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domingo, 16 de julho de 2017

No Mural do Facebook XXXII


Esperança e apatia:

Esta é uma verdade óbvia: um país, sobretudo bem sucedido, é fruto da ação coletiva da maioria. No Brasil, entretanto, poucos se dão conta disso, poucos agem norteados por esta verdade. Aqui é o país da esperança. E a esperança, também é óbvio, é no geral passiva. Poucos dizem: tenho esperança num futuro melhor e por isso vou lutar para que se realize. A verdade é o oposto. Quando invocamos a esperança, é porque nos sentimos impotentes diante da realidade.
No Brasil, país da esperança, vivemos, desde Dom Sebastião, daí o famoso mito sebastianista, a espera da volta ou milagre do pai salvador, do herói redentor, do Estado provedor. Em face da natureza, dos desastres e do caos que produz, notadamente por força da nossa baderna social, invocamos a ação divina, ou a de algum santo. As chuvas juninas no Nordeste, sempre devastadoras, são obra e solução celestial.
Por isso não me canso de dizer: o Brasil é muito atrasado, um escravo da força da tradição. Quando a coisa sai dos eixos frouxos que sustentam nossa sociedade anômica (privada de ordem civilizacional efetiva), esticando a corda da insegurança e do desespero, então apelamos até para o ditador que, na nossa mentalidade de servos, é o restaurador da ordem e do progresso, um insulto que pregaram na bandeira nacional. Como alguém já disse aqui no Facebook, é deprimente ler o que escrevo. Concluindo, o problema é o meu psiquismo depressor ou deprimido, não o país incapaz de realizar um projeto de real modernidade.
(Publicado no Facebook, 1 de julho de 2017).

O mal é estrutural:
Quase sempre deixo claro que não critico os impasses políticos e econômicos brasileiros restrito à sua esfera. Nossos problemas fundamentais, que remontam à nossa origem e nunca foram efetivamente enfrentados, são de ordem estrutural. A injustiça e a violência, a desigualdade iníqua e nosso atraso crônico, são apenas sintomas de nossas irresoluções estruturais. Sem reformas profundas nas esferas essenciais da sociedade, nunca seremos uma nação verdadeira, nunca uma democracia moderna. Os males estão em tudo, inclusive na esfera das relações íntimas, a começar pela família.
Já me cansei de afirmar que, bem longe desses mitos consoladores que envaidecem nossa mentalidade nacionalista e provinciana, somos uma sociedade anômica, isto é, privada de normas que imprimam sentido à nossa existência social e individual. Com ou sem a podridão que vaza de todos os esgotos do poder político, quase nada no Brasil funciona, ou funciona segundo princípios básicos de respeito aos direitos humanos, à efetiva noção de cidadania, à interação de cidadãos de fato, não de letra vazia gravada na Constituição e nos códigos que são modelos de modernidade. Mas isso existe e sempre existiu no papel. E papel, dizia Graciliano Ramos, que sofreu a brutalidade real avessa à letra da lei, papel aceita tudo. O que não nos falta é lei para tudo, tudo bonitinho no papel. No mundo real, somos ainda um fazendão de bacharéis e doutores, de mandantes e subordinados.
É óbvio que a realidade é muito mais complexa. O fazendão tem tecnologia de ponta, medicina idem e muito do que de mais avançado proveio e prevalece nas nações modernas. Mas o que de fato importa é que essa modernidade periférica se realiza sem superar as forças retrógradas e contrárias a tudo que em princípio é símbolo dos avanços e aperfeiçoamentos da ordem social contemporânea. Aqui a arquitetura de ponta se eleva espremida entre mocambos e favelas; o carrão top, provido da tecnologia mais avançada, esbarra no carroção do catador de lixo, o luxo e o lixo são indissociáveis, atrelados numa imagem de horror surreal que dissolve todas as teorias explicativas. Nem somos atrasados nem modernos. Por isso Kafka e sua imaginação ambígua e profética estão praticamente ausentes de nossa literatura. Quem precisa de literatura kafkiana quando ela é nossa própria realidade?
(Publicado no Facebook, 6 de julho de 2017)

A sensação de morrer:
Já ouvi vários relatos relativos à visão ou sensação de morrer. Há quem tenha visto uma figuração do céu ou além; há quem tenha ressuscitado convertido a alguma fé e experiências ou visões semelhantes. A minha, de alcance bem menos místico ou extremo, foi de uma serenidade indescritível. Depois de escapar por milagre de uma violenta colisão, provocada por uma amada seduzida pelo extremo da vida e da droga, voltei a mim numa sala de hospital entre máquinas congeladas (era a minha sensação).
De repente, tive uma estranha sensação de morte. Achei que estava morrendo. Só que essa sensação não me causou nenhum medo ou pânico. Pelo contrário, foi a maior experiência de serenidade e paz que senti na minha vida. Daí, salvo do desastre e da morte, mais tarde deduzi que a morte em si nada tem de aterrorizante nem anunciador de qualquer transcendência religiosa. Isso não quer dizer que me libertei do medo da morte. Reflito sobre ela com frequência e isento de medo. A ela devo alguns dos melhores poemas e meditações que escrevi. Nada mais além disso. Epicuro dizia não haver motivo para temê-la, pois quando somos ela ainda não é e quando ela é, já não somos. A formulação metafísica é bela, mas duvido que nos reconcilie com o medo da morte. São raros os que morrem com a serena coragem de Sócrates, Montaigne, Epícuro e os grande estoicos.
(Publicado no Facebook, 15 de julho de 2017).

Um mundo enfermo:
Detesto medicalizar a sociedade, até por por reconhecer a distinção elementar entre indivíduo e sociedade. Mas não há dúvida de que estamos vivendo numa sociedade doente. Grande parte da nossa doença individual, dos sintomas patológicos que sofremos, deriva de um estado de anomia e aridez espiritual que tem raízes socioculturais. Poderia expor uma infinidade de evidências para que isso não pareça mero subjetivismo.
Antes de tudo, a história humana foi sempre mutável. Algumas das suas crises mais profundas foram fundamentais para a renovação da sociedade. Esta que vivemos, no entanto, é de uma aceleração e de uma profundidade sem precedente. No curto intervalo de uma geração ocorreram mudanças para as quais somos incapazes de nos adequar positivamente. Estamos doentes porque a sociedade está doente.
E o mais grave é constatar que não sabemos o que fazer da nossa desorientação, do nosso desgoverno, do nosso mergulho sem âncoras em direção a um país cujo abismo não tem fundo. Sei que tudo isso que escrevo é deprimente, mas é real. Estou vivendo isso todos os dias, dentro e fora de mim. Quem quiser ou precisar, que se engane. Desafio qualquer gênio ou deus a assinalar uma saída para o caos em que vivemos.
O povão, regido pela alienação do rebanho, não está nem aí. Quanto mais o abismo se abre, mais fazem festa, se drogam, desprezam a realidade. Quanto à " elite", que Evaldo Cabral de Mello, justamente chama de clientela, escava ainda mais o abismo. O mais grave é a indiferença humana que se agravou, fruto da tecnologia digital. As pessoas estão cada vez mais solitárias e desamparadas. Por isso amam gatos e cachorros. Privados biologicamente de liberdade, estes são mais dóceis e servis ao nosso egoísmo. É isso aí. Deprimente ou não, é assim que grosseiramente percebo o mundo em que vivemos.
(publicado no Facebook, 16 de julho de 2017)

sexta-feira, 28 de abril de 2017

No Mural do Facebook XXVIII


A barbárie é nossa:
Em 2010 a universidade tornou-se já uma provação para mim. Provação intelectual, humanista, estética... Em suma, ela cotidianamente negava todos os valores que nortearam minha vida. Esses valores se foram compondo em plena ditadura. Fui trabalhar numa fábrica (não era, nunca fui comunista) e dentro das condições mais adversas nutria a convicção de realizar os ideais humanistas assimilados através da literatura e da melhor tradição cristã, iluminista e marxista. Que dizer do que é o Brasil hoje?
Meus ideais igualitários implicavam, por exemplo, a crença na aliança entre o melhor da tradição erudita e a popular. Como todos os grandes humanistas, de qualquer vertente, acreditava que lutar por um mundo melhor era realizar uma conciliação para o alto, não para baixo, democratizar o melhor, não o pior. Que dizer do Brasil de hoje? Hoje, e desde muito, sinto-me um completo estrangeiro no Brasil e em muito do mundo que consigo apreender.
Essa reflexão grosseira decorreu de um mero acaso: acabo de assistir a um show de Joyce no You Tube revivendo a música de Sidney Miller, que desde muito é apenas o nome de uma sala de show no Rio de Janeiro. Dentre todo mundo que conheço, João Rego é o único que conhece e canta Sidney Miller. Eu, que conheci a música de S. M. trabalhando numa fábrica, pensei que ela tinha acabado com o esquecimento dele na história da nossa música. Foi comovente ouvir músicas que nem sabia que ele havia composto depois que o mundo e o Brasil começaram a deslizar barbárie abaixo. Não faltará quem leia, se é que lerão, estas palavras como expressão de um humanista deprimente. Deprimente é a realidade que se tornou nossa. Tão nossa que se fez membro eleito pela família. Não tenho família. Aliás, tenho e sempre terei: os ideais humanistas que elegi e morrerão comigo. Ainda que nada mais me reste.
(Publicado no mural do Facebook, 27 de abril de 2017).

A barbárie é nossa - II
Alongo meu post precedente porque, entre outros mal-entendidos, incorri num lapso tão óbvio que me espanta o fato de tantos o lerem ao pé da letra e, pior, deduzirem coisas que o texto não autoriza. Não sou ainda imortal, mas também não tão velho para me desiludir com a universidade em 1910. Não bastasse tanto, houve quem concluísse que acredito em Idade de Ouro. Suponho que a minha teria então acabado em 1910.
Já que me leram com tanta imaginação, vou espichar a minha. A única coisa que poderia justificar o fim da minha suposta Idade de Ouro em 1910 seria a frase célebre de Virginia Woolf segundo a qual o caráter humano teria mudado neste ano. Como ela não apresenta nenhum argumento convincente, desmancho o que nem me passou pela cabeça.
Queria portanto deixar claro que meu humanismo é negativo, pessimista, como queiram chamá-lo os que continuam acreditando que somos uma espécie destinada a realizar algum ideal grandioso de humanidade reconciliada. Quando jovem, tolo como todo jovem, nutri esse tipo de humanismo. A experiência refletida levou-me a revisá-lo radicalmente. Nem sequer acredito em felicidade individual como um estado durável, muito menos permanente. Como então acreditaria ainda em Idade de Ouro?
Por fim, meu mal não é a pressa diante da história. Pelo contrário, se alguma coisa aprendi com ela foi precisamente a relevância da longue durée e a infinita inventividade do ser humano para tramar catástrofe e nada aprender com a história. Na minha adolescência me ensinaram uma das definições mais insanas da história: a mestra da vida. Ora, a história é feita por uma espécie antes de tudo insensata, doente de compulsão repetitiva e desmemoriada ou ignorante.
(Publicado no mural do Facebook em 27 de abril de 2017).


