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segunda-feira, 12 de maio de 2014

A Sabedoria de Montaigne III


Pena que a mera leitura não seja transmissora de sabedoria, como de resto observei já na entrada deste ensaio improvisado num fim de semana que me privou voluntariamente de gente para me propiciar mais uma vez horas de serena acomodação do meu eu insolúvel com minha natureza desencontrada dos mais altos ideais a que aspiro. Mas sei que escolher a companhia de Montaigne e costurar palavras confusas num ensaio inspirado pela sua leitura é marchar na contracorrente do tempo, colidir com a realidade que cegamente flui para além da paisagem da minha janela. Há um abismo tão grande entre este ensaio e o que ele demanda da minha vida para o compor que encerro me interrogando inquieto sobre o lugar que Montaigne e sua sabedoria podem ainda ocupar nesse insensato mundo em que vivemos.
Homem da biblioteca e da estrada, insulado na sua torre e ator político num tempo de turbulências inusitadas, cultor da sabedoria dos antigos e prefeito mediando com sua sabedoria cética e prática facções contaminadas pelo fanatismo religioso, Montaigne foi e se sabia um tecido esgarçado de contradições. Por isso o gênero que criou, o ensaio, parece amoldar-se na sua forma como uma luva à mão cuja natureza é mover-se e contradizer-se a cada movimento da vida. Já assinalei a sabedoria com que foi capaz de converter a dúvida em virtude tolerante e sempre receptiva à fluidez da vida que a tantos transtorna. Por isso o comum da nossa humanidade, já antes também ressaltei, se refugia em certezas isentas de exame e não raro de fundamento aferível na ordem da verdade assimilável pela experiência refletida.
Montaigne viajou como um homem de espírito livre. Num tempo em que ninguém sonhava com a antropologia, comportou-se com curiosidade insaciável e tolerante em meio a uma realidade regida por valores opostos aos seus. Mesmo em tempos banais, quero dizer, isentos de conflitos e guerras provocadas pela intolerância religiosa e política, viajamos no geral com olhos cegos, olhos impermeáveis à desconcertante diversidade e até franca oposição entre culturas e modos humanos de ser. A diversidade humana é tão inesgotável, como bem sabia ele, que demanda uma renúncia consciente e esclarecida ao etnocentrismo, se acaso queremos efetivamente nos compreender melhor, fundar num mundo globalizado modos renovados e mais universalistas de convívio entre culturas tão divergentes.
Saltando francamente do tempo em que Montaigne viveu para o presente, acredito que ele poderia servir de fonte inspiradora para uma humanidade que hoje introduz na nossa experiência condições históricas sem precedente. A revolução digital, a globalização irreversível do capitalismo, a redução drástica das fronteiras nacionais e culturais, tudo isso criou condições absolutamente originais de relação entre nações e povos, entre culturas e formas políticas de reordenamento do mundo. Nunca como no presente o mundo se tornou tão pequeno e palpável no sentido em que agora todas as nações e povos afetam uns aos outros graças à revolução sem precedente desencadeada pela tecnologia e à globalização do capitalismo cuja soberania, queiramos ou não, é inquestionável.
Diante da realidade acima esquematicamente esboçada, me pergunto que respostas culturais e mentais temos dado a esse mundo novo? No meu entender, continuamos tão prisioneiros da nossa natureza pequena, aquém das conquistas espantosas que a inteligência humana produziu no plano da invenção científica e material, que me sinto incapaz de antever o futuro com olhar otimista. Se de um lado o mundo encolheu a realidade, no sentido acima sugerido, de outro seguimos confinados nos limites da nossa percepção etnocêntrica da realidade.
O turista é um tipo que ilustra muito bem o que intento sugerir nestas linhas. Hoje milhões de pessoas cruzam fronteiras nacionais e mergulham como cegos de muleta em países e culturas cuja diversidade poderia induzir-nos a refletir melhor sobre a natureza das relações que estabelecemos dentro de uma espécie que, não obstante sua estonteante pluralidade, habita o mesmo planeta e compartilha um substrato humano comum. No entanto, a evidência disponível, apreendida nos relatos mais comezinhos dos turistas que cruzam fronteiras a toda hora, parece indicar que nada aprendemos. À diferença de Montaigne, cuja sabedoria partia de sua singularidade subjetiva para compreender e conviver com a humanidade compreendida na sua dimensão universal, vivemos como prisioneiros da caverna regida pela nossa nação, nossa cidade, nosso bairro e, no limite, nossa subjetividade tacanha, enclausurada no nosso egoísmo ferrenho, na nossa incapacidade de abrirmos as fronteiras do nosso ego narcísico para modos mais tolerantes e altruístas de convívio. Esse cerne psíquico aqui sugerido, que é antes de tudo biológico, está na raiz da nossa infelicidade, na nossa incapacidade de convívio mais harmonioso que nos aprisiona na nossa solidão ou desloca nossa carência de convívio e amor para espécies como as do gato e do cachorro. Estas nos propiciam pelo menos um tipo de segurança e certeza: amam privadas de liberdade.
Nossa espécie não é geneticamente determinada. Isso me parece distingui-la ou afirmar sua singularidade no reino da natureza que Montaigne teve a sabedoria de identificar como o fundamento último da nossa condição. A liberdade da espécie que nos diferencia e separa do reino da natureza é a mesma que ameaça a nossa sobrevivência enquanto espécie. O que faremos dessa liberdade? Que mundo imprevisível brotará dessa interrogação angustiante e sem resposta? É claro que a obra de Montaigne não tem resposta para a pergunta nem nunca se propôs respondê-la. Não obstante, ela continua piscando na escuridão da nossa natureza insolúvel vias céticas que iluminam nosso caminho cujo fim se desdobra em direção a uma única certeza: a da nossa morte. Seu ceticismo, a dúvida com que interroga a realidade com disposição acolhedora, já que o sábio é aquele que diz sim ao real, libertou-o de todas as certezas que nos fecham as fronteiras do mundo e nos transformam em dogmáticos possuídos pela intolerância e o medo destrutivos.
Um dia, num castelo remoto, um homem de 37 ou 38 anos recolheu-se à solidão da sua torre depois de perdas dolorosas: a do seu pai, que tanto amava e lhe concedeu uma educação excepcionalmente refinada, a de um irmão e sobretudo a do seu amigo Étienne de La Boétie. Este suportou uma morte lenta e dolorosa assistido até o fim pelo amigo que mais tarde lhe dedicou um ensaio comovente: Da amizade. Na biblioteca da sua torre, cercado pelos livros de filosofia e história dos antigos sábios gregos e romanos, Montaigne um dia começou a escrever os seus ensaios. De início não passavam de peças curtas vazadas em estilo convencional e versando temas que se acumulavam e com freqüência traíam nos títulos enganadores as expectativas do leitor. A composição dos ensaios, compreendida a totalidade da qual resultou a obra definitiva, estendeu-se por certa de 20 anos. O homem que os compôs voltou ao mundo, do qual nunca verdadeiramente se isolou, mais livre para viver e ensinar a viver, embora nunca se propusesse isso como diretriz. Se de início acreditava que filosofar é aprender a morrer, título que conferiu a um dos ensaios, a experiência refletida findou por persuadi-lo de que é vivendo que se aprende a morrer, se é que de fato aprendemos. Tudo indica que aprendeu. Quanto à obra que legou à posteridade, ela prossegue iluminando a busca tateante de leitores que, como eu, reconhecem nas suas páginas a voz singular de um amigo inspirador. Seu nome, repito, é Montaigne.
E por aí, falam as más línguas, vai Montaigne trotando estrada a fora. Passam os séculos, nós com eles, e todavia ele nos comunica ainda e sempre o sopro de uma voz cuja humanidade poucos alcançam articular. Ele pega a estrada em tempos de turbulência arriscando perder o que não perdem os que ficam sensatamente em casa, mas recolhendo no trânsito da viagem bens e prazeres somente concebíveis em quem corre os riscos de viver. Se na estrada os salteadores o tomam de assalto, ameaçando sua própria vida, ele é capaz de desarmá-los não com as armas mortíferas dos assaltantes e outros inimigos da vida, mas com a energia serena do seu caráter impressivo, o caráter daqueles cuja natureza superior se revela na fisionomia e nos atos banais da vida. Assim desarma os que contra ele se armam sem disparar um tiro; assim por vezes nos persuade da força desarmada dos sábios e justos.
Como não sou Montaigne, viajo na sua companhia puxado pela sedução dos seus ensaios que me empurram pelas estradas sem que eu precise mover um pé. Viajo ao trote seguro do seu livro como noutros tempos e circunstâncias viajei gargalhando com Dom Quixote e Sancho através dos caminhos delirantes que aquele me descortinava afrouxando a andadura à sombra de pousadas de beira de estrada, sonhando moinhos de vento que nunca vi nesse mundão de Brasil que já percorri de carro com meu sempre presente amigo Daniel Lima, um Quixote de província tão real quanto eu. Esses amigos, imaginários e reais, deixaram na estrada vivida, assim como na memória com que hoje os atualizo, uma inefável sensação de vida belamente fruída. Essa sensação é da ordem da gratuidade das coisas humanas que somente os seres dotados de generoso acolhimento da vida conhecem. Esses raros que acabo de rememorar existem na vida imaginária da literatura e também na realidade sensível. É por vivê-los que, para além do meu ceticismo por vezes desolado, posso dizer que vale a pena. Viver. Nós que tanto medimos o tempo vivido, até o que nem sabemos ainda se o viveremos; nós que trocamos o tempo por dinheiro, o gosto de viver pelo abuso perdulário dos que simplesmente se gastam e gastam a vida, nós pouco sabemos dessa gente e temos o coração aleijado demais pelas práticas perversas da utilidade, do cálculo, do interesse frio que rege o movimento de nossas vidas.
Montaigne é um mundo sem preço. Ele nos atrai para os caminhos através dos quais viaja e quando nos damos conta do tempo a cidade é já outra, outro o mundo viajado. Ele nos engana matreiro sugerindo nos títulos dos ensaios que lemos trilhas equívocas, roteiros que nos confundem. Mas o encanto da viagem é tanto, tão singular o fio de sabedoria que nos puxa pelas curvas do caminho que nos deixamos docilmente levar através das digressões infinitas que ele vai abrindo à direita e à esquerda. Ele nos promete falar dos coxos, das fisionomias, de uma ilha remota, promete mundos e fundos, mas ao cabo o que nos comunica é algo muito além de tudo que acaso tenhamos previsto ou desejado: ele nos comunica a experiência de um homem que nos descreve a sabedoria cuja substância podemos extrair da nossa humana e pequena condição. Ele nos lembra simplesmente isto:
“Saber lealmente gozar do próprio ser, eis a perfeição absoluta e divina. Nós só desejamos condições diferentes das nossas porque não sabemos tirar partido daquelas em que nos achamos. Saímos de nós mesmos porque ignoramos o que nos compete fazer. Embora usemos pernas de pau, temos de mexer as do corpo para andar, e é com o traseiro que nos sentamos no mais alto trono do mundo” (Obra citada, Vol. II, Da Experiência, p. 397).
Trocando o citado em miúdos, tudo que precisamos é dizer sim ao real, outro sim humilde à nossa condição, cuja natureza falível está expressa no traseiro sobre o qual sempre nos sentamos, sejamos reis ou plebeus, poderosos ou humildes lavradores como os que lavravam as terras do nobre Montaigne. No mais, o que nos resta é viver e isso é muito, ou tudo que podemos. Viver simplesmente. Mas quem sabe fazê-lo com a sabedoria deste que dissolve toda a poeira transcendental da experiência humana ao nos lembrar de que isso é muito, senão tudo?

