descreve um tipo de homem muito diferente do clichê que as mulheres amorosamente frustradas pintam. Exemplifico novamente: ela ressalta, acho que com razão, que essa imagem do homem sedutor cafajeste é minoritária. No entanto, a imagem oposta parece dominar o imaginário erótico brasileiro. Talvez por isso seja sintomático o ressentimento da mulher contra o sedutor cafajeste. No mais, espanta-me que tantas mulheres ressentidas com o homens tendam a comportar-se como adolescentes retardadas. Refiro-me, claro, a mulheres de meia idade, quando não idosas, com perdão do palavrão, que se comportam movidas pelo desejo insensato e impossível de recuperar o tempo perdido. O tempo é irreversível. Quero dizer, há certas coisas que a gente faz quando tem certa idade. Tudo que estou afirmando assim sumariamente me parece pura matéria de bom senso. Se hoje precisamos de especialistas para ditar regras sobre essas obviedades, a razão é assim simples: perdemos nosso senso elementar de autogoverno.
(Postado no Facebook, 23 abril 2013).



sexta-feira, 22 de abril de 2016

No Mural do Facebook XII


O Tédio Vital

O que farei de mim quando acabar
a crise que a tudo dá sentido?
Meu tempo, que não tinha onde gastar,
agora é um excitante quente e vivo.

O dia já clareia no esgoto
que vai da Alvorada ao Congresso
é tanto que o tempo que esgoto
acaba enquanto durmo e tempo peço.

Meu Deus, que vou fazer da minha vida
no dia em que a crise acabar?
O tédio, a vida nula e sem saída
sem crise podem logo me matar.

Por isso vou moendo a roda viva
fazendo desse circo um auto de fé
pois temo que sem essa outra vida
de tédio e solidão hei de morrer.
(Postado no Facebook, 14 de abril 2016).

As armas da luta

Desarme o seu coração
na hora de argumentar.
Desarme o braço e a mão
se a tentação é brigar
matar, ajustar as contas.
Justiça nunca foi obra
de loucos, baratas tontas.

Arme o senso e a razão
na hora de refutar
quem corre na contra-mão
do que você quer mudar.
Lute fiel ao que é
a regra limpa do jogo.
O fim, seja o que vier,
começa tudo de novo.
(Postado no Facebook, 16 de abril 2016).

quarta-feira, 20 de abril de 2016

No Mural do Facebook XI


O Circo do Atraso:

A votação no congresso (com c minúsculo, por favor) comprova o que todo brasileiro consciente está cansado de saber. À parte o refrão que já não suporto (corrupção, golpe, defesa da democracia...) o discurso torto, grotesco e repetitivo desses congressistas é a cara do nosso atraso. Como dizia Caio Prado Jr., o Brasil é muito atrasado. É atrasado à esquerda e à direita, dentro e fora do congresso, no conjunto das nossas instituições, práticas e valores sociais.
Uma das evidências mais fortes do que acima escrevi consiste no apelo grotesco à família como instituição matriz pairando acima do que deveria ser a estrutura de uma República. Não é à toa que Lula retoma o refrão do pai dos pobres, Dilma a de mãe dos pobres. Trocaram o trabalhador, categoria de classe, pela figura do pobre, mito infalível do populismo latino-americano. À direita e à esquerda, se cabe ainda usar essas categorias rotas, o que fica exposto é um Brasil de família que anexa o Estado, absorve suas funções e deixa os cofres abertos para o saque e a privatização do bem público.
Assistindo a essa sessão circense, de resto previsível para quem vê o Brasil isento da fumaça ideológica que o desfigura, é desolador comprovar o quanto é poderosa a força da tradição neste país que ninguém sabe quando ingressará efetivamente na modernidade. Por isso, é necessário ler ainda Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Os donos do poder, de Raimundo Faoro, que em registros distintos traçam a genealogia do nosso atraso social e mental. Quero Dilma, Lula e o PT desalojados do poder, mas seria um tolo se me iludisse supondo que isso muda muita coisa. O Brasil tem um mundo de coisas para mudar e elas não mudarão se nós brasileiros não mudarmos. Isso vai dos palácios do poder ao meio-fio das cidades. Em suma, enquanto as reformas profundas não forem gradualmente enfrentadas e postas em movimento, continuaremos sendo o país da esperança, dos órfãos do pai Estado.
(Postado no Facebook, 17 abril 2016).