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

No Mural do Facebook


A morte de Nicolau Sevcenko
Em meio à comoção nacional provocada pela morte chocante de Eduardo Campos, tomo conhecimento, graças uma postagem de Randal Johnson, da morte de Nicolau Sevcenko. Ambos morreram no mesmo dia. É compreensível que a repercussão da morte de Eduardo Campos praticamente reduza a de Sevcenko a uma reportagem de pé de página, se posso me valer desta metáfora grosseira. Ainda assim, ou sobretudo por isso, importa ressaltar aqui a importância da sua obra. Tive apenas dois encontros com Sevcenko: o primeiro na Universidade de Londres, quando ele fazia seu pós-doutorado dividindo sala com Eric Hobsbawm; o segundo, alguns anos mais tarde em São Paulo, quando o procurei na sua sala da USP. Embora mal o tenha conhecido, marcou-me a memória sua cultura exposta sem afetação numa conversa casual, assim como seu espírito acolhedor e amável. O Brasil perde um grande historiador, um dos mais notáveis no âmbito da história cultural. (14 de agosto 2014)

Racionalidade e paixão:
Penso ser muito difícil articular um discurso racional na tribuna livre que são as redes sociais. As pessoas se manifestam sobre tudo, opinam irrefletidamente sobre tudo, em particular sobre temas que provocam reações passionais imediatas: política, religião, família, sexo, preconceito etc. Não bastasse a natureza intrínseca dos temas, a irracionalidade e a intolerância das opiniões é agravada pela leviandade com que muitos opinam, leviandade que com freqüência desliza para o desrespeito grosseiro. Por isso reluto sempre em entrar nessas discussões. Ao invés de concorrerem para o entendimento e a opinião esclarecida e isenta, servem apenas para agravar nossa intolerância e os preconceitos que tantos supostamente combatem.
Observando melhor, quase tudo acaba em repetição de clichê. As pessoas ficam repisando a frase dita por Eduardo Campos: “Não vamos desistir do Brasil” com o mesmo automatismo mimético dos que repetiam a frase sem sentido de Galvão Bueno quando o Brasil foi desclassificado pela França: “Faltou atitude”. Um povo politicamente organizado, e é isso o que mais importa para mudar verdadeiramente o Brasil, é um povo que pensa e ao pensar conquista sua autonomia. Confesso pensar que estamos muito longe disso. A forma como reagimos à morte chocante e dolorosa de Eduardo Campos constitui, antes de tudo, uma evidência da nossa orfandade política, da nossa incapacidade de nos organizarmos para além das figuras míticas do Mártir, do Salvador, do Pai protetor. No avesso disto, como é próprio do discurso maniqueísta, elegemos as figuras do Tirano, do Conspirador, do Pai punitivo. Ousar pensar, como dizia Kant, não é uma palavra de ordem. Ninguém pensa obedecendo a palavras de ordem. Ousar pensar é exatamente o contrário disso. Ousar pensar é educar-se para a autonomia, a coragem de ser e viver de acordo com convicções próprias. Conheço raríssimas pessoas capazes disso. (19 de agosto 2014)

A cegueira da paixão
Há alguns dias postei um comentário geral considerando a relação entre razão e paixão. Os comentários que provocou ajudaram-me a esclarecer melhor meu pensamento, além de os próprios comentadores melhorarem ou explicitarem melhor o que intentei dizer. Debate que se desdobra nestes termos me parece necessário e educativo para nossos livres exercícios de discussão nas redes sociais. É movido ainda por essa intenção que retomo o assunto afirmando que há muito desisti de discutir opinião política que não passa de cegueira da paixão. Dando um exemplo concreto, e ainda em curso no Facebook, acompanhei as repercussões e interpretações da série de entrevistas realizadas pelo Jornal Nacional com os principais candidatos à presidência da República. É impressionante como as opiniões se contradizem. Dão até a impressão, quando salto de um partidário para outro, que falam de assuntos antagônicos ou de algo que simplesmente não vi. Em circunstâncias dessa natureza, acho que debater é pura perda de tempo, argumentar para ir a lugar nenhum. Se não obedecemos a um critério mínimo de consenso entre realidade objetiva e opinião, a discussão perde sentido e com freqüência serve apenas para agravar mal-entendido e intolerância.
Comentando meu post acima mencionado, Ester Aguiar observou que a política é feita de paixão. Concordo, mas faço uma ligeira correção: sem dúvida, a paixão prevalece na política, mas ela precisa ser sempre temperada pela razão, pelo exercício da argumentação crítica. Do contrário, tudo acabaria em divergência insolúvel. Se as partes envolvidas não convergem num consenso mínimo sobre a natureza do que se discute, tudo acaba em opiniões que se anulam, isto é, a minha opinião vale tanto quanto a que nega a minha. Infelizmente, não posso demonstrar melhor essas apreciações abstratas cotejando as entrevistas do Jornal Nacional com uma amostragem significativa das reações que suscitaram. Portanto, confio na reflexão que o leitor crítico poderá fazer a partir do meu ponto final. (21 de agosto 2014)

O voto da necessidade
Há quem se surpreenda, ou simplesmente não compreenda, o fato de Dilma Roussef continuar subindo nas pesquisas de intenção de voto. A julgar pelos dados dessas pesquisas, a reeleição de Dilma é praticamente certa. Isso ocorre num contexto de crise econômica evidente. Basta conferir os próprios dados oficiais, escândalos de corrupção, antes de tudo o saque colossal aos fundos da Petrobrás, e o agravamento dos nossos problemas crônicos: saúde, educação, transporte, mobilidade urbana, violência crescente e outras pragas. Por que no entanto Dilma continua subindo? Porque grande parte dos brasileiros vota ainda atada ao cabresto da necessidade. Trocando em miúdos, o Bolsa Família continuará sendo a fonte de legitimidade eleitoral do PT. É razoável que sob o arrocho da necessidade o povo seja e continue indiferente aos problemas que somente importam para a fração esclarecida e privilegiada da sociedade. Enquanto tivermos um povo excluído dos benefícios efetivos da modernidade, quem lhe garantir o pão e o circo da necessidade continuará empunhando as armas do poder. Quanto à civilização, talvez no século 21, se o Brasil e o mundo ainda existirem. (2 de outubro 2014)

O voto da necessidade II
Neste país do atraso
É sempre a necessidade
O que decide eleição.
Por isso o Bolsa Família
É o partido maravilha
Do povo de pé no chão.

O voto de consciência
Com sua fé ou ciência
Com seu motivo ou razão
É sempre minoritário.
Embora seja tão vário
Nunca ganhou eleição.

Portanto, a eleição real
Com o seu bem e o seu mal
Vai ser na urna o que é.
O sonho é a esperança
Que nunca na vida alcança
Os fatos dos quais dou fé.
(4 de outubro 2014)

Inocência ou autoengano?
Prometi-me não mais me meter nas disputas políticas dos facebuqueiros. Lembrando o verso de Dante: guarda e passa. Mas a inocência ou autoengano com que tantos discutem e brigam por candidatos e partidos é tão absorvente quanto foi a torcida durante a Copa do Mundo. Pois é, o espírito é o mesmo e por ser o mesmo minha comparação é intencional. Não sei se as pessoas estão falando do que não sabem ou preferem a consolação do autoengano. Hoje Anco Márcio Tenório Vieira postou no mural uma reportagem publicada na Folha de S. Paulo que diz o que o eleitor informado, bem poucos, já sabe. Não importa o fato de Dilma Roussef ou Aécio Neves vencer. Os reais vencedores serão os de sempre: as grandes empresas financiadoras, notadamente as empreiteiras, que são de resto as grandes corruptoras do Brasil. Quantas vezes foram sequer investigadas? Bolsa Família é um paliativo que garante o voto dos milhões de necessitados. Quanto às grandes reformas, dívida histórica do Brasil, continuarão sendo objeto de lero-lero de campanha eleitoral. Já sei de cor todo esse discurso. Quem quer ver a realidade já sabe, pois desde a minha infância ouço os políticos prometendo investir no que de fato importa: saúde, educação, transporte, segurança, infraestrutura produtiva...
Quem fala em reforma do Estado? Quem tem ideia do que deveria ser? Quem fala em reforma fiscal e urbana quando vivemos em cidades que são verdadeiros acampamentos urbanos? Quem fala em reforma política num país cuja democracia representativa tem 32 partidos políticos? Isso não é democracia, é circo ideológico. Os governos continuam sendo prepostos das montadoras e empreiteiras que devastam o que antes conseguimos construir como cidade digna deste termo. Mas todo mundo aqui no Facebook continua torcendo e brigando como se Dilma e Aécio fossem dois times antagônicos. Os torcedores do futebol, pelo menos, não caem na ilusão de supor que a vitória do seu time vai mudar o Brasil. O que os move é a paixão pelo futebol. Nosso eleitor de Facebook, no entanto, repisa a cada eleição a ilusão de que o seu Fla ou o seu Flu vai mudar o Brasil. O Brasil vai continuar sendo o bananão que sempre foi, isto é, muda pontualmente aqui e ali, mas o enredo básico continua sendo o mesmo. Como não suportamos encarar essa realidade, nem lutar adequadamente para transformá-la, continuamos encenando esse grande circo carnavalesco a cada eleição. Prefiro o futebol, que pelo menos não finge ser algo além de circo. (9 de outubro 2014)

O Debate Político nas Redes Sociais
A qualidade do debate eleitoral que há meses envenena as redes sociais ratifica uma verdade que poucas pessoas se dispõem a admitir: nossos governantes têm a cara de quem os elege. Se eu ainda precisasse de uma razão para continuar fiel a meu ceticismo, veria cinco minutos de debate entre os candidatos ou leria a sério as promessas que fazem, tão velhas quanto nossas mazelas insolúveis. Lendo de passagem muitos dos ataques que partidários de Dilma lançam contra Aécio, e vice-versa, lembrei-me do que diziam de um velho corrupto: o político paulista Ademar de Barros. Maluf é seu herdeiro, assim como muitos de todas as partes e partidos do Brasil. Diziam que Ademar roubava, mas fazia. Uma variante inconfessada da nossa leniência ou cumplicidade com a corrupção é esta: o PT é corrupto, mas o PSDB é muito mais – e vice-versa, claro. Quando as pessoas debatem apoiando-se implicitamente neste argumento, que mais dizer? Diante disso, talvez convenha conferir legalidade à corrupção. Assim os corruptos seriam poupados dos linchamentos e mentiras de que tanto se queixam, ofensivos à respeitável imagem social que querem ostentar. Vamos organizar um movimento para legalizar a corrupção, gente. Assim todos nos entenderemos e ninguém precisará mentir tanto para fingir ser o que não é. (17 de outubro 2014)

