sexta-feira, 15 de julho de 2016

No Mural do Facebook XXI


A Solidão e seus Avessos:

Leio uma pesquisa sobre os efeitos nocivos da solidão. Esses efeitos seriam não apenas psíquicos, mas também orgânicos. Não discuto isso, até por não ter competência para tanto. O que discuto é o conceito de solidão implícito nessas pesquisas que ocasionalmente leio. É como se o sentido da solidão fosse evidente. E daí para as confusões rotineiras a passada é bem curta. Por exemplo: o solitário, compreendido negativamente, é o que vive ou está sozinho. No Brasil em particular, onde ainda são fortes os vínculos de família e gregarismo, o solitário é visto com um vinco de preconceito inegável. Se você é solitário, não casado ou não casou, não tem família identificável, é provável que seja uma pessoa difícil, complicada, no limite deslize para a misantropia.
Como sou parte da categoria dos solitários reconhecíveis, esclareço que os momentos mais belos e prazerosos de minha vida foram momentos de convívio, momentos inconcebíveis sem o outro que é meu semelhante e amo ou amei. Por isso fico à vontade para desmentir os preconceitos acima, embora pouco articulados. Além disso, falo um poucos dos que estão do outro lado da cerca, para que fique claro que essas distinções nunca são simples.
Não conheço nenhuma família feliz, contrariando o inesquecível capítulo de abertura de Anna Karenina, de Tolstoi. Também ressalto a solidão dos que vivem em família, como foi meu próprio caso. A solidão dos amantes, mesmo os que se amam de verdade. E quantas vezes não ouvi confissões intransmissíveis de amigos de ambos os sexos no momento em que desce o pano das convenções hipócritas?
Só um exemplo recente: a meio de uma consulta médica com um amigo, disse que gostaria de casar. Aleguei estar ficando velho, etc. Ele retrucou imediatamente: "Não faça uma loucura dessas. Estou casado há 25 anos e vivo de mentiras e conflitos. Não me separo porque não sei viver sozinho, como você".
Em suma, não recomendo solidão a ninguém. O que sei é que amo a minha, na medida em que é voluntária, na medida em que a tornei parte dos meus mais rotineiros e indispensáveis ofícios e prazeres: a leitura, a arte, a música, a reflexão, a carência pura e simples de ser comigo o que somente comigo posso ser. Mas existe também a solidão involuntária, que é dolorosa, mesmo na vida de quem escolheu e ama a solidão. Quem acaso tiver interesse em refletir melhor sobre o assunto, recomendo o livro Solitude, de Anthony Storr. Soube que foi traduzido no Brasil, não sei se com o mesmo título. É um livro belo, sensato e isento dos preconceitos correntes sobre a solidão e seus avessos.
(Publicado no Facebook, 10 de julho de 2016).

Literatura não é biografia:

O poema não é um documento biográfico, me disse meu amigo poeta. A frase lhe saiu com sabor de queixa, do desânimo de quem se sente incompreendido pelo leitor. Como todo autor, ele precisa do leitor, é em parte por este que escreve, mas seus poemas não são documentos biográficos. Lidos nestes termos, o leitor concluiria que seus poemas são a confissão de um homem solitário e insone, atormentado por memórias dolorosas. Foi isso o que lhe disse uma amiga com a comovente intenção de o consolar de suas dores derivantes do modo como ela leu o poema. Era um poema, claro, sobre a solidão e a insônia.
Mas o poema, repisa o poeta, não é um documento biográfico. Ele dorme bem, vive em paz com sua memória, embora sofra a carência do amor, a aridez desses tempos difíceis que vivemos: tanta infelicidade e solidão gritadas e dissimuladas nas redes sociais contra os políticos corruptos, com perdão da redundância, contra as mazelas insanáveis do Brasil.
O poeta, ser sensível decerto em demasia, lamenta não apenas a incompreensão da leitora que desastradamente o consola, mas a realidade sem vias de fuga. Ora, dirá quem me lê, como um poeta não encontra na imaginação vias de fuga da realidade? É outra incompreensão que também desola o poeta. Como é banal o preconceito de que a poesia é uma fuga do real. Lembrou-me o dia em que, cuidando de um amigo operado num hospital, recebeu a visita de uma médica enquanto lia Drummond para o enfermo, gravemente enfermo. Nunca esqueceu o que ela disse: "Por favor, não me fale de Drummond. Estou farta de realidade".
Em suma, todo poema verdadeiro é necessariamente belo, mas talvez insuportável para quem se contenta em viver na superfície da realidade ou simplesmente não suporta a provação do mergulho para o fundo da superfície. Por fim, reiterando ainda a queixa do poeta, o poema não é o reflexo do que o poeta vive. O poeta é uma antena do que é humano, não Narciso enamorado de si próprio nas águas da arte.
(Publicado no Facebook, 14 de julho de 2016).

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