sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Sonhando na Praça


Fosse outra a festa, não essa
Que a gente bebe e até dança
Gesto ideal, não a pressa
Ferindo nossa esperança.

Fosse outro o sonho, outro arcano
Vestindo nossa paisagem
Outro o Ano Novo, outro o engano
Iluminando a viagem.

Fosse outro o som, um piano
Tecendo o acorde, harmonia
Enlace de tantos anos
Na luz do mais puro dia.

Fosse essa festa a razão
De um outro modo de ser
Outro o ideal de união
Outra a expressão de prazer.

O que por fim restaria
Imaginar e escrever?
A falta é o gen da poesia
Razão de ser e viver.

A falta figura a praça
Num gesto de pura dança
E a mão que toca e abraça
Vê na miragem que passa
O sonho que nunca alcança.

Fernando da Mota Lima.
Recife, 31 de dezembro de 2002.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

No espelho da verdade


Para Zé Luiz, lendo Machado de Assis.

A cada dia que passa
Me desconforta o que vejo
Entre o que sou e o espelho
Que impiedoso me espreita.

Mais que meu duplo, reflexo
Vejo a polícia, o juiz
Que desvelando o que escondo
Diz o que o mundo não diz
O que a voz silencia:
Eis o meu eu que o espelho
A sós comigo alumia.

Portanto, vida, o engano
Que em outros se pronuncia
Já não me causa mais dano
Não mais ilude meu dia.

Quero ser só o que sou
Ser para mim eu inteiro.
Ainda que o mundo inteiro
Não me tolere a verdade
Minha medida de vida
Comigo só ajustada
É ser comigo inteiro
Embora o mundo inteiro
Estilhaçando o espelho
Suprima a linha traçada
Entre meu ser e meu nada.

Recife, 15 de dezembro de 2012.


domingo, 16 de dezembro de 2012

Nascer


Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.
Murilo Mendes

Nascer? Não me pude ainda
Pois nascer me tarda
Me demanda tanto
Nascer é uma vida.

Nascer é uma vida
Que logo se extingue
Sem que se complete.

Sou só a passagem
Em perpétua busca de mim
Que nem me sei ainda.

E entanto prossigo me fazendo
Aprendendo a nascer
A me constelar na forma Fernando
Ser singular.

Haverá tempo
Tempo de ser
Ser um dia enfim
Esse que procuro?
Nascer leva uma vida
E quase sempre morremos antes.

Recife, 12 de dezembro de 2012.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Tarde


Não é a idade que me pesa.
É essa vida sem clareiras
para a vida.
É a bruma do ser
pairando na tarde sem luz
e sem amor.

Não é a memória que me pesa
depois de anos lavada
esquadrinhada e devassada
pelo exame tenaz e recorrente
da razão eriçada pela vontade
e o medo de me tornar pior do que me fizeram.

Mas é também a memória que me pesa
quando no fim de tudo
na nitidez impiedosa da tarde
no duro balanço de tudo
sei que não sou o que quis
sequer o que poderia.
E agora é tarde
e tudo é irreversível.

Recife, 13 de agosto de 2012.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Luiza Cage


Para Dondim, que gosta de Luiza impressa.

Luiza Cage era louca
Louca de beira de estrada.
Traía a filha, o marido
Ao próprio amante enganava.

Na cama, quando gozava
Em desvario rasgava
As vestes sedas cetins.
Ia ao extremo dos fins
E quando dele voltava
Luiza Cage chorava.

Chorava como quem ria
Como quem folha vadia
Sopra no ar calmaria.
E por aí ela ia
Doida no claro do dia
Doida na treva da noite.

Luiza não tinha hora
Nem pra sair nem chegar.
Se entanto dela fugia
Cansado de esperar
A louca me perseguia
dentro da noite deserta
Aonde eu fosse parar.

E se por fim me escondia
Exausto de aturar
Sua loucura sem hora
De nos meus calos grudar
Gravava queixas chorosas
Na secretária-eletrônica
Pulverizando-me as rosas
Com sua verve histriônica.

Luiza um dia sumiu
E com alívio, confesso
Voltei à paz dos lençóis
Que antes incendiava.
Voltei aos livros, avesso
Do que ela louca queimava.
Antes eu só do que nós
Nas noites atormentadas.

Um dia revi Luiza
Louca na beira da estrada
Como se a mesma ainda fosse.
Despi-a linda, tão linda
Nadei nos mares de Olinda
E outra Luiza inventei.

Fez tantas plásticas a louca
Que lhe moldaram o corpo
Com linhas estonteantes.
Mas o juízo, a loucura
Que a cirurgia não cura
Era a loucura de antes.

Recife, 1 de dezembro de 2012.






segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A voz do silêncio



O seu silêncio dizia
Coisas que nunca ouvi.
Os outros, inconscientes
Falam de tudo e de nada
Do mundo intransparente
Do nada que é sempre nada.

O seu silêncio dizia
O que ninguém jamais disse.
Era uma prece sem credo
Beleza insuspeitada.
Via no avesso do medo
A morte e outros abismos
Nas dobras do silêncio metafísico.

Se me apontava a estrela
Ouvindo o sopro do vento
Se me abria a janela
Fechada no esquecimento
A paz na noite descia
Ao sul da terceira margem.

O seu silêncio me fala
E sempre em mim falará
Pois quem suprime o sentido
Que paira eterno no ar?

Recife, 20 de novembro de 2012.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Revisitando Natal



Escrevo na sala do Hotel Belo Horizonte, onde estou hospedado com Bella desde ontem. Fizemos a viagem de carro. Foi tranqüila e relativamente rápida. Receando contratempos ao longo do percurso, já que interminavelmente prossegue a obra de duplicação da rodovia BR 101 entre Pernambuco e o Rio Grande do Norte, cuidamos de sair cedinho. Além disso, gostamos de pegar a estrada logo que rompe o dia.
Embora alertado previamente sobre a extraordinária expansão urbana de Natal, sobretudo de sua rede turística, estou de fato impressionado com o que vejo, não obstante tenha ainda visto tão pouco. Infelizmente chove. Começou chovendo logo que entramos na cidade e desde então não desfrutamos sequer de uma trégua de sol. Hoje cedo, logo que acordamos, o tempo estava apenas nublado. Por isso aproveitamos a beleza úmida da manhã caminhando entre a Via Costeira e o mar. À luz do dia, tivemos uma noção mais nítida da paisagem litorânea pontilhada de hotéis. Mas logo a chuva voltou a cair sem pausa e assim seguimos para o salão onde nos servimos de substanciosa e variada refeição matinal. A primeira conversa que ouvi foi em inglês, a segunda em francês. Em 1977, quando aqui morei durante uns meses de economia penosa, precisaria ir ao cinema para ouvir essas línguas intrigantes dentro do monolinguismo nordestino. Hoje são ouvidas e lidas na nossa paisagem globalizada. Espanhol, italiano, alemão e notadamente inglês são moeda corrente no circuito turístico e sites de prostituição, uma das mercadorias mais requisitadas por turistas fascinados pelas lendas e evidências da sensualidade tropical expostas num reino sem governo e vergonha.

É bela a paisagem deserta. O mar à minha frente, recoberto de nuvens sombrias, semelha um horizonte congelado. Imerso na contemplação de um mundo sem movimento, liberto do elemento humano, recaio num desejo que ao longo de minha vida me tem poderosamente seduzido. Aludo ao sortilégio de uma serenidade metafísica que nunca alcancei plenamente traduzir em palavras, muito menos fruir enquanto estado existenciado. Se posso de algum modo expressar esse ideal de serenidade, diria ser o que os estóicos designam como ataraxia. Seria um estado de imperturbabilidade do espírito, de uma serenidade tão pura e ascética que nele nossa vontade e desejo se anulariam alcançando uma região incógnita na qual cessariam desejo, dor, perda e ressentimento. Penso que nosso obscuro desejo de morte, o deus Thanatos da mitologia grega, como lembraria Freud, também traduziria aproximadamente esse ideal de imperturbabilidade, ou ainda o que os budistas designam como nirvana.

Outro grande prazer que Natal me propicia: nenhum vestígio de festa de São João em toda essa área turística onde transito. Saio às ruas com Bella caminhando tranquilamente à beira mar. Passamos à frente de uma interminável sucessão de hotéis e pousadas isentos de foles de sanfona e ruído de fogos. Melhor que tudo, nenhuma agregação festeira, nenhum vestígio de fogueira queimando, o que representa uma bênção para minha rinite alérgica.

Visitando João Pessoa em dezembro passado, e agora Natal, depois de uma ausência tão prolongada, reitero uma constatação desoladora para Recife. Ou antes de tudo para mim. Salta aos olhos do observador isento a degradação social e urbana desta confrontada às capitais nordestinas mais próximas. É fato que as aproxima o mesmo legado histórico-social iníquo: resquícios da tradição colonial e escravista, padrões persistentes de extrema desigualdade social. Apesar da matriz histórica comum, observa-se nestas cidades de menor porte, Natal e João Pessoa, um ritmo de expansão urbana e turística muito menos predatório e portanto mais consistente do que o observável em Recife. Enquanto nesta a violência e a paranóia social estão amplamente difundidas, somadas a toda sorte de anomia urbana, em João Pessoa e Natal a atmosfera vivível e palpável é nitidamente melhor. É certo que o porte mais reduzido de ambas já por si atenua problemas sociais que tendem a ser menos controláveis numa cidade mais vasta e complexa como Recife. À parte esse diferencial, João Pessoa e Natal ostentam evidências de políticas urbanas, turísticas e imobiliárias claramente superiores. Aliás, talvez pouco dessas mudanças visíveis seja fruto de políticas propostas e executadas por agentes sociais institucionalmente definidos. De qualquer modo, importa reconhecer que, ao acaso ou deliberadamente, João Pessoa e Natal vão bem melhor que Recife.

Reservamos, Bella e eu, a primeira parte desta manhã para uma aprazível caminhada entre nosso hotel e o Morro do Careca. Entretivemo-nos tirando fotografias, documentando a bela paisagem natural e urbana e até conhecendo um ou outro tipo humano pitoresco. Nossa grande descoberta acidental foi o Elvis Presley de Juazeiro do Norte – terra do Padim Ciço, como orgulhosamente nos lembrou. Elvis chamou-me a atenção por ser um homem já idoso com longa e grisalha cabeleira encimada por um chapéu de palha em cujo centro li o nome do lendário rei do rock. Bastou-me assinalar este detalhe para que de pronto desatasse a história de sua vida com essa abundância verbal tão característica dos nordestinos.

O pai, homem alegre e festeiro, era fã de Elvis, enquanto a mãe, romanticamente passional e sombria, era devota de Nélson Gonçalves. Foi este o cerne turbulento da vida conjugal que compartilharam até a morte do pai. Se este se punha a ouvir a música ruidosa de Elvis, a mãe enfurecida logo reduzia a cacos os discos de vinil de onde saltavam os ritmos trepidantes do roqueiro. Se no entanto a mãe enroscava-se nos acordes e melodias passionais de Nélson, o pai vingativo ajustava as contas domésticas na mesma moeda e outra leva de discos de vinil era reduzida a frangalhos. E assim, inconciliáveis e turbulentos, viveram infelizes até o dia em que a romântica fechou os olhos do roqueiro. Mas deste reteve uma relíquia inseparável, símbolo do amor que, costurado na união turbulenta, converte o conflito amoroso em expressão de elo insolúvel e indissolúvel. Uma variante romântica do amor eterno enquanto dure, como escreveu o poeta.

Dado que lhe emprestamos ouvidos receptivos pontuados por comentários divertidos, Elvis grudou-se a nós detendo nossa marcha com nova enfiada de episódios engraçados, alguns literalmente desastrosos. Empolgou-se de tal modo que dispensou sem hesitar dois clientes potenciais para não sacrificar ou simplesmente interromper o fluxo de suas narrativas mirabolantes. Como sei que esses tipos nordestinos são capazes de tagarelar sem pausa um dia inteiro, encontrei um meio de sustar-lhe a fala torrenciosa e retomar meu passeio com Bella. No percurso da volta cruzamos novamente com ele, que repegou a conversa com ânimo inalterável. E lá me vi eu novamente cortando-lhe o verbo antes que se apropriasse da nossa manhã, quem sabe do nosso dia. Sabem os leitores de Macunaíma que essa tradição de verborréia está sintetizada no dito popular que alude ao bebedor de água de chocalho. Foi pensando nisso que logo cuidei de silenciar o chocalho de Elvis. Imagine-se os estragos ambientais que um tipo desses não causaria se tocasse guitarra elétrica.