segunda-feira, 10 de março de 2014

Memórias de um Leitor V


A áspera realidade da pobreza, não raro resvalando para a miséria, é prodigamente descrita na tradição literária nordestina, também no cinema, nas artes plásticas, na história social e saberes conexos. Vivendo nas ruas e bairros do Recife num tempo em que as fronteiras de classe eram bem menos nítidas, li com familiaridade inconsciente romances como O Moleque Ricardo, de José Lins do Rego e a tetralogia Um cavalheiro da segunda decadência, de Hermilo Borba Filho. Daí passei para a obra de Josué de Castro, notadamente Sete palmos de terra e um caixão. Também João Cabral de Melo Neto, com Morte e vida Severina, marcou de forma profunda minha consciência das condições iníquas que ainda hoje caracterizam nossa realidade social.
Corrigindo-me a tempo, ou sendo mais preciso, o que designo por “familiaridade inconsciente” é meramente a pobreza e a miséria enquanto fatos ou dados objetivos integrados desde a infância à minha experiência social. Reencontrar essa realidade transposta para o registro da invenção ficcional e da análise histórica e sociológica foi passar a encarar com estranhamento crítico algo decisivo para imprimir consciência política à minha percepção de leitor. Foi por essas vias e fontes que politizei minha relação com o mundo próximo e imediato do subdesenvolvimento nordestino, assim como também com o mundo social mais amplo. Noutras palavras, fui gradualmente captando em algumas das leituras que agora registro os determinantes externos do subdesenvolvimento do Nordeste e, por extensão, do Brasil. A isso acrescentei outra ordem de determinação: a das relações de poder interregional. Para integrar esses fatores complexos numa figura dotada de alguma coerência, inserindo o particular imediato, aderente à minha experiência social espontânea, no contexto político global, concorreram de forma decisiva minha leitura de Crimes de guerra no Vietnam, de Bertrand Russell, e a leitura de articulistas políticos como Otto Maria Carpeaux, Paulo Francis, Alceu Amoroso Lima, que na velhice rejuvenesceu politicamente passando a ser um dos críticos mais intransigentes e corajosos da ditadura militar, Antonio Callado, Carlos Heitor Cony e muitos outros que concorreram para politizar minha noção até então inocente da realidade do mundo. Como escreveu Graham Greene em The quiet American, “Innocence is a kind of insanity”. Muitas outras circunstâncias, algumas puramente acidentais, importaram para adensar minha consciência crítica conduzindo-me para a vertente das ideologias de esquerda. Não me detenho na reconstituição desse processo para não me desviar em demasia da rota retorcida dessas minhas memórias primariamente subordinadas à minha experiência de leitor.
Crimes de guerra no Vietnam, de Bertrand Russell, me caiu nas mãos por mero acaso. Alguém emprestou-o a minha irmã Zuleide, que vivia numa outra esfera de realidade e interesse, e assim ele acabou nas minhas mãos. A essa altura, entre 1969 e 1971, tendi progressivamente a envolver-me com a realidade política através da leitura de obras de ciências sociais, da própria literatura e do cinema. Outro fato que decisivamente me despertou para a política foi minha amizade com algumas pessoas de esquerda, no geral confessadamente comunistas. A primeira delas foi Urariano Mota. Conheci-o quando nos candidatamos a um emprego na empresa que editava o guia telefônico do Recife. Perdi um emprego, mas ganhei uma amizade. Nossa conversa revelou-nos de imediato afinidades literárias, políticas e musicais. Daí para a amizade estreita e constante a passada foi curta. Através dele, fiz também amizade com José Antônio Spinelli. Considerado o meio em que eu vivia, a aridez mental e a alienação política nele dominantes, Spinelli impressionou-me intelectualmente. Foi a primeira pessoa que me falou de Sartre, de vários intelectuais comunistas influentes e tudo isso aprofundou meu interesse pelas questões políticas da época. Meu ingresso na Faculdade de Direito, em 1971, consolidou e ampliou meus vínculos políticos com a realidade precisamente nas circunstâncias mais perigosas para quem ousasse envolver-se com essas coisas, já que foi precisamente durante esses anos que a ditadura se extremou na repressão implacável contra a minoria numericamente insignificante que se atreveu a desafiá-la, seja através da luta armada, seja através da oposição pública e ativa. Mas corto caminho para novamente não enveredar por digressões impertinentes.
Viver no Recife, então quanto agora, era esbarrar na pobreza e na miséria a cada esquina da cidade. A diferença que importa neste passo salientar é que então havia menos violência nas ruas, que ainda eram do povo, contanto que não se atrevesse a contestar a ditadura. O centro do Recife, também à diferença de hoje, era o centro da vida social da cidade. Havia os cinemas, as livrarias, os bares e sobretudo uma atmosfera de livre convívio nas ruas isenta das zonas de segregação hoje correntes. Além de freqüentar os cinemas do centro (o São Luiz, o Moderno, o Trianon e o Art Palácio), sem contar as salas de subúrbio já em vias de desaparecimento imposto pela crescente difusão da cultura televisiva, vivia nos bares do centro da cidade com os amigos, todos de esquerda.
Gilberto Freyre enfatiza em Sobrados e Mucambos os processos de mudança social descritos na dimensão da longue durée, como escrevem os historiadores franceses, que modificaram de forma profunda e irreversível os vínculos de confraternização atenuantes dos antagonismos implicados nos extremos senhor e escravo, casa-grande e senzala. O fenômeno da urbanização, desatado ao longo do século 19, alterou radicalmente as zonas de confraternização típicas da nossa sociedade colonial lastreada no patriarcalismo fixado no latifúndio monocultor e na escravidão. A transposição gradual dessa forma de organização social e cultural para a cidade rompeu os elos de confraternização tradicionais. Na interpretação otimista de Freyre, no entanto, eles se refazem no espaço da cidade através das procissões, das festas religiosas, do carnaval e de toda essa agregação festeira que pipoca a cada esquina ou espaço público ainda não privatizado pela sanha predatória das empreiteiras e seus prepostos, os políticos corruptos ou apenas inconscientes do caos urbano e das consequências desastrosas da política insana que praticam.
Se hoje as zonas de segregação tendem a acentuar-se, não obstante toda a ideologia “multiculturalista” e os mitos persistentes da nossa cultura integradora, naquele momento o centro da cidade, como já frisei, era ainda o espaço fundamental de vida associativa do Recife. Apesar da repressão política impiedosa, disseminada na universidade, notadamente na Faculdade de Direito, e nos pontos de maior agregação dos grupos politizados, vivíamos nos bares mais badalados, como o Mustang, na Avenida Conde da Boa Vista, nos cinemas, livrarias e sobretudo nas ruas. Lembro-me ainda dos papos sobre política e literatura, das nossas conspirações inviáveis e românticas às margens do Capibaribe e nas ruas onde circulávamos a qualquer hora do dia e da noite. O perigo que temíamos rondava na sombra e nada tinha a ver com a bandidagem marginal hoje corrente, bandidagem da qual nos protegemos fechados dentro da fortaleza do shopping, do condomínio policiado por câmeras, portões lacrados, alarmes eletrônicos e muros intransponíveis, não raro eletrificados. O Recife era outro. Não muito melhor, talvez pior, mas desse ponto de vista sem dúvida melhor. Em suma, havia ditadura, politização da juventude sem vias de acesso à militância institucionalizada, repressão política feroz. No mais, as ruas e o espaço público, embora sempre precário, eram ainda do povo.
Foi quando esse clima ideológico estava ainda se esboçando na minha vida pessoal que li Crimes de guerra no Vietnam. Diria simplesmente que representou um choque mental e ideológico na minha vida. Até então, minha consciência da cultura americana, assim como do que representava no mundo, era moldada sobretudo pelos filmes made in Hollywood. Noutras palavras, era um inocente do Leblon, lembrando o poema de Drummond. Cultuava os mitos do cinema americano, admirava a democracia americana, a música americana difundida pela cultura radiofônica e fonográfica da época e evidentemente vivia com minha imaginação erótica atormentada por Marilyn Monroe, Ava Gardner, Gina Lollobrigida, Elizabeth Taylor, Natalie Wood, Kim Novak, Doris Day e outras figuras mitológicas. Bertrand Russell revelou-me algo das entranhas da dominação imperialista imposta pelos Estados Unidos não apenas ao Vietnam, onde explodia a primeira guerra totalmente coberta pela mídia mundial, mas também ao Brasil e ao conjunto da América Latina. Foi um choque que suprimiu de vez minha inocência ideológica.
Outro sintoma das turbulências ideológicas da época associadas à minha experiência de leitor foi a emergência do boom da literatura hispano-americana. A difusão internacional desta literatura foi fruto antes de tudo de fatores políticos como o combate às ditaduras impostas praticamente a toda a América Latina, as lutas pela descolonização dentro do clima da guerra fria e o antiamericanismo reativo, fruto da política imperialista desencadeada pelos Estados Unidos em todo o mundo não-comunista. É claro que esse clima ideológico foi decisivo para que muitos jovens se bandeassem para o comunismo. Os de tendência mais moderada, abrangendo um leque que ia do catolicismo socialista ao liberalismo de esquerda, como era o meu caso, tornavam-se companheiros de viagem dos radicais. O clima de antagonismo ideológico, no entanto, reduzia todos esses matizes em termos práticos a dois pólos: direita versus esquerda, capitalismo versus comunismo. Na hora do pega pra capar, as forças repressivas nunca distinguiram quem do outro lado era comunista, simpatizante, companheiro de viagem, nem mesmo o inocente útil ou azarado, pego no “local do crime” na hora em que todos os gatos eram vermelhos.
Apesar da atmosfera ideológica acima grosseiramente pincelada, fui sempre um politizado malgré moi. Fosse outro o tempo, outras as circunstâncias, outra a geração dentro da qual me formei, jamais teria me metido com política, jamais teria feito o pouco que fiz dentro das possibilidades objetivas e subjetivas do tempo. O pouco que fiz foi feito contra o meu medo, minha aversão temperamental à política, minha consciência de que não podia ser indiferente, também um sentimento de solidariedade e compaixão inculcado por anos de leitura e convívio lastreados por valores humanistas cuja abrangência ia do catolicismo ao marxismo. Não preciso declarar que a política constitui um componente fundamental da consciência de todo intelectual digno deste termo, ainda quando se recuse à militância ou seja avesso à ação prática característica das formas e processos implicados no exercício do poder, nos modos de ordenação política da realidade. Sei de tudo isso, incorporo tudo isso à minha representação mental da realidade, mas confesso e reitero minha aversão à política compreendida no sentido prático e dominante do termo.
Voltei a derivar para as considerações político-ideológicas porque, no momento que considero dentro destas memórias de leitor que vou canhestramente compondo à deriva da memória, não há como dissociar minha experiência de leitor desse contexto que teima em enfiar-se nas linhas que vou cosendo tendo os livros como alvo prioritário. Isso explica o desvio que tomei em direção aos autores americanos de língua espanhola. Acho que o primeiro que li foi Gabriel García Márquez. Dele saltei para Juan Rulfo, Alejo Carpentier e Mario Vargas Llosa. Borges, hoje pairando por consenso crítico acima de todos, era então no mínimo silenciado. Li-o bem mais tarde. Um pouco antes conheci a obra de Ernesto Sabato e Manuel Puig. Minha leitura definitiva, direi mesmo suprema e insuperável dentro dessa linhagem procedente da língua espanhola, foi Dom Quixote, de Cervantes, que evidentemente nada tem a ver com os condicionantes ideológicos implicados nessa etapa da minha vida de leitor. Hoje os que mais leio e portanto elejo como preferidos são Borges, Octavio Paz, Mario Vargas Llosa e Ernesto Sabato.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Memórias de um leitor III


Graças à estante do meu tio, fundei no espaço da minha solidão uma ilha imaginária dentro do mundinho de Igarapeba regulado pelo tédio e a repetição. Foi a partir daí que me afastei gradualmente da vida de dissipação da vila, uma dissipação que por certo tornava a vida mais suportável: o salão de bilhar, onde a cachaça se misturava à fofoca, às bravatas sexuais tão caras ao nosso machismo, e o futebol acalorava as discussões fúteis e arengas sem propósito. Melhor ainda, claro, era praticá-lo no campo de futebol, também nas peladas improvisadas em plena Rua do Comércio. Os banhos de rio no geral associados ao voyeurismo e à masturbação à sombra das árvores ou entre as frestas de portas e janelas. A força do sexo, vibrando na carne trepidante de vida, é em última instância incivilizável. As normas da família o abafam, também as da religião, da escola, de toda uma complexa rede de controles e repressões, mas ele irrompe dos becos e frestas mais obscuras, vaza por vias até impressentidas. É uma batalha vencida a da civilização, compreendida no sentido preciso de repressão sumária da sexualidade à margem das práticas socialmente aprovadas e consentidas. Quem ceder à vontade delirante de suprimi-lo, não importa em nome de que ideal supremo, vai fatalmente adoecer, pois seus sintomas irreprimíveis encontram sempre um meio de viver no corpo, ainda que seja através da doença.

O tédio das primeiras horas da tarde, quando o sol retinia sobre as fachadas e telhados das casas semi-adormecidas, rendia os corpos áridos à lassidão que corroia o cotidiano da vila. Penso, no entanto, que me tornei o único habitante venturoso de Igarapeba quando descobri o mundo da imaginação humana comprimido na estante empoeirada do meu tio Edmundo. A chave da estante e a solidão fruída na cadeira de balanço da varanda à sombra do sol e da rotina sem alma fundaram o paraíso secreto que me converteu para sempre num explorador do mundo reinventado pela literatura. Nesse momento, a literatura era ainda provavelmente uma via de escape da realidade insípida, uma fuga do tédio indescritível nas fronteiras mesquinhas de uma vila. Mais tarde descobri que ela, no seu sentido mais pleno, é na verdade uma porta de retorno esclarecido à esfera irrecorrível e necessária da experiência. O leitor esclarecido não lê para fugir da realidade que lhe parece insuportável, mas para melhor compreendê-la e vivê-la com a lucidez de quem se sabe mortal e assim passa a exercitar-se na arte de habitar o presente. Hoje, quando sei que estou ficando velho, procuro ainda aprender que o presente é imenso e é o único tempo real. Por ser imenso, ele decanta e atualiza o que foi isento de nostalgia ou consolação regressiva. Por fim, sei do fim que me espera e procuro acolhê-lo como condição da necessidade que me define.