quarta-feira, 7 de maio de 2014

A Sabedoria de Montaigne II


Montaigne afirma e reitera sem meias medidas que é a si próprio que toma como medida da natureza inapreensível do sujeito. Até às bordas do Renascimento, assinalado no conjunto das mudanças que desencadeou como um verdadeiro abalo sísmico na história da humanidade, o mundo era ainda concebido como um cosmos, um todo ordenado em cujo centro pairava soberana a ordem teológica instituída pelo catolicismo. Quando a ciência se desprende da teologia e a Europa dilata os horizontes geográficos do mapa estendendo-os até à América, uma realidade absolutamente nova irrompe na realidade pensada pelos filósofos e governada pela nobreza e o clero. Esse abalo tremendo, apesar das temíveis forças de reação desencadeadas pela religião católica e por todas as instituições conservadoras do velho mundo, repercutiu inevitavelmente no âmbito da filosofia e demais campos de saber. Os ensaios de Montaigne são um sintoma e uma evidência dessas turbulências que na esfera religiosa se traduzem numa prolongada e devastadora guerra civil. Por pouco esta não provocou a desintegração da unidade nacional da França.
Montaigne viveu e pensou no centro desse furacão. Depois dele, um outro francês, Descartes, revisou radicalmente todos os fundamentos da filosofia que o precedeu para enfim propor um sistema de explicação racionalista do mundo fundado na evidência inabalável do eu pensante. Assaltado por tantas forças destrutivas da velha ordem, o edifício precário da filosofia por pouco não desmoronou escorado por crenças dogmáticas que a própria tentativa de reforma liderada por Lutero, Calvino e outros radicais concorreu para periclitar ainda mais. É dentro desse contexto de profunda crise histórica que Descartes postula o eu pensante como fundamento primário de certeza para daí deduzir todo um sistema de reconstrução da filosofia. Mas Montaigne veio antes, quando a crise, pelo menos no terreno religioso, era bem mais aguda. Além disso, como também antes observei, Montaigne nunca teve a pretensão de elaborar um sistema filosófico passível de reordenar o mundo sacudido pelas mudanças desencadeadas ao longo de dois séculos de mudanças observáveis no desenvolvimento da ciência, da religião e da arte. A irrupção devastadora da Reforma Protestante, instituindo a liberdade de interpretação dos textos sagrados, representou, entre outros conflitos, a pulverização de qualquer unidade de sentido no âmbito da hermenêutica filosófica e religiosa. Essas disputas logo transbordaram das abstrações semânticas e interpretativas para o solo cruento da história onde distintas seitas religiosas se entredevoraram em nome de Deus e de verdades absolutas que céticos como Montaigne reconhecem como relativas.
Foi dentro desse contexto turbulento acima esboçado que Montaigne viveu ao longo de quase toda a segunda metade do século 16. Uma das evidências de sua sabedoria consiste na liberdade subjetiva que preservou vivendo no centro do turbilhão que foi a guerra civil cujas sucessivas explosões impuseram à França estados de violência e divisão extrema. Embora católico confesso, Montaigne nunca se deixou contaminar pelo fanatismo religioso. Se na esfera pública declarava sua fidelidade à tradição católica, no pacto subjetivo que forjou para o exercício da sua subjetividade privada prevaleciam as práticas da liberdade tolerante e cética, tanto quanto as evidências disponíveis me autorizam deduzir. Eleito prefeito de Bordeaux, à revelia de sua vontade ou ambição, esteve à frente do poder na região onde era mais radical o conflito entre católicos e huguenotes, ou protestantes. A sabedoria com que se conduziu em meio a conflitos extremos evidencia-se no predomínio da tolerância que alcança articular entre facções belicosas. Apesar de as facções extremas – huguenotes versus a Liga católica – ameaçarem durante anos deflagrar mais uma vez na região uma guerra que entre tréguas precárias estendeu-se ao longo de toda a segunda metade do século, Montaigne e Matignon, chefe militar das forças reais na região, valeram-se astutamente da diplomacia e do poder intimidante, quando necessário, para manter a paz. Assim procedendo, asseguraram uma paz tensa, mas efetiva, em meio aos anos mais ferozes da guerra civil. Esse feito é ainda mais extraordinário se lembramos que teve como cenário a região onde os conflitos religiosos eram mais extremos.
Os fatos acima são suficientes para demonstrar que Montaigne não foi um filósofo contemplativo insulado na torre do seu castelo. Sua personalidade complexa e contraditória acomodava sem desequilíbrio sensível o homem recluso, voluntariamente recolhido à sua biblioteca, e o homem de ação cuja biografia registra não apenas uma relevante carreira militar, mas também o prazer de a viver, o prazer do convívio viril entre homens votados ao exercício da guerra e do combate armado. É certo, contudo, a julgar por suas próprias palavras, que nele prevalecia o homem tendente ao cultivo das letras e da filosofia. Afinal, não foi apenas por força da grande dor advinda da morte do seu amigo Étienne de La Boétie que aos 38 anos retirou-se da vida pública para devotar-se à solidão entre os livros. Este fato crucial, a perda do amigo que foi o bem mais valioso de sua vida, agravou os sintomas de melancolia que confessa num dos ensaios.
Parece-me importante salientar os fatos acima para que o leitor desprevenido não conclua indevidamente que Montaigne viveu a partir de então insulado na sua torre de marfim. Apesar de essas condições e o ambiente privado da torre e do castelo prevalecerem a partir de então; apesar de com o decorrer do tempo agravar-se a doença genética que por fim o matou, cálculo renal, Montaigne manteve intacto o elo substancial entre o estudo continuado dos sábios antigos que inspiraram sua sabedoria e a vida vivida orientada por seus princípios filosóficos. Estes ele os assimilou, num primeiro momento, imantado à tradição estoica. Esta, como bem ressaltou Pierre Villey num amplo e esclarecedor ensaio sobre a obra de Montaigne, Os ensaios de Montaigne, é mais perceptível nos primeiros ensaios. Segundo Villey, o estoicismo abraçado por Montaigne é fruto antes de sua imaginação de leitor do que propriamente de sua experiência e convicção profunda. Suponho que as exigências extremas do estoicismo, demandando da vontade uma energia e tenacidade em face da privação e da dor de existir raramente factíveis na nossa condição tão vulnerável e inconstante, contrariava as disposições temperamentais mais profundas de Montaigne.
Se de um lado esmerou-se no exercício da vontade, demonstrando diante da dor e da adversidade coragem e resistência dignas de um estoico, de outro tendia para o prazer de viver, para certa propensão hedonista inconciliável com o rigor austero do estoicismo. Isso por certo explica, retomando as ponderações de Pierre Villey, sua transição para a filosofia cética inspirada na leitura de Plutarco e sobretudo de Sexto Empírico. O que estes propõem a Montaigne como ideal de vida, e aqui confesso basear-me diretamente em Villey, é uma filosofia que corresponda às tendências predominantes do ser humano, não uma exigência de austeridade que no limite compromete o que há de saudavelmente humano em nós. O espírito de extrema austeridade dos estoicos é evidente, por exemplo, quando partindo do reconhecimento da realidade humana como uma experiência de sofrimento e transitoriedade postulam a indiferença em face da morte dos próprios filhos, dos que mais intimamente amamos. Como pregava um deles, abraça todos os dias o teu filho como se o fizesses pela última vez. Lembra-te de que ele e tudo são votados para a morte. Dessa compreensão da condição humana baseada numa negatividade extrema decorre a necessidade da constituição de uma vontade tenaz, uma vontade forjada com uma matéria que me parece exceder a medida humana razoável. Diria mais. Diria que essa filosofia tecida com preceitos tão extremos ultrapassa a fronteira de um pensamento heróico convertendo-se em arrogância e insensibilidade. É contra esses extremos da filosofia estoica que Plutarco se bate e aproxima Montaigne da sua obra, logo em seguida da de Sexto Empírico.
Foi dentro da moldura acima canhestramente esboçada que Montaigne produziu seus ensaios mais maduros e definitivos, isto é, afastando-se da vontade férrea do estoicismo ou de outro modo temperando-o com as virtudes mais amenas e humanas do ceticismo e do hedonismo. Caberia ainda realçar o papel que a filosofia cética desempenhou na sua vida e obra. No seu tempo, que foi de mudanças avassaladoras, como antes frisei, a Europa descortinou horizontes humanos e naturais até então desconhecidos. Noções secularmente estabelecidas são sacudidas pela revelação de outros modos de cultura, outros costumes, línguas e modos até antagônicos de ser. Essa realidade é patente, por exemplo, no ensaio sobre o canibalismo, fruto do contato de Montaigne com índios brasileiros conduzidos à França. A composição do ensaio, é também evidente, não decorreu apenas do contato ocasional que manteve com os índios e da conversa conduzida por um tradutor. Movido por sua curiosidade insaciável em face do outro, do estranho, até do intolerável para tantos que se sentem ameaçados pela irrupção do inusitado ou imaginariamente inconcebível, Montaigne leu a bibliografia disponível sobre a América colonizada pelos europeus. Dentre as leituras que fez, destacam-se as obras do protestante Jean de Léry e a do católico André Thevet. Segundo Sarah Bakewell, autora de How to Live, uma biografia acessível e muito bem escrita e documentada de Montaigne, preferiu a do protestante Léry: Histoire d´un voyage fait en la terre du Brésil.
O detalhe acima, integrado ao contexto de intolerância religiosa e cultural da época, constitui mais uma evidência da liberdade subjetiva de Montaigne. A esse propósito, importaria mencionar uma longa viagem que empreendeu, apesar da sua doença renal e das condições precárias da época, através da Suiça, Itália e Alemanha. Além de extrair da viagem o melhor que pôde, seguia fiel os passos de sua curiosidade isenta de intolerância e de muitos dos preconceitos correntes no seu tempo. Na Alemanha conversou com protestantes movido pelo desejo de melhor conhecer e compreender aqueles que eram em princípio seus inimigos religiosos. Conversou ainda com judeus, assim como assistiu a rituais judaicos em uma sinagoga e conversou com prostitutas – não como se fossem objeto de prazer mercantil, sublinho. Sua curiosidade admirável e incansável está muito próxima do que hoje reconhecemos como sendo o trabalho de campo de um etnógrafo. Em suma, conduziu-se dentro do espírito de humanismo radical contido na frase de Terêncio que tantos já citaram através dos tempos: nada do que é humano me é estranho.
Montaigne foi um sábio, um dos raros filósofos que leio persuadido de estar lendo um sábio cuja sabedoria é pautada pelo bom senso, a compreensão profunda de nossa natureza tão retorcida e fascinante, tão complexa e perturbadora. Foi ainda um homem consciente do lugar que ocupamos na ordem da natureza. Por isso educou-se inspirado pelo humilde e resignado acolhimento do que na vida e no seu próprio corpo é natureza. Aliás, suponho que um dos mais sérios obstáculos para que alcancemos seguir-lhe o exemplo reside no profundo afastamento, senão mesmo divórcio, que o desenvolvimento da ciência e da técnica introduziram entre o ser humano e a natureza. Além disso, passamos a habitar formigueiros humanos onde se empilham milhões de pessoas imersas da luz da aurora ao fim do dia em ambientes artificiais. Essa realidade nos privou, por exemplo, do contato espontâneo e até inconsciente não apenas com o mundo da natureza, mas com a própria natureza que somos e nos habita. Espero que o leitor não leia essas breves impressões como uma queixa de nostalgia, mas como a constatação sumária de transformações profundas que, sem exagero, modificaram nossa natureza cavando um abismo entre natureza e cultura, as duas metades que nos constituem e todavia hoje se movem dentro de nós como se fossem metades cindidas. Por isso chegamos a extremos insensatos como a supressão da consciência e acolhimento da velhice, da nossa gradual impotência em face do curso irreversível da natureza e por fim em face da nossa morte.
Esse vínculo substancial entre o homem e a natureza é constantemente exposto nos Ensaios. Melhor dizendo, constitui o próprio fundamento da sabedoria assimilada e vivida por Montaigne. Diante do fantasma da morte, por certo a fonte mais renitente de medo que provamos na nossa existência, confessava confiar à natureza e sua fatalidade o curso e resolução de um processo que só nos cabe acolher e serenamente esperar. Deixava que a natureza cuidasse do que estava além do seu comando e desejo. Como assimilar essa sabedoria em face da nossa mortalidade, em face do medo que nos induz a tramar mil formas de protelação e refúgio, de ilusão e recalque, contanto que evitemos pensar o inevitável, suprimir da corrente da consciência nosso fim último?
III