Balanço do Brasil:
A essa altura, restando ainda 98 votantes no cugresso (sorry!) nacional, atrevo-me a confirmar a bola de cristal do desfecho óbvio. Houve golpe, sim. Mas as vítimas foram as pessoas inteligentes, honestas e sensatas deste país de chanchada. Vou processar o cugresso (sorry again!) por crime de indução ao alcoolismo. Não sei quem mais é vítima desse circo patético. Sei que eu sou. Há mais de um mês não tomava uma dose de uísque. Não por virtude, se é que há virtude na abstinência, mas por reação alérgica. Nietzsche serviu-me ao menos para isso: para me afastar do álcool, da família e do cristianismo. Quinze minutos de circo no cugresso (sorry etc) foram suficientes para me levar de volta à garrafa e à gramática. Essa gente assassina a língua portuguesa com uma inconsciência desconcertante.
Juntando os cacos do país, vislumbro no fundo do túnel a solução que aparentemente escapou a todos os mercadores de partidos políticos. Ora, o Brasil tem mais de trinta (são quantos mesmo?), mas nenhum publicitário teve a luminosa ideia de criar o partido mais óbvio, autêntico e majoritário do Brasil: o DFP (Deus, Família e Propriedade). Se há algo que sintetiza a catatonia mental e ideológica dos nossos congressistas, esse algo está condensado num deus de bordel, numa família parasita do Estado e na propriedade sem função social, a não ser salvaguardar a desigualdade brutal da sociedade brasileira.
(Postado no Facebook, 17 abril 2016).

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

No Mural do Facebook VI


Ideologia e Religião:
Apesar do trote da carruagem, que já riscou o rosto de Dilma Rousseff de rugas indisfarçáveis, passo por alguns posts de petistas e comunistas dogmáticos e chego a esta conclusão óbvia: quem tem ideologia não precisa de religião. Mas ressalto duas diferenças fundamentais em defesa dos religiosos: 1-eles escolhem uma religião e têm portanto consciência de que professam uma religião, um sistema de fé; 2-Por serem crentes confessos, podem dar-se ao luxo de ignorar as evidências que refutam sua crença. Por isso, concluo, o ideólogo dogmático é muito mais alienado do que o religioso convencional. A história, com h minúsculo, escreveu ironias devastadoras no livro sagrado da ideologia que a converteu em História (com H). Mas o dogmático da ideologia, como um Édipo da utopia, cegou os próprios olhos para não ver o que minha diarista já viu há muito tempo. Para que tantos livros alienantes, tanto farelo ideológico, perguntou-se o homem comum que vê a realidade armado apenas de bom senso e experiência.
Facebook, 13 de setembro 2015.

Dilma cava o próprio túmulo:
Se as medidas propostas pelo governo forem aprovadas pelo congresso, o que é mais que improvável, Dilma Rousseff vai cavar ainda mais fundo a sua cova. Afinal, entre outros insultos contra a sociedade que a reelegeu manipulada pela máquina da propaganda enganosa, para não dizer caluniosa, ela quer retardar o reajuste do funcionalismo público de janeiro para agosto. O desespero é tão extremo que agora Dilma decidiu meter a mão no bolso de quem sempre a apoiou. Por muito menos, FHC foi definitivamente demonizado pelo funcionalismo público, setor onde ainda se concentra o que resta de apoio ao governo. Não bastasse isso, quer restaurar a CPMF, além de reduzir ainda mais os recursos para políticas públicas, que já andam aos bandalhos.
O mais grave de tudo é que esse governo perdeu qualquer legitimidade para impor sacrifícios ainda maiores à sociedade. Afundado na lama da corrupção que envenena todo o sistema de poder, não tem nenhuma autoridade moral para exigir sacrifícios adicionais a uma população castigada por toda sorte de abuso e empulhação. Acuados, refugiando-se no silêncio, quando não se escondem literalmente, Lula e sua patética criatura afundam cada vez mais.
Um único exemplo: há tempos o historiador Marco Antonio Villa desfecha críticas virulentas contra ambos e o PT em geral. Mais que isso, Villa vem há tempos denunciando publicamente Lula como o chefe da quadrilha que se instalou no poder e se embrulha cada vez mais no processo corrente de investigação que não se sabe quando chegará a termo. Apesar de denunciado, Lula não dá um pio.
Por fim, repisando o lugar comum, Dilma teima em cortar apenas a carne alheia. Segundo voz corrente, o governo tem 113 mil cargos de confiança, expressão que é um eufemismo, e 39 ministérios que bem simbolizam a política parasitária do estatismo capitalista que sangra a sociedade brasileira. A coisa aqui `tá preta, como canta o verso famoso de Chico Buarque, um dos esteios morais de Lula, Dilma e do PT. Mas ele, como Marilena Chaui, também se refugiou no silêncio dos intelectuais irresponsáveis e cúmplices de tiranos gerados por belos ideais e irresistíveis utopias.
Nota: acrescentei algumas frases ao texto original postado no Facebook.
Facebook, 15 de setembro de 2015