Evidentemente, as reflexões que intercalo na narrativa, como as do parágrafo precedente, não me ocorreram no tempo a que regridem minhas memórias de Igarapeba. Talvez convenha ainda esclarecer que a mudança de mentalidade decorrente da minha experiência de leitor é fruto de um processo que em muitos casos se estende através de anos. Considerando um exemplo específico acima narrado, o relativo à minha percepção ética da homossexualidade, com certeza não me bastou a leitura transformadora do De Profundis, de Oscar Wilde. Não me passa pela cabeça supor nem induzir o leitor a concluir que os processos de mudança de mentalidade que vivemos são automáticos, muito menos se consumam num simples ato. Ser de memória, deliberadamente imantado à linha de tensão entre presente e passado, pois tenho hoje consciência de que todo ser humano é portador de uma história, há muito aprendi que toda memória é sempre uma reconstituição do passado deformado pelas condições do presente. O passado não é nunca o passado refletido no presente; é sempre o passado que o presente reflete.

O lastro de valores e convicções que internalizamos através de um processo de socialização no geral inconsciente, determinado pelo meio social, demanda experiências e revisões muito complexas, não raro prolongadas e dolorosas, para que enfim uma mentalidade cultural renovada se cristalize. Reforço este argumento lembrando a lucidez habitual com que Montaigne nos seus Ensaios ressalta o quanto o ser humano é moldado pelos hábitos. Ensaiar um estudo de compreensão da mentalidade de um povo é antes de tudo ensaiar as formas e processos através do qual a realidade histórica se transforma retendo as linhas mais fortes e resistentes do passado, dos hábitos e tradições sedimentados no leito recoberto pelo fluxo perpétuo das águas. O fluxo das águas, metáfora da mudança permanente das sociedades no tempo, está sempre fluindo, mas sempre sobre o leito que imprime direção ao movimento. É por isso que esses processos se enquadram na categoria historiográfica da longue durée, como dizem os estudiosos dessas questões. Muita gente da minha geração subestimou a complexidade desses processos, além da força poderosa da tradição, porque na nossa juventude fomos embalados por uma concepção revolucionária da história que era na verdade uma projeção mítica do nosso desejo de mudança acionado por condições históricas hoje suprimidas do horizonte no qual se enquadra a experiência da juventude atual.

Prolongando ainda as considerações acima esboçadas, vivi por dentro, nas camas e fora delas, as mudanças radicais de comportamento que irromperam nos anos 1960. Foi sem dúvida uma década muito turbulenta, tão turbulenta que muitos a encararam como uma autêntica revolução. Sem dúvida, muito do que era autêntica e explosivamente novo naqueles anos revestia um caráter de mudança revolucionária consolidado pelo desdobramento do processo de mudança então detonado. Isso me parece verdadeiro sobretudo quando avaliamos a mudança radical da condição da mulher dentro de um intervalo de tempo relativamente muito curto. Em uma ou duas gerações a mulher conquistou direitos e ocupou espaços na sociedade absolutamente impensáveis quando recuamos um pouco no passado, notadamente num país de poderosas e seculares tradições patriarcais como o Brasil.

É também uma banalidade observar que todos esses processos de mudança cobram um preço bem alto àqueles que neles se empenham. Importa no entanto reiterar essa banalidade porque a mentalidade corrente, forjada pelo hedonismo consumista, alude a esses processos, diria que à realidade em geral, como se tudo dependesse do nosso desejo e vontade e toda fruição de prazer não implicasse algum tipo de preço ou consequência. Basta olhar à volta com um mínimo de atenção para perceber que tudo isso não passa de grosseira inconsciência ou mera ilusão vendida pelo mercado, única ideologia soberana no nosso tempo. As mudanças implicam custos, frequentemente altos e dolorosos. Qualquer mulher que ousou transpor a fronteira do passado patriarcal sabe o quanto precisou lutar e sofrer para conquistar direitos e privilégios hoje generalizados. Reiterando outro lugar comum, no capitalismo não existe almoço gratuito. Há quem atribua a frase a Margaret Thatcher. Como se tornou lugar comum, já não importa a fonte, mas a verdade do que diz. Acrescentaria apenas que o dito não se aplica tão somente ao capitalismo, mas a qualquer regime necessário de organização da vida coletiva. Em suma, tudo tem preço e alguém tem sempre que pagar a conta.

Muito do patriarcalismo que moldou nossa mentalidade está ainda infelizmente muito vivo. Parece-me ilusório acreditar que esse passado negativo pode ser superado dentro do horizonte previsível. O Brasil é um país de ritmos de mudança notavelmente lentos. Mesmo nos momentos de crise provocados por intensa pressão social, no geral predominam as forças conservadoras. Não é acidental o fato de o mais importante e influente intérprete do Brasil ser um intelectual de perfil nitidamente conservador. Refiro-me sabidamente a Gilberto Freyre. É inegável que foi antes de tudo um genial inventor do Brasil, uma personalidade extremamente complexa e contraditória, assim como a obra definitiva que legou à posteridade. Não tenho dúvida, entretanto, de que nele e na sua obra, pois que são em muitos sentidos inseparáveis, prevalecem os valores do Brasil patriarcal, que ele captou e interpretou de forma absolutamente única. Portanto, quem como eu aspira ao ideal de viver num país mais igualitário e civilizado, lutando ou não para mudá-lo, vai ter que esperar ainda muito tempo. Como a longo prazo todos estaremos mortos, lembrando uma frase antes muito citada, não estarei por aqui quando o Brasil, o eterno país do futuro, escrever nas suas fronteiras o romance que tanto sonhei ler, idealmente adicionando-lhe uma frase que gravasse minha passagem por esse mundo.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Memórias de um leitor II


Um dia um adolescente gay apaixonou-se por mim. Chamava-se também Fernando. Como reza o chavão discriminador, era uma bicha louca. Aliás, sempre me perguntei por que o homossexual brasileiro é de ordinário representado nas artes (cinema, teatro, música...) e sobretudo nas comédias e programas de humor, para não falar no anedotário popular e desabrido, dessa forma caricatural e ofensiva. Mais perturbador ainda é constatar que muitos gays se comportam de modo a enquadrar-se nessas formas de representação. Identificam-se, noutros termos, com a projeção do agressor, daquele que os discrimina e rejeita. Como Sartre observou, o judeu portador de todas as deformações raciais e morais que justificam sua supressão não existe; é uma invenção do antissemita. O mais grave é que muitos judeus acabam vestindo a natureza repulsiva inventada pelo antissemita e assim fazendo negam em si próprios sua natureza essencial, que é a de todo ser humano.

O mesmo processo de redução ideológica se repete no estereótipo do homossexual, assim como no estereótipo de todos os condenados e suprimidos da esfera da “normalidade” humana. Conheci alguns desses estereótipos no mundo da minha infância: o camponês rebaixado à condição de bicho semi-escravo, a bicha louca ou lacrada dentro de armários invisíveis, a adolescente desfrutável, a mulher desonrada, a Bovary dos canaviais (como foi minha mãe), o garanhão, o corno manso, o matuto, sempre negativamente contraposto ao citadino, o coronel do latifúndio, o usineiro. A literatura, através das misteriosas veredas da imaginação mais verdadeira do que a realidade empírica mistificadora, a literatura lavou meus olhos e meu coração ao desvelar a humanidade dos seres humanos comprimidos nessa rede de estereótipos que prevalece ainda no mundo. Infelizmente, continuamos a representar o outro baseados antes na realidade da empiria mistificadora do que nas camadas humanas invisíveis que nos traduzem como modos múltiplos e complexos de ser humano. Para ser ainda mais realista, outros diriam pessimista, piso num terreno movediço demais para me pronunciar em nome de qualquer princípio de progresso iluminista. Se é fato que ultrapassamos muitos desses preconceitos e estereótipos, em compensação cunhamos outros que atendem à nossa necessidade de liberação da nossa crueldade e agressividade constitutiva. Freud tem razão. Somente os órfãos incuráveis da utopia continuam acreditando que um dia inventaremos uma humanidade reconciliada.

Quando vivi na Inglaterra, detive-me muitas vezes na consideração do problema do homossexualismo enraizado nas memórias da minha infância. Desatando a imaginação comparativa, espantou-me de início aferir a profunda diferença de representação do gay na cultura inglesa e na brasileira. O que me pareceu mais espantoso foi considerar que cultuamos ainda hoje uma ideologia de liberação sexual do brasileiro contraposta à rigidez puritana dos ingleses. No entanto, ainda que discriminada legalmente na Inglaterra até meados do século passado, a homossexualidade lá, tal como a conheci, goza de um estatuto legal e de uma tolerância e reconhecimento maiores do que o observável na nossa cultura “sem culpa”, expressão, desde os tempos coloniais, de que “não existe pecado do lado de baixo do Equador”. Quem quiser que acredite, assim como há quem acredite que somos uma democracia racial. Ou ainda que somos um país cuja história é incruenta, pois as desigualdades e antagonismos se misturam de forma criativamente integradora. O problema nosso, nisso como em muitas outras coisas, é que as relações cordiais, no sentido usado por Sérgio Buarque de Holanda, que só para os ignorantes é uma ideologia justificadora da nossa “história incruenta”, com freqüência se sobrepõem às relações legais. Não me detenho para esclarecer esse mal-entendido relativo ao conceito de cordialidade na obra de Sérgio Buarque porque já dediquei um artigo inteiro à consideração deste problema quando no meu blog escrevi sobre Raízes do Brasil.

Voltando a Fernando, ele me amava enquanto eu o repudiava. Ele me assediava com sua delicadeza, sua carência de amor de homem, enquanto eu o humilhava e me sentia agredido pelo que me propunha ou de mim desejava. Um dia morreu num acidente de trem quando vinha para o Recife. Senti sua morte, mas não a real dimensão da culpa que veio muito mais tarde, quando minha consciência, já mais esclarecida pela alteridade escrita na literatura, revelou-me camadas humanas que eu ignorava. Para ser exato, essa mudança ocorreu quando li, na Biblioteca Pública de Afogados, no Recife, De Profundis, de Oscar Wilde. Para quem não sabe, é uma obra escrita na forma de uma longa carta para Lord Douglas, o grande amor de Wilde. Fiquei chocado ao descobrir, lendo esse opúsculo, que “o amor que não ousa dizer seu nome”, eufemismo célebre procedente do próprio Wilde, é um amor tão humano quanto as formas de amor legitimadas por nossa cultura. Foi aí que sobreveio a culpa, pois minha memória regrediu no tempo revelando-me o quanto fora preconceituoso e cruel ao rejeitar Fernando, o quanto fora cego e intolerante ao humilhar ou simplesmente rejeitar tantos homossexuais que conheci no internato onde estudei em Palmares.

Voltei a reler De Profundis quando vivi na Inglaterra. Desta feita, a versão original da obra. Aliás, de acordo com os editores do volume The Portable Oscar Wilde, a primeira edição integral e fiel ao texto original escrito por Wilde. Surpreendeu-me a decepção decorrente desta releitura, em certo sentido apenas uma leitura ou nova leitura. Julgo agora compreender melhor minha decepção, que pouco tem a ver com o texto em si. Este é até melhor, já que restaurado à forma do autor. Decepcionei-me simplesmente porque a importância maior da obra, para minha posição de leitor singular, derivava das circunstâncias biográficas e mentais demarcadoras da minha primeira leitura. É por essas e outras que toda obra é também uma criação do leitor. O leitor não lê apenas para saber que não está sozinho, frase luminosa que muitas vezes tomei de empréstimo a William Nicholson; o leitor lê para mudar sua vida ou acrescentar a obra à consciência da sua vida. É por ler desse modo que ele reinventa a obra e nesse sentido retraduz o autor.

