Mostrando postagens com marcador Christopher Lasch. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Christopher Lasch. Mostrar todas as postagens

sábado, 9 de julho de 2011

Amor, Narcisismo, Solidão...



Todo mundo se queixa do estado precário das relações subjetivas. Embora todos aspiremos à realização de uma vida mais bela e harmoniosa, e todos aparentem entender esses altíssimos fins humanos inseparáveis do convívio com o semelhante, em tudo e todos prevalecem a incompreensão, a impaciência, o tédio, quando não a opressão e o ódio. Mais frequente ainda, sobretudo no âmbito das relações prolongadas, é a substituição do amor ou da amizade pela indiferença. Não é difícil observar a incidência desse fenômeno nas relações entre pessoas casadas há muito tempo, ou nas relações gerais entre familiares. Incapazes de romper a cadeia opressiva da indiferença confortável, preferem acomodar-se a esse estado de coisas.

Dar o salto para além dessa fronteira, dissolvendo assim um pacto implícito de segurança fundada na indiferença, é algo que aparenta exigir muita coragem. E os que a têm e a exercitam são no geral as mulheres. Talvez porque imprimam tão alto significado existencial à realização amorosa e familiar, as mulheres tendem a ser mais resistentes a essas formas de degradação do amor cujo limite é a indiferença acotovelada no cotidiano doméstico e na própria cama repartida.

Os homens, em contrapartida, inclinam-se para a acomodação tecida de hipocrisia, traição sem culpa aparente ou mesmo a duplicidade que às vezes envolve a constituição inconfessada de uma segunda família. Formados dentro de condições culturais que tendiam sempre a lhes favorecer os interesses egoístas em detrimento dos da mulher, é compreensível sua melhor adaptação à traição conjugal, à duplicidade e ao reduzido peso que a família passa a exercer na economia da vida subjetiva.

Ousando avançar aqui uma tese discutível, acredito que as diferenças entre homem e mulher não se esgotam no plano cultural, como decerto fica sugerido nos parágrafos precedentes. Apontando para a zona genital, disse certa feita Gertrude Stein que no homem tudo aí começava para acabar em qualquer lugar. Na mulher, contrariamente, tudo principiaria em qualquer lugar para fatalmente acabar na zona genital. À parte o feitio trocista do episódio, julgo que sua intenção era no homem sugerir uma libido especificamente centrífuga contraposta à libido centrípeta da mulher. Isso não exclui necessariamente a influência dos fatores culturais, mas sem dúvida põe a ênfase na constituição biológica de um e de outra.

Ora, se os valores e práticas humanos comprovadamente variam na medida em que varia o ambiente cultural, o extremo dessa variação não me parece autorizar o desprezo pelas diferenças de ordem biológica. A evidência de algumas dessas diferenças é tal que chega a parecer simplesmente sensato admiti-la. No entanto, sabe-se o quanto o desenvolvimento da antropologia cultural, com nítidas ramificações sintetizáveis no princípio teórico do relativismo cultural, induziu a excessos. É assim hoje rotineiro ouvir-se alguém afirmar que tudo é cultural, que tudo depende das formas específicas adotadas pelas culturas particulares aparentemente irredutíveis, em qualquer dimensão, a proposições de validade universal.

Eu próprio, no exercício da profissão de professor de sociologia, perdi a conta de quantas vezes me envolvi em disputas, quase sempre sem força de convencimento intelectual, com representantes das formas difusas de ideologia feminista, homossexual, racial, etc. Quantas vezes, em meio ao calor dessas disputas, não lembrei com insucesso a meus interlocutores que estou, enquanto homem, privado do poder de engravidar, menstruar, amamentar, etc.? Essas diferenças de ordem biológica não vão decididamente atuar no modo como homem e mulher concebem a atividade sexual, no modo como a praticam, no modo como emocionalmente a vivem? Acredito que sim. O culturalista, entretanto, diria que não, que tudo não passa de condicionamento ou conformação cultural das disposições humanas fundamentais.

Voltando entretanto à questão inicialmente enunciada, presumo que conviver de modo compreensivo, ou simplesmente satisfatório, foi e sempre será difícil. Talvez a natureza de que somos feitos, máquinas falíveis e fundamentalmente egocêntricas, imponha sempre limites variáveis à realização de uma melhor humanidade convivida. Mas também neste ponto importaria advertir para o risco de uma visão essencialista. Se me parece verdadeiro o peso exercido pelos fatores variáveis, associados à cultura nas suas concreções espaciais e temporais, eles não anulam à força atuante, quem sabe modeladora, das constantes humanas. Negar aqueles, os fatores variáveis, seria incorrer numa visão essencialista. De outro lado, negar estas, as constantes humanas, seria reivindicar uma visão puramente imanente ou histórica para a nossa insolúvel humanidade.