domingo, 4 de maio de 2014

A sabedoria de Montaigne I


A sabedoria é um ideal ao qual muitos aspiram e raros efetivamente alcançam realizá-lo. Esses a quem me refiro não incluem por certo o grosso da nossa humanidade. Por isso tenho em mente os que se determinam a viver uma vida examinada, os que buscam para ela um sentido no geral enraizado em fontes filosóficas ou religiosas. Mas me parece certo que mesmo os que vivem e seguem vivendo indiferentes às águas turvas da metafísica e da transcendência, onde flui uma ordem de sentido existencial que bem poucos identificam e retêm, em determinadas circunstâncias se interrogam sobre o que são e o que é a vida. Embora nesse grau elástico aqui vagamente sugerido todos compartilhemos uma busca de sentido para a vida, parece-me certo que bem poucos convertem o exame da própria vida num modo refletido de ser, como se ser e pensar o ser fossem um modo singular e irredutível de se situar no mundo. Penso que isso é verdade, por exemplo, para homens como Buda, Sócrates e Montaigne, de quem me ocuparei neste ensaio.
Montaigne chegou mesmo a desqualificar o conhecimento teórico como fonte de sabedoria. Além disso, depreciava a filosofia acadêmica do seu tempo, ou mais exatamente a tradição escolástica. Também Descartes e Pascal, dois dos seus leitores com os quais compartilhava muitas afinidades, depreciaram ironicamente a filosofia. Tinham em comum o fato de imprimirem ênfase à experiência como fonte de sabedoria. Era raro no tempo de Montaigne um nobre enfatizar, como o fez, a sabedoria espontânea do camponês, do homem que lavrava as terras de sua propriedade. Observando o modo de vida do camponês, rente à linha da necessidade e por isso aderente ao movimento da natureza, Montaigne afirmou encontrar mais sabedoria neste do que nos filósofos que tanto refletiam sobre a morte sem todavia a acolherem com a sábia e resignada aceitação do camponês.
Acentuando talvez em demasia o papel da experiência, Montaigne incorreu em uma de suas muitas e reconhecidas contradições. Afinal, por mais que nos convença do quanto a experiência é decisiva na determinação do que somos e nos tornamos, não há como negar o fato de que foi um leitor apaixonado. Por mais que valorizasse a experiência e nela se refizesse e corrigisse, é patente na sua obra a correlação fecunda entre leitura e experiência, teoria e prática. Muito do tempo que viveu, desde a infância, foi devotado ao âmbito privado da sua biblioteca e mais tarde da sua torre onde, partindo de si próprio e de sua experiência, captava a passagem do ser, seu movimento incessante e as fontes de sabedoria que disso extraiu. Como deixar de reconhecer que no cerne dessas fontes estão os sábios antigos que tanto impregnaram sua experiência de leitor? O que ele alcança de modo singular, me parece, é o sábio equilíbrio entre vida pensada e vida vivida. Noutras palavras, dependendo de como pensamos e do que fazemos do que pensamos, pensar pode ser um modo de experiência.
Longe de mim a presunção de definir o que seja a sabedoria de viver. Penso apenas que é possível apreender a forma como teoricamente foi formulada e sobretudo vivida pelos poucos reconhecidos como sábios, como é o caso dos que acima mencionei. Seria todavia enganoso supor que a sabedoria vivida por Sócrates, tal como a expõe seu discípulo Platão, ou a de Montaigne, que se espelha no modelo do primeiro, seja transmissível através da mera leitura e reflexão. Supor isso seria confundir sabedoria com conhecimento. Alguém pode conhecer profundamente a obra de Montaigne e no entanto negá-la no exercício de viver. Quantos não vivem o avesso do que conhecem ou mesmo pregam, não raro inconscientes da contradição observável entre teoria e fato, entre conhecimento e vivência? Bastaria lembrar o lugar comum que irônica e certeiramente desmascara os que pregam indiferentes ao que vivem, quando não incorrem na ação desonesta consistente em empregar a teoria sedutora como instrumento de exploração dos incautos. Não é isso o que subjaz ao lugar comum: faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço?
Sócrates afirmou saber que nada sabia. Montaigne, fiel a seu ceticismo, limitou-se a interrogar: que sei eu? Sabia que repetir Sócrates, em cuja sabedoria tanto confessadamente se inspirou, seria já afirmar uma certeza. Fiel a esse postulado, o da incerteza de tudo, nada ensina ou prega na sua obra. Por isso seus ensaios constituem um exemplo vivo da impossibilidade de se ensinar a sabedoria. Ela não é ensinável simplesmente porque cada um precisa traçar o seu próprio caminho. O viajante, para não errar cego pelo caminho e se perder nas veredas e encruzilhadas que o atravessam, pode valer-se de um guia ou mapa. Este pode ser os Ensaios de Montaigne, digamos, sob a condição de que não incorra na insensatez de confundir a viagem com o mapa, a caminhada com o guia cuja obra ou expressão de sabedoria é fruto da viagem singularmente vivida, aquela que por ser única é irrepetível. Portanto, se se pode afirmar algo acerca da sabedoria, esse algo consiste no reconhecimento dessa singularidade da experiência que somente Montaigne pôde viver.
O ceticismo de Montaigne, condensado na interrogação acima citada, que sei eu?, sugere-me algumas reflexões sobre a dúvida como fundamento do conhecimento e da experiência de viver. A dúvida adotada por Montaigne, no plano das ideias procedente de sua leitura de Pirro e Sexto Empírico, é a dúvida que diria liberadora, antídoto eficaz para nos defender de toda forma de dogmatismo, do fanatismo religioso que sacudiu a França durante a maior parte do tempo em que ele viveu. As pessoas tendem correntemente a apreciar de forma negativa quem de tudo duvida, quem não adere a nenhum grupo ou corrente de fé e pensamento. A intolerância ou incompreensão impaciente com que repelem o cético é com certeza um sintoma da insegurança em que vivem, da incapacidade de suportar o peso da vida e da liberdade sem a escora consoladora de uma fé ou convicção inabaláveis e no geral inquestionáveis. Não as questionam, nem suportam quem o faça, porque temem o desamparo dos que não sabem viver sem tutela e mentor, sem um governo exterior à sua determinação e vontade. Rios de sangue e horrores de toda a natureza atravessam a história humana decorrentes da sede intolerante de dobrar e exterminar o outro que nos nega, que afirma convicções ou crenças opostas ou divergentes dos escravos da certeza. A dúvida de Montaigne é de natureza absolutamente contrária. Duvidou sempre para sobre a dúvida fundar um ideal de liberdade subjetiva passível de preservá-lo de qualquer movimento inspirado pela intolerância.
Embora tanto leia e releia Montaigne movido pelo desejo de assimilar alguns grãos de sabedoria, admito o fracasso de todos os esforços que tenho nesse sentido empreendido. Talvez a causa consista simplesmente no fato de que a sabedoria, se acaso logramos alcançá-la em algum grau, não é transmissível pela leitura dos poucos sábios que já existiram, ainda que o leitor a exercite, a leitura, com humildade concentrada, inteligência sensível e reflexão continuada. Assim como não se aprende filosofia lendo os filósofos, pois cada um precisa aprender filosofia filosofando ancorado nas condições singulares de sua experiência, menos ainda se assimila alguma sabedoria tomando-a de empréstimo a quem foi capaz de forjá-la para si próprio.
