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quinta-feira, 21 de julho de 2011

Diário (fragmentos)



08 de junho 2004
Releio uma tradução francesa de Dom Casmurro assinada por Francis de Miomandre e revista por Ronald de Carvalho. Trata-se, portanto, de uma tradução já velha, provavelmente a primeira em língua francesa, talvez a primeira em língua estrangeira. Embora seja um modesto leitor de francês, portanto sem a devida qualificação para ajuizar sobre a qualidade da tradução, reconheço e retenho na leitura de algumas páginas alguns dos traços que mais singularizam a prosa de Machado de Assis: a ironia, o humor, o toque inconfundível do moralista iluminando com a pena aguda os desvãos perturbadores da vaidade, da mesquinheza, da autodeleitação inconsciente com que irreparavelmente nos enganamos acerca do que somos e presumimos saber sobre o outro. Quanto mais releio Machado, em português e noutras línguas que freqüento, mais me convenço da sua grandeza única, do seu indiscutível gênio literário. Reiterando o que outros já ressaltaram, fosse ele um autor de língua inglesa, ou outra de prestígio e difusão similares, seu reconhecimento seria amplo e universal. Apesar da barreira da língua, é animador comprovar que sua obra mais e mais se impõe à admiração por vezes perplexa de grandes leitores e críticos de outras línguas. Vargas Llosa e Carlos Fuentes já registraram em espanhol sua grandeza gradualmente ampliada na esfera do reconhecimento internacional; na língua inglesa, caberia destacar antes de tudo a obra de esclarecimento e difusão desenvolvida por John Gledson, que aliás assina a retradução aprimorada de vários textos de Machado, além da contribuição crítica notável contida, antes de tudo, em The Deceptive Realism of Machado de Assis. Valeria ainda acentuar a obra crítica pioneira escrita por Helen Caldwell. Aliás, somente há poucos anos, depois de tantas referências feitas por estudiosos de Machado de Assis, foi afinal vertido para o português O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. Dois críticos ingleses, pouco conhecidos no Brasil, também dedicaram páginas surpreendentes a Machado: V. S. Pritchett e Martin Seymour Smith. Mais recentemente, importaria assinalar Susan Sontag, Salman Rushdie, John Barth e este crítico desconcertante e leitor pantagruélico que é Harold Bloom. Enfim, Machado eleva-se sobre nossa surrada tradição de nacionalismo literário na qual patinaram mesmo alguns dos nossos maiores escritores como Mário de Andrade e nossa melhor produção romântica, modernista e regionalista. A prova suprema do grande escritor é sobreviver ao tempo e no tempo submetido a continuadas, sucessivas e renovadas leituras.

09 de junho de 2004
Há pouco ocorreu-me evocar a expressão de Voltaire anotada no fecho do seu sempre atual Cândido, ou o otimismo: “...il faut cultiver notre jardin”. Dou-me agora ao luxo de me propor algumas normas pertinentes à sabedoria da jardinagem. A primeira consiste na necessidade da delimitação de uma fronteira necessária entre o mundo público e o íntimo, correspondente ao jardim. Se o jardineiro incorre no erro insensato que seria reproduzir a matéria e os valores daquele no solo em que aspira a cultivar seu mundo íntimo, será portanto inútil qualquer presunção ou ideal de vida alternativa. Noutras palavras, melhor continuar imerso no grande mundo com tudo que encerra de pequenas e grandiosas misérias. Recuso-me, por conseguinte, a trazer para dentro do meu jardim as ervas daninhas do cotidiano que me vejo forçado a viver na companhia do semelhante inevitável. Até o noticiário noturno da tv tenho me disciplinado para evitá-lo ao me dar conta de que me inspira antes de tudo indignação e ódio impotente em face das brutalidades rotineiras praticadas na nossa sociedade, sobretudo pela elite bandida deste país vergonhoso. Aponho a elite um qualificativo contraditório por não encontrar meio menos inadequado de referir-me a isso que tão impropriamente designamos por elite brasileira, notadamente a política. Talvez melhor convenha o termo proposto por Evaldo Cabral de Mello, que ao negar que ela exista de fato no Brasil opta pelo termo clientela. O noticiário brasileiro e, por extensão, o estrangeiro, ficam assim interditados no solo do meu jardim.