Fica assim claro que busco entender essas relações complexas dentro de uma perspectiva regida pelo princípio do equilíbrio entre os extremos. O meio termo é sempre a posição dos seres sensatos. Mas também dos medíocres e vacilantes, não me esqueço. Talvez se possa historicamente creditar aos extremistas, não aos sensatos, as grandes transformações e avanços da humanidade. Também as grandes destruições e retrocessos, acrescentaria. Mas noto que voltei a me perder em digressões.

O que intentava dizer ao retomar a questão primeiramente enunciada era que o agravamento das nossas dificuldades de convívio me parece assentar sobre a variável que eu designaria, seguindo a lição crítica de Christopher Lasch, cultura do narcisismo. Valendo-me de expressões que sei exercerem funções mais retóricas que propriamente explicativas, diria que o capitalismo de consumo precisa de uma ética da permissividade e de uma cultura narcisista para operar de modo mais integrador e eficaz. Pois como conciliar o consumo tal como hoje o vivemos com uma ética da austeridade ou uma cultura na qual o indivíduo desprendidamente se orientasse pelo reconhecimento do outro, ou pelos interesses impessoais e abstratos?

Os fins visados pelo capitalismo do consumo, somados à aceleração do tempo histórico que continuamente dissolve e refaz expectativas e identidades, concorre para a articulação de uma ética e de uma cultura centradas no eu narcísico. Inseguro dentro de um mundo que não compreende nem tem poderes para controlar, o indivíduo contemporâneo cede às artimanhas sedutoras da indústria da publicidade que sistematicamente o assedia incitando-o a ser “ele mesmo”, a dar importância a si mesmo, a cuidar de sua beleza, seu corpo. Pior ainda, manipulando desejos humanos profundos, como o da felicidade e do prazer irrestrito, vende ao Narciso infeliz uma caricatura da felicidade e do desejo ilusoriamente confundindo o princípio do prazer com a própria realidade.

Se a constituição produzida pela revolução americana frisa “the pursuit of happiness” como um dos direitos humanos fundamentais, a indústria da publicidade converteu esse direito num dado ou num produto mágico da volição individual. Como estranhar, depois de tudo, a presença generalizada e ofensiva do Narciso sempre se mirando nas águas e vendo em cada outro um mero lago espelhado docilmente a serviço do seu desejo de autoabsorção. Trocando em miúdos esse fenômeno psicocultural típico da nossa época, hoje qualquer idiota se acredita espontaneamente autorizado a pensar que o mundo tem a medida do seu umbigo. Qualquer imbecil fala hoje obsessivamente de si próprio presumindo que existimos apenas para ratificar sua grandiosa existência.

Incapaz de se ver e medir assim como é, o Narciso contemporâneo se queixa do mundo, da impossibilidade de convívio satisfatório sem nunca se dar conta de que nele reside um dos fundamentos dessa impossibilidade. Ainda que fosse excepcionalmente interessante e sedutor, culto e investido de múltiplos talentos, quem o suportaria entregue ao exercício compulsivo de falar de si próprio, de ver tão só sua própria imagem projetada no espelho a que reduz o outro? Se o Narciso dotado dessas virtudes seria cansativo e inconvivível, o que dizer do Narciso banal, do cretino qualquer prisioneiro de sua mesmice, de sua visão estreita, quando não apenas boçal?

Diante desse quadro, somente a incapacidade de viver sua própria vida e sua própria e fatal solidão explica a aderência tenaz do homem à vida gregária. Já não me refiro a Narciso, que é constitucionalmente incapaz de tolerar a solidão, para não dizer refazê-la a ela imprimindo um sentido mais verdadeiro e autônomo de existência individual, mas aos seres humanos em geral.

Num belo livro dedicado ao tema da solidão, Anthony Storr retraça através de séculos da história da cultura as múltiplas maneiras e idiossincrasias mobilizadas por homens dotados de excelência inventiva para dar sentido a suas existências solitárias. Enfatizando a dimensão criativa e mesmo necessária da solidão, demonstra Anthony Storr que os relacionamentos interpessoais não constituem a única via de realização humana, como correntemente se pensa e sobretudo se vive. Sintetizando o objetivo fundamental do seu livro, eis como se pronuncia: “We all need to find some order in the world, to make some sense out of our existence. Those who are particularly concerned with such a search bear witness to the fact that interpersonal relationships are not the only way of finding emotional fulfilment” ( Anthony Storr, Solitude. London: Flamingo, 1989, p. 167).

