segunda-feira, 7 de maio de 2012

Kafka e nossa irrealidade digital



No alvorecer do capitalismo moderno, Adam Smith cunhou a expressão “a mão invisível” para designar a força impessoal investida do poder de organizar os agentes do mercado. Essa mão, que hoje meu ódio impotente gostaria de decepar, explicaria o funcionamento das forças econômicas que milagrosamente se coordenam – o jogo da oferta e da procura, por exemplo. Como o gado errante tangido dos campos comunais para as fábricas, hoje da solidão física para as redes sociais, nada entendo disso. Sei apenas que me tornei prisioneiro de carcereiros invisíveis. A vetusta mão invisível de Adam Smith funciona hoje como a fantasmagoria de um processo kafkiano. Não cometi nenhum crime, o próprio poder digital e anônimo de nada me acusa, mas no fim do filme eu morro como um cão, como o anônimo esvaziado de humanidade da obra de Kafka.

O parágrafo acima traduz uma ironia atroz. Formei-me embalado pelo humanismo originário das Luzes do século 18. Formei-me acreditando no valor da liberdade humana, que decorreria das forças do progresso social, do desenvolvimento da democracia e das forças produtivas, e eis-me agora refletido no espelho de Kafka: o espelho que reflete um inseto chamado ser humano. Miro esse inseto, que sou eu, e vejo apenas a irrealidade do labirinto digital em que as forças invisíveis do mercado me aprisionam. Um dos deuses dessa revolução da ciência morreu há pouco e é hoje celebrado no mundo como um Deus, um Deus mais poderoso e idolatrado que o deus (minúsculo) de qualquer religião. O nome desse Deus – mortal quanto eu e você, tanto que morreu num frenesi típico do mercado voraz – é Steve Jobs. O sobrenome é arrepiante, mas sigamos.

Steve Jobs morreu, mas continua na rede, celebrado em imagens que o vendem e que ele vende. Ele posa como o gênio letal do mercado, mercadoria fundida na mercadoria, pois está sempre vendendo alguma coisa: vende a maçã paradisíaca, o Iphod, Ipad, o Iphone,o Tephod, e outras siglas que me possuem e nos possuem. Mas o gado servil e ignaro, cego de ambição e desejo voraz de consumo, o idolatra como se fosse o bezerro de ouro da lenda bíblica.

O inseto se mira no espelho kafkiano e sabe que está completamente sozinho nesse mundo de forças onipresentes e invisíveis. Não tem um amigo. Não tem com quem compartilhar um sentido humano palpável de vida, de amor, de humanidade efetivamente compartilhada. Mas liga o computador, conecta-se na rede social e lá estão seus 900 amigos. Há quem tenha milhares. Os famosos têm tantos que acionam um dispositivo digital para limitar o número de amigos que invadem sua página para tagarelar nossa futilidade, nossa insignificância digital. Lá estão os sites de relacionamentos: milhões de solitários vorazes esfomeados diante de fantasias devoradoras. Estamos todos sozinhos, dolorosamente sozinhos como nunca o fomos na história da nossa atormentada condição solitária, e no entanto saltamos como crianças insanas celebrando a beleza das nossas vidas invejáveis.

A revolução digital, a mão invisível e impiedosa do mercado, reduziu-me à condição de inseto. Mas eu pelo menos sei que fui esmagado por essa operação diabólica. Nas situações mais cotidianas, posso a qualquer momento ser reduzido a nada enquanto me debato, inseto cego e impotente, dentro da prisão que é a minha casa. Uma simples troca de operadora de telefonia suprime magicamente minha existência. Alguém, o burocrata da revolução digital, acionou indevidamente um dispositivo que não sei o que é, onde está, como funciona, e de repente suprimem o número do meu telefone, meus vínculos precários com o mundo humano, minha humanidade virtual, única que o admirável mundo novo da revolução digital me concede. O que fazer para refazer meus elos com o mundo, ouvir uma voz humana através do fio? O fio de Ariadne que me resta, único que poderia libertar-me do labirinto digital, é a telefonista eletrônica, esse ser irreal e arrepiante. Como arrepiante, se é irreal? Ora, simplesmente porque tudo agora é irreal. Embora o mundo esteja cheio de mulheres lindas, gostosas e infelizes, tantas delas histericamente em busca de um homem que lhes dê prazer, o inseto, tão infeliz e solitário quanto elas, ama uma boneca inflável, como aquela do conto profético de Rubem Fonseca.

Mas o profeta supremo é Kafka. Ele intuiu de forma genial o mundo da irrealidade carcerária em que passaríamos a habitar. Como os carcereiros são agora invisíveis, a mão milagrosa do mercado foi convertida numa cadeia infinita de carcereiros que nos controla do berçário à UTI (U Teu Inferno, na minha tradução). O carcereiro é uma figura de mil faces, ou uma figura sem face, mas está investido do poder de nos acorrentar do útero ao túmulo. O nome genérico dessa figura sem face é a Dívida, a Conta imperiosa que estamos condenados a pagar aos poderes anônimos que nos dominam. Esse poder está em tudo e em tudo milagrosamente se transfigura.

Não sei que crime cometi. Não cometi nenhum crime. Estou apenas tentando sobreviver ao naufrágio que consome tudo que conferiu sentido à minha existência, tudo que procurei realizar como ideal de humanidade livre reconciliada com o outro que se tornou minha própria irrealidade. Não cometi nenhum crime, repete desesperado o inseto espelhado na invisível prisão kafkiana. Mas a voz inaudível da revolução digital, a mão assassina da revolução que produz deuses como Steve Jobs simplesmente afirma que não há crime nenhum, que nada fiz ou preciso fazer. O que há, o que existe é o poder invisível da máquina indomável e onipresente produzida pela diabólica inteligência humana. Ela agora nos aprisiona e nos fiscaliza e pune do útero ao necrotério. E alguém tem que pagar a Conta, pois todos têm Dívida a pagar. Esta é a realidade tenebrosa da irrealidade digital que nos reduziu a insetos kafkianos: precisamos pagar nossa Dívida imposta por uma Culpa abstrata que para sempre me condena ao labirinto digital. Quero protestar, afirmar meu único e último direito humano, mas o operador invisível vai me deletar, vai me suprimir, vai me del... , vai me su...
Recife, 19 de abril de 2012.

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