Dado que entendo a jardinagem como equivalente de uma estética da existência, outra norma fundamental radica no livre e continuado cultivo das artes. É dentro desse espírito que me disciplino para voltar a cantar todos os dias acompanhado pelo meu violão. Valendo-me com frequência dos meus livros de cifras, dou-me ao prazer diário de cantar meus compositores populares preferidos: Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Vinicius de Moraes, Lennon-McCartney... Outra flor cultivada no meu jardim é a literatura. Os poetas ocupam lugar especial no canteiro literário que se estende pela via central do jardim. Os mais lidos - no geral de viva voz, pois concordo com Harold Bloom que a poesia deve ser lida – são Drummond, Auden, Eliot, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Murilo Mendes. Outra atividade constante que imprime beleza, emoção e esclarecimento à atmosfera do meu jardim é a frequentação dos filmes de ordinário gravados em dvd: as adaptações de obras assinadas por Shakespeare, Henry James, Jane Austen, Graham Greene, E. M. Forster, Dostoiévsky, Tchekov, Charles Dickens, Balzac, Victor Hugo, Oscar Wilde e muitos outros. Além disso, entra nesta composição a obra cinematográfica obrigatória dos meus diretores e roteiristas de eleição. Cito apenas os que me vêm de imediato à memória: Hitchcock, Billy Wilder, Woody Allen, Ingmar Bergman, Fellini, Kubrick, Christopher Hampton, David Hare, Louis Malle, Truffaut, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, David Lean.

Há no jardim uma hora preciosa, antes de tudo porque cada vez mais rara, a hora da solidão voluntária livremente povoada pela meditação errática, a pura contemplação da noite ou do mar próximo, mas antes adivinhado que propriamente apreendido pelos sentidos. É esta uma hora rara e progressivamente difícil porque o mundo é cada vez mais sobressaltado por toda sorte de ruído: o ruído dos aviões que fazem dos céus sob os quais habito uma rota de voo obrigatória; o ruído dos vizinhos empenhados em infernizar a vida do próximo; o ruído dos carros e de suas buzinas ferozes; o ruído de semelhantes boçais e arrogantes que, atormentados por modos de vida no geral gestados pela própria insensatez com que vivem, vingam-se dos seus tormentos insolúveis atormentando impiedosamente o mundo disposto ao alcance do seu poder. Há que cultivar o jardim contra e à margem e acima disso tudo. O resto escapa a meu poder de governo do meu mundo íntimo.

21 de junho de 2004.
Li ontem o último romance de Rubem Fonseca: Diário de um Fescenino. Não é com certeza um grande romance, mas é um bom romance. Narrado na forma de um diário, como já sugere o título, nele observo a concentração da narrativa no universo da classe média carioca. Se isso não o isenta de alguns traços marcantes da ficção de Rubem Fonseca, traços associados à representação brutal da marginalidade, acentua a presença de um universo social familiar ao leitor típico brasileiro. Algo que muito prezo no conjunto da obra de Rubem Fonseca é seu afastamento consciente e confesso do forte veio regionalista presente na nossa tradição literária. Desde seu primeiro livro, Rubem Fonseca elege o Brasil urbano, notadamente o Rio de Janeiro, como provedor de temas, conflitos, linguagens e tons dilacerantes da sua literatura. Fiel a esta orientação geral, distinguiu-se antes de tudo como contista da cidade – o melhor dentre os contemporâneos – e também como romancista. Seu primeiro romance, O Caso Morel, exerceu uma influência decisiva sobre minha consciência e prática sexuais. Que mais se pode pedir ou esperar de um livro? Registrei em alguma anotação remota de um dos meus diários o significado que este romance teve sobre minha vida.
Lendo Diário de um Fescenino, assim como Pequenas Criaturas, seu último volume de contos, observei como sua veia de humorista tornou-se mais pronunciada. A meio da leitura de algumas páginas de ambos os livros, não contive o riso. Rio prazerosamente lendo Cervantes, Voltaire, Swift, Lawrence Sterne, Machado de Assis, Oswald de Andrade... Rubem Fonseca, dentre os contemporâneos, é um que me estimulam ao riso e ao prazer elevado da inteligência e do espírito que a boa literatura propicia.

