quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Entrevista sobre Gilberto Freyre


Fellipe Torres - Em Casa-grande & Senzala, Gilberto Freyre traça um paralelo entre a arquitetura da Casa-grande e o patriarcalismo. Seria possível atualizar a comparação ao observar a arquitetura moderna de arranha-céus, de apartamentos minúsculos onde impera o individualismo? O quanto do patriarcalismo enxergado por Freyre permanece em vigor na sociedade? Com que outros elementos ele coexiste?
Resposta - A pergunta é muito pertinente e infelizmente apoiada por muitas evidências. A força da tradição em Pernambuco, diria que no Brasil em geral, é extraordinária. Isso quer dizer que muitos traços nocivos do patriarcalismo e do escravismo dentro do qual fomos formados continuam bem vivos no presente. Gilberto Freyre (também Joaquim Nabuco, que antecipou muitas das intuições críticas de Freyre) teve olhar agudo para discernir esses traços. Basta conferir a obra de ambos. Essa herança me parece tão negativa que não posso opinar sobre o processo de acelerada expansão urbana do Recife sem qualificá-lo como simplesmente predatório. Incorporamos a modernidade e o capitalismo globalizado retendo algumas das piores forças do passado opressivo que herdamos. As evidências estão nas ruas e na nossa relação com os espaços público e privado; na arquitetura e na expansão comandada por políticos e empresários de mentalidade ainda senhorial. No fundo, são ainda coronéis dissimulados sob a aparência da nossa modernidade perversa. O exercício da democracia nestes trópicos autoritários e festeiros é ainda um grande mal-entendido, não obstante os avanços inegáveis.

F. T. - Em uma época em que a eugenia ganhava força com o nazismo, Freyre surgiu defendendo a miscigenação como uma forma de enriquecimento cultural e racial. Quais as mais relevantes heranças (dos índios, negros e portugueses) que vivenciamos até hoje como parte da cultura nacional?
R- Penso que a herança mais relevante consiste na revalorização da nossa condição de povo racial e culturalmente miscigenado. Ninguém concorreu mais para a reconciliação do brasileiro com sua real condição sócio-antropológica do que Gilberto Freyre. Mas importa reconhecer que a interpretação proposta por Freyre, e adotada até oficialmente, exerce funções ambíguas. Se de um lado ela realça uma integração social efetiva, de outro também mascara o vinco cortante de autoritarismo, racismo e profunda desigualdade social inerentes às nossas relações sociais.
Gilberto Freyre foi uma pessoa singularmente contraditória. Ele próprio tinha consciência disso. Aliás, ninguém explicou melhor Gilberto Freyre do que ele próprio nos muitos textos em que se debruçou sobre si próprio com uma obsessão narcisista sem precedente na nossa cultura. A deleitação narcisista com que falava de si próprio não anulava o olhar aguçado com que tantas vezes iluminou sua própria obra e personalidade. Na obra tardia, no entanto, o vinco do olhar autocomplacente prevalece e daí a tensão crítica e autocrítica baixa drasticamente. Mas o que queria acentuar ao derivar para essa linha de consideração era o fato de que ele foi um conservador otimista. Isso é raro e diria até contraditório. Sua interpretação otimista do Brasil tem sido infelizmente desmentida pelo próprio desdobramento de muitas das nossas características culturais tão louvadas na sua obra. Nossa expansão urbana, por exemplo, acima brevemente considerada, tende a criar zonas crescentes de segregação, fato que contraria sua visão integradora da nossa cultura. Basta observar a fronteira que isola o shopping Center da rua e das moradias tingidas de pobreza e miséria; o automóvel versus o transporte coletivo; os condomínios isolados da rua por altos muros, segurança privada e até cerca elétrica versus as favelas e mocambos onde os pobres se espremem entre o mangue e o esgoto a céu aberto. Enfim, depois de 125 anos de abolição formal da escravidão, uma paisagem urbana bem longe do otimismo pintado pela tradição mais otimista do nacionalismo cultural cujo representante mais ilustre é precisamente Gilberto Freyre.