Ah, esqueceu-me anotar que a relíquia de amor preservada pela mãe do roqueiro de Juazeiro do Norte foi o fragmento de um dos discos de Elvis Presley. Tratava-se evidentemente de um dos muitos que ela destruiu durante seus costumeiros excessos de amor. Elvis filho um dia perguntou à mãe: por que não joga isso fora? Para que guardar restos de alguém que já morreu, vestígios de um mundo sem volta? Ela prontamente retrucou ofendida alegando reter naquele fragmento imprestável a mais bela memória do marido perdido. Bem, concluo eu, cada um retém a memória de amor possível, ou merecida.

2 – Levo Bella à faixa litorânea mais antiga e central da cidade. No fundo da paisagem que descortino da orla à altura da casa onde morou Henfil, espanta-me a visão imponente da Ponte de Todos. É uma impressionante obra de engenharia erguida sobre as vastas águas do Rio Potengi. Para ser exato, no ponto onde o rio deságua no mar. Mas não a cruzamos, pois nosso intento era encontrar ainda aberta a Fortaleza dos Reis Magos. Embora tenhamos chegado antes das 17h, encontramo-la fechada, suas bordas batidas por altas ondas que por pouco não nos deram um banho imprevisto. Por isso demoramos apenas o suficiente para tirar algumas fotos.

No percurso da volta, antes de alcançarmos a Via Costeira que bordeja o hotel Belo Horizonte, estacionei na Praia dos Artistas. Bella estava muito curiosa para conhecê-la, pois foi um dos meus endereços no ano remoto de 1977, quando aqui morei ou vaguei durante cerca de um ano. A paisagem da orla está tão profundamente transformada que foi impraticável localizar a casa onde Avelino me acolheu naquele ano tão incerto de minha vida. Lembro-me de que a casa ficava a meio da colina numa área povoada por gente humilde, mas então honesta e pacata. Longe de mim presumir que já não seja uma coisa nem outra. O que duvido é que seja ainda a área de pobreza segura que conheci. Lembro-me até de que durante algumas madrugadas dormi de janelas abertas para o mar e o céu enluarado.

Um fato que me surpreendeu foi deparar a casa onde Henfil viveu com a fachada frontal e lateral basicamente inalterada. Como Bella não tem idéia de quem foi Henfil, embora conheça O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, precisei desenhar-lhe uma história compacta do Pasquim, dos anos 1970 sob a ditadura militar e das circunstâncias que propiciaram meu breve convívio com Henfil em Natal.

Estávamos já a alguns metros do hotel quando de súbito envolvemo-nos numa colisão com uma moto. À altura do Restaurante Abade, precisei fazer uma manobra perigosa para cruzar a Via Costeira e alcançar o estacionamento do hotel. Estava completando essa manobra quando senti um choque violento na porta direita. Mal me refiz do choque, temi pela segurança de Bella, que felizmente me disse não estar ferida. Depois de estacionar, subi a curta elevação que me separava da avenida e fui em socorro do motoqueiro envolvido na colisão. Como dirigia com o farol apagado, não tive como vê-lo, pois é escuro o trecho onde colidimos. Encurtando a história, tranquilizou-me verificar que nada de grave lhe acontecera. Embora a responsabilidade do acidente fosse dele, dispus-me a conduzi-lo a um hospital, no caso de precisar de atendimento médico. Disse-me haver sofrido uma pancada à altura do abdômen, que massageou durante alguns minutos. Refeito enfim, montou novamente a moto, com algumas avarias frontais, e foi embora. Voltando ao carro, constatei que o impacto da colisão desfigurou-lhe a faixa lateral. Que fazer? Embora dirija com tanto cuidado, acabei vítima da imprudência alheia.

E assim me vou e assim nos vamos de volta a Recife. Deixo Natal, depois de uma visita de quatro dias, sem reencontrar sequer um dos poucos amigos que aqui tenho. Pedro Vicente está viajando. Há muito perdi o rastro de Hermano Ferreira Lima, com quem trabalhei durante meses no projeto local sobre a história da agricultura no Brasil, no ano remoto de 1977, coordenado nacionalmente por Ieda Maria Linhares, e regionalmente por Guillermo Palácios. Como decidimos incluir no projeto um trabalho de treinamento intelectual dos pesquisadores e estagiários contratados, dirigi então uma série de seminários baseados na leitura de obras de Luís da Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Celso Furtado. Tempo e memória, em mim conciliados, são parte da bagagem que transporto na viagem de volta a Recife.
Natal, 23 a 25 de junho de 2009.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Máximas e Mínimas VI


Maturidade é a calculada medida entre o galho, de onde tememos cair, e o chão, onde quiséramos solidamente assentar os pés. Como a medida aplicada é sempre muito inexata, não importando o rigor no cálculo suposto, o homem maduro prudentemente desce da árvore, deita sobre a relva e se perde na contemplação do galho que lá do alto o atrai, tangido pelos ventos trepidantes da vida. Maturidade é assim essa sutil carência medida entre a relva e o galho. Noutras palavras, é tudo que sobra do que não poupamos. Logo, não será melhor perdê-la na queda entre o galho e a relva, no voo errante movido ao impulso dos ventos trepidantes da vida? Sobe e salta, desafia o aventureiro indiferente à flor cinza da razão maturada; desce e contempla, retruca esta no metro do olhar medindo toda a vertigem da queda.

No país da cordialidade, não falta quem confunda grosseria com franqueza, assim como não falta quem confunda hipocrisia com civilidade.

Na medida em que é condição de convívio civilizado, a hipocrisia é o preço que a tolerância paga ao consenso.

Se fosse uma casa de tolerância, o Brasil seria um modelo de civilização.

Num país onde a delinquência veste a máscara da espontaneidade, o crime banal é tolerado e até louvado como jeitinho.

Fracassados acadêmicos, como eu, sabem que o currículo Lattes, mas não morde.

Desejar a mulher dos amigos é uma tentação que sempre mascaramos, sobretudo quando a realizamos.

O Código Penal brasileiro depena o criminoso pobre enquanto tem pena do rico.

A realidade é de direita. É por isso que quando a esquerda se apossa do poder logo se confunde com a direita. É também por isso que nunca confio em esquerda vencedora. A única esquerda confiável é a vencida ou fracassada.

Vou fundar a metaesquerda. Seu único objetivo será o de civilizar a política, não o de conquistar o poder.

Na Vara da Família: O amor começa com meu bem e acaba com meus bens.

Na dúvida, duvido.

Numa de suas boutades famosas, Paulo Francis disse que foi torturado pela ditadura, pois o carcereiro do quartel onde ficou preso ouvia Vanderléa no radinho de pilha. Sorte dele. Hoje sou torturado todos os dias, sem sair de casa e sem ditadura imposta pelo poder político, por coisa inclassificável. Perto dela, dessa coisa inclassificável, Vanderléa seria um luxo, canto de sereia nos meus ouvidos.

domingo, 11 de novembro de 2012

Nós e os índios


César Melo (professor de literatura luso-brasileira, Universidade de Chicago)