22 de junho de 2004.
Hoje acordei às 4 da madrugada. É que fui dormir também muito cedo. Gosto de estar de pé nessa hora ambivalente, suspensa entre a treva da noite e as primeiras luzes do dia. É quase miraculoso ouvir o silêncio respirando no asfalto deserto das ruas, os tons vagos da aurora espanando as gotas de água do oceano. Depois o dia vai lentamente nascendo, lentamente os objetos emergem do sono profundo da noite. Vesti-me feliz, quase que às pressas, e aproveitei a trégua da chuva, que nos últimos dias privou-me do prazer de correr e bater perna no calçadão da praia, sobretudo do prazer de mergulhar na piscina. Alternando a corrida lenta e a passada longa, fui até a praça de Boa Viagem. Depois fiz o percurso de volta estendendo-o até os limites de Piedade. Quando cruzei a linha do prédio onde Ci e as meninas viveram, espremido entre dois grandes edifícios que miraculosamente não lhe suprimiram a visão do mar, respirei com saudável e comovida memória os anos mais belos e felizes de minha vida. É bom evocá-los assim, retê-los nas linhas concretas do prédio onde tudo se deu e se consumou, surpreendê-los vibrando na atmosfera da cidade insensível, sem qualquer dor, ressentimento ou nostalgia. Vivi o que pude, vivemos o possível, e assim espero assimilar à memória toda essa paisagem esplêndida que perdi sem no entanto perdê-la. Passarei sempre diante daquele prédio respirando no ar sem sombras toda a felicidade invisível que elas me deram. Mentiria se dissesse que a aceitação repousada do que nelas perdi anula qualquer traço ou desejo de volta no tempo, ou de atualização dos esplendores perdidos. O que digo é que procurei tudo aceitar e viver e agora apenas memorar tal como foi: temporário, falível e todavia inefável. Talvez inefável exatamente porque temporário e falível. Tudo que queria ainda, mas não depende de mim, era retê-las como amigas, expressar livremente em clave sublimadora todo o amor, o gozo e desejo que a elas definitivamente me prendem. Um dia escrevi um poema para Ci intitulado: Sempre. Já não lembro o poema e a preguiça impede-me de ir catá-lo numa pasta que nem sei bem onde se encontra. Lembro porém de que nele aspirei a traduzir o sentido de eternidade humana, se é possível assim dizer, do amor que a ela me prende e me prenderá enquanto eu viva. Não importa o fato de ela abafar nos desvãos da memória tudo o que poderosa e irreprimivelmente nos une. Afinal, perdemos a liberdade de nos esquecer.

24 de junho de 2004
O Diário Crítico de Sérgio Milliet cobre um período que se estende grosseiramente do início dos anos 40 a meados dos anos 50. Uma das lições que patenteia é a fugacidade da fama e do prestígio literário. Se nem tudo é moda, boa parte dos escritores lidos e celebrados numa geração – diríamos hoje num ano – cedo mergulha no esquecimento. Mesmo alguns distinguidos pelo reconhecimento geral, sobretudo pela crítica mais criteriosa, com o tempo dissolvem-se no silêncio das prateleiras, ou pelo menos são reduzidos a dimensões comparativamente insignificantes. É curioso lembrar, por exemplo, o prestígio indisputável da cultura francesa durante o período registrado no diário de Sérgio Milliet. Talvez o escritor mais contemplado nas entradas e comentários do crítico paulista seja André Gide. Era então extraordinário o prestígio internacional de que desfrutava. Milliet reitera tal prestígio dedicando-lhe algumas das melhores e mais elogiosas páginas do seu diário. Se Gide não mergulhou na obscuridade, é certo que é hoje muito pouco lido. Outros similarmente distinguidos, como Georges Bernanos e Charles Péguy, tornaram-se ilustres desconhecidos para os contemporâneos.