Suponho que o leitor de hoje leia Oscar Wilde isento da imagem de autor maldito e assim confira à obra que escreveu a prioridade que deve ocupar em relação à biografia. Durante muito tempo, porém, o leitor comum foi atraído para aquela através desta. O que mais fascinava o leitor era a vida dissoluta do autor, sua perversão, sua coragem de viver “o amor que não ousa dizer seu nome”, o processo legal para o qual foi arrastado e cujo desenlace se resume na sua desgraça pública, a condenação à prisão sob o regime de trabalhos forçados e a ruína que foram seus últimos anos de vida. Hoje, suponho ainda, a obra se impõe por si própria e o estilo epigramático de Wilde, saturado de paradoxos e jogos de palavras agudamente deliciosos, o intraduzível witticism inglês, expressão do melhor decadentismo estético da época, sobrevive por força de suas virtudes literárias. Tornou-se afinal possível retratar a vida do escritor dentro das linhas de “normalidade” que o restituem à humanidade espontaneamente reconhecida num escritor heterossexual. Detendo-me apenas no exemplo do cinema, expressão da melhor cultura narrativa do século 20, bastaria comparar Os crimes de Oscar Wilde (The trials of Oscar Wilde), filmado em 1960, e Wilde, de 1997, baseado na biografia escrita por Richard Ellman e dirigido por Brian Gilbert. Para bom entendedor, sem trocadilho, os títulos das duas obras são por si sós bastante reveladores.

Apenas 37 anos separam os dois filmes. No entanto, quanta diferença entre ambos, a partir do próprio título das obras, como assinalei. Por nos conhecer bem acima do pouco que sabemos e queremos saber, Freud não se iludia acerca do progresso humano. Por isso, ao saber dos seus livros ardendo nas chamas das fogueiras da inquisição nazista, evidência ainda amena da catástrofe que se anunciava, limitou-se a dizer: “What progress we are making. In the Middle Ages they would have burnt me; nowadays they are content with burning my books”.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Memórias de um leitor I


Eu era cego e não sabia. Embora estudante aplicado na infância, conhecia apenas os livros adotados na escola que bem pouco educava, como é ainda a norma neste Brasil indiferente à necessidade de uma reforma profunda do nosso sistema educacional. Menino de rédea solta, criado como Deus criou batata, a frase ouvi-a do meu próprio pai, vivia pintando o sete e até o oito. Brás Cubas dos canaviais, como qualquer filho de proprietário um pouco acima da miséria, pintava e bordava acima da lei num mundo sem lei. Perdido dentro de uma família sem lei nem rei, fazia o que queria e sobretudo o que não sabia. Eu era cego e não sabia. A literatura, no sentido em que dela aqui tratarei, não existia na escola que frequentei. Nossa escola era e é ainda tão pobre, tão impermeável à literatura, que precisei descobri-la por mim próprio fora da escola. O fato me faz lembrar um dos deliciosos aforismos de George Bernard Shaw: Minha educação somente foi interrompida durante os anos em que frequentei a escola. Cito de memória, daí a omissão das aspas.

Voltando aos trilhos do meu raciocínio, eu era cego e não sabia. Um dia, graças a um acaso milagroso, descobri a literatura. Como narrei essa descoberta num outro texto de memórias postado no meu blog (remeto o leitor curioso à crônica de memórias Minha avó Hannah), retomo o fio da minha memória de leitor escavando outras memórias do meu baú já empoeirado. Descobri a literatura por conta e risco próprios, privado de um mentor capaz de me guiar, de iluminar o mundo da imaginação explorado e escrito pelos incontáveis escritores que fundaram a tradição letrada da humanidade. Isso quer dizer que adentrei a literatura através da primeira porta aberta pelo acaso. Mergulhei no mundo dos símbolos impressos simplesmente lendo o pouco que havia à mão, herança ociosa do meu tio Edmundo - já que cultuada, mas ignorada pela família. A estante fechada, com seus símbolos lacrados, era um talismã da família, um medalhão nobilitador da cegueira da família, que era também minha própria cegueira.

Comecei a ver e decifrar o mundo dos símbolos a partir do dia em que abri a estante e estendi a mão da intuição cega em direção ao primeiro livro que removi da estante e comecei a ler. Já não me lembro qual foi. O que sei é que a partir daquele momento um mundo incogitável e maravilhoso se apossou da minha imaginação. A literatura descortinou-me um mundo que transfigurou a rotina opressiva da família residente no Recife, assim como a rotina ainda mais opressiva de Igarapeba, a vila onde vivi meus primeiros anos conscientes ou memoráveis. Lá vivia todas as férias escolares. É certo que Igarapeba era um mundo fascinante para um menino sem rédeas, privado da polícia de hábito imposta pelos pais e outros agentes socializadores dos pequenos selvagens que fomos. Uma infância sem pais, com sua polícia e controle, grava carências definitivas na nossa experiência de desamparo, mas pode propiciar uma forma única de liberdade. Daí afirmar que cresci sem rédeas. As da religião eram também muito frouxas e assim fui poupado das figurações aterrorizantes do inferno e outros castigos insondáveis.

Mais que um mundo maravilhoso, a literatura revelou-me a alteridade. Foi ali, na solidão povoada da minha cadeira de leitura, que o outro se foi desdobrando em camadas infinitas à minha sede de imaginação e descoberta do mundo. O outro simbolizava outras possibilidades de vida, outras culturas e modos de ser, um mundo infinito quando cotejado com os horizontes mesquinhos da vila da minha infância, do próprio Recife ainda tão provinciano, fechado no seu culto de tradições que nos retêm prisioneiros do provincianismo. Esse provincianismo tão tenazmente cultuado estreita e deforma nossa percepção do mundo e no limite delira atado a expressões de bovarismo cultural simplesmente ridículas. Sem que então o soubesse, comecei a escapar dessa prisão quando soltei minha imaginação e minha sede de estranhamento através das páginas que me abriram as fronteiras da Europa, do mundo medieval reinventado pela imaginação romântica, da península ibérica, da Rússia, dos Estados Unidos, das fronteiras redesenhadas por guerras de conquista e resistência. Foi também uma descoberta chocante considerar o quanto, através da história humana, grupos e povos guerreiam e se entredevoram em nome dos mais belos idéias: Deus, a religião, que provocou tantas guerras e intolerância, a liberdade e os ideais utópicos. Como não temer e duvidar da espécie depois de despertar para todos esses horrores?

O ser humano, não importa de que latitude ou tempo, é espontaneamente etnocêntrico. Sua medida do mundo, seu poder de apreensão da realidade, esgota-se nas fronteiras da sua cultura. Somos assim e talvez poucos tenham a coragem de ser diferentes, a coragem de ultrapassar a fronteira do mesmo, controlável e conhecido, para defrontar a estranheza do outro, impregnar-se de modos de humanidade que ignoramos e por isso inspiram medo e rejeição. Confesso que não fugi a esta norma. Noutras palavras, internalizei os preconceitos e superstições dominantes no meio social em que me formei ou deformei e cegamente agi movido por eles. Rebento de uma cultura patriarcal, impregnada de violência e práticas obscurantistas, herdei e afirmei na ação a ideologia inconsciente justificadora da desigualdade brutal que caracteriza ainda nossa sociedade; assimilei passivamente a realidade da subordinação opressiva da mulher, da criança, do negro, do homossexual... Em suma, agi cegamente seguindo os preconceitos e idéias feitas instituídos.

Cresci num mundo dominado por homens rudes, no geral iletrados. A violência assaltava de múltiplas formas o tédio do cotidiano. Ainda menino, assisti a muita briga de bêbado, notadamente aos domingos, dia de feira, quando a população dos sítios e propriedades vizinhas acorria à rua central da vila para negociar a rala agricultura de subsistência da região e intercambiar produtos parcamente ofertados pelo comércio regular. Essas transações se faziam em meio ao ruído dos feirantes e ao consumo incontinente de cachaça. Um nada e logo os ânimos se exaltavam, não raro descambando para a luta física. Nos casos extremos, brigava-se com ponta de faca. Havia ainda a matança brutal de bois no matadouro à beira do rio. Assisti a essas cenas, apenas uma prática rotineira para os que delas viviam. A imagem de um boi sendo abatido a machadadas, e em seguida sangrado, perseguiu-me durante vários dias e desde então passei a evitar o matadouro nos dias em que abatiam animais.

Foi através das portas e janelas abertas pela literatura que passei a reconhecer a alteridade, a possibilidade de ser outro, de viver numa outra ordem de realidade. Mas não faltou quem se empenhasse em me fechar essas vias de liberação subjetiva. A resistência procedia antes de tudo do próprio universo familiar. Que pais e adultos não encaram com inquietação, não raro com oposição determinada, a ameaça representada por um menino ou adolescente questionador das verdades consagradas? A linguagem da mesmice e do conformismo está facilmente ao alcance de quem se sente ameaçado pelos desviados que ousam sacudir o sono da rotina, o movimento previsível e sólido da repetição. Há todo um vasto e diferenciado léxico à mão dos guardadores da ordem ilusória e mistificadora do mundo. Basta abrir a boca apontando com dedo acusador o desviante: sonhador, romântico, ingênuo, desmiolado, doente, anormal, doido, comunista, ateu, desvairado, anarquista, desequilibrado... Digito termos ao acaso, indiferente até às linhas de gradação semântica que prendem essa rede da linguagem discriminadora e intolerante.

Saio do terreno das abstrações acima assinaladas para ilustrar, com base na memória da minha infância e adolescência, a mudança de consciência e modos de ser que devo à literatura. Começo pela sexualidade supondo não precisar justificar sua centralidade na nossa condição humana. Nenhum adulto, nem mesmo meu pai, prestou-me qualquer orientação e esclarecimento a respeito do que todo menino e adolescente vive como expressão da sua sexualidade. Nisso, como em tudo mais, tive que fazer algo de mim e por mim por conta e risco próprios. Os desejos que na adolescência irromperam no meu corpo e na minha consciência foram tão perturbadores e intensos que temi não ser “normal”. Alguns eram tão antagônicos às noções correntes aprovadas e aprendidas no meio social, na família, que acabei me debatendo em aflições e incertezas agravadas pelo fato de não ter com quem discuti-las, aclará-las, dar-lhes um sentido que me enquadrasse na normalidade do mundo. Foi graças à literatura, com seus multifacetados personagens e enredos, que descobri aliviado a possibilidade de outros modos de normalidade, a complexa e liberadora percepção da inesgotável variedade dos modos de ser humano.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Entrevista sobre Gilberto Freyre


Fellipe Torres - Em Casa-grande & Senzala, Gilberto Freyre traça um paralelo entre a arquitetura da Casa-grande e o patriarcalismo. Seria possível atualizar a comparação ao observar a arquitetura moderna de arranha-céus, de apartamentos minúsculos onde impera o individualismo? O quanto do patriarcalismo enxergado por Freyre permanece em vigor na sociedade? Com que outros elementos ele coexiste?
Resposta - A pergunta é muito pertinente e infelizmente apoiada por muitas evidências. A força da tradição em Pernambuco, diria que no Brasil em geral, é extraordinária. Isso quer dizer que muitos traços nocivos do patriarcalismo e do escravismo dentro do qual fomos formados continuam bem vivos no presente. Gilberto Freyre (também Joaquim Nabuco, que antecipou muitas das intuições críticas de Freyre) teve olhar agudo para discernir esses traços. Basta conferir a obra de ambos. Essa herança me parece tão negativa que não posso opinar sobre o processo de acelerada expansão urbana do Recife sem qualificá-lo como simplesmente predatório. Incorporamos a modernidade e o capitalismo globalizado retendo algumas das piores forças do passado opressivo que herdamos. As evidências estão nas ruas e na nossa relação com os espaços público e privado; na arquitetura e na expansão comandada por políticos e empresários de mentalidade ainda senhorial. No fundo, são ainda coronéis dissimulados sob a aparência da nossa modernidade perversa. O exercício da democracia nestes trópicos autoritários e festeiros é ainda um grande mal-entendido, não obstante os avanços inegáveis.