1.
Em nenhum lugar do Brasil, a invisibilidade do índio talvez seja tão visível quanto na Avenida Paulista, em São Paulo. É ali, em frente ao Parque Trianon, dando de cara com o MASP, no meio de pessoas apressadas falando ao celular, buzinas de carros, barulho de motor e poluições de vários tipos, que fica localizada a estátua de Bartolomeu Bueno Dias, também conhecido como Diabo Velho (Anhanguera). Bartolomeu foi um bandeirante, conhecido matador de índio e saqueador de tribo. No entanto, se formos ao Houaiss e procurarmos o verbete “bandeirante”, nenhum desses significados estará lá – o que diz muito também de nosso silêncio e indiferença em relações aos índios. No dicionário, você descobrirá que “bandeirante” é sinônimo de “paulista”, além de significar “aquele que abre caminho; desbravador; precursor; pioneiro”. Os bandeirantes seriam uma espécie de “vanguarda” da colonização, o que casa bem com um lugar como São Paulo, cujos políticos ainda hoje se utilizam da infeliz metáfora da “locomotiva do Brasil” para definir o estado.
Vanguarda, desbravamento, locomotiva, non ducor duco (que está na bandeira da cidade de São Paulo e quer dizer “não sou conduzido, conduzo”) são signos que fazem parte de um mesmo campo discursivo: o do progresso arrojado. Se houve algum progresso no Brasil, esse foi o progresso da colonização, ou melhor, a progressão bandeirante lenta e contínua para o oeste, escravizando indígenas, apropriando-se dos recursos de sua terra, aniquilando sua cultura. Avançamos na terra e na cultura dos outros. Progresso, progressão, invasão. E continuamos fazendo isso: seja com os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul; seja com os desalojados das construções da Copa do Mundo; seja com os índios da bacia Xingu que serão desterrados pela Usina de Belo Monte. As elites brasileiras continuam progredindo em cima de terras, pessoas e direitos.
Não nos enganemos. Nosso imaginário desenvolvimentista – essa necessidade e desejo de crescer e expandir em moto-contínuo – está calcado no espírito do bandeirantismo, que nada mais é a lógica do colonizador. Bartolomeu Bueno da Silva nos representa mais do que gostaríamos.
2.
Como aprendemos na escola secundária, os romances Iracema (1865) e O Guarani (1857) de José de Alencar são considerados ficções fundacionais da nação. Embora sejam textos fortemente ideológicos – uma vez que deliberadamente escamoteiam a violência genocida do encontro colonial para narrar tal encontro numa moldura conciliatória –, carregam em si um núcleo de verdade: o desejo do letrado brasileiro – o narrador dessa história dos vencedores – de moer qualquer traço de alteridade cultural no moinho da ocidentalização. Nas palavras certeiras de Alfredo Bosi, o indianismo alencarino não passava de um mito sacrificial dos índios, no qual estes só atingiriam a nobreza quando fossem capazes de se auto-imolar. Os índios Peri, de O Guarani, e Iracema, personagem central do romance homônimo, se tornam heróis na medida em que se anulam e se sacrificam em gesto de servidão aos colonizadores portugueses. Peri se converte ao cristianismo para se unir à portuguesa Cecília e, com ela, formar o povo brasileiro. Iracema trai o seu povo tabajara para ficar com o lusitano Martim. Do fruto desse encontro, nasce Moacir, o primeiro brasileiro. Depois de cumprida sua missão no processo civilizatório brasileiro, Iracema morre. O indianismo alencarino foi assim um elogio à submissão do indígena à sabedoria europeia. Bom índio é aquele que se ocidentaliza. Que muda de lado. Que nega seu povo. Que está disposto a aniquilar a sua cultura, e até a vida, para contribuir com a nação.
Um pouco mais de cem anos depois, João Guimarães Rosa, no conto “Meu tio o iauaretê”, se propõe a questionar essa relação colonial, evocando uma outra lógica. Se os mestiços “alencarinos” são cristianizados e ocidentalizados, o que aconteceria se o mestiço escolhesse o outro lado da mistura que o compõe?
“Meu tio o iauaretê” conta a história de Tonho Tigreiro, caçador de onças, contratado por um fazendeiro, Nhô Nhuão Guede, para desonçar um certo território. Em outras palavras, o caçador é chamado para livrar o terreno das onças, permitindo que aquele pedaço de terra possa ganhar uma utilidade econômica. Desonçar a terra faz parte de uma operação bandeirante (sem trocadilhos). No entanto, de tanto viver isolado dos homens, o caçador começa a ter mais simpatia pelas onças do que por gente, e passa a defendê-las. O caçador escolhe claramente um lado: o das onças, da natureza, dos animais, enfim, o lado da terra onde vive. É o mesmo “lado” que os índios defendem no seu esforço de resistência aos (neo)bandeirantes que invadem sua terra. Daí a conclusão da leitura que antropólogo Eduardo Viveiros de Castro faz do conto rosiano:
Não é um texto sobre o devir-animal, é um texto sobre o devir-índio. Ele descreve como é que um mestiço revira índio, e como é que todo mestiço, quando vira índio – isto é, quando se desmestiça– o branco mata. Essa é que é a moral da história. Muito cuidado quando você inverter a marcha inexorável do progresso que vai do índio ao branco passando pelo mestiço. Quando você procura voltar de mestiço para índio como faz o onceiro do conto, você termina morto por uma bala disparada por um revólver de branco.
Tudo que foge da lógica da anexação, da incorporação, da integração, é eliminado. Brasileiro gosta de mistura, desde que ninguém ameace a nossa cosmovisão e epistemologia ocidentais.
3.
Em Tristes trópicos, Claude Levi-Strauss lembra de uma conversa que teve com o embaixador do Brasil na França, Luís de Sousa Dantas, ocorrida em 1934, na qual o diplomata brasileiro havia comunicado a Levi-Strauss que não existiam mais índios no Brasil. Haviam sido todos eles dizimados pelos portugueses, lamentava Sousa Dantas. E assim concluía: o Brasil seria interessante para um sociólogo, mas não para um antropólogo, pois Levi-Strauss não encontraria em nosso país um índio sequer. Nós não sabemos se Sousa Dantas nega a existência dos índios por ignorância, ou simplesmente para ocultar um aspecto do país que o diplomata brasileiro certamente considerava “arcaico”, uma vez que a existência de “primitivos” não bendizia os padrões civilizatórios da nação diante de um estudioso europeu.
Mas quem de nós nunca agiu como Sousa Dantas? Qual foi o brasileiro que, no exterior, nunca se indignou com uma pergunta de um gringo mal-informado que sugeria que nós tivéssemos hábitos próximos ao dos índios? Eis o motivo de nossa indignação: como podem nos confundir com tupiniquins (palavra usada pejorativamente por nós brasileiros para nos definirmos como povo atrasado), se nós somos industrializados, urbanizados, temos carros, trânsito infernal, sofremos com poluição e tomamos Prozac para resolver nossos problemas emocionais? Em outras palavras, como podem nos acusar de “primitivos” se desfrutamos de todas estas maravilhas da civilização moderna?
Se por um lado, hoje, os brasileiros sabemos da existência empírica dos índios, por outro lado, negamos sua existência como nossos contemporâneos, e essa é a raíz da indignação diante de uma possível confusão entre nós, brasileiros, e um povo que, na cabeça de tantos, ainda não evoluiu. Ora, de todos os esforços pedagógicos para descolonizar o imaginário brasileiro, talvez esse seja o mais importante: de mostrar como nós precisamos urgentemente do diálogo com os índios. Devemos abandonar a ótica paternalista (do Estado brasileiro) que infantiliza o índio, enxergando-o como artefato do antiquário nacional, que para alguns deve ser incorporado à nação, enquanto para outros deve ser preservado tal como está. Esse é um falso dilema, pois reifica o índio. Devemos, sim, estabelecer com os índios uma relação de interlocução, com a qual temos muito que aprender.
Nossa civilização criou formas de vida que beiram a inviabilidade. Emporcalhamos nossas cidades; poluímos nosso mar, nossos rios, nosso ar; destruímos nossa natureza; criamos necessidades que nunca serão preenchidas a contento, gerando inúmeras frustrações, tamanha é a roda-viva do consumismo que determina nosso estilo de vida. Segundo Celso Furtado (que hoje, graças a Dilma Rousseff, dá nome a um petroleiro), no seu O mito do desenvolvimento econômico, “[o] custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana.” Quanto mais universalizamos nosso consumismo predador, mais rápido destruímos nosso ambiente e planeta. O que teríamos a aprender, afinal, com os índios?
O que dizer de um povo que vive há milênios em co-adaptação com o ecossistema amazônico, tirando da floresta o sustento da vida, em vez de tirar a floresta de sua vida (uso aqui o jogo de palavras do próprio texto de Viveiros de Castro)? Os índios são radicalmente cosmopolitas. A palavra “cosmopolita” quer dizer “cidadão do mundo”. Cosmos, na filosofia grega significa “universo organizado de maneira regular e integrada”. Se permanecermos fiéis à etimologia da palavra, cosmopolita seria então o cidadão de um universo harmonioso (cosmo é o antônimo de caos). Por anos, filósofos antigos e modernos têm pensado o termo “cosmopolitismo” como uma técnica de convivência entre povos. O cosmopolitismo radical dos índios nada mais é que uma técnica de convivência e co-adaptação com o cosmo – o universo, o ambiente, o planeta. A destruição do planeta hoje parece mais plausível em decorrência da falta do cosmopolitismo radical dos índios do que do cosmopolitismo dos filósofos. O que teríamos a aprender com os índios? Algo muito simples e complexo: aprender a habitar o planeta.
4.
Pensar o índio no Brasil é particularmente difícil, pois as representações que temos do índio o colocam além da alteridade. O “outro” da cultura brasileira – narrada, claro, da posição do letrado urbano euro-brasileiro – é, com o perdão da redundância, outro. Ou melhor, são outros: o sertanejo, o retirante, o negro, o favelado.
Investigando sobre os motivos que levaram a esquerda brasileira a negligenciar o índio, Pádua Fernandes lembra que a esquerda revolucionária dos anos 70 – de onde saiu boa parte do Partido dos Trabalhadores – discutia a relação entre cidade e campo, mas era incapaz de pensar a floresta. Em parte, isso se deve à importação direta das categorias euromarxistas (e, claro, graças ao abismo das Tordesilhas, que separa o Brasil da América Hispânica; a esquerda brasileira nunca deu muita bola para o indo-socialismo do peruano José Carlos Mariátegui). No entanto, mais do que ser um problema de cegueira por parte de segmentos da esquerda, a invisibilidade do índio talvez remeta à maneira como pensamos o “povo” brasileiro, dentro do paradigma nacional-popular.
De acordo com esse paradigma, que estruturou a imaginação brasileira durante o século 20, o povo é o sertanejo de Os sertões, “rocha da nacionalidade”; o negro de Casa-grande & senzala e da vasta bibliografia sociológica e historiográfica que veio a seguir; os retirantes desesperados Manuel e Rosa de Deus e o diabo na terra do sol; o ingênuo Fabiano de Vidas Secas; a comovente Macabéa de A hora da estrela, além de tantos outros personagens e temas das nossas produções culturais. A consciência social do letrado urbano brasileiro foi construída a partir da ideia de que o povo brasileiro – na sua imensa maioria pobre, desassistido, negromestiço – necessita ser integrado à modernidade, à cidadania plena, a um sistema educacional justo e ao conforto material.
A eleição do presidente Lula em 2002 talvez tenha sido o evento mais importante de nossa democracia exatamente porque mexeu profundamente com nossa imaginação nacional-popular: pela primeira vez, o povo assumia o poder. Fabiano, Macabéa, Manuel e Rosa estavam todos representados na figura carismática de Lula. E não se pode negar que o governo Lula muito melhorou a vida do “povo brasileiro”, garantindo acesso a bens e direitos antes impensáveis. O progresso finalmente havia chegado ao andar de baixo, que agora podia comprar televisão, andar de avião e até passear de cruzeiro. Nunca antes na história desse país, o povo esteve mais integrado aos padrões de consumo do mundo civilizado.
O mesmo governo que tanto fez para tanta gente (e atuou como uma força descolonizadora no tocante às ações afirmativas e na introdução de história africana no ensino médio), é aquele que age como um poder colonizador na Amazônia, e aliado objetivo dos fazendeiros do agronegócio no Mato Grosso do Sul. Desse modo, o Estado e seus sócios ocupam a terra com prerrogativa desenvolvimentista, como se fosse um território vazio, pronto para o usufruto dos agentes econômicos. Nada muito diferente dos bandeirantes. O que antes vinha coberto com retórica de missão civilizatória cristã, agora é celebrado como a chegada do progresso. Nos dois tipos de bandeirantismo, a destruição vem justificada por um discurso de salvação. O índio que habita nessas terras é tratado simplesmente como obstáculo que deve ser removido em nome do progresso da nação (progresso no caso representa: carne de gado no Mato Grosso e energia elétrica para indústrias do alumínio na Amazônia).
O índio apresenta um desafio para o pensamento da esquerda no Brasil. Um desafio que ainda não foi pensado como desafio, pois a esquerda ainda enxerga a “questão indígena” como um problema que deve ser resolvido. O desafio, ao contrário do problema, não exige uma resolução, mas uma autorreflexão. Os índios nos fazem repensar nosso modo de vida, e até mesmo o conceito de nação. Como salientei, o índio não se insere na matriz nacional-popular que mobiliza tanto a nossa imaginação. E não se insere nela pois, ao contrário do retirante, do favelado, do pobre, do negro, o índio não está buscando integração à modernidade (a grande promessa do lulismo às massas). Os índios parecem querer reconhecimento do seu modo de vida (como se pode ver nessa entrevista de Davi Kopenawa). E, para viver do jeito que sabem viver, é necessário garantir as condições mínimas de possibilidade para sua vida: terra e rios que não sejam dizimados pela usina de Belo Monte, nem pelo garimpo; segurança e tranquilidade para não serem acossados pelos capangas do agronegócio, como no Mato Grosso do Sul. Essas são as grandes lutas hoje.
A luta pelos direitos indígenas vai muito além de uma quitação da nossa dívida histórica. Mais do que um acerto de contas com nosso passado, a garantia dos direitos constitucionais dos índios é imprescindível para o nosso futuro. Precisamos cada dia mais da sabedoria desses cosmopolitas radicais, se quisermos repensar e refundar os pressupostos de nossa existência planetária.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Um olhar sobre a paisagem


Ah, quantos de nós
Que já vivemos o mundo
E lhe sofremos o peso
Não gostaríamos de apagar as luzes do templo
E em seguida queimar todas as imagens?

Quantos de nós
Delirantemente tragados pela voragem do amor
Afundados na corrente
Cativos da miragem na margem remota
Não fomos devorados pelas sereias?

Quantos de nós
Serenadas as águas
E abrandado o fremir dos anos
Não repousamos agora à sombra das margens vorazes
Timbrando resignação e ceticismo
Enquanto a vida avança em ondas
Ameaçadora e insensata
Contra a clepsidra e a memória?

Um rugido se eleva no centro da paisagem
Enquanto o fogo crepita
Como um vulcão de carne e força cega.
Os jovens se lançam na fogueira
Brandindo a chama de armas mortíferas.
Na sombra remota, no cerne da ilha sitiada,
O homem fura os olhos desencantados
E naufraga no ventre das águas indiferentes.

Recife, 30 de outubro de 1999.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Pai e mãe


O pai que nunca tiveste
E que ainda procuras
No avesso de ti se veste
Vagando em noites escuras.

Um dia em ti fundirás
A luz na treva do dia
E enfim a paz fruirás
Na ilha azul da poesia.

A mãe que um dia perdeste
De fato não te faltou
Pois nunca em ti a tiveste
Nunca no nada o amor

Traiu o que nunca foi
Velou na vida o que vejo.
A dor da falta ainda dói
Mas é um outro. É o desejo

Que te supunhas faltar
Como o amor que te trai.
Eis que a medida de amar
É ser tua mãe, ser teu pai.
Recife, 30 de outubro de 2012.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Drummond



Releio Farewell, o último livro de poemas de Drummond. Estou agora vivamente impressionado com o fato de não haver antes concedido a este belo e sofrido livro a atenção merecida. Estava ontem remexendo as prateleiras à procura de uns livros e de repente o vi diante de mim. Abri-o ao acaso e logo o primeiro poema me tocou profundamente. Então deixei-o à cabeceira de minha cama, pois queria ler alguns outros antes de dormir. Foi o que de fato fiz. Novamente senti-me tomado por sensações intensas, como se a voz de Drummond, sussurrando-me segredos provindos do fundo do tempo, misteriosamente ressoasse na madrugada fechada sobre o meu quarto. Lendo os poemas, em muitos, com certeza mais que em qualquer dos livros canônicos de Drummond, retive a dor estoica com que se debruçou sobre a velhice tardia, no fundo de tudo recolhendo a dor do farewell definitivo. Um passo além e me vi retraçando a linha embaçada do niilismo insinuando-se em entrelinhas dolorosas. Por fim me vi a mim próprio lentamente deslizando para a borda do abismo que tragou meu amado Drummond, assim como um dia também me tragará. Foi quando o poema abaixo quase que se fez em mim, pois pouco, bem pouco o trabalhei depois de me sentar à mesa para rabiscar os versos, alterar-lhe duas rimas e acrescentar-lhe a estrofe de fecho.
Drummond
Drummond Drummond
Tão longe vibrava o som
Que o ouvido se confundia
Entre teu nada e teu tom.