Se tomamos por filósofo aquele que é portador de um diploma de filosofia, ou ensina filosofia, o mundo está cheio de filósofos, pois a proliferação das universidades, em particular dos cursos de filosofia, verte aos milhares esse tipo de profissional no mercado dos saberes e ofícios. Se todavia queremos ser fieis ao sentido originário e etimológico da filosofia, há e sempre houve bem poucos filósofos no mundo. Se a filosofia, como ensina a origem do termo, consiste no amor à sabedoria, como tomar por filósofos os autores de dissertações, teses, livros e produtos similares despejados no mercado portando o rótulo de obra filosófica? Essa enxurrada de obras, procedente antes de tudo da demanda do mercado de reprodução institucionalizada do saber, pouco tem a ver com filosofia no sentido aqui explicitado.
Voltando a Montaigne, não é de estranhar que sua obra seja omitida nos currículos de filosofia no seu próprio país de origem, aliás um dos que ostentam mais longa e sólida tradição filosófica. Os Ensaios, segundo André Comte-Sponville, integram o currículo de história da literatura francesa, sendo portanto ministrados nos cursos de letras. Sendo mais preciso, no nível escolar correspondente ao que é hoje no Brasil o nível secundário. Deixando à parte os critérios arbitrários que regem a institucionalização dos campos de saber, a singularidade filosófica da obra de Montaigne é de fato demasiado indigesta para amoldar-se à normatização acadêmica da filosofia. Dentro dos parâmetros aqui implicados, é fácil remover Montaigne do cânone filosófico. Melhor dizendo, dentro desses critérios ele seria barrado na porta de acesso à universidade por qualquer aprendiz de Kant ou Hegel. Até Bertrand Russell, filósofo inquestionável em qualquer sentido concebível, praticamente o omite na sua A History of Western Philosophy.
O irônico, na omissão de Russell, reside no fato de que, apesar de se inscreverem em tradições filosóficas muito distintas, compartilham muita coisa. Depois de se afastar da aridez da filosofia técnica e mais especificamente matemática, passando o bastão para seu discípulo Wittgenstein, sobretudo depois de ser por este superado, Russell derivou para a filosofia moral. Nesse plano de sua obra me parece nítida a convergência com a orientação temática e mesmo estilística característica da tradição francesa, mescla de filosofia e literatura, procedente dos Ensaios. A imensa popularidade de que desfrutou, rara para um filósofo, derivou não apenas de sua militância política, mas também de obras aparentadas à tradição fundada por Montaigne. Lembraria, entre outras, A conquista da felicidade, O casamento e a moral, Elogio do lazer, Por que não sou cristão. Além disso, os ensaios que reuniu em volumes como Retratos de memória são vertidos numa prosa fluida e transparente como a de Montaigne. Acrescentaria ainda ser temperada por um senso de humor e ironia digno da melhor literatura cética que conheço. Essa prosa cativou milhares de leitores, leigos fascinados pela filosofia, como eu, e é também nítida na sua história da filosofia que acabo de citar. Indo além de Montaigne no fecundo acasalamento entre filosofia e literatura, Russell aventurou-se pelo campo da ficção. Se logo desistiu, muito pesou para isso a reserva crítica de Conrad, a quem tomou como modelo inspirador. Por fim, foi agraciado com o Nobel de Literatura, reconhecimento inegável tributado a um filósofo cuja obra, sobretudo a vertente que acima designei como filosofia moral, é uma refinada expressão da prosa literária.
Falando por mim, resigno-me à minha ignorância filosófica e dou as costas a todos esses gênios da história da filosofia que não apenas são de leitura obrigatória na academia, mas também imortalizaram-se como fundadores de sistemas filosóficos. Confesso presumir que de nada me serviria assimilar sistemas tão complexos, quando não impenetráveis e controversos. Se ao cabo lograsse efetivamente assimilá-los, hipótese bem improvável, não percebo o sentido que teriam para ajustar-se às demandas existenciais que me movem para a filosofia. O que em síntese procuro como leigo apaixonado pela filosofia é um suporte de sentido para a minha vida, uma fonte de saber que ilumine minha ignorância orientando de forma mais adequada e serena o curso incerto da minha vida. É isso o que encontro na leitura dos Ensaios de Montaigne. Como sabemos, ele não propõe sistema nenhum. Por isso, também por ignorar a ambição dos formalizadores de sistemas filosóficos, elaborou uma obra absolutamente singular na forma compositiva, assim como no conteúdo. Ao escrevê-la, Montaigne fundou conscientemente um gênero: o ensaio.
O ensaio é uma roupa de medidas tão frouxas, para não dizer descosidas, que é capaz de vestir qualquer corpo. Este, depois de bem acomodado, pode não apenas sentar-se à vontade, mas também elastecer os músculos, flexioná-los segundo os caprichos do organismo carente de movimento e daí erguer-se, andar, correr na direção que mais lhe aprouver. Em trânsito ou sentado, pode dar-se ao luxo de deitar sobre o papel qualquer assunto. Não é isso o que faz seu fundador? Montaigne espichou e refinou a forma. Tanto acomodou-a à sua subjetividade arbitrária que o leitor ávido de aprender, como é o meu caso, de tudo encontra nos ensaios. A subjetividade arbitrária que acabo de mencionar fica evidente quando Montaigne afirma pintar a passagem, não o ser. Isso é por certo um choque, ou heresia filosófica para quem durante séculos acreditou, seguindo a matriz metafísica de Parmênides, nas categorias absolutas que regem a existência do ser.
A passagem do ser, que Montaigne limitou-se a descrever consciente da impossibilidade de espetá-lo no papel ou imobilizá-lo na corrente da vida, explica a natureza do ensaio, que é antes expressão formal do ser inapreensível por qualquer sistema de pensamento do que capricho da subjetividade arbitrária do ensaísta. Nesse e em muitos outros sentidos, penso não ser exagero afirmar que Montaigne foi um dos fundadores da subjetividade moderna. Perseguindo o fio descosido do ser fluente que apreende fluindo nas mesmas águas em que navegam o ser e o sujeito que o pensa, sinto-me também transportado para as páginas do narrador caprichoso, aparentemente errático, que alguns séculos mais tarde brota da pena de Machado de Assis. Restringindo a alusão a alguns gênios fundadores da moderna tradição literária, lembraria ainda predecessores de Machado como Shakespeare, Cervantes e Diderot.
O ser homem, esse ser que somos e tão mal sabemos, tão mal intentamos definir ou explicar, é tão diverso e mutável que nos escapa tão logo tentamos apreendê-lo paralisando-o na sua fluidez contínua quando em vão o retemos nas linhas esgarçadas de uma definição. Montaigne tinha absoluta ciência disso, como bem o demonstra nas palavras que cito:
“Pinto-o como aparece em dado instante, apreendo-o em suas transformações sucessivas, não de sete em sete anos, como diz o povo que mudam as coisas, mas dia por dia, minuto por minuto. É pois no momento mesmo em que o contemplo que devo terminar a descrição; um instante mais tarde não somente poderia encontrar-me diante de uma fisionomia mudada, como também minhas próprias idéias possivelmente já não seriam as mesmas”. (Ensaios, Do Arrependimento, vol. II, Editora Abril Cultural, p. 153).
II