Como entretanto procedemos de modo oposto a este observado e fecundamente demonstrado no desenvolvimento do livro de Storr, persistimos em acreditar que somente no convívio, quando não na pura necessidade de vida gregária, podemos encontrar sentido e realização na vida. A elevada incidência de insatisfação e desgosto de conviver parece claramente sugerir o quanto somos insensatos em proceder fixados num desejo – que é também necessidade humana, não o nego – rotineiramente contrariado no âmbito da família, das relações amorosas, profissionais, além das inumeráveis formas gregárias de relação. Frisaria aqui, como de resto já o fiz na intercalada do período precedente, que não estou negando a necessidade de convívio, mas apenas nossa cegueira em afirmar que seja a única necessidade fundante da nossa experiência de realização emocional.

Diário - Recife, 5 de fevereiro de 1998.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Bauman, teórico do mundo líquido


Uma das características mais desconcertantes do mundo em que vivemos consiste na aceleração sem precedente histórico das mudanças culturais. Valho-me da expressão genérica, mudanças culturais, visando condensar um complexo de situações humanas geradoras de incerteza, desorientação e medo difuso patentes tanto na esfera pública das relações humanas quanto na privada. É claro que a premência e magnitude desses problemas mobilizaram inúmeros estudiosos das ciências humanas que há algumas décadas sobre eles se debruçam. Poderia citar, por exemplo, Christopher Lasch e seus dois livros fundamentais lançados em fins da década de 1970 e início da seguinte: A Cultura do Narcisismo e O Mínimo Eu. Também, no âmbito estrito da sociologia, Anthony Giddens, Pierre Bourdieu, John Thompson, Stuart Hall e Mike Featherstone. A seara é fértil e vária. Portanto, longe de mim a presunção de conhecê-la amplamente ou citar estudiosos que na verdade nunca li. Nenhum deles, todavia, alcançou no Brasil difusão comparável à de Zygmunt Bauman.

No que concerne à bibliografia sociológica, ou mais amplamente à bibliografia das ciências sociais, Zygmunt Bauman constitui um fenômeno singular. Afinal, que outro cientista social tem tantos títulos disponíveis no mercado editorial brasileiro? Exemplificando com dados mais precisos, a editora Zahar publicou num intervalo de tempo relativamente curto nada menos do que vinte e três livros desse sociólogo prolífico, fascinante, mas também, convenhamos, já um tanto repetitivo. É o preço fatal pago por todos que buscam a glória ou são colhidos pela rede insaciável do consumo. Quero dizer, à margem a qualidade efetiva da sua obra, receio que Bauman e sua própria obra sucessiva e inesgotável paguem tributo à rotinização entranhada nas engrenagens do sucesso.

A trajetória biográfica e intelectual de Bauman também se distingue por sua singularidade. Judeu polonês nascido no entre guerras mais devastador da história humana e logo atirado aos horrores da Segunda Guerra Mundial, da qual participou alistando-se como combatente no exército russo, Bauman consagrou-se como sociólogo tardiamente, assim como Norbert Elias, escrevendo numa língua que é de fato e cronologicamente a terceira que maneja: a inglesa. Antes dela vieram a polonesa, claro, e em seguida a russa. Esta singularidade da biografia de Bauman evoca a de um outro polonês que, ao adotar a língua inglesa e tornar-se cidadão inglês, produziu uma das mais altas expressões da literatura do século 20. Refiro-me, claro, a Joseph Conrad.

Sem a intenção de explicar o sucesso editorial da obra de Bauman, penso que ele soube explorar a grande demanda do leitor por teorias e saberes passíveis de o esclarecerem, se possível guiá-lo, através do mundo confuso em que vivemos. As evidências dessa demanda são múltiplas e facilmente assinaláveis. Elas se revelam, por exemplo, na busca ansiosa pelo discurso do especialista encontradiço na mídia. O melhor exemplo dessa demanda, sintoma de nossa desorientação dentro de um mundo que não mais compreendemos e de resto nos priva de referenciais sustentáveis, é o dos pais carentes da mais elementar autonomia educativa. É irônico que uma das promessas e realizações parciais da modernidade, o princípio da autonomia individual, tenha desaguado na realidade sem leme e vela que é o barco da família contemporânea.