F. T. - Em uma época em que a eugenia ganhava força com o nazismo, Freyre surgiu defendendo a miscigenação como uma forma de enriquecimento cultural e racial. Quais as mais relevantes heranças (dos índios, negros e portugueses) que vivenciamos até hoje como parte da cultura nacional?
R- Penso que a herança mais relevante consiste na revalorização da nossa condição de povo racial e culturalmente miscigenado. Ninguém concorreu mais para a reconciliação do brasileiro com sua real condição sócio-antropológica do que Gilberto Freyre. Mas importa reconhecer que a interpretação proposta por Freyre, e adotada até oficialmente, exerce funções ambíguas. Se de um lado ela realça uma integração social efetiva, de outro também mascara o vinco cortante de autoritarismo, racismo e profunda desigualdade social inerentes às nossas relações sociais.
Gilberto Freyre foi uma pessoa singularmente contraditória. Ele próprio tinha consciência disso. Aliás, ninguém explicou melhor Gilberto Freyre do que ele próprio nos muitos textos em que se debruçou sobre si próprio com uma obsessão narcisista sem precedente na nossa cultura. A deleitação narcisista com que falava de si próprio não anulava o olhar aguçado com que tantas vezes iluminou sua própria obra e personalidade. Na obra tardia, no entanto, o vinco do olhar autocomplacente prevalece e daí a tensão crítica e autocrítica baixa drasticamente. Mas o que queria acentuar ao derivar para essa linha de consideração era o fato de que ele foi um conservador otimista. Isso é raro e diria até contraditório. Sua interpretação otimista do Brasil tem sido infelizmente desmentida pelo próprio desdobramento de muitas das nossas características culturais tão louvadas na sua obra. Nossa expansão urbana, por exemplo, acima brevemente considerada, tende a criar zonas crescentes de segregação, fato que contraria sua visão integradora da nossa cultura. Basta observar a fronteira que isola o shopping Center da rua e das moradias tingidas de pobreza e miséria; o automóvel versus o transporte coletivo; os condomínios isolados da rua por altos muros, segurança privada e até cerca elétrica versus as favelas e mocambos onde os pobres se espremem entre o mangue e o esgoto a céu aberto. Enfim, depois de 125 anos de abolição formal da escravidão, uma paisagem urbana bem longe do otimismo pintado pela tradição mais otimista do nacionalismo cultural cujo representante mais ilustre é precisamente Gilberto Freyre.

F. T. - Gilberto Freyre exerceu forte influência na literatura, em autores como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Hermilo Borba Filho, Osman Lins... Na cultura contemporânea de modo geral (incluindo-se a literatura), ainda enxergamos traços de influência de Casa Grande & Senzala? Filmes como O som ao redor atualizam a temática?
R - Com certeza. A visão dominante de nacionalismo cultural, manifesta nas expressões artísticas e noutras formas de discurso sobre o Brasil, e aqui incluo ainda o discurso oficial e publicitário, é muito poderosa e portanto permeia o conjunto da nossa sociedade. Muitos dos nossos intelectuais e artistas contribuíram para a consolidação desse imaginário, desde modernistas como Mário de Andrade até o regionalista Ariano Suassuna. Mas não há dúvida de que o articulador supremo desse nacionalismo cultural foi Gilberto Freyre. Seu correspondente na literatura é Jorge Amado, cuja penetração no mercado literário internacional generalizou uma visão mítica e até folclórica do Brasil. Nesse sentido, Jorge Amado é mais uma criação de Gilberto Freyre do que o próprio José Lins do Rego. Quanto ao filme O som ao redor, confirma o que acabo de observar. Um dos grandes méritos do filme é precisamente atualizar na expressão fílmica a interpretação de Gilberto Freyre.

P - O universo acadêmico sempre foi bastante crítico em relação à produção freyriana, chegando a rejeitá-la em vários momentos. Como Casa Grande & Senzala é vista hoje pela academia? É uma obra estudada? Quais são as principais contribuições para a formação de novos profissionais e pesquisadores das ciências humanas?
R – A obra de Gilberto Freyre foi praticamente silenciada na academia durante a vigência da ditadura militar. Atenuado e diria hoje dissolvido o clima de antagonismo ideológico marcado pela intolerância mútua, a obra de Freyre passou por um processo de revalorização crescente. Hoje voltou a ser quase uma unanimidade. A obra dele está com certeza acima desses embates ideológicos e dos traços negativos da sua biografia, de resto bastante deploráveis e conhecidos. A crítica esclarecida e isenta sabe que é preciso distinguir obra e autor, obra e biografia. Duvido porém que ela esteja sendo estudada tanto quanto aparenta. Voltamos a falar muito elogiosamente da obra de Gilberto Freyre, mas muitos que se pronunciam sobre ela na academia baseiam-se nos comentadores e em apreciações muito parciais. O mais grave é observar que muitos dos que radicalmente o negavam sem o lerem passaram a louvá-lo com a mesma leviandade corrente nos círculos acadêmicos brasileiros.
Talvez a contribuição maior de Gilberto Freyre consista na forma como assimilou com muito discernimento crítico e criativo as teorias e métodos estrangeiros, a articulação complexa entre o nacional e o universal, a tradição e a modernidade. Foi explorando de forma genial essas vias complexas que Gilberto Freyre se tornou provavelmente o maior inventor do Brasil. O melhor livro já publicado sobre a formação intelectual de Freyre, refiro-me a Um Vitoriano dos Trópicos, de Maria Lúcia Pallhares-Burke, demonstra com rigor crítico e documental impecáveis isso que sumariamente assinalo.
Nota: Concedi a entrevista acima a Fellipe Torres, do Diário de Pernambuco. Tudo se processou através de e-mail. Fiz apenas uma exigência: que ele me enviasse o texto editado antes da publicação no jornal. Ele concordou. Para minha surpresa, descobri por acaso que publicou uma reportagem na edição de hoje, 2 de dezembro, sobre os 80 anos de publicação de Casa-Grande & Senzala e a realidade presente da expansão urbana do Recife. Cita algumas frases recortadas da entrevista que lhe concedi. Aparentemente, o jornal publicará no decorrer desta semana outras reportagens baseadas num paralelo entre a obra de Gilberto Freyre e outros aspectos da nossa realidade sócio-cultural. Em suma, Fellipe Torres não cumpriu os termos do nossos acordo informal. Mais uma razão, portanto, para que me sinta à vontade para postar a íntegra da entrevista no meu blog. Em tempo: tomei a liberdade de acrescentar um parágrafo ao texto antes enviado para ele.

domingo, 1 de dezembro de 2013

A Rebeldia da Juventude


A doença infantil da juventude é a rebeldia. O jovem rebela-se, antes de tudo, por causa da sua insegurança e da necessidade de afirmar sua individualidade. Esta supõe a negação dos pais ou de quem simbólica ou literalmente representa os papéis que assim os definem. Chovendo no molhado, os pais são nossos modelos primários. Mais do que isso, portamos no nosso corpo e no nosso psiquismo, na nossa condição genética, as marcas indeléveis que nos transmitem. Por isso precisamos viver nessa fase da nossa vida essa relação negativa contra eles. Precisamos negá-los como meio necessário para afirmar nossa diferença, nossa singularidade diante deles e da vida. Além disso, o jovem também se rebela contra a vida, contra a realidade que o oprime. Quem já não ouviu ou disse este lugar comum: apagamos na maturidade os incêndios que ateamos na juventude? Sei que os termos do lugar comum não são estes, apenas limito-me a traduzi-los sem lhes comprometer o sentido substancial.
Na minha juventude, a fração mais consciente da minha geração rebelou-se contra a ditadura militar. Considerada a totalidade dos jovens da época, éramos uma minoria insignificante. Mais reduzida ainda era a fração dos radicais que optaram pela luta armada para enfrentar a ditadura. O exemplo genérico sugere a imprecisão do conceito de geração, tão correntemente usado nos estudos historiográficos. Como a oposição ativa e institucionalmente organizada foi suprimida (daí a ditadura), opositores do meu tipo negavam o poder político migrando para dentro de si próprios. Era uma forma de oposição de raiz subjetiva, à margem da esfera pública, que provavelmente punia apenas o opositor. Pelo menos na instância imediata ou empiricamente apreensível. Afinal, o opositor se tornava um desajustado vivendo na contracorrente dos valores dominantes.
Foi por me tornar um opositor da ditadura que passei a me identificar como um crítico e inimigo intransigente dos valores dominantes. Essa oposição se estendia à esfera da família (daí detestar na minha família o que identificava como valores típicos da pequena burguesia), da religião (que não passava de ópio do povo), do capitalismo compreendido como sistema regulador da nossa existência material. Para além da mera contestação política, os anos 1960 e 1970 acabaram ultrapassando em muito o marco da política para se transformarem numa era de autêntica revolução dos costumes. De fato, a contestação que então irrompeu transbordou dos marcos da política compreendida no seu sentido convencional espraiando-se para os costumes gerais da sociedade. A própria disseminação de regimes ditatoriais em praticamente toda a América do Sul acabou concorrendo para deslocar a rebeldia da juventude para o âmbito dos costumes. Isso grosseiramente explica a explosão das formas de comportamento e das modas que na prática representaram uma força de erosão da família tradicional, dos papéis pertinentes aos gêneros, à sexualidade, ao conjunto das normas de regulação ética da sociedade.
O fato é que, bem ou mal, minha geração, compreendida no sentido acima sugerido, orientava sua rebeldia contra alvos bem definidos. Provavelmente bem poucos sabiam o que precisamente queriam, mas quase todos sabiam o que não queriam. Tínhamos um objeto de ódio contra o qual podíamos em graus variáveis desfechar nossa energia agressiva, nossa rebeldia carente de válvulas de escape e vias de afirmação da nossa individualidade. Um dia, porém, dei-me conta chocado de que me imaginava mudando o mundo, um sistema de poder que me reduzia à insignificância de um grão de areia na imensidão da orla marítima, quando não tinha autonomia nem para viver por conta e risco próprio. Filho de um pai cuja privação de autoridade e comando tornava-o um autêntico pai permissivo avant la lettre, típico da cultura em que hoje vivemos, tinha medo do mundo e estava com certeza totalmente despreparado para enfrentá-lo. Foi aí que, com muito medo, decidi sair de casa para aprender a viver por conta própria. Apreciando retrospectivamente minha vida, não tenho dúvida de que esta foi a decisão mais importante que ousei tomar sem então ter noção clara do seu alcance. Se não a tomasse e seguisse, apesar do medo e de todas as tribulações que daí advieram, teria provavelmente fracassado de forma absoluta.
Para além das motivações negativas - negar a família de que era parte e na qual fui progressivamente deixando de me reconhecer; negar valores morais relativos à sexualidade, à religião, às ambições de futuro e de vida bem sucedida etc – sentia-me também impelido por motivações positivas. Por exemplo: conquistar a liberdade de dormir com minha namorada; viver uma vida regida por valores sexuais e afetivos mais livres; contribuir dentro dos meus limites individuais para a fundação de uma sociedade mais livre e portanto menos repressiva. Assim, saí pelo mundo decidido a não repetir a história do meu pai, fortalecido pela crença de que viveria uma vida muito melhor do que aquela possível nos marcos do mundo em que me formei - e sobretudo deformei, assim ponderava ao cotejar o real com o desejável, o mundo que herdei contra minha vontade com o que me acreditava capaz de conquistar. Não preciso dizer que apanhei muito da vida, que fiquei muito aquém do que ingenuamente me supunha capaz de alcançar. De qualquer forma, continuo acreditando que minha rebeldia, a coragem relutante com que larguei a família para fazer de mim um indivíduo no sentido moderno do termo, tudo isso valeu a pena e me franqueou uma forma de vida melhor do que antes vivi.
Anos mais tarde, já acomodado na fase em que deixamos de ser incendiários para apagar o fogo das paixões juvenis, muitas vezes repassei perplexo na memória coisas que fiz e simplesmente não me podia mais imaginar fazendo. Lembro-me com mais nitidez que essas rememorações perplexas se amiudaram nas minhas noites de solidão inglesa. Cheguei à Inglaterra no dia preciso em que completei 40 anos. Se há uma idade da razão, comigo muito duvido, diria que a minha inaugurou-se no mundo inglês. Se fosse o caso de indicar uma data precisa, escolheria a data da minha chegada, quando pus as pernas trêmulas (uma delas aliás literalmente enferma devido a uma cirurgia para curar uma ruptura de menisco interno) num solo e mundo absolutamente estrangeiros. Ali, naquele exato momento, iniciei um estágio completamente novo na minha vida. Algum tempo depois, curtindo uma solidão prolongada e indizível, no entanto também estranhamente sólida e serena, surpreendi-me no silêncio e no frio repassando na memória os incêndios ateados no Brasil durante minha juventude. Pensava então, completamente perplexo, por vezes entre risadas de espanto e incredulidade, como fui capaz de fazer aquelas coisas nas quais já não me reconhecia, coisas que com certeza não mais sequer cogitaria fazer novamente. Isso traduz, de forma um tanto simplista, minha passagem da juventude para a maturidade.
O que hoje move a rebeldia da juventude? Uma coisa me parece certa: ela não tem um alvo de negação definido. Nisso diria que é radicalmente diferente da minha geração. Na medida em que precariamente o percebo, o jovem de hoje, o típico jovem de família classe média brasileira, não tem contra o que se rebelar. A despolitização do espaço publico privou-o da capacidade de contestar, por exemplo, os valores do capitalismo globalizado. O que Marx designava como fetiche da mercadoria tornou-se uma força tão onipresente no mundo em que hoje vivemos que precisamos de algo que negue nossa humanidade mais elementar para nos compenetrarmos de nossa diferença do reino da mercadoria. Narro um exemplo preciso que acabo de ver no Jornal Nacional da rede Globo. Uma reportagem sobre o tratamento reificante (quem ainda usa este termo que tanto se entranhou na minha consciência antiburguesa?) imposto pelos planos de saúde aos usuários ou pacientes (estes termos de resto suprimem nossa humanidade individual) mostra o que acontece a muitos cujo tratamento urgente e inadiável é suspenso por irresponsabilidade criminosa da operadora do plano. Um pai, cuja filha foi vítima desse crime corrente e impune neste Brasil de códigos legais de ordinário reduzidos a letra morta, declarou ao repórter: “Minha filha não é um carro que levamos de uma oficina para outra”.
Com ou sem juventude, ninguém se rebela contra essas afrontas a nossos direitos humanos que são todos os dias espezinhados pelo tipo de capitalismo estabelecido no Brasil. Precisamos de exemplos da natureza do que acima descrevi para nos dar conta de que há um fator humano diferenciador da nossa condição. Noutras palavras, nossa humanidade falível não deve ser tratada como tratamos um carro avariado. Abstraída essa circunstância excepcional, no entanto, qual é nossa percepção ética e existencial do carro dentro da natureza técnica e instrumental que rege nossa chamada civilização? Vivemos em cidades desumanas cujo funcionamento está dirigido para a supremacia do automóvel. O ideal de todo indivíduo típico, dentro dessa civilização, é comprar um carro para em seguida mergulhar nos labirintos congelados do nosso trânsito que não mais transita. A máquina publicitária, expressão dos valores que movem a ação e a consciência alienada do presente, satura nossas fantasias de consumo com automóveis e uma rede de símbolos de aquisição que, no limite, reduzem nossa humanidade àquilo que os planos de saúde executam e ocasionalmente se revela numa reportagem de noticiário televisivo: somos apenas máquinas degradáveis e descartáveis. Por isso os planos de saúde tratam-nos como os carros avariados são tratados: atiram-nos em qualquer oficina, quando não nos reduzem pura e simplesmente a ferro velho.