Brás do Brasil
Brás é o homem mais afortunado do Brasil. Se Fidel Castro é o Brás de Cuba, Brás do Brasil é o Brás das Cubas, pois que as tem muitas e abundantes. Detentor de todas as fontes de petróleo, Brás fundou um monopólio chamado Petrobrás. Fez o mesmo com outros bens naturais num país tão farto em bens que trata de forma perdulária e irresponsável, quando não criminosamente vil e no geral impune. Capitalista perdulário, sobretudo infenso ao temor da falência, Brás esbanja, corrompe, queima e torra bens que sequer calcula. Se acaso a despesa excede a receita, Brás transfere os custos para os brasileiros. Estes que paguem pelo que nunca lucraram. Brás é o capitalista perfeito: o que ignora capital de risco e falência. Meu sonho é ser Fernãobrás, mas me contentaria em ser diretor ou operador do onipotente Brás.
Facebook, 16 de setembro de 2015

domingo, 13 de setembro de 2015

No Mural do Facebook V


Nossas velhas estruturas sociais:
Reiterando o poder nocivo e corruptor das nossas estruturas histórico-sociais, argumento que vale para o Brasil assim como para a América Latina em geral, importa lembrar ou aprender que pouco mudará da terrível realidade que vivemos se houver uma mera troca de partidos e agentes no comando do poder. Nosso Estado nunca ingressou na modernidade típica do Estado republicano e democrático. É uma adaptação do Estado patrimonial criado e regido por oligarquias retrógradas e um aparato burocrático ineficiente e parasitário. Um simples e significativo exemplo: o palácio do Planalto tem 4.487 funcionários; a Casa Branca, sede da maior potência mundial, apenas 468. Outra praga é o populismo, de esquerda ou de direita.
Basta ver não só o que acontece aqui, mas também na Argentina e na Venezuela. Esse regime maldito, que alega governar para o povo e salvar os oprimidos, é estatizante e sempre adota políticas cujos custos são pagos pelo povo oprimido. Por isso convém lembrar que o mal não é apenas o PT, mas essas estruturas retrógadas e resistentes à modernidade. Enquanto não mudarmos isso, e quem sabe lá quando mudará, o Brasil viverá entre ciclos de crescimento e recessão, euforia e depressão.
A crise é obra antes de tudo do PT. Mas observem o que acontece na sociedade e antes de tudo na burocracia estatal. Greves se sucedem sempre em defesa de interesses corporativos e se arrastam por meses. Essa inércia irresponsável, que na prática significa férias informais e abuso da tirania exercida contra o povo que luta e trabalha feito semiescravo, se repete regularmente como efeito de estruturas perversas. É claro que a crise agrava esses processos, mas periodicamente temos greves previsíveis em vários setores do serviço público. Todos falam em nome do povo e dos interesses do povo, mas este é o único que paga as contas e vive ainda, em plenos séc. xxi, submetido a um regime cotidiano típico de uma ditadura social.
Postado no Facebook, 10 de setembro 2015.