domingo, 5 de maio de 2013

Como lemos, como nos lemos, como nos leem


Precisamos sempre explicar tudo. Sei que me repito citando Machado de Assis. O que me desculpa a repetição é o fato de sabê-la oportuna. Somente as pessoas muito primárias acreditam que as palavras e a totalidade dos signos que regem a comunicação humana são transparentes e unívocas, assim como somente os hermeneutas herméticos acreditam que a linguagem é um solo minado soterrando sentidos sempre indeterminados. Baixando a bola, o fato é que a linguagem e portanto a comunicação humana não são nunca transparentes. Isso evidentemente não impede o comum das pessoas de aspirarem a mitos como a alma gêmea, a comunhão e transparência propiciadas pelo amor, a comunidade ideológica ou religiosa etc.
O amor não é nunca transparente. O que nele os afortunados encontram, e talvez apenas nele, é um estado de comunhão sensível ou carnal, uma iluminação intelectualmente inexplicável. Daí dizê-lo, nesses estados ou momentos miraculosos, daí dizê-lo inefável. Ou ainda: estados de epifania, de iluminação espiritual irrompendo dentro da banalidade da vida. Mas lembremos o verso de Manuel Bandeira: “Os corpos se entendem, mas as almas não”. Uma evidência banal: sei de muita gente, inclusive eu, que viveu no amor o estado acima descrito, estado de êxtase e epifania, com parceiros em tudo diferentes e desiguais. Como conceber uma comunhão de almas, ou simples afinidade espiritual, entre amantes tão desavindos? Logo, é na carne que se entendem, é na misteriosa mina dos sentidos (carnais, friso) que lavram o gozo e o êxtase, não nas abstrações transcendentes da alma.
Se a comunhão e o entendimento transparentes são alcançáveis através do amor, então isso se dá talvez numa ordem distinta de amor: na ordem do amor amizade, do amor baseado na comunidade espiritual e mística. Seria talvez o caso de lembrarmos o amor de Abelardo e Heloísa, ou ainda a amizade de Montaigne e Étienne de La Boétie. Como Montaigne escreveu numa frase célebre, até transposta para uma canção de Chico Buarque: “porque era ele; porque era eu”. O rebaixamento da experiência amorosa a expressões boçais tão correntes no nosso tempo bem que pode dar margem a que se leia a amizade de Montaigne e La Boétie num registro vulgarmente homossexual. Bem posso imaginar alguém insinuando que ambos teriam inventado a parada gay na França do século xvi. Aliás, este modo de ler, o anacrônico, é outro modo de ler errado. Consiste em ler no passado sentidos que somente têm sentido no presente. Mas isso é outra história.
Não bastasse a inerente indeterminação de sentido das palavras, portanto também das nossas experiências fundamentais expressas na linguagem, agravamos nossos erros de leitura, nossas interpretações arbitrárias, projetando no texto e na vida uma angulação subjetiva que não raro distorce sentidos objetivamente expostos no texto e no âmbito da experiência. A leitura subjetiva, que facilmente se converte em subjetivismo, deforma o sentido objetivamente dado do escrito. Ela pode ser qualificada de muitos modos: subjetivismo de classe, de raça, de gênero, de religião, idade, nação etc. Mas o mais grave subjetivismo é o decorrente da ignorância.Em suma, o sentido lido pelo leitor tem a medida da sua ignorância.
Lembrando um exemplo pessoal, evoco uma personagem irrelevante que ficou um bom tempo na moda, o que prova a irrelevância cultural e ética dominantes na nossa cultura. Refiro-me a Geisy Arruda, que aliás foi até estrela do carnaval de Recife. Escrevi dois artigos sobre ela apenas com a intenção de pegar carona na sua celebridade supondo que ela poderia arrancar-me do meu infeliz anonimato. Tolo engano meu: Geisy entrou na moda enquanto eu afundei num anonimato ainda mais obscuro e amargo.
Mas o que ia observar a propósito de Geisy, já isento do tom de ironia talvez notado por meu improvável leitor ou leitora, é que fui grosseiramente incompreendido no que escrevi, assim como no que declarei num programa de televisão. Foram inúteis todos os meus esforços no sentido de me fazer claro, no sentido de fazer com que as pessoas me compreendessem. Por fim, já desanimado diante de tanta incompreensão, concluí que tudo que me restava era o refúgio do silêncio. A isso acrescentaria a memória remota de um seminário de literatura a que assisti quando era ainda estudante de letras. Discutia-se a interpretação do texto literário quando uma professora narrou uma anedota exemplar. Propôs a seus alunos a leitura de um belo e curto poema de Manuel Bandeira: Consoada. Nele o poeta usa uma metáfora para aludir à morte: a Indesejada das gentes. A professora perguntou a um aluno o que o poeta queria significar com esta metáfora. Resposta: a sogra do poeta. E pensar que Manuel Bandeira, como eu, nem sequer foi casado. Melhor cair no passo de olho no microvestido de Geisy Arruda.
Esta crônica ilustra, à revelia de minha intenção, o estado de decadência cultural em que mergulhamos. Comecei com Machado de Assis e Manuel Bandeira, passei por Montaigne e Étienne de La Boétie e acabei em Geisy Arruda. Difícil imaginar melhor exemplo de degradação do sentido e da cultura no presente.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Liberdade subjetiva