Dentre os brasileiros, Mário de Andrade e Gilberto Freyre merecem por certo as notas mais amplas e elogiosas. Também a crítica, de resto notável no período, é objeto de inúmeras considerações de Milliet. O destaque maior vai para Álvaro Lins e Roger Bastide. O primeiro era no geral reconhecido como o melhor crítico militante na literatura brasileira; o segundo, embora antes de tudo sociólogo, trouxe contribuição notável à renovação dos nossos estudos socioantropológicos e também literários, com ênfase, aqui, para a ponderação mais sistemática do papel que a sociologia desempenha na apreciação da obra de arte, em geral, e da literária, em particular. Sílvio Romero, Alceu Amoroso Lima, Lúcia Miguel-Pereira, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Rui Coelho e outros são contemplados com notas no geral elogiosas.
Outro assunto merecedor de breve registro liga-se à febre dos testamentos e plataformas dados a público pelas duas gerações concorrentes no cenário cultural brasileiro na primeira metade dos anos 40. Os termos que emprego, testamentos e plataformas, aludem, claro, a dois livros de ampla repercussão: Testamento de uma Geração, organizado por Edgard Cavalheiro, e Plataforma da Nova Geração, organizado por Mário Neme. Enquanto o primeiro reúne depoimentos e balanços literários e ideológicos da geração fautora do Modernismo, a segunda dá voz à geração ascendente, constituída antes de tudo por escritores e ensaístas de vocação crítica ratificada pelo desenvolvimento do processo cultural brasileiro. Fui dos poucos, na minha geração, a ler cuidadosamente estas obras. Encontrei-as no acervo precioso da Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife durante minha curta e desprezada passagem pelo curso no auge dos chamados anos de chumbo da ditadura militar. Aliás, a leitura de obras desta natureza, somada à descoberta da psicanálise e dos escritores modernistas, concorreu de forma decisiva para que eu nunca mais pusesse os pés no prédio histórico do Parque 13 de Maio. Outro fator decisivo foi a leitura de O Processo Maurizius, de Jakob Wassermann. Poucos livros que li, aqui incluído Dom Quixote, tiveram sobre minha imaginação ética e estética efeito tão poderoso. O livro de Wassermann é a história de um processo de injustiça afinal reparado pela luta de um personagem eticamente grandioso. Não podia ler um livros destes sem cotejá-lo com a experiência cotidiana que me oprimia na Faculdade de Direito e no Brasil policiado pela truculência dos militares. Fiquei tão abalado que desisti do curso, pois tinha consciência de que nunca teria força e grandeza intelectuais e morais para seguir o exemplo de Etzel Undergast (tenho sérias dúvidas sobre a correção do sobrenome) como representante da lei e da justiça no país da ditadura e da injustiça.
Por fim, um breve comentário sobre a hegemonia do romance nordestino no decurso do primeiro momento historiado pelo diário de Sérgio Milliet. Tecendo elogios notadamente a José Lins do Rego – talvez, dentre os nordestinos, o que gozava de maior prestígio literário naquele período, como atesta o juízo de peso emitido por Mário de Andrade, que o distinguiu como o maior romancista brasileiro - Milliet proclama a excelência dessa corrente da nossa produção romanesca ao reconhecer que os nordestinos realizaram a ficção que os paulistas propunham ou desejariam realizar.

sábado, 14 de maio de 2011

Modernismo e Cultura


Modernismo: conceito e aspectos culturais.

Mais que um movimento literário ou mais amplamente artístico, como é no geral compreendido nas letras e nas disciplinas relativas ao estudo das artes no Brasil, o modernismo foi de fato um movimento muito mais abrangente. Por isso é justo propor neste artigo um conceito que melhor expresse o que representa para a história da arte e da cultura brasileiras no século XX. Como bem observa Antonio Candido, nosso crítico mais lúcido e qualificado, o modernismo traduz um amplo e complexo movimento de mudanças culturais na sociedade brasileira. Essa realidade pode ser melhor compreendida se consideramos a obra dos seus dois representantes maiores: Mário de Andrade e Oswald de Andrade.