Dilma e as mentiras obsessivas:
Tentei ouvir a mensagem de Dilma Rousseff endereçada aos brasileiros no dia da nossa (In)dependência. São mais de 8 minutos. Aguentei 2 somente para conferir se alguma coisa mudaria na desconversa previsível. Apesar de tudo que salta aos olhos até dos imbecis, ela teima em sustentar as mesmas mentiras que ao cabo não passam de arrogância ou esquizofrenia. A arrogância, por exemplo, que a impede de ter um mínimo de humildade diante dos fatos; a arrogância que a leva a nos tratar como um rebanho de cegos servis às mentiras que tem repisado seguindo a lição do seu mestre: Luís Inácio Lula da Silva. O adorno da mensagem é a apelação publicitária de sempre recheada por sentimentalismo e diversionismo e a velha ladainha sobre a natureza miscigenada e pacífica do povo brasileiro. Chovendo no molhado onde ela desliza, somos um país marcado pela desigualdade, a violência sempre beirando a guerra civil, o preconceito e todas as opressões impostas por um capitalismo cujo vilão principal é o Estado patrimonial. Nossa herança maldita, que o PT denunciava alegando livrar-nos dela, está sendo agravada por um partido que foi a esperança de milhões de brasileiros até revelar-se uma organização de bandidos.
Facebook, 7 de setembro 2015.

A compaixão abstrata:
Comovem-me as manifestações de compaixão e indignação diante da massa de refugiados que pressionam as fronteiras da Europa. Mas como explicar que sejamos tão sensíveis ao sofrimento e desamparo desses infelizes (tão abstratos na volatilidade das redes sociais) enquanto sempre passamos indiferentes à miséria e desamparo dos brasileiros nos quais esbarramos a cada esquina e rua? Eu mesmo, que moro numa área privilegiada do Recife, vejo diariamente mendigos caídos nas calçadas, coberturas de galerias etc. No calçadão da praia, todo dia passamos indiferentes aos famintos e ébrios caídos na calçada. Passamos ao largo segurando a coleira de nossos cães e corremos (literalmente) para manter a forma e fugir da realidade intolerável.
E o que dizer dos nossos dependentes do SUS, humilhados e desassistidos em hospitais, UPAs etc? É um filme tão antigo que virou banalidade. Queria ver qual seria nossa reação se refugiados do mundo viessem pressionar nossas fronteiras continentais. Como é fácil ter compaixão do semelhante abstrato e remoto quando somos indiferentes aos esfomeados das nossas ruas.
Facebook, 3 de setembro 2015.

Ame um cão:
Para você, feicebuqueira(o): Se você se sente solitária e infeliz no amor, ou simplesmente se desiludiu dessas máquinas caprichosas e confusas que são os seres humanos, adote um cão. Seres humanos são dotados de uma singularidade da qual derivam nossas grandezas e misérias: a liberdade. Pena que a maioria a use como uma pata de elefante querendo esmagar uma mosca numa loja de cristais. A mosca é o alvo da liberdade humana e os cristais são seres humanos perseguindo o mesmo fim. Talvez algum dia destruam totalmente a loja.
Facebook, 3 de setembro 2015.



terça-feira, 26 de maio de 2015

No Mural do Facebook IV


A herança das utopias
Se é possível falar em debate público nas redes sociais, ele está restrito a questões políticas imediatas ou conjunturais. Há questões de fundamento que, sei, não podem ser razoavelmente discutidas nessas vitrines moventes. Se no entanto teimamos em ignorá-las, continuaremos repetindo nossos erros e brigando em torno dos efeitos alheios às causas. Um exemplo: a esquerda, da qual procedo e dentro da qual formei minha concepção da realidade histórica, continua cegamente presa a ideais utópicos e a projetos políticos que foram profundamente abalados pela história do século 20. As utopias de esquerda (comunismo) e direita (nazi-fascismo) resultaram em Estados totalitários e conflitos armados sem precedente histórico. O custo social disso tudo é inominável. Há pouco li um livro obrigatório para quem deseja conhecer líderes da esquerda como Stalin. Refiro-me a Stalin – the court of the red tsar, de Simon Montefiore. Também recomendo este de Orlando Figes: The Whisperers. Eduquei-me politicamente aprendendo que Stalin era o grande benfeitor da humanidade. Hoje sei que foi um dos maiores tiranos da história. Seus crimes e os horrores que praticou para converter um país feudal e autocrático em uma grande potência são simplesmente inomináveis. Não conheço um intelectual ou militante de esquerda do Brasil que tenha feito publicamente um exame dos nossos erros e ilusões, dos enganos e crimes que cometemos, como agentes ou cúmplices omissos, da história de horrores do século 20, que se estende para o presente. Não falo da direita porque todo mundo sabe, pelo menos via cinema e a mídia de massa em geral, dos horrores que praticou. Além disso, o ideário dela nunca enganou às pessoas inspiradas por autênticos ideais humanistas. É por isso que miro a esquerda neste comentário que ou será ignorado ou servirá para que alguns dogmáticos e cegos intransigentes atirem pedras no meu telhado de vidro. No entanto, é preciso enfrentar essa história, se de fato queremos saber o que significam a história da revolução cubana, nosso bolivarianismo novamente em ascensão e a degradação do PT. (Facebook, 6 de abril de 2015).