F. T. - Gilberto Freyre exerceu forte influência na literatura, em autores como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Hermilo Borba Filho, Osman Lins... Na cultura contemporânea de modo geral (incluindo-se a literatura), ainda enxergamos traços de influência de Casa Grande & Senzala? Filmes como O som ao redor atualizam a temática?
R - Com certeza. A visão dominante de nacionalismo cultural, manifesta nas expressões artísticas e noutras formas de discurso sobre o Brasil, e aqui incluo ainda o discurso oficial e publicitário, é muito poderosa e portanto permeia o conjunto da nossa sociedade. Muitos dos nossos intelectuais e artistas contribuíram para a consolidação desse imaginário, desde modernistas como Mário de Andrade até o regionalista Ariano Suassuna. Mas não há dúvida de que o articulador supremo desse nacionalismo cultural foi Gilberto Freyre. Seu correspondente na literatura é Jorge Amado, cuja penetração no mercado literário internacional generalizou uma visão mítica e até folclórica do Brasil. Nesse sentido, Jorge Amado é mais uma criação de Gilberto Freyre do que o próprio José Lins do Rego. Quanto ao filme O som ao redor, confirma o que acabo de observar. Um dos grandes méritos do filme é precisamente atualizar na expressão fílmica a interpretação de Gilberto Freyre.

P - O universo acadêmico sempre foi bastante crítico em relação à produção freyriana, chegando a rejeitá-la em vários momentos. Como Casa Grande & Senzala é vista hoje pela academia? É uma obra estudada? Quais são as principais contribuições para a formação de novos profissionais e pesquisadores das ciências humanas?
R – A obra de Gilberto Freyre foi praticamente silenciada na academia durante a vigência da ditadura militar. Atenuado e diria hoje dissolvido o clima de antagonismo ideológico marcado pela intolerância mútua, a obra de Freyre passou por um processo de revalorização crescente. Hoje voltou a ser quase uma unanimidade. A obra dele está com certeza acima desses embates ideológicos e dos traços negativos da sua biografia, de resto bastante deploráveis e conhecidos. A crítica esclarecida e isenta sabe que é preciso distinguir obra e autor, obra e biografia. Duvido porém que ela esteja sendo estudada tanto quanto aparenta. Voltamos a falar muito elogiosamente da obra de Gilberto Freyre, mas muitos que se pronunciam sobre ela na academia baseiam-se nos comentadores e em apreciações muito parciais. O mais grave é observar que muitos dos que radicalmente o negavam sem o lerem passaram a louvá-lo com a mesma leviandade corrente nos círculos acadêmicos brasileiros.
Talvez a contribuição maior de Gilberto Freyre consista na forma como assimilou com muito discernimento crítico e criativo as teorias e métodos estrangeiros, a articulação complexa entre o nacional e o universal, a tradição e a modernidade. Foi explorando de forma genial essas vias complexas que Gilberto Freyre se tornou provavelmente o maior inventor do Brasil. O melhor livro já publicado sobre a formação intelectual de Freyre, refiro-me a Um Vitoriano dos Trópicos, de Maria Lúcia Pallhares-Burke, demonstra com rigor crítico e documental impecáveis isso que sumariamente assinalo.
Nota: Concedi a entrevista acima a Fellipe Torres, do Diário de Pernambuco. Tudo se processou através de e-mail. Fiz apenas uma exigência: que ele me enviasse o texto editado antes da publicação no jornal. Ele concordou. Para minha surpresa, descobri por acaso que publicou uma reportagem na edição de hoje, 2 de dezembro, sobre os 80 anos de publicação de Casa-Grande & Senzala e a realidade presente da expansão urbana do Recife. Cita algumas frases recortadas da entrevista que lhe concedi. Aparentemente, o jornal publicará no decorrer desta semana outras reportagens baseadas num paralelo entre a obra de Gilberto Freyre e outros aspectos da nossa realidade sócio-cultural. Em suma, Fellipe Torres não cumpriu os termos do nossos acordo informal. Mais uma razão, portanto, para que me sinta à vontade para postar a íntegra da entrevista no meu blog. Em tempo: tomei a liberdade de acrescentar um parágrafo ao texto antes enviado para ele.

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