sexta-feira, 4 de maio de 2012
Liberdade subjetiva
Carta sobre a liberdade subjetiva
Meu caro amigo:
Acabei de encontrar, por mero acaso, o site da revista Piauí. Para minha grata surpresa, os textos, pelo menos os que acessei, estão disponíveis gratuitamente para o leitor. Foi assim que li o obituário de Millôr Fernandes escrito por Mário Sérgio Conti, um retrato ¾ de Millôr escrito e lido em podcast por Fernanda Montenegro, e uma bela e comovente memória dos últimos tempos de vida de Tony Judt escrita pela mulher dele, Jennifer A. Homans. São leituras que acabo de fazer não apenas sobre intelectuais que admiro, que li nos limites possíveis e sobretudo me inspiram a ser e viver melhor como ser humano.
Lembro-me de que, durante nossa última conversa, lamentei o fato de nos deixarmos dominar no cerne da nossa reserva última de liberdade, nosso self, pelo que a realidade que cotidianamente vivemos tem de pior. Se bem o entendi, você parece discordar do meu ponto de vista, parece acreditar que não há como dissociar nosso self, ou nossa subjetividade, dessas condições que tão negativamente nos afetam. Discordo de você, se bem o entendi, e continuo pensando que essa questão é crucial não apenas para definir o que entendemos como autonomia individual em face da realidade, mas sobretudo como um modo de viver.
Essa expressão banal, nosso modo de viver, é aqui intencionalmente posta porque remete ao livro de Sarah Bakewell sobre Montaigne: How to live or A life of Montaigne. Não bastassem tantas evidências que já conhecemos, a começar pelos próprios Ensaios de Montaigne, o livro reafirma em mim essa convicção de que temos sempre uma margem de autonomia diante da realidade, não importando o quanto seja adversa. A margem varia, claro, conforme a relação específica inscrita entre o indivíduo e o mundo fora dele. Alongando o exemplo do próprio Montaigne, convém lembrar que viveu a maior parte de sua vida em meio a uma feroz guerra civil que por pouco não esfacelou a unidade da França. No entanto, ele foi capaz de preservar ao longo de sua vida, num mundo religiosamente dividido dentro da sua própria família, qualidades pessoais que me parecem torná-lo um sábio. Longe de mim, também de você, essa ambição, a da sabedoria. Falo de conquistas subjetivas mais modestas e, tenho essa convicção, perfeitamente alcançáveis.
Traduzindo isso em termos práticos, há muita coisa da realidade em que vivemos que procuro compreender, procuro tolerar, até porque não estou investido do poder de modificá-la ou suprimi-la, mas não a quero como parte de minha vida, do meu reduzido mundo de convívio. É nesse sentido que deploro, como deixei claro durante nossa conversa, o fato de tão facilmente cedermos ao poder dessas forças negativas que em larga medida se impõem à nossa liberdade estreitando assim nossa margem de realização, aquela que melhor traduziria nossa liberdade subjetiva. A maior evidência dessa rendição consiste no fato de trazermos o que a realidade tem de pior, ou mais negativo, para dentro do nosso convívio, para o centro do que compartilhamos. Confesso que por vezes tenho dificuldade de compreender como pessoas tão cultivadas, através da leitura e outras fontes privilegiadas de acesso ao que nossa humanidade tem de melhor, se acomodam ou se rendem a conversas sobre o que a realidade me parece conter de pior. Por exemplo: a corrupção endêmica entranhada na nossa política, o cotidiano horrível da cidade em que vivemos, a futilidade do que a mídia noticia e tanta gente que em nada importa para a minha vida, salvo para envenená-la. Da realidade negativa, já nos basta vivê-la. Quando vamos além disso, quando convertemos a vivência imperiosa em modo privado de ser, ou simples matéria de convívio lá onde temos a liberdade de escolher o que viver e do que falar, então é certo que ela se apossou da nossa liberdade subjetiva. Melhor dizendo, é certo que renunciamos à nossa liberdade subjetiva, já que ela nunca se subordina integralmente às condições da realidade objetiva.
Enfim, meu amigo, gastei tinta demais apenas para dizer isso que aqui vai como conclusão: quando leio Montaigne, ou essa biografia escrita por Sarah Bakewell; quando leio a poesia de Drummond, Fernando Pessoa, Auden e tantos poetas que amo; quando leio sobre a coragem, a integridade, a liberdade com que um homem como Millôr Fernandes viveu; quando leio o melhor da correspondência de Mário de Andrade, da obra tão comovente e generosa que escreveu impregnada de um humanismo católico ao qual procuro ser fiel, independente do fato de ser ou não católico; quando leio cada vez mais o que quero ler, a leitura que me ensina que não estou sozinho, como diz a bela e precisa frase de William Nicholson extraída do filme Shadowlands, isso tudo me deixa de alma mais leve, me infunde ânimo para viver, ânimo para tolerar a realidade que nunca é nem será como gostaria que fosse. Pena que no convívio geral que travo com o mundo fora de mim não possa compartilhar essas crenças modestas e seus valores correspondentes. É por isso que, muitas vezes contra a minha vontade e minha aspiração ao convívio humano, escolho ficar em casa com minha solidão. Um abraço,
Fernando.
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Este texto diz várias coisas que eu gostaria de dizer. A liberdade subjetiva é um exercício diário, sua conquista é árdua e a todo instante ameaçada pela objetividade do convívio obrigatório com pessoas que insistem em tornar a vida uma experiência ordinária e sórdida.
ResponderExcluirAnônimo: Concordo que não é fácil realizar o sentido de liberdade subjetiva esboçado no meu texto. Ele é, sim, também concordo, um exercício diário e aí esbarramos nessas pessoas que concorrem para "tornar a vida uma experiência ordinária e sórdida". Essa barreira é muitas vezes representada por nossas relações mais íntimas. Por isso somos incompreendidos, na defesa dessa liberdade, até pelos que melhor nos conhecem. Apesar desses obstáculos, tenho a convicção de que dentro de nós podemos acionar forças passíveis de nos libertarem - em termos relativos, friso - das opressões da realidade objetiva, disso que você designa como a "experiência ordinária e sórdida".
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