A militância é tendenciosa
Há muito aprendi que a consciência militante ou partidária é no geral tendenciosa. Por isso renunciei a me pronunciar ou opinar em qualquer sentido em nome de um partido ou um poder constituído. Longe de mim a presunção de que sou imparcial ou neutro. Sei que as ações e juízos humanos são por natureza parciais. O que acredito é que é possível encurtar a distância ou desacordo entre a consciência e a verdade objetivamente verificável. Seguindo esse princípio, já fui acusado por amigos de ser omisso. Quando assim me acusavam, pressionavam-me significativamente para tomar partido... aderindo ao partido deles.
A verdade humana é sempre limitada. Isso não justifica o partidarismo e sectarismo que todos os dias leio no mural do Facebook. Lamento constatar que pessoas que me inspiram afeto e admiração (algumas não mais) compartilham e endossam posts, pesquisas e qualquer tipo de suposta evidência que supostamente denuncia X ou Y como o partido mais corrupto do Brasil, X ou Y como o presidente mais corrupto do Brasil e coisas desse tipo. As pessoas que assim procedem estão implicitamente justificando a corrupção e os crimes do seu partido. O subtexto é o seguinte: defendo a corrupção e os crimes do meu partido porque o partido X ou o presidente Y foram ou são muito mais corruptos. Essas pessoas se veem, no entanto, como portadoras de boa consciência cívica. Se o fossem de fato denunciariam e se oporiam a toda e qualquer corrupção, todo e qualquer crime, não importando de onde ou de quem procedessem. Não consigo ser otimista com relação ao Brasil porque, no auge de uma crise crescente, em meio à corrupção de todo tipo, pessoas supostamente éticas combatem-se nas redes sociais para justificar os crimes dos seus partidos. Só falta aparecer alguém para ter a canalhice de defender a inocência do partido, político ou presidente que roubou menos. Seria uma variação deste dito famoso que muito traduz a mentalidade corrente do Brasil: rouba, mas faz. Ou ainda: rouba, mas ajuda os pobres.
(Postado no Facebook, 15 de abril 2015)

Direitos Urbanos e Estelita
Posto este comentário para declarar meu apoio ao movimento Direitos Urbanos, notadamente à sua luta em defesa de uma cidade mais humana, portanto voltada para os interesses coletivos. Recife é um dos piores, senão o mais desastroso exemplo de uma forma de crescimento urbano tutelado pelo poder das empreiteiras associadas a uma tradição política oligárquica e autoritária. Isso explica o estado de calamidade a que chegamos. Vivemos numa cidade onde não há espaço efetivo para as pessoas, sequer para se locomoverem livremente exercendo seus direitos mais elementares. Nesse contexto, o movimento Direitos Urbanos tornou-se um símbolo de admirável resistência à depredação do espaço público. Ocasionalmente, no passado, houve esboços de reação contra a sanha predatória dos que estão levando nossa cidade à ruína. Mas essas reações momentâneas nunca lograram organizar-se como movimento efetivo de resistência continuada. O movimento Direitos Urbanos é, por isso mesmo, um fato novo na política local, espero que também inspirador de práticas semelhantes e urgentes em todas as cidades brasileiras onde a cidade é do povo apenas na enganação publicitária promovida por uma classe dirigente cínica, corrupta e indiferente ao próprio futuro dos seus filhos, pois a cidade que estes irão herdar é isso que vemos e cotidianamente sofremos à nossa volta.
(Postado no Facebook, 14 maio 2015).