Embora praticamente inseparáveis durante a fase inicial do modernismo, também conhecida como a fase heroica do movimento, Mário e Oswald eram personalidades muito diferentes, embora não faltasse quem os confundisse até como parentes. Ora, as diferenças entre ambos eram nítidas até do ponto de vista físico. Mais do que poetas e escritores literários, como são convencionalmente identificados, ambos tiveram participação decisiva na renovação das artes e da cultura. Questões como as dos estudos de interpretação da nossa formação históricocultural e da nossa identidade, de que mais adiante cuidarei, ocupam lugar de relevo na obra de ambos.

Importa deixar claro, visando melhor justificar o conceito de modernismo que aqui proponho, que a própria poesia que ambos realizaram traduz um esforço de compreensão da nossa formação como uma cultura singular, assim como uma tentativa de definir a nossa identidade de povo colonizado e dividido entre a Europa e nossa herança indígena e africana. Livros como Paulicéia Desvairada (1922), marco inaugural da poesia moderna brasileira, e Clã do Jabuti (1927), de Mário de Andrade, e Pau-Brasil (1925), de Oswald de Andrade, renovaram a poesia brasileira tanto do ponto de vista formal quanto temático. Atentando em particular para este, o ponto de vista temático das obras, notamos a transparente preocupação de refletir sobre as nossas características culturais a partir das origens da nossa formação. É assim que Oswald de Andrade retoma os historiadores e cronistas coloniais para compor seu livro acima indicado. Bastaria correr os olhos pela composição deste livro, Pau-Brasil, especialmente as seções intituladas História do Brasil e Poemas da colonização.

Dentro da perspectiva acima indicada, a obra de ambos alcança seu ponto culminante nos anos 1920 em Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e no “Manifesto Antropófago” (1928), de Oswald de Andrade, precedido pelo “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” (1924). Nestas obras ambos traduzem sua concepção nacionalista do modernismo, que na sua fase inicial caracterizou-se por seu empenho internacionalista sob a influência direta das vanguardas europeias.

O caráter nacionalista do modernismo se define nitidamente a partir de 1924. O marco dessa conversão do movimento ao nacionalismo foi a viagem que um grupo de modernistas de São Paulo fez às cidades históricas de Minas Gerais. Esses modernistas (Mário, Oswald, Tarsila do Amaral, entre outros) empreenderam a viagem para mostrar parte significativa do Brasil ao poeta suíço-francês Blaise Cendrars, um dos grandes símbolos da poesia de vanguarda na Europa, acolhido em São Paulo por Paulo Prado, membro da elite cafeeira de São Paulo e patrocinador do modernismo. Ao guiarem Cendrars pelas regiões e paisagens mais singulares e pitorescas do Brasil, os modernistas acabam ironicamente descobrindo seu próprio país que até então ignoravam. O fato de identificarem essa viagem como “viagem de descoberta do Brasil” é revelador da descoberta que fizeram do seu próprio país enquanto ciceroneavam o poeta europeu.

O episódio acima descrito ilustra uma característica estrutural da nossa formação cultural, assim como da nossa identidade. Como todo povo de largo passado colonial, dividido entre a Europa e o país novo, fruto do encontro e entrechoque entre a Europa e a América, entre a cultura europeia, a indígena e a africana, somos ao mesmo tempo europeus, indígenas, africanos e outras misturas. Somos acima de tudo isso: mestiços, povo formado a partir da mistura de múltiplos elementos que se compuseram numa identidade nova, brasileira, a partir de complexos processos de aproximação e conflito, dominação e mistura.

O problema é que nossas elites, alienadas da sua própria cultura e do seu próprio povo, eram incapazes de se espelharem na realidade concreta do seu próprio país, na realidade baseada nas características acima indicadas. Daí a situação irônica acima descrita: elas precisam apresentar o Brasil ao estrangeiro, a um membro da elite intelectual europeia, para afinal se darem conta do Brasil. Pois os aspectos do Brasil que fascinaram Blaise Cendrars eram exatamente aqueles que nos diferenciam da Europa, aqueles que temos de próprio e que nossas elites reprimiam na sua postiça identidade europeia. Noutras palavras, o que fascinava Blaise Cendrars, assim como acontece com os estrangeiros que no geral nos visitam, é o que temos de diferenciadamente brasileiro: as paisagens históricas, o carnaval, nossas expressões artísticas, os costumes típicos do nosso povo e das nossas regiões diferenciadas por circunstâncias de vida e formação econômica e social etc.