Drummond Drummond
Tão perto retinha o som
Que o eco se refazia
E o mundo enfim era bom.

Drummond Drummond
Que trilha percorre o som
Quando o que era poesia
No nada já dissolve?

E nada aqui se resolve
Nada no antes, no além
Pois tudo que o ouvido ouve
Não é Drummond nem ninguém.

Recife, 17 de agosto de 2010.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Elogio do cigarro



Delícias e Desgraças
ou Elogio do Cigarro

Cigarro é fonte de felicidade
Assim como as paixões que nos consomem
Vivendo entre a loucura e a sanidade
Um dia todos vão, pra sempre somem.

É lindo ver você soprar fumaça
Assim quando amanhece à beira mar
Um dia hei de morrer, pois tudo passa
Fumante é um outro modo de passar.

Eu sempre digo a Ci e a Luciano
Cigarro é um bem que causa muito mal
Mas eles vão fumando ano após ano
Jurando que o fumante é imortal.

Recife, 25 de setembro de 2009.


domingo, 21 de outubro de 2012

A Culpa é dos Iluministas



Acho que tudo começou com aquele idiota chamado Kant. Sérgio Paulo Rouanet e vários professores da pós-graduação encheram minha cabeça com as ideias sedutoras de Kant e dos iluministas. Sapere aude: ousar saber. Pra mim saber é saber antes de tudo o meu corpo, a voz do meu corpo, o insone murmúrio do meu desejo. Foi assim que traduzi na minha vida o discurso iluminista e pós-iluminista da autonomia: ser livre para gozar o desejo latejante no meu corpo.

Minha mãe sempre exercendo a tirania doméstica dentro da família. Prematuramente envelhecida, dependente econômica e emocional do meu pai, vivia remoendo ressentimento contra tudo que não pôde viver. Um nada e lá estava ela repisando mágoas, cobrando dos filhos todos os sacrifícios sofridos durante a vida para nos gestar e criar. Meu pai, alto e belo, imenso na sua beleza, era meu ideal. Meu pai amava a vida, dela usufruindo tudo que eu queria e invejava: a farra com os amigos, o amor à música, que cantava com voz linda e sedutora. Fervi de ódio e ressentimento quando descobri que tinha uma outra família, com filhos ilegítimos da minha idade. Mas cedo o perdoei e continuei amando-o com um amor confuso, pois que contaminado por ressentimento e insofreáveis desejos de agressão.

Ainda adolescente, peguei a onda da liberação e caí na farra. Apesar dos privilégios de que sempre desfrutei na família, a começar pelos econômicos, trabalhei como garçonete num bar onde a garotada desatava os nós de todas as repressões purgadas por nossas mães. Não dava à mínima para o que me pagavam sugando minha mão de obra. Trabalhava somente pelo gosto da aventura, pelo prazer de estar dentro do agito nos fins de semana; trabalhava pelo prazer de provocar os garotos lindos com meu corpo moreno e sensual. Gostava quando um daqueles safados mais atrevidos se esfregava em mim depois de beber além da conveniência. Adorava o jogo que jogava seduzindo, provocando, mas sem dar, sem ir além do desejo provocado sem satisfação. Quero dizer, dei muito, mas só aos garotos que passei a namorar. Foram tantos, confesso, que logo perdi a conta.

Perdi a conta do que amei e dei por aí, errando nas noites de agito e droga. Mas sempre, em algum obscuro lugar, sempre me roía algo que era culpa ou insatisfação insaciável. Os garotos com quem transava logo me cansavam. Eram todos fúteis, todos idiotas, todos medindo num espelho invisível o próprio corpo, o amor vazio orientado para si próprio. Também eu me perdia nesses labirintos do desejo que me atava a mim própria. Mas havia algo além disso. Havia uma carência inapreensível de um grande amor, de um príncipe vindo de esferas insondáveis. Havia ainda medo e a recusa de repetir minha mãe, de acabar como ela: o corpo disforme, a ferocidade doméstica investida contra meu pai e contra os filhos.

Depois da graduação em jornalismo me mandei para São Paulo. Queria fazer pós, mas queria antes de tudo viver mais livremente, viver toda a liberdade a que tenho direito. Era à noite, no anonimato da grande noite paulistana, que o mundo misteriosamente se abria como um mar de possibilidades estonteantes. Eu tudo queria e a quase tudo me entregava. Às vezes, nas manhãs de ressaca, boiando confusa na maré da ressaca, sentia a dor de um vazio tão doloroso, mas tão doloroso, que eu me fechava na solidão do quarto para nem sequer ver as duas meninas com quem dividia apartamento. A sombra opressiva de minha mãe, esbravejando ressentimento e culpa na minha memória insone, servia apenas para empurrar-me mais e mais para a vida de dissipação que verti nas noites de São Paulo.

A meio da pós-graduação casei com Renato. Fui tola ao ponto de pensar que encontrara enfim meu príncipe encantado, aquela figura embaçada e linda, envolvente e dominadora que flutuava nos campos azuis de minhas fantasias consoladoras. Vieram os filhos, um casal, e logo mais tarde a separação. Depois que concluí a pós precisei trabalhar e então dobrei a jornada de trabalho. A partir daí o tempo encurtou, a liberdade infrene também, e logo me vi estressada e retalhada entre os filhos, o desejo de um homem para repartir as tarefas e o peso da família dissolvida entre tantas demandas desencontradas. A renda era polpuda, mas nunca suficiente para nossa sede de consumo, meu e dos filhos já crescendo para cair na vida como antes caí.

Lá dentro, no mais fundo de mim, o que me atormentava e perseguia já não era a figura tirânica de minha mãe envelhecida e frustrada; também não era o amor confuso e conflituoso que devotava ainda a meu pai, presença cada vez mais remota na minha vida. O que no mais fundo de mim me tiranizava era o espelho. Via-o até quando dele me ausentava. Aliás, logo descobri que se enraizara em mim, que me espelhava e sufocava até no escuro do quarto, deserto de companhia e amor. Não bastasse tanto, minha luta contra a balança tornou-se cada vez mais feroz. Por mais que lutasse, era sempre eu quem perdia. Daí para a academia de musculação o salto foi apenas uma passada. Caí de chofre diante daquele labirinto de espelhos refletindo gente ansiosa e atormentada à procura da medida ideal, da beleza ideal, do Narciso ideal absorto no espelho ideal das águas desenhando na superfície imóvel a beleza irretocável. Mas o que a realidade impiedosa refletia em todos os espelhos era meu corpo se avolumando, as formas dissolvendo-se em gordura inspirando-me um ódio irrefreável contra mim própria. De repente, dei-me conta de que os homens já não me olhavam como antes. Aliás, muitos passaram a me ignorar. Falavam comigo e me olhavam como se olhassem uma parede desbotada, uma porta debruçada sobre o abismo da minha insignificância.

Agora, no meio da madrugada insone, pulo da cama assaltada pela voz difusa de Kant, a voz gaga e gagá dos iluministas que encheram minha cabeça e me consumiram muitas horas de leitura durante meus anos de graduação e pós. Sapere aude: ousar saber. Que merda! Acendo a luz e ando pela casa inquieta. Será que os meninos já voltaram da balada? Encontro apenas o apartamento vazio, as camas e quartos desertos. Meu Deus, e se acontecer alguma coisa: algum crime, algum assalto... se andarem metidos com a turma da droga pesada? Ah, o sonho da autonomia feminina! Que merda! A culpa é daqueles putos do Iluminismo. Quem tem razão é Sandrinha, que renunciou à sua autonomia depois de atravessar os desertos que me assolam e se refugiou na fantasia do patriarcalismo do século xix. Agora Sandrinha se olha no espelho e vê apenas uma respeitável matrona regendo escravos na casa-grande onde sua vontade é lei. Queria ser Robespierre para guilhotinar todos os iluministas...