Carta sobre a liberdade subjetiva

Meu caro amigo:
Acabei de encontrar, por mero acaso, o site da revista Piauí. Para minha grata surpresa, os textos, pelo menos os que acessei, estão disponíveis gratuitamente para o leitor. Foi assim que li o obituário de Millôr Fernandes escrito por Mário Sérgio Conti, um retrato ¾ de Millôr escrito e lido em podcast por Fernanda Montenegro, e uma bela e comovente memória dos últimos tempos de vida de Tony Judt escrita pela mulher dele, Jennifer A. Homans. São leituras que acabo de fazer não apenas sobre intelectuais que admiro, que li nos limites possíveis e sobretudo me inspiram a ser e viver melhor como ser humano.
Lembro-me de que, durante nossa última conversa, lamentei o fato de nos deixarmos dominar no cerne da nossa reserva última de liberdade, nosso self, pelo que a realidade que cotidianamente vivemos tem de pior. Se bem o entendi, você parece discordar do meu ponto de vista, parece acreditar que não há como dissociar nosso self, ou nossa subjetividade, dessas condições que tão negativamente nos afetam. Discordo de você, se bem o entendi, e continuo pensando que essa questão é crucial não apenas para definir o que entendemos como autonomia individual em face da realidade, mas sobretudo como um modo de viver.
Essa expressão banal, nosso modo de viver, é aqui intencionalmente posta porque remete ao livro de Sarah Bakewell sobre Montaigne: How to live or A life of Montaigne. Não bastassem tantas evidências que já conhecemos, a começar pelos próprios Ensaios de Montaigne, o livro reafirma em mim essa convicção de que temos sempre uma margem de autonomia diante da realidade, não importando o quanto seja adversa. A margem varia, claro, conforme a relação específica inscrita entre o indivíduo e o mundo fora dele. Alongando o exemplo do próprio Montaigne, convém lembrar que viveu a maior parte de sua vida em meio a uma feroz guerra civil que por pouco não esfacelou a unidade da França. No entanto, ele foi capaz de preservar ao longo de sua vida, num mundo religiosamente dividido dentro da sua própria família, qualidades pessoais que me parecem torná-lo um sábio. Longe de mim, também de você, essa ambição, a da sabedoria. Falo de conquistas subjetivas mais modestas e, tenho essa convicção, perfeitamente alcançáveis.
Traduzindo isso em termos práticos, há muita coisa da realidade em que vivemos que procuro compreender, procuro tolerar, até porque não estou investido do poder de modificá-la ou suprimi-la, mas não a quero como parte de minha vida, do meu reduzido mundo de convívio. É nesse sentido que deploro, como deixei claro durante nossa conversa, o fato de tão facilmente cedermos ao poder dessas forças negativas que em larga medida se impõem à nossa liberdade estreitando assim nossa margem de realização, aquela que melhor traduziria nossa liberdade subjetiva. A maior evidência dessa rendição consiste no fato de trazermos o que a realidade tem de pior, ou mais negativo, para dentro do nosso convívio, para o centro do que compartilhamos. Confesso que por vezes tenho dificuldade de compreender como pessoas tão cultivadas, através da leitura e outras fontes privilegiadas de acesso ao que nossa humanidade tem de melhor, se acomodam ou se rendem a conversas sobre o que a realidade me parece conter de pior. Por exemplo: a corrupção endêmica entranhada na nossa política, o cotidiano horrível da cidade em que vivemos, a futilidade do que a mídia noticia e tanta gente que em nada importa para a minha vida, salvo para envenená-la. Da realidade negativa, já nos basta vivê-la. Quando vamos além disso, quando convertemos a vivência imperiosa em modo privado de ser, ou simples matéria de convívio lá onde temos a liberdade de escolher o que viver e do que falar, então é certo que ela se apossou da nossa liberdade subjetiva. Melhor dizendo, é certo que renunciamos à nossa liberdade subjetiva, já que ela nunca se subordina integralmente às condições da realidade objetiva.
Enfim, meu amigo, gastei tinta demais apenas para dizer isso que aqui vai como conclusão: quando leio Montaigne, ou essa biografia escrita por Sarah Bakewell; quando leio a poesia de Drummond, Fernando Pessoa, Auden e tantos poetas que amo; quando leio sobre a coragem, a integridade, a liberdade com que um homem como Millôr Fernandes viveu; quando leio o melhor da correspondência de Mário de Andrade, da obra tão comovente e generosa que escreveu impregnada de um humanismo católico ao qual procuro ser fiel, independente do fato de ser ou não católico; quando leio cada vez mais o que quero ler, a leitura que me ensina que não estou sozinho, como diz a bela e precisa frase de William Nicholson extraída do filme Shadowlands, isso tudo me deixa de alma mais leve, me infunde ânimo para viver, ânimo para tolerar a realidade que nunca é nem será como gostaria que fosse. Pena que no convívio geral que travo com o mundo fora de mim não possa compartilhar essas crenças modestas e seus valores correspondentes. É por isso que, muitas vezes contra a minha vontade e minha aspiração ao convívio humano, escolho ficar em casa com minha solidão. Um abraço,
Fernando.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Montaigne I




Além de criador de um gênero literário que muito me seduz, o ensaio, Montaigne praticou-o com um sentido de qualidade inigualável. Embora ensaístas admiráveis se tenham distinguido em inúmeras línguas e tradições intelectuais, sou dos que pensam que ninguém o excedeu no gênero. A variedade e profundidade temática que ensaiou também merecem registro num artigo de comentário geral. Tendo isso em mente, ficarei restrito a alguns aspectos e questões que mais me interessam e de imediato me ocorrem. Como escrevo isento de qualquer noção precisa de planejamento e anotações que me valham como baliza e matéria expositiva, ouso aqui repeti-lo à margem de qualquer intenção de falsa modéstia ao afirmar que tenho fôlego curto e andar moroso. Associando o ensaio ao exercício da viagem, acrescentaria viajar antes de tudo sem sair de casa. Se acaso saio, raramente vou além da esquina mais próxima. Eis portanto a medida manca do ensaio que me aventuro a praticar inspirado nas minhas vagas mas constantes leituras de Montaigne. Adianto ainda que o leio unicamente movido pelo prazer e com igual propósito o comento.

O que de ordinário escrevo me sai sem traçado prévio, sem ordenação metódica do assunto que intento erraticamente explorar. O advérbio de modo vai aqui bem pensado ou colocado. Foi muito tardiamente que me apercebi do quanto me confundia ao optar por uma profissão, a de docente universitário, que me obrigaria a escrever obras de cunho acadêmico. A verdade tardiamente descoberta, tão tardiamente que é agora irreversível, é que não pude consagrar-me ao tipo de formação que me qualificaria para isso. Aliás, talvez melhor me explicasse e justificasse se dissesse que me falta antes de tudo inclinação para ser um autor acadêmico, aquele tipo de trabalhador intelectual institucionalmente disciplinado para escrever teses de andamento penoso e laboriosa escavação. Os melhores – sempre raros, como em qualquer ocupação humana – alcançam realizar obra de valor e referência sobrepondo-se aos códigos reguladores de técnicas de trabalho e composição que frequentemente atormentam criadores de talento e sufocam alguns mais infensos às normas de produção acadêmica.

Dentre as regras de trabalho que a instituição me impôs e mais me anularam, mencionaria o que a troco de tudo e de nada designam como marco teórico. Longe de mim desqualificá-lo pura e simplesmente. Dado que não me passa pela cabeça esclarecer o que entendo seja, até por que muitos dos que o cobram e fiscalizam são os primeiros a invocar-lhe o santo nome em vão, friso apenas que o marco teórico com frequência exerce a função de inibir ou anular o estudante pouco treinado para assimilar essas práticas acadêmicas. Diria que no meu caso a inabilidade ou incompetência somou-se à resistência do aprendiz (de)formado à deriva das circunstâncias. Mais que a academia armada de rituais e práticas nos quais tanto aridamente tropecei, tolheu-me a própria vida tangida à deriva de acasos e obstáculos que seria impertinente aqui grosseiramente descrever, até porque tudo saberia longo e digressivo além de qualquer medida tolerável.

Os dois parágrafos precedentes podem até com proveito ser ignorados pelo leitor compreensivelmente impaciente com autores demasiado digressivos que a troco de tudo e de nada desandam a falar de si próprios. Afinal, o ensaio que aqui esboço é sobre Montaigne ou sobre mim? Ao enfiar de brusco esta questão, que juro nada conter de artifício retórico, fico à vontade para melhor justificar o andamento sem prumo aparente deste ensaio. Antes de tudo, o próprio gênero o justifica. Ele é nitidamente apreensível, antes de tudo, no próprio pai fundador. Montaigne é tão digressivo e caprichoso na forma como desdobra a matéria dos seus ensaios que não raro confunde ou desvia a atenção do leitor já em alguns títulos que escolhe para nomeá-los. Ai do leitor que procure outro assunto que não sejam a morte e o suicídio no ensaio cujo título é “A propósito de um costume da Ilha de Ceos” ou presuma cuidar apenas de Catão, o Jovem no curto ensaio assim identificado. Fazendo justiça à forma arbitrária do gênero que inventou, Montaigne avança tão à vontade quanto recua, dobra-se zelosamente sobre a realidade objetiva com a mesma destreza que revela ao recolher-se para dentro de si próprio, quando não sobrepõe uma coisa à outra. Por fim, visando praticar a norma de mais estrita franqueza com o leitor, alega escrever apenas sobre si próprio, assertiva que logo descobrimos ser tão enganosa quanto instrutiva. Logo, se os dois parágrafos acima denunciados parecem de fato impertinentes, e não nego que também o sejam, ambos encontram justificativa no gênero que Montaigne inventou. Resumindo, o que se pode incriminar-me é a qualidade do que produzo dentro do gênero, não a forma e o modelo que me inspiram.

A ambiguidade essencial do ensaio constitui um dos motivos que me autorizam considerar Montaigne tanto um filósofo quanto um autor literário. Embora se tenha detido no exame de questões essenciais à filosofia, parece-me improcedente qualquer pretensão de busca de uma filosofia sistemática na sua obra. Além do tratamento ensaístico que confessadamente adota ao examinar questões de fundo filosófico, suas fontes e autores de eleição não derivam de nenhum modelo de filosofia sistemática. Se há assim quem com razão o vincule ao estoicismo, quando não a uma ética de fundo estoico, outros com igual razão o associam ao ceticismo. Sabe-se ainda que suas fontes primaciais procedem da tradição clássica greco-latina, mas nada nelas fundamenta a determinação de uma filosofia unitariamente formulada. De resto, seria absurdo atribuir-lhe finalidades ausentes dos seus escritos.

Embora o prólogo da obra seja tão breve, quase lacônico, não me deterei na sua análise. Interessa-me apenas salientar seu tom de franqueza quase desabusada que de algum modo me acorda na memória o prefácio também breve de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mas a franqueza que vai ao extremo de fazê-lo lastimar a impossibilidade de pintar a si próprio sem qualquer reserva ou concessão às convenções que freiam a expressão desatada da verdade mesmo no escritor mais livre, também encerra um vinco de autoironia e um suspeito verniz de modéstia ou fingida humildade. É isso o que deduzo ao lê-lo aludindo à sua “ingenuidade física e moral”, também quando alega ignorar o juízo da posteridade, isto é, o destino reservado à sua obra.