O tédio militante
Borges: a política é uma das formas do tédio. Cito a frase antes de tudo por espírito de provocação, embora acredite que contém muito de verdade. Cito-a porque me entedia correr os olhos pelo mural do Facebook e ver, não ler, as mesmas e previsíveis postagens. Não me limito a vê-las por ser indiferente, mas simplesmente por já sabê-las de cor. Por isso dou razão a Borges, o grande reacionário argentino, o gênio literário que foi aviltado durante décadas pela esquerda latino-americana. Cito também Glauber Rocha, embora noutro contexto: Chico Buarque é o Tom Mix da esquerda. A frase é do tempo em que Chico, escudado pela sua fama e pela sua admirável integridade, resistia quando todos nós silenciávamos temendo os castigos da ditadura. Hoje, quando se diz tudo, sobretudo a futilidade e a mentira, qualquer um é Tom Mix: diz o que quer no mural do Facebook, sempre o previsível, e vai dormir em paz com a sua consciência. Preferiria ler um reacionário consciente, responsável pelo que diz.
(Postado no mural do Facebook, 9 de maio 2015)


sexta-feira, 20 de março de 2015

No Mural do Facebook III


O Capital Moral do PT
Penso que a mais nefasta conseqüência moral da corrupção que corroeu e destruiu a identidade ideológica do PT, não obstante a cegueira tenaz dos sectários, consiste na degradação do capital moral que ele infundiu na política brasileira. O PT representou, sem dúvida, a maior renovação democrática e partidária do Brasil. Foi o primeiro e único partido formado a partir das bases mais conscientes e organizadas da classe trabalhadora associada aos movimentos mais avançados da sociedade: as comunidades eclesiais da Igreja católica e os melhores setores da esquerda saída da ditadura. Mesmo gente como eu, que nunca foi petista, reconheceu esse sopro de renovação política trazido pelo PT. Durante anos, apesar dos erros inevitáveis e do radicalismo muitas vezes desastrado, o PT simbolizou para os melhores setores da sociedade uma alternativa progressista e uma fonte de inspiração ética.
Confesso que comecei a duvidar dele e do seu discurso quando Marilena Chauí se impôs nos anos 1980 como a articuladora da ética da transparência. Quem lembra ainda o que dizia bradando e fazendo coro indignado com Lula, sempre raivosamente moralista, contra os demais partidos? Quem lembra o tom arrogante desse discurso banhado pela pureza redentora de uma tradição utópica investida da missão autodelegada de salvar o mundo? Encurtando o enredo, vejam onde o PT acabou. Por mais que queiram apagar a luz do sol que ilumina a realidade no calor do meio-dia, não há como negar que o PT seguiu e até radicalizou a trilha das nossas tradições corruptas. O maior estrago, como comecei dizendo, foi a dissolução do capital moral que simbolizava para os melhores setores da nossa sociedade, para aqueles que acreditavam em alternativas políticas progressistas e realmente transformadoras. Agora, queiram ou não os sectários, o PT é apenas um partido igual a tudo que combateu desde a sua origem promissora. Isso concorreu não apenas para dissolver promessas e esperanças de mudança qualitativa, mas também para promover o vale-tudo que observamos disseminar-se por toda a sociedade. Esse é o mal mais maligno que o PT promoveu na política e na sociedade brasileira.
(Postado no mural do Facebook, 18 de março 2015).