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Natalino e as meninas



O Amor nos Trópicos – Natalino e as Meninas
Severo Machado
Tudo começou com Lolita. Não a original, a de Nabokov, mas a de Kubrick. O mundo inteiro se recompôs como num sopro de iluminação e atordoamento. Amei quase sempre mulheres da minha idade, algumas até mais velhas. O que me tocava e inspirava no convívio de meninas era a imaginação contagiante que irradiavam. Nada além disso. Mas então veio a descoberta de Lolita, a obsessão comovente e patética de Humbert Humbert. E a verdade do amor que desde então passou a reger minha vida é fruto talvez de uma pura transfiguração do acaso. Ou talvez não, talvez ela em mim latejasse distante e impronunciável. Talvez já me possuísse naquele dia em que seduzi minha prima, que tinha apenas nove anos. Talvez pulsasse insensível na adoração cega com que cultuava Marilyn Monroe.
Luís Carnome, meu amigo e confidente, achava isso um absurdo. Como associar minha pedofilia ao culto de Marilyn? Marilyn é um mito gerado pela imaginação adulta, ponderava, típica da paixão por mulheres adultas. Mais que amigo e confidente, Luís era meu guru em matéria de cinema. Tudo sabendo de cinema, cultuando o cinema como passei a cultuar o corpo das meninas depois da revelação vinda de Lolita, Luís era quase sempre minha última palavra sobre a realidade paralela de Hollywood. Por isso fiquei abalado. Teria ele razão? Observe, Luís, que a raiz do erotismo de Marilyn é infantil, assim como o culto que lhe emprestamos é de natureza pedófila. A sedução poderosa e intemporal que ela exerce deriva do fato de traduzir no corpo e na linguagem uma expressão desconcertante de menina sensual, dengosa e... não sei, juro que não sei exprimir o essencial. A sedução de Lolita, ou de Marilyn é inefável, indizível como tudo que cativa e domina para além da compreensão racional.
Mas é a vida com sua força cega e irreprimível quem comanda o roteiro insensato da história humana que jogamos e sempre perdemos. Foi num domingo de sol, dentro de um antigo casarão de Salvador, que a vi pela primeira vez. Quero dizer: não ela, mas ela guiando as duas filhas presas a cada uma das mãos. A intuição brusca e fugaz cegou-me no meio da sala: estou perdido. Depois dela, com ou sem ela, nunca mais serei eu em mim como até agora me sei e me vivi e me enganei na suposição de me saber. O pior foi mais tarde descobrir que a perdição maior viria não dela, mas das duas filhas. Mal passou um mês e já nossas vidas eram tempos ajuntados e confundidos. A pedofilia, essa flor de obsessão que me consome, novamente latejava nos desvãos do corpo, vibrando quase inaudível nos subterrâneos da latência onde a carne respira sua condenação inconsciente. Eu então nada sabia da paixão que para sempre atou minha vida aos destinos de Ana Lúcia e Ana Sofia. Meu amor pela mãe, Ana Sílvia, era tão completo e absorvente que me cegava para tudo pulsando à órbita dos fatos palpáveis. Os que dizem que o amor é cego ignoram a real cegueira da razão.
Vivíamos brincando. Eu e as meninas brincávamos com a delícia e inconsciência dos inventores e habitantes primevos do paraíso. A consciência, esse graveto errante vagando nos campos sem fronteira da irracionalidade, somente a pouco e pouco se foi constelando num atormentado horizonte de desejos. Pingou aqui uma gota vibrante, mais além um noturno bater de portas, e foi avançando para o casulo onde as meninas dormiam respirando um sono de completo abandono. Nas noites de calor, a própria Ana Sílvia dizia: vá dormir com as meninas, meu amor. No quarto delas, com ar condicionado, não entram muriçocas. Eu odiava muriçocas e ainda hoje não suporto a picada de uma. Passei a dormir num colchão estendido sobre o assoalho entre as camas de Ana Lúcia e Ana Sofia. Ficava de joelhos ao pé da cama, um tempo sem memória contemplando cariciosamente a beleza daqueles corpos belos, inconscientes dessa selva em que nos consumimos, tão ainda pequenos, mas fadados à medida e gasto da nossa condição adulta. Algum tempo depois, tremendo de medo e prazer, passei da contemplação cariciosa ao toque deslizando suave por todo o corpo das minhas pequenas deusas. Um dia Ana Lúcia acordou enroscando-se feito uma gata, toda arrepiada pelo toque de minha mão: Vai embora, Natalino. Me deixa sozinha no quarto. A voz saiu-lhe grave e envolvente, como voz de mulher. E me fui atordoado e entrei no quarto de Ana Sílvia onde a possuí violentamente.
A curiosidade sexual das meninas se foi manifestando cada vez mais livremente. Queriam tomar banho comigo, dormir comigo, trepidar nas noites de rede suspensa na varanda. Sublimando penosamente meus desejos, domei-os numa clave de expressão lírica mesclando contos de fadas recriados no balanço rangente da rede, canções infantis e um despropósito de poemas tocados pela beleza e a infância de Ana Lúcia e Ana Sofia. E tudo isso em mim surdia e me sobressaltava num calor de excessos comunicados ao corpo de Ana Sílvia. Quanto mais amava e desejava as filhas, mais intensa e passionalmente possuía a mãe. Nosso gozo, um dentro do outro desavindo, era tão extremo e inefável que um dia desabei suado sobre o assoalho úmido e comecei a chorar num completo abandono de mim. A dor do prazer era tanta, tanto o desamparo da carne iluminada, que eu apenas gemia entre lágrimas: você quer me matar, você quer me deixar louco. Ela me tomava nos braços entre lágrimas de comoção e lá ficávamos largados de pura felicidade. Nenhum homem gozou como gozei em Ana Sílvia.
Em certa tarde eu lia na rede da varanda quando Ana Sofia entrou completamente nua, recostou o corpo na parede e ficou de costas para mim simulando contemplar o mar de Salvador. A beleza daquele corpo de menina, paralisado como uma oferenda ao alcance da minha mão, ainda hoje me atravessa a memória fisgada de luz e dor. Quase sem voz, pois o tuc tuc do coração me subia pela garganta, disse apenas: meu amor, entre e se vista.
Ana Lúcia, mais carinhosa e expansiva, era um tormento ainda maior. Vivia rolando nos meus braços. Muitas vezes, voltando da praia pendurada no meu ombro, corria para trás das portas para logo em seguida surpreender-me em algum recanto do apartamento. Quando menos esperava, puxava-me o calção e ria deliciada diante do meu corpo nu. Se eu entrava no banheiro, punha-se a forçar a porta querendo porque queria entrar para tomar banho comigo. Meu tormento era longo, continuado e delicioso. Nunca ninguém viveu inferno assim celestial como o que provei. Em meio a tudo, fui cada vez mais temendo perder as forças que me garantiam energia sublimadora. A paixão de possuí-las eu a continha procrastinando o gozo sonhado para um ponto indefinível do futuro, para o dia em que rebentassem na plenitude da maturação biológica.
Que fantasias tecem as linhas e cores das tatuagens impressas no corpo feminino? Um dia, possuindo Ana Sílvia, disse-lhe da minha fantasia de nela gravar um sinal do meu amor e posse. Pouco mais tarde surpreendeu-me exibindo na altura do ventre uma flor tatuada contendo as letras L e N, isto é, Luiz Natalino. Comovido, beijei-lhe o ventre e a tatuagem repetidas vezes. Logo isso bastou para que eu desandasse a desejar minhas iniciais impressas na carne de Ana Lúcia e Ana Sofia. Tanto fiz que convenci Ana Sílvia, que não precisou gastar verbo e artimanha para persuadi-las a transportar minhas iniciais no corpo. No pé direito de uma e no esquerdo da outra foram afinal gravadas as letras L e N. Correu-me por dentro um inconfessado poder de senhor de um reino, de um castelo inviolável ou um latifúndio amazonense.
Ana Sílvia deu para falar de uma vida solidamente comum. Quero dizer, uma vida casada, com papéis passados e assinados em cartório. Se nos amávamos tanto, se eu era tão feliz na companhia das meninas, por que não vivermos como uma família? Precisava recompor sua vida com as filhas em bases mais estáveis. Compreendia seus sentimentos e aspirações. Também eu queria o que ela, retesada no seu orgulho de mulher independente, confessava um tanto constrangida. Mas o medo e o desejo de possuir as meninas num futuro incerto, porém irreprimível, findou por anular qualquer possibilidade de amor casado e continuado.
Além de bela e sensual, Ana Sílvia vivia num mundo de homens. A natureza da profissão que exercia propiciava-lhe rotineiramente a oportunidade de viajar sozinha, frequentar congressos e encontros científicos, privar da intimidade de acadêmicos sedentos de aventura e até de amor refeito sobre a terra devastada das relações traídas e rompidas. O amor incerto, a insegurança sem solução previsível, tudo isso e outros imponderáveis cavaram a separação e o desenlace doloroso que findou por transportá-la para São Paulo. Soube mais tarde que casou com o homem com quem me traiu durante meses. Sabia da traição e de imediato tudo fiz para remendar nossos cacos e salvar nosso amor. Atormentada por um conflito enraizado numa formação religiosa inflexível, refugiou-se na vivência esquizofrênica de duas realidades intoleráveis: a traição efetiva contra o imperativo da fidelidade puritana. Ana Sílvia fora educada num colégio de freiras, além de criada por uma avó cujo mundo tradicional e fechado lhe impôs prisões morais inexistentes na realidade dos costumes que pipocaram a partir da década de 1960.
Muitos anos passaram enquanto errei por aí e pelo mundo. A compulsão por meninas acelerou-se a meio das minhas lutas vencidas para esquecer Ana Sílvia, Ana Lúcia e Ana Sofia. Talvez Ana Sofia me amasse ainda mais que a irmã, mas sua natureza retorcida, de expressão emocional atormentada, turvava-lhe a dor da minha perda. Era nisso igualzinha à mãe, instável como clima inglês. A imagem deriva de lá, da própria Inglaterra que, abaixo delas, amo acima de tudo mais. Ana Lúcia, porém, me perdia e pedia à distância com o mesmo desembaraço amoroso do Éden que compartilhamos em Salvador. Por isso escrevia-me cartas de dor e amor intensos na sua letra ainda à cata de uma forma madura, no traço tateante de menina. Suas cartas, tão simples e nuas, são as declarações de amor mais agudo e pungente que jamais recebi de uma mulher. Depois de as ler e chorar ferido no meu completo desamparo, eu mergulhava na solidão e no frio cortante das ruas inglesas. Andava horas a fio, sem direção ou propósito, salvo o de me castigar na minha dor sentindo o frio roer-me os ossos desertos, punir-me a carne surdamente gemendo a dor do amor irreparável.
Voltei por fim a Salvador onde nem mesmo a beleza dócil e despudorada das meninas me alivia a condição de completo desenraizamento, o desterro de judeu errante. Odeio o odor vindo das ruas, das águas sujas escorrendo pelas ladeiras ou empoçadas nas sarjetas. Odeio esse cotidiano trepidante e ruidoso, a incivilidade crônica do baiano, pior que a do brasileiro típico. Não tenho família, odeio a simples ideia de família, e nada me prende a nada. A beleza dócil e despudorada das meninas é ainda eco ou prolongamento do falo patriarcal, do escravismo que nos feriu a alma e o corpo com vincos indeléveis. A beleza dócil e despudorada excita o macho e até se deleita dobrada por sua animalidade predatória. Tornei-me uma máquina fria, movida a ódio e fantasia destrutiva. O ódio represado é tanto, de tão penosa respiração, que às vezes preciso errar dentro da noite deserta. Chego enfim à praia e brado embriagado contra as ondas invocando um deus punitivo: que venha outro dilúvio, a second coming, e tudo reduza a pedra e pó. Que sobrevivam apenas minhas deusas inconsoláveis castigadas pela condenação de me chorar para o resto dos tempos.
Durante seu exílio, tudo aqui ficou pior. Você porém ficou ainda pior que tudo. Palavras de Luís Carnome, a quem o acaso me junta num bar na noite da Barra. Mais ainda que meu guru em matéria de cinema, Luís é um sociólogo rico, um dos raros que souberam usar os instrumentos dessa profissão sórdida para enriquecer. Por isso costumo chamá-lo de Midas de Natal, terra de onde veio. Tudo que a sua sociologia toca transforma-se em pesquisa de opinião, estudo de mercado, assessoria, leite sugado das tetas violentadas do Estado. Em suma, dinheiro e poder. É humilhante o contraste entre seu poder e sucesso e meu fracasso de hedonista estoico, se é possível abusar assim de um oximoro.
Sabe do grito de guerra que adotei? Vamos às profissionais. Estou farto de mulheres complicadas infernizando-me a vida com um trem de ex-maridos, filhos delinquentes e suas opressões intoleráveis e miúdas. Faz meses que transo apenas com profissionais. São limpas, gostosas e caras. Mas posso pagar e quero, aliás, pagar algumas para você. Luís falava quase sem pausa, tomado daquela ansiedade que por aqui confundimos com alegria. Sua vida moral dissolvia-se ante meus olhos inclementes, mas como não invejar um homem que cai entre risos voltados contra si próprio? Prefiro as meninas de classe média prostituídas não por necessidade, mas por prazer e antes de tudo por escravização ao deus do consumo soberanamente regendo a vida dessas baratas tontas esvoaçando no shopping center.
Não te conto a última, Natalino. Estava em São Paulo, às voltas com um desses congressos insuportáveis de acadêmicos e políticos, quando me bateu um desejo intenso de transar com uma puta de classe média. Liguei para um corretor, eufemismo criado para designar cafetão de classe, pois existe classe até na rede dos bordéis. Perguntou-me se não gostaria de transar com duas irmãs. Topei no ato. Você não imagina a beleza delas, Natalino. Mas talvez não lhe interessassem. Tinham 18 e 20 anos. Velhas demais para mim, cortei enquanto ele caía na gargalhada. Vivi uma noite de rei. As meninas eram completas, insaciáveis e faziam de tudo com um prazer e um abandono de tudo como nunca gozei em nenhuma puta ou mulher. Já exaustos e suados, deslizei sobre seus corpos para beijar-lhes os pés. Você sabe que sou tão pedófilo quanto você, disparou o trocadilho novamente entre gargalhadas. Sabe da maravilha que descobri? Tinham duas tatuagens gravadas: uma no pé direito, outra no esquerdo. Numa a letra L, noutra a N. Mais tarde pensei casualmente: poderiam ser as iniciais de Luiz Natalino, emendou outra gargalhada. Se você tivesse tido tal sorte, encontraria afinal um motivo para invejá-lo, arrematou afrouxando nova gargalhada. Estava já tão bêbado que mal notou meu estado de miséria às bordas do desespero. Voltei para casa chutando pedra, tomado por uma dor absolutamente indizível. Foi então que me veio a ideia do incêndio. Parei num posto e comprei um bujão de gasolina. Dentro de alguns minutos tudo isso será cinzas. E ninguém saberá, sequer desconfiará que elas me consumiram e me pisaram e por fim a isso me reduziram: essa cinza fugaz dissipada na brisa noturna de Salvador.



domingo, 14 de outubro de 2012

Jorge (bem)Amado



O ano de 2012 assinala o centenário de dois dos mais consagrados escritores da literatura brasileira: Jorge Amado e Nelson Rodrigues. Em tempo, acrescentaria ainda Álvaro Lins, hoje infelizmente quase esquecido. Este, contudo, era um crítico literário e a tradição letrada nunca concede a essa categoria, a crítica, o valor atribuído ao criador literário no sentido estrito do termo (explicitando: o romancista, o poeta e o contista). O fato, de resto, deveria importar para que a cultura acadêmica tivesse a humildade de admitir a subordinação da crítica e da teoria à criação literária compreendida no sentido estrito que acabo de especificar. O assunto é de enorme relevância, mas não posso infelizmente considerá-lo sem enredar-me em digressões impertinentes.

Num país cujo público letrado é tão ralo, Jorge Amado e Nelson Rodrigues distinguem-se antes de tudo pelo extraordinário sucesso editorial, notadamente o primeiro. Jorge Amado alcançou o raro privilégio de viver de literatura bem antes do advento da televisão e da expansão da universidade brasileira. Enquanto a primeira contraiu ou desviou o público potencial da literatura, a segunda pouco concorreu para ampliá-lo. Com isso ou contra isso, Jorge Amado foi o mais afortunado dentre os representantes de uma corrente ficcional que conciliou de forma inusitada na nossa tradição literária a qualidade estética e o sucesso editorial. O leitor sabe que me refiro à corrente do romance social nordestino, cuja irrupção, no início dos anos de 1930, afetou a orientação da literatura experimental da década precedente e pouco mais tarde deslocou para segundo plano o romance de cunho psicológico e metafísico de Cornélio Pena, Octavio de Faria, Lúcio Cardoso e alguns outros. A cristalização e ápice desta última corrente é constituída pela obra de Clarice Lispector.