Nossos modernistas, sobretudo Mário e Oswald de Andrade, lideraram um grande movimento de renovação artística e cultural e produziram uma obra identificada com esse movimento tendo as questões acima indicadas como horizonte de sua atividade criativa. Por isso produziram uma obra que vai muito além dos marcos meramente literários, como antes assinalei. Nesse sentido, a obra de Mário de Andrade é ainda mais rica e representativa do que a de Oswald de Andrade. Grande estudioso dotado de extraordinária capacidade de trabalho e realização, Mário devotou-se à sua obra com autêntico espírito missionário, com o espírito do grande reformador cultural que efetivamente foi. Sua obra, de grande abrangência temática, testemunha a observação que acabo de fazer. Além da obra convencionalmente catalogada no âmbito da literatura (poesia, romance, conto, crônica e crítica literária), Mário aventurou-se pelos estudos do folclore, do qual foi um dos primeiros pesquisadores qualificados, da música, erudita e popular, das artes plásticas, do cinema, da fotografia, da antropologia, dos estudos etnográficos etc. Como educador e intelectual empenhado no exercício da política cultural, ele foi também um extraordinário renovador da nossa cultura.

O movimento antropófago, vertente radical e anarquista do modernismo, irrompeu em 1928 nas páginas da Revista de Antropofagia. Ele se afirma em tom barulhento e polêmico, refletindo assim características marcantes de Oswald de Andrade, seu idealizador e líder. A antropofagia, tal como concebida por Oswald, representa uma das mais extraordinárias e eficazes estratégias de luta contra a nossa dependência cultural. Artista de grande talento intuitivo, Oswald baseou-se nos rituais canibalistas dos indígenas brasileiros para enfrentar a questão da nossa dependência cultural da Europa. Assim, ele converte o ato de devoração canibal do inimigo colonizador numa metáfora de combate ideológico que nem se confunde com o nacionalismo que rejeita a cultura estrangeira fechando fronteiras contra o mundo, o que é de resto impossível, nem adere acriticamente a qualquer influência externa. Sua atitude antropofágica consiste, noutras palavras, em devorar tudo o que vem do estrangeiro com o espírito do canibal que comia o inimigo para se fortalecer. Esclarecendo melhor o sentido da metáfora, devemos devorar e digerir todas as influências estrangeiras que sirvam para fortalecer nossa cultura.

Essa estratégia de luta contra a dependência cultural foi retomada nos anos 1960 por movimentos de vanguarda como o concretismo, o tropicalismo e o Teatro Oficina. Caetano Veloso e Gilberto Gil, aliados aos concretistas, sobretudo a Augusto de Campos, retomaram as ideias de Oswald de Andrade para criar uma música brasileira contrária à ideologia nacionalista dominante na MPB (Música Popular Brasileira), corrente dominante na era dos festivais de música e dos movimentos de oposição à ditadura militar em meados dos anos 1960. Já nesse momento, quando a televisão começava a dominar o sistema de comunicação cultural brasileiro, eles adquiriram a consciência da impossibilidade de um nacionalismo fechado contra o fluxo da cultura de massa e das influências da cultura internacional, sobretudo a proveniente dos Estados Unidos. Por isso, seguindo o exemplo proposto por Oswald de Andrade, eles se entregam à devoração crítica do pop internacional mesclando sem preconceito o rock e o baião, o berimbau e a guitarra, o rural e o urbano, o luxo e lixo da cultura de massa brasileira. Gilberto Gil condensou numa frase precisa a estratégia antropofágica adotada por ele, Caetano Veloso e os seguidores do tropicalismo: “Existem muitos modos de fazer música; eu prefiro todos”.