Outra evidência dolorosa do mundo líquido em que vivemos se espelha na volatilidade e na dissolução da vida íntima. Aludo aqui não apenas à diluição das relações amorosas, à crise aguda e progressiva do amor romântico, mito que tenazmente resiste a todas as traumáticas agressões da realidade, mas também à família, instituição nuclear da vida íntima assaltada por forças desagregadoras. Aludo ainda, como extensão desse capítulo pertinente à vida íntima, à corrosão da própria noção de amizade. Fosse o caso de imitar desdobrando a metáfora do amor líquido ou da vida líquida difundida pela obra de Bauman, diria que o Facebook inverteu o sentido da amizade ao instituir as listas de amigos. Quem acaso tiver a curiosidade de conferir esse fenômeno constatará que quase não existe cadastrado do Facebook com menos de 100 amigos listados na sua página. Há quem os tenha aos milhares, como se grupo de amigos fosse a massa volátil que ocupa uma praça, um estádio de futebol, uma praia em feriado de sol e logo se dispersa e dissolve. Essa é agora a noção corrente de amizade e relacionamento íntimo. Somos uma multidão de estranhos acotovelando-se em listas virtuais intercambiando vidas de simulacro e consumo.

Outra evidência do nosso desamparo e desorientação ética e intelectual é a categoria de obras designada como autoajuda, tão importante no mercado editorial que há anos ocupa espaço exclusivo nas cotações de livros das páginas culturais ao lado das categorias ficção e não-ficção. A isso tudo poderíamos acrescentar, em planos culturais mais baixos, o reencantamento religioso da cultura contemporânea manifesto na proliferação de todo tipo de seita, religião e esoterismo místico. Em suma, a realidade sociocultural que os sociólogos designam como pós-modernidade é um balaio de gatos.

A propósito, a terminologia científica que intenta explicá-la, a pós-modernidade, se embaralha na formulação conceitual dos fenômenos que analisa. Quero noutras palavras dizer que inexiste consenso mesmo entre grandes estudiosos acerca do que sejam modernidade e pós-modernidade. Para começar, penso que são conceitos muito infelizes, pois remetem diretamente a significados temporais que a realidade móvel do mundo desmancha. O próprio Bauman, por muitos identificado como o teórico da pós-modernidade, acabou recusando o conceito no desenvolvimento da sua obra. Nesse sentido, é recomendável que o leitor atente para a Nota do Editor aposta ao sumário de um dos livros que inspiram este artigo: Vida em fragmentos. Como vem acrescido de um subtítulo, “Sobre a ética pós-moderna”, a nota esclarece que Bauman adotou o conceito modernidade líquida em lugar de pós-modernidade.

Bauman atende à larga demanda acima indicada em parte devido a suas qualidades estilísticas e processos de exposição dissonantes do discurso típico da produção acadêmica. Enquanto esta é facilmente identificável graças a suas linhas de padronização discursiva, nas quais proliferam o jargão obscuro e os argumentos de autoridade escorados num cipoal de notas de pé de página passível de desencorajar o leitor mais tenaz e masoquista, Bauman adota uma escrita fluente, presa à terminologia científica dentro dos termos estritamente necessários.

As características formais da sua obra que acabo de assinalar constituem indício de uma formação sociológica anticonvencional ou isenta dos padrões instituídos pela cultura acadêmica. Recorrendo ao outro livro no qual me baseio, Bauman sobre Bauman, nele Bauman explicita sua compreensão da sociologia. Ao invés de a conceber como uma disciplina especializada, concebe-a antes de tudo como uma disciplina inspirada pela ambição de compreender a totalidade da experiência humana. Coerente com essa concepção, movimenta-se livremente através da filosofia, da literatura, da política, em síntese, do conjunto da cultura humanística para explicar ou pelo menos melhor esclarecer a experiência que vivemos dentro do mundo líquido que habitamos.
A linguagem empregada por Bauman é rica de metáforas típicas de uma narrativa literária. Essa qualidade formal da sua obra é reveladora não apenas da concepção sociológica que abraça, mas também de sua aderência à literatura como fonte primacial de conhecimento da experiência humana. O leitor que tenha algum conhecimento de sua obra está por certo afeito às frequentes alusões literárias extraídas da obra de Borges, Kafka, Robert Musil, Italo Calvino...