A Irracionalidade dos Petistas
Sérgio Ferraz mencionou Stanislaw Ponte Preta aqui no mural do Facebook. Isso me fez lembrar um samba muito inventino, de fino humor, como tudo que Stanislaw escrevia e criava, intitulado Samba do Crioulo Doido. A letra, para quem não conhece o samba, é uma condensação delirante da história do Brasil, uma paródia maluca de samba-enredo das escolas de samba. Lembrei o samba porque tenho lido o que muitos partidários do PT escrevem sobre os últimos acontecimentos. É uma mistura maluca de ignorância e sectarismo movida a paranóia e desprezo cego pela realidade. Não sei sinceramente o que dizer a essas pessoas. Há muito procuro compreender a irracionalidade humana, sobretudo no plano das relações amorosas, religiosas e políticas. Cheguei à conclusão de que o ser humano é em princípio, dependendo das circunstâncias, capaz de acreditar em qualquer coisa. O mais grave é que nossas crenças mais primitivas, impermeáveis à prova dos fatos e da razão, têm sido e continuam sendo uma fonte de horrores na história humana. Lembrando outro samba, este de Paulo Vanzolini, confesso que me rendo à força dos fatos. É inútil argumentar racionalmente com quem está enceguecido pela ideologia. Como também estou farto de enganação e desconversa delirante, vou cair fora deste mural.
(Postado no mural do Facebook, 17 de março 2015).

Crise política e golpismo
Faz vários dias que alguns vizinhos golpistas bradam nas varandas contra Dilma e o PT entre sopros de apito e vuvuzela. Os otimistas ou crédulos acham que nossa democracia é sólida simplesmente porque, depois da ditadura, foi promulgada uma “constituição cidadã” e algumas instituições básicas funcionam. Antes isso do que o pior, friso. Daí a acreditar que vivemos numa autêntica democracia, o erro me parece provável. Uma verdadeira democracia supõe conquistas que estamos ainda muito longe de alcançar. Ficando no miúdo, faltam-nos de fato direitos que todo Estado democrático assegura ao cidadão (que nunca fomos), sobretudo quando a sociedade é sangrada por impostos extorsivos. Que direitos são esses? Moradia, saúde, educação, segurança, transporte... em suma, uma vida social verdadeiramente digna e cidadã. Os anos de governo do PSDB e do PT promoveram avanços significativos em várias áreas, mas no essencial nada mudaram. Volta-se a falar em reforma política e reforma social como falavam antes do golpe que instaurou a última ditadura. O enredo essencial é ainda o mesmo, insisto. Enquanto não houver uma reforma social profunda no Brasil, o risco da regressão golpista, das soluções de intolerância e força, que nada solucionam, continuará rondando este país de muita esperança e pouca mudança.
(Postado no mural do Facebook, 15 de março 2015).

Corrupção
Li as várias tentativas de explicação da leniência ou cumplicidade generalizadas de brasileiros de diferentes perfis em face da corrupção. Suponho que nenhuma parece suficiente, tanto que continuamos propondo razões de variável consistência. Longe de mim propor uma que satisfaça a mim próprio. Não obstante, acrescento alguns palpites. Antes de tudo, a corrupção está entranhada em toda a nossa formação social. Portanto, mais do que nos casos de incidência rotineira em outras sociedades, no Brasil a força explicativa do etnocentrismo é muito mais poderosa. O etnocentrismo é uma verdade consensual na antropologia e na psicologia social, isto é, tendemos inconscientemente a aceitar os valores e práticas dominantes na sociedade em que vivemos. Por isso há muito passei a dar importância muito maior a quem diz não, a quem nada na contracorrente. Ademais, o racionalismo ensinou-me paradoxalmente a perceber o quanto o ser humano é movido pelas paixões. Esta é a força talvez mais poderosa das ideologias, um complexo abstrato de interesses e desejos passível de cegar as inteligências mais agudas. Quando penso nas sandices em que gênios como Rousseau, Marx, Engels, Trotsky e Rosa Luxemburgo acreditaram (para citar apenas alguns exemplos de utópicos de esquerda), concluo que o ser humano pode em princípio acreditar em qualquer coisa. Em suma, entre todas as crenças mais delirantes talvez a mais sustentável seja acreditar em Deus. Pelo menos não há como demonstrar racional e empiricamente sua inexistência. Talvez no fundo o católico Chesterton tenha razão: quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, passam a acreditar em qualquer coisa. Se alguma coisa aprendi, foi a contentar-me com meu racionalismo que muito pouco explica e por isso se acautela contra qualquer tipo de presunção dogmática.
(Postado na Revista Será? em 22 fevereiro 2015)