domingo, 11 de novembro de 2012

Nós e os índios


César Melo (professor de literatura luso-brasileira, Universidade de Chicago)

1.
Em nenhum lugar do Brasil, a invisibilidade do índio talvez seja tão visível quanto na Avenida Paulista, em São Paulo. É ali, em frente ao Parque Trianon, dando de cara com o MASP, no meio de pessoas apressadas falando ao celular, buzinas de carros, barulho de motor e poluições de vários tipos, que fica localizada a estátua de Bartolomeu Bueno Dias, também conhecido como Diabo Velho (Anhanguera). Bartolomeu foi um bandeirante, conhecido matador de índio e saqueador de tribo. No entanto, se formos ao Houaiss e procurarmos o verbete “bandeirante”, nenhum desses significados estará lá – o que diz muito também de nosso silêncio e indiferença em relações aos índios. No dicionário, você descobrirá que “bandeirante” é sinônimo de “paulista”, além de significar “aquele que abre caminho; desbravador; precursor; pioneiro”. Os bandeirantes seriam uma espécie de “vanguarda” da colonização, o que casa bem com um lugar como São Paulo, cujos políticos ainda hoje se utilizam da infeliz metáfora da “locomotiva do Brasil” para definir o estado.
Vanguarda, desbravamento, locomotiva, non ducor duco (que está na bandeira da cidade de São Paulo e quer dizer “não sou conduzido, conduzo”) são signos que fazem parte de um mesmo campo discursivo: o do progresso arrojado. Se houve algum progresso no Brasil, esse foi o progresso da colonização, ou melhor, a progressão bandeirante lenta e contínua para o oeste, escravizando indígenas, apropriando-se dos recursos de sua terra, aniquilando sua cultura. Avançamos na terra e na cultura dos outros. Progresso, progressão, invasão. E continuamos fazendo isso: seja com os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul; seja com os desalojados das construções da Copa do Mundo; seja com os índios da bacia Xingu que serão desterrados pela Usina de Belo Monte. As elites brasileiras continuam progredindo em cima de terras, pessoas e direitos.
Não nos enganemos. Nosso imaginário desenvolvimentista – essa necessidade e desejo de crescer e expandir em moto-contínuo – está calcado no espírito do bandeirantismo, que nada mais é a lógica do colonizador. Bartolomeu Bueno da Silva nos representa mais do que gostaríamos.
2.
Como aprendemos na escola secundária, os romances Iracema (1865) e O Guarani (1857) de José de Alencar são considerados ficções fundacionais da nação. Embora sejam textos fortemente ideológicos – uma vez que deliberadamente escamoteiam a violência genocida do encontro colonial para narrar tal encontro numa moldura conciliatória –, carregam em si um núcleo de verdade: o desejo do letrado brasileiro – o narrador dessa história dos vencedores – de moer qualquer traço de alteridade cultural no moinho da ocidentalização. Nas palavras certeiras de Alfredo Bosi, o indianismo alencarino não passava de um mito sacrificial dos índios, no qual estes só atingiriam a nobreza quando fossem capazes de se auto-imolar. Os índios Peri, de O Guarani, e Iracema, personagem central do romance homônimo, se tornam heróis na medida em que se anulam e se sacrificam em gesto de servidão aos colonizadores portugueses. Peri se converte ao cristianismo para se unir à portuguesa Cecília e, com ela, formar o povo brasileiro. Iracema trai o seu povo tabajara para ficar com o lusitano Martim. Do fruto desse encontro, nasce Moacir, o primeiro brasileiro. Depois de cumprida sua missão no processo civilizatório brasileiro, Iracema morre. O indianismo alencarino foi assim um elogio à submissão do indígena à sabedoria europeia. Bom índio é aquele que se ocidentaliza. Que muda de lado. Que nega seu povo. Que está disposto a aniquilar a sua cultura, e até a vida, para contribuir com a nação.
Um pouco mais de cem anos depois, João Guimarães Rosa, no conto “Meu tio o iauaretê”, se propõe a questionar essa relação colonial, evocando uma outra lógica. Se os mestiços “alencarinos” são cristianizados e ocidentalizados, o que aconteceria se o mestiço escolhesse o outro lado da mistura que o compõe?
“Meu tio o iauaretê” conta a história de Tonho Tigreiro, caçador de onças, contratado por um fazendeiro, Nhô Nhuão Guede, para desonçar um certo território. Em outras palavras, o caçador é chamado para livrar o terreno das onças, permitindo que aquele pedaço de terra possa ganhar uma utilidade econômica. Desonçar a terra faz parte de uma operação bandeirante (sem trocadilhos). No entanto, de tanto viver isolado dos homens, o caçador começa a ter mais simpatia pelas onças do que por gente, e passa a defendê-las. O caçador escolhe claramente um lado: o das onças, da natureza, dos animais, enfim, o lado da terra onde vive. É o mesmo “lado” que os índios defendem no seu esforço de resistência aos (neo)bandeirantes que invadem sua terra. Daí a conclusão da leitura que antropólogo Eduardo Viveiros de Castro faz do conto rosiano:
Não é um texto sobre o devir-animal, é um texto sobre o devir-índio. Ele descreve como é que um mestiço revira índio, e como é que todo mestiço, quando vira índio – isto é, quando se desmestiça– o branco mata. Essa é que é a moral da história. Muito cuidado quando você inverter a marcha inexorável do progresso que vai do índio ao branco passando pelo mestiço. Quando você procura voltar de mestiço para índio como faz o onceiro do conto, você termina morto por uma bala disparada por um revólver de branco.
Tudo que foge da lógica da anexação, da incorporação, da integração, é eliminado. Brasileiro gosta de mistura, desde que ninguém ameace a nossa cosmovisão e epistemologia ocidentais.
3.
Em Tristes trópicos, Claude Levi-Strauss lembra de uma conversa que teve com o embaixador do Brasil na França, Luís de Sousa Dantas, ocorrida em 1934, na qual o diplomata brasileiro havia comunicado a Levi-Strauss que não existiam mais índios no Brasil. Haviam sido todos eles dizimados pelos portugueses, lamentava Sousa Dantas. E assim concluía: o Brasil seria interessante para um sociólogo, mas não para um antropólogo, pois Levi-Strauss não encontraria em nosso país um índio sequer. Nós não sabemos se Sousa Dantas nega a existência dos índios por ignorância, ou simplesmente para ocultar um aspecto do país que o diplomata brasileiro certamente considerava “arcaico”, uma vez que a existência de “primitivos” não bendizia os padrões civilizatórios da nação diante de um estudioso europeu.
Mas quem de nós nunca agiu como Sousa Dantas? Qual foi o brasileiro que, no exterior, nunca se indignou com uma pergunta de um gringo mal-informado que sugeria que nós tivéssemos hábitos próximos ao dos índios? Eis o motivo de nossa indignação: como podem nos confundir com tupiniquins (palavra usada pejorativamente por nós brasileiros para nos definirmos como povo atrasado), se nós somos industrializados, urbanizados, temos carros, trânsito infernal, sofremos com poluição e tomamos Prozac para resolver nossos problemas emocionais? Em outras palavras, como podem nos acusar de “primitivos” se desfrutamos de todas estas maravilhas da civilização moderna?
Se por um lado, hoje, os brasileiros sabemos da existência empírica dos índios, por outro lado, negamos sua existência como nossos contemporâneos, e essa é a raíz da indignação diante de uma possível confusão entre nós, brasileiros, e um povo que, na cabeça de tantos, ainda não evoluiu. Ora, de todos os esforços pedagógicos para descolonizar o imaginário brasileiro, talvez esse seja o mais importante: de mostrar como nós precisamos urgentemente do diálogo com os índios. Devemos abandonar a ótica paternalista (do Estado brasileiro) que infantiliza o índio, enxergando-o como artefato do antiquário nacional, que para alguns deve ser incorporado à nação, enquanto para outros deve ser preservado tal como está. Esse é um falso dilema, pois reifica o índio. Devemos, sim, estabelecer com os índios uma relação de interlocução, com a qual temos muito que aprender.
Nossa civilização criou formas de vida que beiram a inviabilidade. Emporcalhamos nossas cidades; poluímos nosso mar, nossos rios, nosso ar; destruímos nossa natureza; criamos necessidades que nunca serão preenchidas a contento, gerando inúmeras frustrações, tamanha é a roda-viva do consumismo que determina nosso estilo de vida. Segundo Celso Furtado (que hoje, graças a Dilma Rousseff, dá nome a um petroleiro), no seu O mito do desenvolvimento econômico, “[o] custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana.” Quanto mais universalizamos nosso consumismo predador, mais rápido destruímos nosso ambiente e planeta. O que teríamos a aprender, afinal, com os índios?
O que dizer de um povo que vive há milênios em co-adaptação com o ecossistema amazônico, tirando da floresta o sustento da vida, em vez de tirar a floresta de sua vida (uso aqui o jogo de palavras do próprio texto de Viveiros de Castro)? Os índios são radicalmente cosmopolitas. A palavra “cosmopolita” quer dizer “cidadão do mundo”. Cosmos, na filosofia grega significa “universo organizado de maneira regular e integrada”. Se permanecermos fiéis à etimologia da palavra, cosmopolita seria então o cidadão de um universo harmonioso (cosmo é o antônimo de caos). Por anos, filósofos antigos e modernos têm pensado o termo “cosmopolitismo” como uma técnica de convivência entre povos. O cosmopolitismo radical dos índios nada mais é que uma técnica de convivência e co-adaptação com o cosmo – o universo, o ambiente, o planeta. A destruição do planeta hoje parece mais plausível em decorrência da falta do cosmopolitismo radical dos índios do que do cosmopolitismo dos filósofos. O que teríamos a aprender com os índios? Algo muito simples e complexo: aprender a habitar o planeta.
4.
Pensar o índio no Brasil é particularmente difícil, pois as representações que temos do índio o colocam além da alteridade. O “outro” da cultura brasileira – narrada, claro, da posição do letrado urbano euro-brasileiro – é, com o perdão da redundância, outro. Ou melhor, são outros: o sertanejo, o retirante, o negro, o favelado.
Investigando sobre os motivos que levaram a esquerda brasileira a negligenciar o índio, Pádua Fernandes lembra que a esquerda revolucionária dos anos 70 – de onde saiu boa parte do Partido dos Trabalhadores – discutia a relação entre cidade e campo, mas era incapaz de pensar a floresta. Em parte, isso se deve à importação direta das categorias euromarxistas (e, claro, graças ao abismo das Tordesilhas, que separa o Brasil da América Hispânica; a esquerda brasileira nunca deu muita bola para o indo-socialismo do peruano José Carlos Mariátegui). No entanto, mais do que ser um problema de cegueira por parte de segmentos da esquerda, a invisibilidade do índio talvez remeta à maneira como pensamos o “povo” brasileiro, dentro do paradigma nacional-popular.
De acordo com esse paradigma, que estruturou a imaginação brasileira durante o século 20, o povo é o sertanejo de Os sertões, “rocha da nacionalidade”; o negro de Casa-grande & senzala e da vasta bibliografia sociológica e historiográfica que veio a seguir; os retirantes desesperados Manuel e Rosa de Deus e o diabo na terra do sol; o ingênuo Fabiano de Vidas Secas; a comovente Macabéa de A hora da estrela, além de tantos outros personagens e temas das nossas produções culturais. A consciência social do letrado urbano brasileiro foi construída a partir da ideia de que o povo brasileiro – na sua imensa maioria pobre, desassistido, negromestiço – necessita ser integrado à modernidade, à cidadania plena, a um sistema educacional justo e ao conforto material.
A eleição do presidente Lula em 2002 talvez tenha sido o evento mais importante de nossa democracia exatamente porque mexeu profundamente com nossa imaginação nacional-popular: pela primeira vez, o povo assumia o poder. Fabiano, Macabéa, Manuel e Rosa estavam todos representados na figura carismática de Lula. E não se pode negar que o governo Lula muito melhorou a vida do “povo brasileiro”, garantindo acesso a bens e direitos antes impensáveis. O progresso finalmente havia chegado ao andar de baixo, que agora podia comprar televisão, andar de avião e até passear de cruzeiro. Nunca antes na história desse país, o povo esteve mais integrado aos padrões de consumo do mundo civilizado.
O mesmo governo que tanto fez para tanta gente (e atuou como uma força descolonizadora no tocante às ações afirmativas e na introdução de história africana no ensino médio), é aquele que age como um poder colonizador na Amazônia, e aliado objetivo dos fazendeiros do agronegócio no Mato Grosso do Sul. Desse modo, o Estado e seus sócios ocupam a terra com prerrogativa desenvolvimentista, como se fosse um território vazio, pronto para o usufruto dos agentes econômicos. Nada muito diferente dos bandeirantes. O que antes vinha coberto com retórica de missão civilizatória cristã, agora é celebrado como a chegada do progresso. Nos dois tipos de bandeirantismo, a destruição vem justificada por um discurso de salvação. O índio que habita nessas terras é tratado simplesmente como obstáculo que deve ser removido em nome do progresso da nação (progresso no caso representa: carne de gado no Mato Grosso e energia elétrica para indústrias do alumínio na Amazônia).
O índio apresenta um desafio para o pensamento da esquerda no Brasil. Um desafio que ainda não foi pensado como desafio, pois a esquerda ainda enxerga a “questão indígena” como um problema que deve ser resolvido. O desafio, ao contrário do problema, não exige uma resolução, mas uma autorreflexão. Os índios nos fazem repensar nosso modo de vida, e até mesmo o conceito de nação. Como salientei, o índio não se insere na matriz nacional-popular que mobiliza tanto a nossa imaginação. E não se insere nela pois, ao contrário do retirante, do favelado, do pobre, do negro, o índio não está buscando integração à modernidade (a grande promessa do lulismo às massas). Os índios parecem querer reconhecimento do seu modo de vida (como se pode ver nessa entrevista de Davi Kopenawa). E, para viver do jeito que sabem viver, é necessário garantir as condições mínimas de possibilidade para sua vida: terra e rios que não sejam dizimados pela usina de Belo Monte, nem pelo garimpo; segurança e tranquilidade para não serem acossados pelos capangas do agronegócio, como no Mato Grosso do Sul. Essas são as grandes lutas hoje.
A luta pelos direitos indígenas vai muito além de uma quitação da nossa dívida histórica. Mais do que um acerto de contas com nosso passado, a garantia dos direitos constitucionais dos índios é imprescindível para o nosso futuro. Precisamos cada dia mais da sabedoria desses cosmopolitas radicais, se quisermos repensar e refundar os pressupostos de nossa existência planetária.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O país do carnaval