Para não sair por aí tão à deriva, tropeçando nas pedras guiado apenas por meu andar de bêbado, convém fixar alguns limites para este ensaio. Já antes aludi à extraordinária variedade dos ensaios de Montaigne. Resta-me agora selecionar alguns temas que elegi como matéria de minhas improvisadas reflexões. Como digito estas notas hospedado na casa de parentes em Salvador, não disponho de maiores fontes de referência, salvo o primeiro volume da tradução dos ensaios feita por Sérgio Milliet e o livreto Montaigne, de Peter Burke. Até o volume dos ensaios integrais em língua francesa atualizada pelo filólogo André Lanly, até este deixei-o na minha biblioteca em Recife.

Começando por um tema que a própria revolução dos costumes concorreu antes para fazê-lo obsessivamente discutido, analisado, dissecado e sobretudo vulgarizado no pior sentido do termo, acompanho um pouco Montaigne despindo nossa sexualidade de muito dos preconceitos, obsessões e disparates que a cercam. Montaigne tratou-a com franqueza e discernimento raros no seu tempo. Também no nosso, apesar de todas as aparências em contrário. Fascinado pela desconcertante diversidade das culturas que direta ou indiretamente reteve na rede de sua insaciável curiosidade, apreciou-a, nossa sexualidade e suas infinitas variações, isento dos preconceitos, da cegueira etnocêntrica característica do seu tempo, do nosso, de qualquer outro tempo.

Somente nossa presunção de vivermos numa época, a modernidade permissiva, liberta de preconceitos, pode iludir-nos ao ponto de afirmarmos, como é corrente, que vivemos numa cultura estranha ao etnocentrismo. Se de ordinário não o dizemos nestes termos, até porque etnocentrismo é um termo derivado da linguagem especializada, dizemo-lo em termos pessoais. Noutras palavras, estou cansado de ouvir pessoas afirmarem em tom frequentemente de autolouvor que não têm preconceito. O que de fato dizem, embora não o saibam ou não tenham disso nenhuma consciência, é que têm muito preconceito. Vão na verdade bem além disso, pois o sentido que transpira no subtexto é o do pior tipo de preconceito: o que nem sabe de sua existência, ou por outra não ousa sabê-la.

Montaigne observou nossa sexualidade com olhar arguto e serena ironia. Sendo assim, não foi por acaso ou dissimulada afetação que inscreveu na sua biblioteca, entre tantas máximas sábias, as palavras de Terêncio que cito livremente de memória: sou homem e portanto nada do que é humano me é estranho. São palavras impressionantes que condensam um sentido modelar de visão humanista. Mas quantos já não as repetiram ou presumem adotá-las como norma de vida armando-se de intolerância e grosseira incompreensão à visão do primeiro estrangeiro que inadvertidamente pisa nos calos da nossa medida etnocêntrica?

No ensaio XXI, “A força da imaginação”, Montaigne confessa o quanto era susceptível aos poderes dessa falsa demente, como diria Drummond. Evidenciando o quanto a imaginação tinha o poder de induzir-lhe estados de franca hipocondria, revela que “a vista das angústias alheias influi fisicamente em mim de maneira penosa, e não raro sofro de sentir que alguém sofre”. Assim como atua no sentido de assaltar o equilíbrio dos hipocondríacos, a imaginação exerce igualmente o poder benfazejo de curar pacientes adoecidos pelo seu feitiço ou curáveis por sua eficácia terapêutica. Montaigne relata a propósito anedotas exemplares, algumas francamente divertidas. Há quem tocado por suas forças misteriosas testemunhe milagres ou sirva como veículo de visões e alucinações que, a depender de cada caso, ora atormentam, ora maravilham.
A sugestão erótica, variante fecunda da nossa imaginação insubordinável aos ditames da razão tantas vezes desavinda de governo, rende páginas deliciosas saídas da pena de Montaigne. Aqui os poderes da imaginação se manifestam de forma igualmente ambivalente, já que tanto podem atear fogo aos mares quanto cobrir de trevas a luz do dia, tanto nos transportam às delícias e prazeres mais intraduzíveis quanto nos aprisionam nas mais horripilantes figurações do inferno. Nada ilustra melhor as maravilhas e tormentos dos poderes da imaginação, no caso literária, do que as façanhas delirantes de Dom Quixote ou os desvarios românticos de Madame Bovary, esse Quixote de saias.

Bem mais caprichosa e sedutora é a imaginação que se manifesta no curso anárquico da vida, não no da literatura. Daí voltar-me à mente a imagem da falsa demente invocada por Drummond. Dentre suas multifacetadas materializações, talvez nenhuma seja mais recorrente e ingovernável do que a erótica. Também aqui recorrem seus conteúdos e efeitos ambivalentes. Se de um lado ela nos descortina a fruição do amor e dos mais deleitáveis prazeres eróticos, de outro inverte o curso das águas e a rotação das horas cuja duração pode converter-se em estados de expectativa apreensiva, medo e até puro desespero. Montaigne ilustra todas essas nuances da banda torta da vida com relatos que variam do patético ao cômico, do insensato ao inacreditável. Citando alguns que de pronto me sobem à memória sem motivos de definida ordenação, lembro aqui algo do que nos revela dos efeitos que o fantasma da impotência sexual impôs a alguns figurantes do ensaio que comento. Há o caso do homem que, humilhado pela impotência no momento fatal da prova de virilidade, ficou tão transtornado que mutilou o próprio pênis. Inversamente, prende-nos o relato do recém-casado apreensivo que na noite de núpcias triunfou sobre o medo da impotência beneficiado por técnicas de sugestão induzidas por Montaigne.

Montaigne guia o leitor curioso através dessas peripécias pontuando ora os limites desconcertantes de nossa razão presunçosa e todavia vexatoriamente vulnerável, ora os embaraços de nossa natureza insensata exposta aos caprichos e poderes da imaginação que tão amiúde nos atraiçoa. Mas também se esmera em sabiamente dosar nossas medidas desencontradas vazando em tom de ironia e humor muito do que a outros inspiraria apenas medo, incompreensão e perplexidade. Diverte-me, por exemplo, a forma como a meio de relatos tão inusitados relativos à retorcida sexualidade humana ele alude ao pênis como esse órgão tão imprevisível e caprichoso, vulnerável ao arbítrio da imaginação que tanto o impele a trair-nos no momento em que mais carecemos que dê provas afoitas e potentes de si quanto nos vexa nas circunstâncias contrárias, aquelas nas quais precisamos que se comporte com discrição tão louvável que se faça ausente ou despercebido.

Esses episódios provindos de séculos remotos, os que nos separam do tempo em que Montaigne viveu, se renovam ou refazem moldados por circunstâncias distintas, fruto de outros tempos e costumes. Isso apenas comprova a constância de certos traços da nossa natureza. Mudam os costumes, os valores éticos e religiosos que demarcam a pauta de suas manifestações, mas continuamos de modos variáveis a inquietar-nos e padecermos de dramas e aflições substancialmente comuns àqueles que Montaigne nos relata ao examinar seus semelhantes e contemporâneos.

Somente os ingênuos ou inscientes, aqueles tolamente deslumbrados com as supostas maravilhas do presente, iludem-se supondo que o progresso humano, com e sem aspas, e as engenhosas descobertas e soluções de muitos dos problemas humanos bastam para nos libertarem de limites e perplexidades humanas que teimam em nos afligir. Se os tempos e os costumes sem dúvida mudam, nossa aderência de ordinário servil àquilo que nos ditam permanece substancialmente inalterada. Ponderar devidamente essa verdade guiados pelo propósito de libertar-nos da tirania que sobre nós exercem seria já uma evidência de sabedoria assimilada – um grão que seja, concedamos, mas já um grão nada desprezível na contracorrente de nossas vidas insensatas.
Salvador, Bahia, 8 a 10 de fevereiro de 2011.
Ler também
http://fmlima.blogspot.com/2011/02/montaigne-nosso-contemporaneo.html

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Montaigne, nosso contemporâneo


Penso que poucos autores clássicos comunicam ao leitor um tão vivo e envolvente sentido de contemporaneidade quanto Montaigne. E no entanto, como bem sabemos, mais de quatro séculos nos separam da sua obra que justamente figura no cerne do cânone da cultura ocidental. Quantos dos seus contemporâneos e pósteros resistem ao teste de leitura aqui sugerido? Se penso, em contraste, em muitos dos clássicos ibéricos e brasileiros, o que de ordinário sobressai é uma sensação de tédio ou anacronismo. Montaigne, no entanto, como Shakespeare, permanece vivo e extraordinariamente atual.
Montaigne foi um cético entre fiéis. Sei que forço um pouco a nota, como adiante demonstrarei, mas confesso não resistir à tentação da frase que muito diz da sua singularidade na contracorrente da intolerância religiosa e cultural que tanto vincou o seu tempo. Montaigne viveu durante grande parte de um século, o XVI, dilacerado por duas experiências históricas terríveis: as guerras religiosas, que na França foram de extrema ferocidade, e a descoberta do Novo Mundo da qual resultou o extermínio ou escravização das culturas indígenas notadamente por portugueses, espanhóis e ingleses.