É também muito significativa sua afinidade com a obra de um sociólogo cuja obra fundamental foi escrita à margem das instituições acadêmicas do seu tempo. Refiro-me a Georg Simmel, que entre outras coisas o ensinou a observar a realidade social como uma realidade estranha o suficiente para poder ser concebida como potencialmente impregnada de muitas alternativas de mudança social. Bauman aliás acentua essa sua crença nas possibilidades de alternação social para refutar os críticos que o acusam de ser pessimista. Diria ainda que Bauman aprendeu com Simmel a fina sensibilidade com que capta na trama das relações sociais tipos sociais como o flâneur ou o andarilho, que de imediato nos remete às intuições ensaísticas de Walter Benjamin escrevendo sobre Baudelaire e a modernidade novecentista, o peregrino, o vagabundo, o turista. Esses tipos estão muito bem estudados em Vida em fragmentos. Lendo essas páginas surpreendemos a sombra inequívoca das páginas que Simmel consagra a tipos sociais como o estranho e o pobre.

A metáfora que mais importa considerar numa apreciação qualquer da obra de Bauman é sem dúvida a da liquidez do mundo em que vivemos. Começando pelo mais óbvio, a alusão aos títulos de algumas de suas obras, são cinco as que estampam este qualificativo: Amor Líquido, Medo Líquido, Modernidade Líquida, Tempos Líquidos e Vida Líquida. A estes títulos poderia adicionar outros que bem podem ser interpretados como desdobramentos semânticos da metáfora que aqui considero. Os títulos adicionais seriam: O mal-estar da pós-modernidade, Modernidade e ambivalência, A sociedade individualizada, Vida a crédito, Vida para consumo e Vidas desperdiçadas, além logicamente do já citado Vida em fragmentos.

O termo líquido encerra grande riqueza e variedade de sentidos tanto compreendidos na linha denotativa quanto na conotativa. No primeiro caso, líquido remete à noção de fluidez, corrente, movimento, indeterminação, matéria que prontamente se amolda à forma do recipiente que a contém. A realidade da matéria líquida que talvez melhor se ajuste ao exemplo que indico é a da água, acomodável à forma de qualquer recipiente que ocupe, preencha ou onde seja vertida. Outros exemplos poderiam ser detectados no campo da ciência física, assim como no da biologia. O potencial semântico do termo desdobra-se ainda na oposição entre sólido e líquido. Bauman, aliás, recorre com frequência a essa oposição para distinguir a modernidade sólida da líquida. Mas o sentido que mais importa ressaltar para bem compreender o conceito nuclear da obra de Bauman é de ordem conotativa patente no caráter metafórico do conceito. Melhor enfim passar a palavra ao próprio autor, que pode bem melhor que eu ou qualquer comentador pronunciar-se em termos mais precisos sobre sua obra:
“Diferentemente da sociedade moderna anterior, que chamo de ‘modernidade sólida’, que também tratava sempre de desmontar a realidade herdada, a de agora não o faz com uma perspectiva de longa duração, com a intenção de torná-la melhor e novamente sólida. Tudo está agora sendo permanentemente desmontado mas sem perspectiva de alguma permanência. Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da ‘liquidez’ para caracterizar o estado da sociedade moderna: como os líquidos, ela caracteriza-se pela incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades ‘autoevidentes’. Sem dúvida, a vida moderna foi desde o início ‘desenraizadora’, ‘derretia os sólidos e profanava os sagrados’, como os jovens Marx e Engels notaram. Mas enquanto no passado isso era feito para ser novamente ‘reenraizado’, agora todas as coisas, empregos, relacionamentos, know-hows etc tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis. A nossa é uma era, portanto, que se caracteriza não tanto por quebrar as rotinas e subverter as tradições, mas por evitar que padrões de conduta se congelem em rotinas e tradições”. ( A citação é extraída de uma entrevista que Bauman concedeu a Maria Lúcia Pallhares-Burke. Ver Tempo Social, vol. 16, no. 1, São Paulo, junho de 2004).

Peço desculpas ao leitor pela citação demasiado extensa. Se assim procedi, foi por supor que o próprio Bauman traduziria de forma mais compacta e precisa o que intentei fazer em parágrafos precedentes. Concluiria frisando a importância do conjunto da sua obra já em larga medida disponível para o leitor brasileiro, como de início salientei. Sem dúvida, ele lança muita luz sobre o mundo confuso que habitamos. Mas não falta quem identifique na sua obra uma sólida convicção pessimista em face do mundo líquido que ele incansavelmente procura explicar. Bauman, todavia, não se reconhece como um pessimista. Para ele, otimista é quem acredita que vivemos no melhor dos mundos possíveis. O pessimista, por outro lado, critica o mundo tal como é inspirado pela convicção de que é possível torná-lo melhor. Se é esta a distinção adequada entre o otimista e o pessimista, tomo com certeza o partido do pessimismo abraçado por Bauman.

Bauman sobre Bauman. Diálogos com Keith Tester. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
Vida em fragmentos – sobre ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.