Já que o mercado é a única ideologia que nos sobra no presente, não é à toa que inicio este artigo ressaltando o singular sucesso editorial de Jorge Amado. É certo que, a julgar pelas estatísticas correntes, Paulo Coelho o superou como expressão desconcertante da literatura globalizada. Ainda assim, Jorge Amado detém trunfos estranhos ao sucesso colossal do rival. Além da amplitude da sua obra, acumulada dentro de um ritmo de progressão regular que se estendeu do início dos anos 1930 a 1994, data de publicação do seu último romance, teve grande parte da sua obra adaptada para o cinema, a televisão, o teatro e o rádio. Não bastasse tanto, Jorge Amado foi dos raros escritores brasileiros inventores de uma mitologia nacional. Ele traduziu em termos estritamente ficcionais o Brasil mítico inventado por Gilberto Freyre no âmbito das ciências sociais. O Brasil da sua ficção, sobretudo a Bahia, é uma reinvenção sua de tal modo impregnada no imaginário nacional que com ele, assim como com Gilberto Freyre e alguns poucos, aprendemos a ver e sentir o país real transfigurado por sua imaginação lírica, romântica, porejante de sensualidade e idealização imantada não no que somos, mas no que desejamos, não na tradição realista que ele sempre subverteu, mas numa forma de idealização romântica que nos representa como certamente gostaríamos de ser.

Diante do que acima esbocei, é previsível que a magnitude da data, o centenário de Jorge Amado, pouco encoraje apreciações pautadas pela isenção crítica, pela avaliação indiferente ao espírito de celebração. Lembrando ainda os soberanos interesses do mercado, a pressão é grande e espontânea o suficiente para que fiquemos apenas no batuque do samba exaltação, virtude de resto distintamente brasileira. Friso, portanto, que este artigo desdobra-se deliberadamente na contracorrente dessas manifestações previsíveis. Antes, porém, ressalto que Jorge Amado, como aliás qualquer autor de obra e biografia complexas, pode ser abordado em consonância com inúmeras perspectivas e escalas de valor. O que cabe ao crítico é explicitar seu ângulo de apreciação argumentando de forma coerente com o que se propõe a explorar. Antes de explicitar o meu, cuido de reconhecer alguns méritos inegáveis do autor e da obra.

Um dos grandes méritos de Jorge Amado, extensivo aos melhores representantes do romance nordestino dos anos 1930, foi conferir expressão palatável para o público leitor mais amplo conquistas estéticas propostas e limitadamente experimentadas pela linha de ponta do modernismo difundido no curso da década anterior. Refiro-me mais precisamente à incorporação do povo na literatura, à introdução bem sucedida da linguagem coloquial no discurso literário, à representação ficcional da cultura do povo. Estes são postulados pelo modernismo a partir de sua guinada nacionalista, isto é, a partir de 1924. Mas essa tradução de postulados estéticos e ideológicos do modernismo em clave regionalista não se fez sem alguns problemas que foram bastante discutidos pela crítica. Mário de Andrade, por exemplo, enfrenta essa questão no texto da sua célebre conferência de 1942 quando, a pretexto de celebrar os 20 anos do modernismo, procede a um balanço do movimento em tom isento de complacência mesclando crítica objetiva e apreciação impiedosa do papel que individualmente desempenhou no processo cultural.

Considerando o lugar central ocupado na literatura brasileira pela corrente do romance nordestino, Mário de Andrade louva as conquistas compreendidas pelos postulados que acima indiquei. Não o faz, entretanto, sem na outra dobra criticar nesses romancistas (à parte Graciliano Ramos, ressalva minha) o excesso de inspiração e improviso. Noutras palavras, a ausência de rigor construtivo que sempre exigiu do artista. O fato de empenhar-se em produzir uma obra comprometida com ideais humanistas e politicamente progressistas, apreensíveis na sincera identificação com o povo iletrado e oprimido, não isenta o artista do domínio da técnica e da linguagem artística, dos meios culturais necessários à criação literária.
Ora, sabemos que essa crítica afeta diretamente a obra de Jorge Amado, pois nele sempre prevaleceu, de par com seu notável talento para a fabulação e a transfiguração lírica da realidade, o desleixo relativo ao estilo e à linguagem. Por isso, mesmo a crítica mais favorável e simpática à sua obra (destacaria aqui Álvaro Lins, Antonio Candido, Alfredo Bosi e Luiz Costa Lima) critica sua imaginação sensualista e primitiva, sua representação sentimental e idealizada do povo expressa na solução mágica dos conflitos e na caracterização psicológica das suas personagens demasiado esquemática. Parece-me de fato muito pobre a caracterização psicológica das suas personagens. À diferença de um Graciliano Ramos, que articula com maestria ação e caracterização subjetiva, ambiente e personagem, quando não um termo através do outro, Jorge Amado tende sempre para a caricatura quando formaliza literariamente antes tipos sociais (como o personagem de extração popular investido de virtudes idealizadas ou o pequeno-burguês, contra quem investe seu espírito satírico) do que representações realistas convincentes.

Aparentemente, o romancista nunca deu muita importância a essas restrições. Pelo menos é o que se deduz de uma frase conhecida com que à vontade se definiu: “Sou apenas um baiano romântico e sensual”. Alfredo Bosi não deixa por menos e assim comenta a frase: “Definição justa, pois resume o caráter de um romancista voltado para os marginais, os pescadores e os marinheiros de sua terra que lhe interessam enquanto exemplos de atitudes ´vitais`: românticas e sensuais...” (Ver História concisa da literatura brasileira, 34ª edição, pp. 405-6). Bosi vai adiante frisando que essa poética espontânea passou ao largo do realismo crítico contentando-se em fornecer ao leitor “...pieguice e volúpia, em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos ´folclóricos` em vez de pessoas, descuido formal a pretexto de oralidade... Além do uso às vezes imotivado do calão: o que é, na cabeça do intelectual burguês, a imagem do eros do povo. O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por certo o de passar por arte revolucionária. No caso de Jorge Amado, porém, bastou a passagem do tempo para desfazer o engano” (Id., p. 406).

Cito e, além de citar, subscrevo o juízo crítico. Mais longe ainda que Bosi foi Walnice Nogueira Galvão, outra grande representante da crítica acadêmica. É dela a crítica mais devastadora que conheço sobre a obra de Jorge Amado. No auge da ditadura militar brasileira e do sucesso editorial do ficcionista baiano, 1973, ela escreveu um ensaio crítico a propósito do lançamento de Tereza Batista Cansada de Guerra (Ver “Amado: respeitoso, respeitável”, in Saco de Gatos).
Walnice abre seu ensaio esboçando uma equação complexa, mas essencial à análise da relação entre o escritor, o Estado e o mercado na tradição literária brasileira. Depois de louvar a coragem cívica com que Jorge Amado e Érico Veríssimo ousavam pronunciar-se contra a censura dentro dos limites de expressão impostos pela ditadura, contrapõe estes romancistas, significativamente independentes do Estado, já que dependentes do gosto público na esfera do mercado de livros, aos intelectuais dependentes do Estado, isto é, aqueles que são empregados públicos por não lograrem viver profissionalmente do exercício da literatura. Esboçadas essas linhas (remeto o leitor interessado ao ensaio de Silviano Santiago que replica e desdobra as consequências do teorema de Walnice, como escreve ele, no livro Vale quanto pesa), Walnice explora em termos críticos a relação entre a dependência do mercado e a qualidade da obra examinando em tom devastador o romance Tereza Batista Cansada de Guerra.

Analisando aspectos fundamentais do romance com corte preciso e polêmico, a ensaísta demonstra nesta obra particular as insuficiências formais e ideológicas da obra de Jorge Amado. Argumentando contra o caráter populista da sua ficção, sempre marcada pela idealização dos oprimidos, que são antes de tudo figuras da marginalidade baiana, ou do lumpemproletariado, fato que parece no mínimo irônico num escritor que foi militante comunista durante grande parte de sua vida, Walnice contrasta Tereza Batista com Moll Flanders, protagonista do romance homônimo de Daniel Defoe. O paralelo resulta constrangedor para nosso fabulista baiano. Bastaria lembrar que Tereza Batista é uma prostituta dotada de grande consciência política, portadora das melhores virtudes populares. Isso se aplica a ela quanto a todos os heróis marginais de Jorge Amado, o que contradiz liminarmente o conceito de lumpemproletariado.

Citando a própria Walnice, “Já Tereza não resvala, única personagem sempre virtuosa do romance. Se puxamos à memória os pobres de Brecht e de Buñuel, pensamos que Jorge Amado está brincando uma brincadeira sem graça; tudo se passa em seu romance como se a ética da miséria fosse outra e pobre virtuoso não morresse de fome; a idealização da miséria nada fica a dever a Gilberto Freyre. A tessitura ficcional interrompe-se a todo instante para dar ocasião a enunciados abstratos e polêmicos sobre a miséria; concretizada em Tereza, jamais aparece. Ela é, de fato, um ser moral, como alguma duquesa riquíssima de Balzac; no quadro frio e cruel das altas esferas francesas do século XIX, onde todos se entredevoram, de vez em quando há uma personagem assim. E Balzac aponta a condição, necessária mas não suficiente, pois só como exceção se dá, em que pode surgir um ser moral: em cima de um monte de dinheiro” (op. cit., p. 16).
Além dessa idealização da miséria, Walnice também ressalta um dispositivo formal, o discurso indireto livre, empregado por Jorge Amado para resolver em termos ambíguos, que variam da representação realista à mítica ou mágica, conflitos sociais evidenciadores da sua ideologia populista. Trocando novamente em miúdos: a heroína do povo é sempre virtuosa e vencedora, as divindades africanas sempre intervêm em defesa dos heróis populares. A isso se soma o discurso saturado de baixo calão, quando não da pura e simples pornografia e da perversão sexual. Walnice alinha exemplos convincentes da sua crítica relativa a esses aspectos do romance, também presentes noutras obras de Jorge Amado.

Seria simplista, como alguns supõem, considerar a crítica acima como evidência da polaridade entre rejeição da crítica acadêmica da obra de Jorge Amado versus aceitação unânime do público. Há sem dúvida alguns críticos acadêmicos que reconhecem no romancista baiano um dos mais importantes da literatura brasileira. Por outro lado, seria um engano traduzir seu extraordinário sucesso de público como evidência de unanimidade. O que me parece todavia previsível é o clima de irrestrita celebração assinalando a passagem do centenário desse extraordinário inventor de um Brasil mitológico. E o fato é que a mitologia é avidamente consumida e amada não apenas pelos brasileiros carentes de uma representação mítica e romântica da nossa cultura cujos traços predominantes são a sensualidade, o excesso desatado de culpa e governo, a idealização das nossas misérias seculares e o sincretismo mágico mesclando em tom confraternizador o arcaico e o moderno, os grupos e classes que não são o que são, mas por certo são o que o típico leitor amadiano (brasileiro ou estrangeiro ávido de exotismo cultural) gostaria que fossem.
Recife, 25 de setembro de 2012.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Anovelhoariando