Montaigne é no geral reconhecido como filósofo, embora um historiador da filosofia como Bertrand Russell mal cite seu nome num volume abrangente que de forma espantosa dedica um capítulo inteiro a Byron. Se entretanto o leitor figura um filósofo ou um escritor de alcance e interesse filosófico, como é o seu caso, supondo nele encontrar uma filosofia concebida como um sistema coerente e integrado de explicação do mundo, certamente lhe recusará essa designação. Sua obra capital, Os Ensaios, é antes de tudo fundadora de um gênero literário de catalogação imprecisa: o ensaio.
O termo “essai” no original francês, assim como em português, significa ensaio, experiência, prova, tentativa. Nele, assim como nos seus correspondentes que acabo de registrar, sobressai o sentido associado a um gênero de exposição fundado na imprecisão do seu alcance e características. A imprecisão do termo fica evidente em diferentes línguas que preservam essa imprecisão semântica como nota distintiva ao ponto de designar tanto uma dissertação acadêmica ou uma mera redação escolar, é o caso do essay inglês, quanto livros das proporções de Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, como Gilberto Freyre idiossincraticamente designa suas duas obras fundamentais.

O ideal de Montaigne, como apropriadamente observa Peter Burke num livrinho precioso de introdução à sua vida e obra, era o do amador, o do diletante. A generalização da cultura utilitária e mercantilista imposta pelo desenvolvimento do capitalismo levou ao descrédito estes termos que originalmente traduziam uma vinculação profunda, amador é aquele que ama, entre o sujeito e seu objeto, o apreciador e a coisa apreciada. Noutros termos, a profissionalização e a especialização decorrentes da mentalidade capitalista e do acúmulo assombroso das técnicas e saberes humanos tornaram o amador e o diletante figuras anacrônicas, dignas até de desprezo.

É difícil justificar integralmente o título que conferi a este artigo. Mas é possível anotar algumas características de Montaigne e de sua obra que me parecem plenamente justificar sua contemporaneidade. Como acima assinalei, ele foi um cético entre fieis que em nome da fé entregaram-se cegamente à intolerância religiosa mais sanguinária e feroz. O episódio da guerra civil francesa conhecido como a noite de São Bartolomeu, recentemente representado em dois filmes de época ambos de produção francesa (A Rainha Margot e Henrique IV), sugere a brutalidade da guerra religiosa na qual católicos e huguenotes (como eram designados os calvinistas franceses) se entredevoraram. Embora católico confesso, Montaigne não aderiu ao espírito beligerantemente intolerante que marcou o clima espiritual da época.

Convém todavia ressaltar que Montaigne foi também um homem do seu tempo. Preciso repisar esta trivialidade num artigo que visa salientar sua singularidade e contemporaneidade. Do ponto de vista religioso, por exemplo, ele endossa muito do pensamento católico ortodoxo. Vivendo numa época cruamente dividida entre católicos e protestantes, opôs-se à tradução da Bíblia para o vernáculo. Enquanto o espírito da Reforma introduziu a instauração da livre interpretação do texto sagrado, fato que concorreu para a disseminação de muitas seitas e conflitos, o clero ortodoxo, nesse ponto apoiado por Montaigne, manteve com severidade ainda maior o monopólio da interpretação da Bíblia. Acrescentaria que o princípio da livre interpretação da Bíblia instituído pelos protestantes também concorreu para difundir a alfabetização, bem tão retardatariamente introduzido na política educacional brasileira, e fortaleceu as bases da subjetividade moderna da qual Montaigne constitui, aliás, uma de suas mais altas e singulares manifestações.

Montaigne chegou mesmo ao extremo de afirmar: “Acredito que o objeto branco que vejo é preto se esta deve ser a decisão da hierarquia da Igreja” (apud Peter Burke, Montaigne, p. 37). Ora, como compreender tamanha sujeição ao poder religioso num homem notável por seu ceticismo, pela liberdade excepcional com que expressou sua subjetividade crítica? Peter Burke sugere uma explicação curta e irônica: “Afinal de contas, os céticos sabiam que não se podia confiar nos sentidos” (idem, ibidem). Ao mesmo tempo, considerando-se o poder exercido pela religião, notadamente dentro do clima de guerra civil desencadeado por católicos e protestantes, teve ele a audácia de questionar determinadas formas de milagre sancionadas pela Igreja, o sentido religioso da providência e da bruxaria, além da autenticidade da oração praticada por muitos fieis (ver o ensaio LVI: “Das Orações", Livro Primeiro). Estas e muitas outras questões perigosas e controvertidas foram examinadas por Montaigne nos seus ensaios com um senso de originalidade e heterodoxia somente concebíveis num espírito extraordinariamente livre.

Diante disso, como decidir se Montaigne era cético ou católico, ou mais uma coisa que outra? A própria natureza do gênero que fundou, o ensaio, já contém uma dose substancial de ambiguidade. Ensaiar algo, como acima ressaltei, é proceder a uma tentativa, a uma experiência aberta, portanto incompatível com argumentos e conceitos fechados, por definição impermeáveis à dúvida e à controvérsia. O ensaio, em contrapartida, é por definição avesso à fé dogmática, à verdade inquestionável e definitiva. A esses sentidos do termo acrescentam-se expressões chave empregadas por ele que acentuam ainda mais o caráter deslizante, a indeterminação semântica de muitos dos seus juízos atinentes à religião, aos costumes, ao poder, à condição humana... Como todo espírito excepcional, Montaigne não deve nunca ser lido literalmente, nunca seguido ou interpretado de forma unilinear ou absoluta. Assim como Machado de Assis, outro ambíguo sumamente astuto, afirmava ter por princípio nunca ser ludibriado, ou empulhado, para usar seu termo próprio, também deve o leitor prevenir-se para nunca ser traído pelo caminho mais fácil, a interpretação mais convencional ao ler os ensaios de Montaigne.

A obra de Montaigne é em muitos sentidos única e pioneira na história da filosofia e da literatura. Cada ensaio varia na extensão e na temática permeada de digressões que não raro desnorteiam as expectativas do leitor. Falando antes de tudo de si próprio, como frisa no breve prefácio da obra, Montaigne ilumina nossa condição humana com um senso de propriedade, argúcia e bom senso inusitados no conjunto da tradição filosófica. Para ele, nenhum assunto era em si irrelevante ou indigno do crivo de seu escrutínio sempre agudo. Por isso variava das observações referentes a trivialidades como a limpeza dos dentes e a defecação disciplinada dos seus intestinos às reflexões sobre a morte e o suicídio, da ereção e do medo da impotência sexual ao refinado senso com que descrevia a desconcertante diversidade dos costumes humanos. Como agudamente ressaltou, o que há de mais universal na espécie humana é precisamente sua diversidade. Embora nesse ponto por vezes bordejasse o relativismo tão corrente no nosso tempo, Montaigne era universalista ao ponto de saber que a justa apreciação de si próprio condensava em escala individual as características fundamentais do gênero humano.

Afinal, que voz é essa que atravessa as camadas inapreensíveis dos séculos que delas nos separam para iluminar as linhas turvas e atordoantes do presente? Ela afirma e confirma a possibilidade da subjetividade autônoma mesmo em tempos adversos. A voz de Montaigne é uma evidência de que é possível preservar nossa liberdade última em face da guerra civil e da intolerância religiosa, como sucedeu no seu tempo. É também possível preservá-la sob um Estado autocrático, como foi o caso da Rússia anterior à Revolução de 1917 e também sob um Estado totalitário como o soviético fruto da revolução que destruiu a autocracia czarista. Ela é também possível na democracia da sociedade de massas como a que regula nossas vidas manobradas por um capitalismo que tudo converte em mercadoria. Tudo que precisamos para afirmar nossa liberdade contra todas essas formas de opressão é de um quarto de fundo apenas para nós (“une arrière boutique toute nostre”, como ele escreve) onde se instale nossa subjetividade.

O quarto ocupado por Montaigne era a torre circular que abrigava sua biblioteca cujo repertório do humanismo clássico alimentou sua singularidade. Em certas circunstâncias, como um pouco anotei neste artigo, Montaigne precisou negociar com os poderes do mundo, poderes bem maiores que os da sua consciência. Mas cedia resguardado pela astúcia e a clarividência que lhe preservavam o fundo subjetivo irredutível ao comércio compulsivo imposto pelas regras do convívio humano. Lá dentro, no recesso da sua subjetividade inacessível aos poderes do mundo, ele continuava dizendo não.

Os contemporâneos de Montaigne são, diria agora concluindo, os que preservam a autonomia do seu quarto inacessível ao som e à fúria do mundo do Big Brother Brasil e todo o lixo cultural que avilta e aliena as massas colonizadas por esse capitalismo sem alma que é tudo que logramos construir como forma sustentável de organização do sistema produtivo nas sociedades humanas. Isso diz muito, talvez o bastante, sobre o cerne incivilizável da nossa condição humana. Montaigne, como Freud, Machado de Assis e outros céticos impenitentes, não se enganava sobre essa verdade crua que o humanismo de tons amenos e idealizadores intenta empurrar para debaixo do tapete.

Os contemporâneos de Montaigne são aqueles investidos da consciência e da lucidez de viverem au-dessus de la mêlée, diria recorrendo ao seu idioma. Traduzindo a expressão no tom digno da barbárie que sitia nossa liberdade sempre ameaçada: os contemporâneos de Montaigne são os que aprenderam a viver acima da lama.
Recife, 31 de janeiro de 2011.
Ler também:
http://http://fmlima.blogspot.com/2011/03/montaigne.html