Pensei em dar outro título a este artigo: “O país da anomia”. No entanto, como anomia é um termo procedente da terminologia sociológica - portanto, de uso e conhecimento muito restritos - optei pelo carnaval. Além de dar título ao primeiro livro de Jorge Amado, expressão suprema de alguns mitos da identidade cultural brasileira que abaixo ilustrarei, o termo vale para designar expressões de cultura que ultrapassam seu sentido estrito. Partindo deste, o carnaval foi tradicionalmente uma festa de espantosa dimensão coletiva cuja natureza mais distintiva radicava no seu caráter anômico, isto é, ele invertia durante sua vigência, três dias, as normas fundamentais que asseguram o funcionamento regular da sociedade. Por exemplo: o macho se fantasiava de virgem, multidões de adultos saíam pelas ruas cantando “mamãe eu quero mamar”, pessoas de todas as idades liberavam fantasias amordaçadas o ano inteiro nos cárceres do superego, os casais se traíam, as mulheres castas se vestiam de puta, as ruas e clubes eram invadidos por uma festa ruidosa e infrene e por aí o mundo se perdia num delírio de fantasia bárbara.

O leitor atento por certo notou que me referi acima ao carnaval no pretérito imperfeito. Minha intenção foi aludir a um passado inconcluso, afinal o carnaval não deixou de existir, sobretudo sugerir um processo de continuidade que se transforma radicalmente no presente. Noutras palavras, o carnaval agora é outro. Para começar, não fica restrito a três dias, o tradicional reinado de momo. Agora ele recobre todo o calendário. Tanto se dilatou, para a frente e para trás, nas datas que convencionalmente o determinam, quanto invadiu muitos outros dias do ano. Um exemplo? Hoje é 16 de setembro de 2012. O que esta data tem a ver com o carnaval? Supostamente nada. Acontece que inventaram uma coisa chamada “Parada da Diversidade”. O propósito aparente dessa festa é celebrar, como o nome indica, nossos múltiplos modos de ser: modos sociais, culturais, modos de gênero, modos de viver e crer e antes de tudo fazer festa.Tudo no Brasil é pretexto para festa. A esse tipo de evento somam-se agora muitos outros que praticamente todo fim de semana pipocam nas grandes cidades brasileiras: a “Parada Gay”, a dos “Evangélicos”, que ontem fechou o trânsito da Avenida Boa Viagem, principal via de ligação entre o sul e o centro do Recife. Há muitas outras, que os desocupados, os produtores culturais e os agentes de turismo sabem na ponta da língua. Não sei e odeio quem sabe.

Aparentemente, essas festas encerram um importante sentido político e cultural: promovem a tolerância entre os desiguais de todo tipo. Ora, na minha percepção esse suposto objetivo não passa de pretexto para a promoção de formas alternativas de carnaval fora de época, ou pura e simplesmente festa desatada de qualquer princípio de controle civilizatório. Uso neste contexto o termo civilizatório, que sei o quanto se presta à controvérsia, visando traduzir algo bem simples: o reconhecimento das normas elementares de relação social. É neste sentido preciso que me oponho indignado, mas definitivamente derrotado, a todas essas manifestações coletivas que promovem antes de tudo a anomia, a supressão dos meios básicos de regulação que imprimiriam civilidade ao acampamento urbano em que vivemos. Quero dizer que, por trás da aparência louvável dessas promoções coletivas, o que pulsa é a incivilidade, a anomia que agrava um estado social de convívio já em demasia deteriorado. A pretexto de qualquer valor na fachada louvável (Deus, Jesus, o direito das minorias, a tolerância entre os desiguais etc), o que essas festas promovem é o completo desprezo pela normatividade que assegura o respeito e o convívio civilizado entre as pessoas.

Falando do meu exemplo pessoal, pois estou indignado e é movido por minha indignação impotente que escrevo este artigo, estou aprendendo a dizer com certo grão de humor que passei a viver em estado de prisão domiciliar. Ontem, como acima observei, tive que suportar a “Parada Evangélica”. Em nome da religião e da celebração pública da divindade, milhares de pessoas ocupam uma das vias mais importantes da cidade para fazer carnaval animado por vários trios elétricos. O barulho é irritante. Mais do que isso, é revoltante a privação da liberdade de circular livremente através de uma das vias mais extensas e movimentadas da cidade, como já salientei. A religião, que foi tradicionalmente um meio de assegurar, entre outras funções sociais, o respeito à ordem social e ao semelhante, serve agora para promover a folia, o carnaval fora do esquadro convencional das grandes festas coletivas.

Querem uma variante desse carnaval ou dessa anomia? Pois observem com olhar crítico a campanha eleitoral corrente. Nossas campanhas políticas constituem a evidência irrefutável de uma sociedade anômica. A classe dirigente, ou aqueles que a ela se candidatam, vale-se de todo tipo de recurso para converter um fenômeno de natureza política em festa e droga barata para as massas oprimidas e alienadas. Como levar a sério um país que tem o tipo de campanha eleitoral que temos? Que tem o tipo de legislação política que temos? Como levar a sério um poder judiciário que legaliza os carros de som, a panfletagem irresponsável e politicamente inoperante que serve apenas para distribuir uns grãos de farelo ao lumpemproletariado e para sujar nossas ruas, como se já não fossem imundas além da medida mais baixa da civilidade?
Bem, meu artigo está chegando ao fim e minha paciência há muito se esgotou. O ruído, entretanto, continua ininterrupto no parque, onde se concentram os heroicos combatentes da diversidade. Segundo o noticiário da Rede Globo, somente depois das 22h a Avenida Boa Viagem será liberada para o trânsito normal de carros e pessoas. Se eu e outros recifenses agredidos por essa baderna tivéssemos direito a uma fatia de diversidade, a um fiapo de respeito dentro dessa desordem, eu pediria ao prefeito ou a qualquer das nossas autoridades festituídas, ou ao rei momo que nos desgoverna, que respeitasse meus direitos de cidadania com um minuto de silêncio.

E há ainda quem diga que essa merda desse país tem jeito. Não tem. Tive hoje cedo a oportunidade de lembrar a uma amiga a melhor definição que conheço do otimista. Repito-a aqui: o otimista é apenas um pessimista mal informado. Lamento desconhecer a autoria da frase, pois gostaria de prestar o devido elogio ao autor dessa definição perfeita. O país do carnaval é ingovernável. Portanto, não tem jeito. Ainda que se tornasse a maior potência econômica do mundo, seu povo continuaria sendo isso que neste exato momento estremece as janelas fechadas da minha prisão: um povo grosseiramente carnavalesco e irresponsável, um povo sem civilidade, um povo desprovido de consciência civilizada. Somente os nacionalistas cretinos acreditam que um país se faz apenas com crescimento econômico e política de pão e circo. Como respeitar um povo que não me respeita nem se respeita? O que é respeito? Concluo com outra definição que gosto de repetir: respeito é o que você deve dar para poder receber.
Recife, 16 de setembro de 2012.