Leio nesses olhares ávidos de triunfo a expectativa da confirmação de uma verdade evidente e indisfarçável. Portanto, o que me resta é reconhecer o meu crime: sou velho, sim. Melhor dizendo, tornei-me velho. Mas estejam certos, vocês que vieram depois de mim, vocês também chegarão lá, ou aqui. Meu consolo é refugiar-me na linguagem publicitária do nosso tempo. Sendo assim, não sou nem me tornei velho, sou apenas um membro tardio e descuidado da terceira idade. Aliás, a única terceira do meu tempo era a terceira via, expressão com que se procurava tornar palatável a abominável socialdemocracia. Se tentasse ainda melhor sugerir os abismos que se cavaram entre gerações vizinhas, entre tempos que em eras remotas eram vividos como uniformes, ou quase inalteráveis, anotaria distinções do tipo das que seguem:
Sou do tempo em que sexo era pecado.
Sou do tempo em que cachorro era cachorro e gente era gente.
Virgindade era virtude. Perdê-la era perder-se, mancha indelével de desonra. Refiro-me evidentemente à virgindade feminina.
O Brasil parecia ter jeito, ou pelo menos a gente acreditava. Hoje a gente sabe que é insolúvel, mas finge acreditar que ainda dará certo.
Todas as pessoas de bem, ou supostamente de, tinham orgulho de ser de esquerda. Quem não era comunista era com certeza simpatizante ou companheiro de viagem.
Sou do tempo em que meus amigos brigavam por ideias, ainda que tortas e dogmáticas. Hoje brigamos apenas por cargos e escalas de renda e consumo.
Sou do tempo em que Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues eram reacionários e liberalismo era um insulto ideológico. George Orwell era agente do imperialismo americano e Stálin era o grande benfeitor da humanidade. Che Guevara simbolizava um fuzil varrendo a América Latina com múltiplos focos revolucionários. Hoje, como o compram, é um mito romântico domesticado pelo consumo que o converteu em pura dureza enternecida. Vestir o mito de Che tornou-se tão inofensivo quanto beber Coca-cola.
Sou do tempo em que acadêmicos de esquerda iam fazer pós-graduação nos EUA e retornavam a suas universidades de origem para dissertar sobre paradigma histórico-estrutural com ares de quem estivesse fermentando uma revolução comunista nos minúsculos círculos elitistas da pós-degradação que se tornou uma fábrica de diplomas para doutores iletrados.
Sou do tempo em que pessoas de direita mascaravam seu direitismo alegando ser de esquerda. Com a derrocada fragorosa dos regimes supostamente comunistas, somada à ascensão da esquerda em países do tipo do Brasil, esquerda e direita foram ficando semelhantes ao ponto de em termos práticos se confundirem. Sendo assim, não é de espantar que esquerdistas se orgulhem agora de ser de direita e direitistas se orgulhem de ser de direita. Enfim, parece que agora todos chegaram ao consenso tardio de que a realidade é de direita. Digo isso porque Freud – também eu, imodestamente – há muito sabia disso, fato que de resto não o torna necessariamente de direita. A propósito, quem sabe mesmo o que é ser de direita ou de esquerda?
A classe média ouvia bossa nova, Chico e Caetano, Edu Lobo e Gilberto Gil. Por isso olhava de cima, com patente desprezo, para bregas e bolerões como Waldick Soriano e Benito de Paula. Hoje, pasmem, Waldick, Benito e Ivete Seugalo são clássicos da MPB.
Filme de arte era atestado de identidade intelectual e ideológica. A gente morria de tédio, mas o tédio pagava os créditos do reconhecimento, nosso orgulho mimético de pertencer a uma casta privilegiada.
Nosso sonho de uma sociedade sexualmente liberada, fundada na livre escolha do sexo e do prazer, deu nisso que hoje vemos: sexo tornou-se a mercadoria mais universal e barata do capitalismo de consumo.
Sou do tempo em que havia barulho no ar, nossa cultura foi sempre ruidosa, mas em algum remoto lugar era ainda possível captar no silêncio miraculoso da madrugada as ondas sutis de um acorde dissonante. Hoje, até dentro de minha casa, último e vulnerável reduto de minha liberdade, sou forçado a ouvir tudo que rejeito e odeio: o vendedor de gás, o traficante de cd pirata, o alarme dos carros, a febre trepidante da construção civil, o buzinaço dos torcedores de futebol eufóricos e toda a boçalidade repetitiva que designam como música popular contemporânea. A tortura mais inescapável e corrente do nosso tempo é a auditiva. Isso explica o paradoxo seguinte: num país orgulhoso de ser tão musical, bem poucos fazem e ouvem música. Ninguém precisa da idiossincrasia de João Gilberto, nem do recolhimento dos monges, para constatar o quanto fomos privados da liberdade de ouvir o silêncio.
Fumar era um ato de ingresso e afirmação dentro do mundo adulto. Era sobretudo sedutor e por trás da névoa de fumo a gente dissimulava a timidez e insegurança diante da mulher desejada. Hoje o fumante é o equivalente do comunista na década de 1970.
Ah, o cinema ia morrer. Somente o livro, na crônica dos vaticínios catastróficos, teve e tem fôlego de sete gatos para morrer e ressuscitar mais que o cinema.
Como veem, sou velho. Sou tão velho que nasci num outro século, num tempo em que palavrão era palavrão. Hoje é apenas refrão do vocabulário infantil.
Sou do tempo em que todo mundo era contra o mercado, tinha horror ao mercado. O mercado que reconhecíamos, e amávamos com tinturas de lírico esquerdismo populista, era o mercado popular com sua sujeira, seu tradicionalismo insalubre, sua inércia mercantil. Shopping, invenção posterior agora convertida em templo do consumo, shopping era apenas chope.
Sou de tempo em que honestidade era virtude. Meu pai, já falido, vendeu os cacos sobrantes para pagar a seus credores, não para antes investir num outro meio de vida. Bem, acho que ele confundiu honestidade com imprevidência. A prova é que durante anos vivemos apertados pela pobreza. Subi tanto, pasmem novamente, que hoje até pareço rico.
Sou do tempo em que havia apenas um marco teórico: o marxismo. Os outros estavam condenados ao paredão da justiça pós-graduada. O mundo deu voltas tão alucinantes que até eu fui elevado à gloriosa categoria de marco teórico. O autor desta façanha, provável candidato ao Bobel das Ciências Humanas, é meu delirante amigo Flávio Brayner.
Por volta de 1915, Lytton Strachey, constrangido, declarava-se um velho à sua jovem amada Carrington. Tinha então 36 anos. Pouco mais tarde, aí por 1942, Drummond gravou este verso num poema: “há muito pressenti o velho em mim”. Tinha 40 anos. Não recuo ao século XIX porque então as diferenças eram ainda mais extremas. Basta lembrar que as pessoas já nasciam velhas. De lá para cá, sobretudo hoje, essas medidas de idade sofreram uma autêntica revolução. Hoje os menores de 15 anos, incluídas as crianças, querem ser adultos apenas para terem acesso a prazeres inacessíveis à criança e ao adolescente. Os adultos, maduros e velhos (perdão, quis dizer terceira idade) querem apenas ser adultescentes, isto é, aduladores dos delinquentes. No futuro, não muito remoto, a cultura narcisista abolirá a velhice e a morte e então seremos todos eternos. Aviso que já sou.
Nossa identidade é uma costura consistente de muitas máscaras não porque queremos ser hipócritas ou mentirosos, mas porque precisamos dissimular para conviver e ser aceitos, medida necessária de nossa própria aceitação. Não obstante toda a reivindicação de transparência e verdade que inscrevemos no cerne de nossos ideais éticos, a nua transparência do que somos constitui uma verdade intolerável para as convenções que regem o funcionamento do mundo. Eliot assinala num dos Four Quartets o quanto é limitada nossa medida de tolerância da verdade. Se igualmente pouco toleramos a mentira nua e crua, como então determinar a medida do que somos e fingimos?
Pensando melhor, não fui eu que envelheci, foi o tempo que se apressou. Mais que pressa, há nele uma progressiva aceleração que se manifesta no espaço e dentro de nossa medida subjetiva. Um dia deixarei de ser um nome para me tornar gerúndio: um tempo sempre sendo. Um dia inventarão a parada móvel, o sono acordado, o presenteando: presente sempre em processo. Um dia, carente de identidade, um dia sonhei ser eu. Sei agora que ser é sempre ser outro. O outro é nosso incerto destino.
Espanta-me ainda toda a cantilena que desenhamos em nome da felicidade. Dela falamos sempre e desejosos a evocamos como se ser feliz fosse um fim, quando não é sequer uma possibilidade. A felicidade é apenas um delírio obsessivo que inventamos, pois seres feitos de nossa insensata matéria não podem nunca alcançá-la. Os afortunados, poucos mas reais, poucos mas empiricamente assinaláveis, provam-na enquanto estado, enquanto deleitação momentânea, não enquanto expressão de permanência. Se fôssemos capazes de ajustar a medida do que desejamos à medida do que efetivamente somos, regularíamos nossos desejos e fantasias imantados na medida da felicidade momentânea. Noutras palavras, não estamos no mundo para ser felizes.
Uma das mais graves e difundidas moléstias do nosso tempo é a compulsão de ostentar felicidade e otimismo. Pessoas visivelmente infelizes falam de si próprias como se fossem clipes publicitários ambulantes. O cúmulo dessa estranha forma de alienação é o slogan “sem medo de ser feliz”. Se bem o entendo, ele sugere que a única razão de nossa infelicidade radica no medo que sofremos de conquistá-la.
A mulher? Sei que é a grande ausência aparente deste delírio em que racionalmente me meço e me repasso. Como falar da mulher num texto em que ironicamente me cotejo no tempo neste acentuando as linhas indisfarçáveis de sua passagem e ação? Se de algum modo somos vítimas do tempo, ninguém o é mais que a mulher. Daí tantas vezes lembrar a amigos, em nossa correspondência mais íntima e livre, as formas mais cruéis de manifestação da mãe natura. A mulher não se espelha nas linhas deste discurso porque temo de algum modo feri-la aludindo aos estragos que o tempo risca sobre sua pele, sobre sua inefável beleza que é objeto de meu culto mais lírico e secreto. É preciso que num homem se combinem a privação de uma mãe e a fatalidade da poesia antes vivida que realizada para que bem se compreenda a razão do meu objeto de culto. A mulher é tudo e tudo é apenas a mulher. Por que então precisaria eu iluminá-la nas linhas tortas de minha noturna e encantada navegação?
Mas acreditem: meu tempo é hoje, como na canção de Paulinho da Viola.
A música é a arte do tempo. No entanto, sou eu que passo. Ela fica. Até os gênios da música passam, pois são matéria humana como eu. O que fica é a música que os imortaliza.
Em suma, sou culpado do crime de ser velho, pois somente um velho evocaria no dia do seu aniversário tanto passado ido, irreversível e consumado. Fugindo ainda e sempre das convenções sociais que me oprimem, vivo o dia do meu aniversário como se fosse um segredo, um pacto de sangue entre mim e minha solidão. Ou ainda um pacto somente comunicado a dois ou três amigos. Mas eles próprios já o esqueceram, pois a memória humana é compreensivelmente curta e logo apaga o que não importa. Por que não admitir que no fundo o aniversário importa apenas para o aniversariante? Parabéns pra vocês.

03 de outubro de 2012.


quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Aniversário



No dia do meu aniversário
quando mais um dia envelheço
ou mais um ano acumulo num só dia
confesso que pouco queria
pouco à vida pediria.
Pois que a idade me ensinou
(se algo acaso aprendi)
minha insignificância pessoal
dentro da ordem das coisas.
II
O cosmos ou seu avesso
o caos e sua renovada colheita de ruínas
ignoram o grão de areia que sou
soprado pelos ventos que às cegas
para a morte me impelem.
Sou no entanto um grão pensante
um grão sensível
dotado da energia miraculosa de se saber
grão que pode gerar fruto
transcender a areia errante
e o próprio grão que é.
Por isso meu aniversário é apenas
um acidente imperceptível na ordem das coisas.
Mas também um milagre
como os que a todo momento
refazem o curso da vida.
Recife, 3 de outubro de 2012.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Gore Vidal: Cinema e Autoria


Além de romancista de grande renome, Gore Vidal é um notável e provocativo ensaísta. Seu gosto pelo ensaio polêmico ou pelo jornalismo de opinião concentrou-se notadamente na crítica ao sistema político e econômico americano, que a depender dos seus prognósticos de Cassandra já teria desmoronado ou mergulhado em crise muito mais profunda. Na cena cultural, que mais me interessa, ele já cruzou armas com Norman Mailer e movimentos ideológicos poderosos, como é o caso do feminismo. Aliás, sua independência crítica de corte polêmico se afirma até diante do movimento gay, embora há muito, bem antes da moda, ele já houvesse corajosamente assumido sua condição de homossexual.

Seu ensaio polêmico relativo ao diretor de cinema compreendido enquanto autor é provavelmente o mais conhecido e discutido. Foi publicado em 1976 no The New York Review of Books. O argumento central do ensaio visa elevar o roteirista à condição de real autor do filme, não o diretor. Mas o argumento não incorre nas simplificações grosseiras comuns nos ensaios ou artigos de viés polêmico. Recuando no tempo, até a era do cinema mudo, ressalta que então a supremacia do processo de criação fílmica cabia ao diretor. Mas eis que o cinema começa a falar e, como se sabe, ninguém fala sem um texto. É a partir daí que sobrevém a supremacia do roteirista. Embora reconheça o timbre autoral de um diretor como Ingmar Bergman, que é de resto um escritor, Vidal reduz a figura do diretor, notadamente no decurso dos anos 1930 e 1940, ao papel de um técnico competente como tantos outros diretamente envolvidos no processo de realização de filmes nos grandes estúdios americanos.