Os desdobramentos do modernismo nos anos 1930, também de grande renovação sociocultural, confirmaram ainda mais o caráter de movimento de renovação cultural do modernismo. Como a essa altura ele tinha já se consolidado como movimento triunfante nas artes e na cultura geral do país, muitos dos seus representantes integraram-se a instituições governamentais para imprimirem forma efetiva a seus projetos. A grande expressão dessa mudança, que Antonio Candido acertadamente designou como o processo de rotinização do modernismo, foi a experiência vivida por Mário de Andrade como diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo entre 1935 e 1938. Apoiado pela colaboração decisiva de alguns dos seus companheiros de luta modernista, Sérgio Milliet e Rubens Borba de Morais, Mário contou ainda com os apoios também decisivos de Paulo Duarte, articulador político das ações culturais do Departamento, e Oneyda Alvarenga, discípula dileta de Mário e apaixonada estudiosa da música.

Ainda nesse decênio, o dos anos 1930, Mário de Andrade dá forma, atendendo a um pedido de Augusto Meyer, seu chefe no Instituto Nacional do Livro durante a gestão de Gustavo Capanema, ministro da Educação e da Saúde, ao anteprojeto da enciclopédia brasileira. Infelizmente o anteprojeto viveu e morreu como tal. Aliás, sobreviveu, já que foi afinal publicado em 1993. Esta obra irrealizada ilustra muito bem a amplitude dos interesses culturais de Mário de Andrade, que são no fundo os interesses e ambições do movimento cultural que ele, mais que qualquer modernista, melhor encarnou.

Outra evidência justificadora do conceito de modernismo que neste texto proponho é observável na trajetória de outros modernistas de grande importância infelizmente omitidos num mero resumo restrito à demonstração de um conceito. Tal qual Mário de Andrade, modernistas como Sérgio Buarque de Holanda e os já citados Sérgio Milliet, Paulo Prado e Rubens Borba de Morais partiram da literatura e da crítica literária para horizontes intelectuais mais amplos. Sérgio Buarque, ainda muito jovem, fundou e coeditou o periódico Estética, um dos grandes veículos de difusão e debate do ideário modernista. Lançado logo em seguida ao esgotamento de Klaxon, periódico inaugural e oficial do movimento, Estética torna-se um dos focos do debate cultural do momento, anos 1924 e 1925. Na década seguinte lança, em 1936, seu livro de maior repercussão até o presente, embora não fosse o seu preferido. Refiro-me a Raízes do Brasil, que será objeto de um artigo exclusivo dentro da série que estou escrevendo. Daí Sérgio Buarque deriva para as pesquisas e estudos históricos dos quais resultarão suas obras mais sólidas e permanentes na historiografia brasileira: Monções (1945), Caminhos e Fronteiras (1957) e Visão do Paraíso (1959).

Quanto a Sérgio Milliet, embora antes de tudo um crítico da literatura e das artes, distinguiu-se como estudioso da sociologia e da história, como o comprova seu livro Roteiro do Café (1938). Sua obra de crítico mais importante está reunida nos dez volumes do seu Diário Crítico. Paulo Prado, antes mencionado como patrono do modernismo, dedicou-se aos estudos de história regional e lançou em 1928 um ensaio de interpretação do Brasil que é ainda objeto de muita atenção crítica dos estudiosos: Retrato do Brasil. Por fim, algumas palavras relativas a Rubens Borba de Morais. Modernista da primeira hora, assim como todos aqui citados, escreveu um livro de crítica de ideias muito esclarecedor sobre as características iniciais do modernismo: Domingo dos Séculos. Nos anos 1930, além de colaborador decisivo de Mário de Andrade no Departamento de Cultura, distinguiu-se como especialista em biblioteconomia.

Referências bibliográficas:
Mário de Andrade. “O movimento modernista”, in Aspectos da Literatura Brasileira. 6ª. edição. São Paulo: Martins, 1978.
Antonio Candido. “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, in Literatura e Sociedade. 8ª. edição. São Paulo: T. A. Queiroz; Publifolha, 2000.
Alfredo Bosi. História Concisa da Literatura Brasileira. 34ª. edição. São Paulo; Editora Cultrix, 1994.
Wilson Martins. A Ideia Modernista. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; Topbooks, 2002.
Ver também o artigo de síntese sobre modernismo e ciências sociais cujo link anoto abaixo:
http://fmlima.blogspot.com/2010/06/modernismo-e-ciencias-sociais.html