Para Vidal, o diretor enquanto autor é uma invenção dos críticos franceses, de intelectuais ligados ao grande crítico André Bazin e à revista Cahiers du Cinéma. Criada em 1951, esta célebre publicação está ainda viva. Nela se iniciaram grandes nomes do cinema francês do século 20, como François Truffaut, Claude Chabrol, Éric Rohmer e Jean-Luc Godard. Este grupo, Truffaut em particular, muito fez pelo reconhecimento estético e intelectual de diretores como Alfred Hitchcock, John Ford e Howard Hawks. Embora ressalve a importância indiscutível do primeiro – que eu ousaria qualificar como um diretor-autor, embora não assinasse o roteiro dos filmes que dirigiu – Gore Vidal considera John Ford apenas um técnico competente. Vai adiante ao afirmar que o diretor típico da época de Ford via a si próprio desse modo e assim era tratado pelos grandes estúdios de produção e pela opinião crítica corrente à época. É fato que também ressalva a qualidade distintiva de Hawks, que trabalhou em parceria com grandes escritores empregados na indústria do cinema, como é o caso de William Faulkner. Em parceria com Hawks, Faulkner criou dois filmes importantes na história do cinema americano: To have and have not (Ter e não ter) e The big sleep (O sono eterno).

Ao salientar a distinção autoral do roteirista, Gore Vidal concede atenção a alguns escritores que escreveram roteiros para grandes estúdios americanos. Além de Faulkner, acima mencionado, argumenta em defesa de F. Scott Fitzgerald, Aldous Huxley, Nathaniel West e James Agee. Vidal não atribui muita importância literária a este último, para dizer o mínimo, mas ressalta a extraordinária precisão e qualidade visual ou cinematográfica da sua escrita como roteirista. Segundo Vidal, os roteiros escritos por Agee, cuja melhor crítica cinematográfica está reunida no volume Agee on Film, eram dotados de extraordinária exatidão visual. Como foi um cinéfilo e apaixonado crítico de cinema, além de portador de imaginação literária antes de tudo visual, Agee escreveu roteiros suficientes para assegurar-lhe a autoria da obra, que assim poderia em princípio ser dirigida por qualquer técnico.

A obra que acabo de mencionar, Agee on Film, foi publicada numa coleção cujo editor é Martin Scorsese. Ela reúne a crítica produzida por Agee entre 1941 e 1948 para dois periódicos americanos: The Nation e Time Magazine. Além de uma introdução assinada por David Denby, o volume é enriquecido por uma carta que Auden endereçou ao The Nation. Embora pouco apreciasse cinema, Auden fez questão de escrever a carta para expressar seu louvor à crítica de cinema de Agee, crítica que Auden distingue como o mais notável acontecimento do jornalismo americano da época. Mas não deixa de arrematar em tom mordente: “Pode-se prever o dia triste em que Agee on Films será objeto de uma tese de Ph.D.”.

Baseado em fatos extraídos da obra Some time in the Sun, de Tom Dardis, Gore Vidal realça a relação de escritores de renome com Hollywood, os que citei dois parágrafos acima, para reforçar seu argumento central em defesa do roteirista como autor. Cuida entretanto de corrigir Dardis ao afirmar que as características de exatidão visual verificáveis nos roteiros de James Agee não eram exclusivas dele, mas sim a regra observável nos roteiristas da época. Vale a pena, neste passo, citar uma observação de Kurosawa que Vidal com prazer transcreve no seu ensaio, já que leva água para o seu moinho: “Com um roteiro muito bom, até mesmo um diretor de segunda classe é capaz de fazer um filme de primeira classe. Mas com um roteiro ruim, até mesmo um diretor de primeira classe é incapaz de fazer um filme que seja realmente de primeira classe”. (Gore Vidal, De Fato e de Ficção, p. 76).

Vidal retraça a linha crítica de procedência francesa que resultou na entronização do diretor como autor. Para isso, ressalta em particular um artigo de 1948 assinado por Alexandre Astruc, discípulo de André Bazin. Nesse artigo ousadamente polêmico, cujo título é “La Caméra-Stylo”, Vidal identifica mais que um artigo polêmico, identifica um manifesto em defesa da autoria absoluta e solitária do diretor. Embora a tradutora brasileira, Heloísa Jahn, traduza stylo meramente como caneta, suponho que Astruc confere ao termo, além deste sentido, o de estilo, que confere singularidade autoral a uma obra.

Entre outras teses ousadas, Astruc sustenta que Descartes, fosse ele acaso nosso contemporâneo, faria um filme para expressar apropriadamente suas ideias contidas no Discurso do Método. Vidal retruca com razão que o cinema é incapaz de expressar ideias complexas. Acrescenta ainda que o Descartes contemporâneo, Sartre, expressou sua filosofia num romance, A Náusea, não num filme. Aliás, conviria acrescentar o fiasco cinematográfico que resultou da experiência de Sartre quando este se associou a John Huston para escreveu o roteiro – infilmável, segundo Huston – do filme Freud.

No meu entender, o cinema sempre precisará da palavra, isto é, da literatura para expressar dimensões da realidade cujo sentido último é abstrato e portanto inacessível à pura exposição apreensível pelos sentidos. Uma das grandes forças expressivas do cinema reside, por exemplo, no seu poder de descrição. Isso explicaria em parte o fato de hoje um leitor, mesmo dotado de cultivada formação literária, ter bem pouca paciência para atravessar páginas e páginas de descrição de paisagens, cidades, lugares, tipos humanos etc. Bastaria pensar nos grandes romances do século 19, uma época ainda privada da cultura audiovisual disseminada no mundo contemporâneo.

Eu mesmo confesso já não ter tempo e pachorra para fixar na memória, depois de páginas e páginas de descrição cerrada, uma cena de batalha ou um baile da alta sociedade ou ainda a simultaneidade febril de uma metrópole. Estas cenas são muito comuns na grande literatura do século 19 e sobretudo na do século 20. Se vemos um filme, bastam alguns planos gerais alternados com alguns planos médios e outro tanto de close-up. Isso importa mais e tem muito mais eficácia e economia expressiva do que dezenas de páginas de um romancista genial como Dostoiévski, por exemplo.
Um telefilme ou minissérie baseado em Crime e Castigo ilustra muito bem meu argumento. Produzido pela BBC e dirigido por Julian Jarrold, é uma obra que nada tem de especial e de resto não tem como traduzir em linguagem cinematográfica as abstrações psicológicas e metafísicas supremamente realizadas em termos literários por Dostoiévski. No entanto, do ponto de vista descritivo, o filme facilmente traduz em alguns enquadramentos e takes o que, na obra de Dostoiévski, demanda páginas e páginas de descrição minuciosa e alentada. Todo o ruído e a sujeira e a miséria humana das ruas e cortiços de Petersburgo podem ser sinteticamente expostos em alguns enquadramentos variáveis de câmera.

Nenhum diretor assistido por seu cinegrafista precisa de gênio descritivo para imprimir realidade e sentido a cenas ficcionais desse tipo que se tornaram banalidade no universo cultural contemporâneo saturado de tecnologia e imagens. Qualquer diretor de telenovela da Globo, qualquer cinegrafista pode hoje sem embaraço transpor imagens desse tipo para a tela e daí para os nossos sentidos que há algumas gerações atrás precisavam valer-se do talento descritivo dos escritores. Essa é uma das razões de obras de grande fôlego analítico e densa complexidade teórica resultarem infilmáveis ou então findarem amputadas de seu sentido mais definidor em adaptações cinematográficas. Que diretor, não importando seu talento, pode transpor Em Busca do Tempo Perdido para a tela e ainda, para considerarmos um pouco a nossa literatura, Memórias Póstumas de Brás Cubas? Conheço as tentativas feitas em ambos os casos, mas lamento dizer que os resultados são bem pobres.

Como sabemos, Gore Vidal tem razões pessoais de sobra para argumentar em defesa da função autoral do roteirista. Além de romancista e crítico de literatura, trabalhou também como roteirista nos anos 1950, entre o esplendor e a decadência dos grandes estúdios afinal arruinados pelo advento da televisão como veículo hegemônico da cultura de massa na cena americana. Convém todavia destacar que essas razões pessoais entram no seu argumento apenas por via indireta e de resto em nada comprometem a força objetiva do que postula no seu ensaio. Como já deixei evidente, o alvo que mira negativamente é o diretor, que no seu entender, salvo as exceções antes referidas, se apropria injustamente dos créditos autorais do roteirista. Avançando no argumento, ele também concede qualidades autorais ao fotógrafo – ou câmeraman, como vem escrito no ensaio. Aqui ele acentua o papel fundamental desempenhado por Gregg Tolland em Cidadão Kane, o grande ícone da história do cinema cuja autoria, à exceção da crítica devastadora procedente de Pauline Kael, é sempre conferida a Orson Welles às expensas de Tolland e do roteirista Herman Mankiewicz.

Indo além do próprio argumento de Gore Vidal, que de passagem atribui funções autorais ao fotógrafo e ao cinegrafista (por vezes os termos se confundem, como na obra Trajetória Crítica, de Jean-Claude Bernardet) e também ao montador, atualmente também confundido com o editor de imagens, acrescentaria que a direção de arte também exerce papel fundamental no processo de factura da obra. Lembro-me, a propósito, de que Hector Babenco honestamente declara no making of de Carandiru que seus filmes seriam irrealizáveis sem a contribuição decisiva de Clóvis Bueno, seu diretor de arte. Faço esse registro ligeiro para concluir que, no meu entender, o filme é uma obra de criação coletiva. Esqueceu-me também ressaltar o papel dos atores, que para o grande público são os únicos que de fato importam.

No frigir dos ovos, considero que o argumento de Gore Vidal em defesa da autoria do filme atribuível ao roteirista encerra peso ponderável. Os filmes que distinguiram a carreira de Joseph Losey no cinema inglês, conferindo-lhe uma discutível aura autoral, seriam inconcebíveis sem os roteiros assinados por Harold Pinter. Vidal sublinha este fato, que integralmente endosso. No presente, ficando ainda restrito ao cinema inglês, distingo dois entre vários outros roteiristas ingleses que ficam injustamente à sombra dos diretores para os quais escrevem roteiros extraordinários. Refiro-me a Christopher Hampton, que além de escritor é também diretor ocasional, e David Hare, nome importante da dramaturgia inglesa. Hampton tem entre outros créditos – ou teria, pois o crédito autoral conferido ao roteirista é sempre secundário em relação ao diretor – o excelente roteiro que escreveu para Atonement (Desejo e Reparação). Quanto a David Hare, ressaltaria o roteiro que escreveu para The Hours (As Horas).

Gore Vidal é injusto ou desatento ao passar ao largo de diretores como Charlie Chaplin, Hitchcock, cujo peso autoral menciona muito sumariamente, Fellini, sobre quem simplesmente silencia, e François Truffaut, a quem de resto recusa mérito autoral. Outros críticos do seu ensaio poderiam ainda, baseados em argumentos objetivamente sustentáveis ou inclinações subjetivas, acrescentar nomes fundamentais da história do cinema. Penso aqui, ao correr da memória, em Billy Wilder, Visconti, Pasolini, Glauber Rocha, Buñuel, Godard, Fassbinder, David Lean, Kubrick... Não entro nos meandros e no varejo da questão. O que acentuo, agora em defesa de Gore Vidal, é a importância decisiva do roteirista, quase sempre subestimada em benefício do diretor.

O fato é que a crítica francesa, no ponto de partida, entronizou o diretor como essa figura mítica a quem passamos a atribuir a função autoral da obra cinematográfica. É um excesso injustificável. Nisso concordo integralmente com o ensaio de Gore Vidal, que todavia incorre num outro extremo também insustentável na ordem objetiva da controvérsia ao reivindicar a autoria da obra para o roteirista. O que penso, e assim concluo, é que o filme é uma obra de autoria coletiva. Os pesos e papéis são variáveis, mas o resultado final é fruto de uma atividade colaborativa e grupal muito complexa. Por isso é injusto conferir o mérito da autoria a qualquer agente individualmente considerado, seja o diretor, o roteirista, o cinegrafista ou ainda, pensando nas projeções míticas do grande público, o intérprete.
Recife, 3 de outubro de 2010.