segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Gore Vidal: Cinema e Autoria


Além de romancista de grande renome, Gore Vidal é um notável e provocativo ensaísta. Seu gosto pelo ensaio polêmico ou pelo jornalismo de opinião concentrou-se notadamente na crítica ao sistema político e econômico americano, que a depender dos seus prognósticos de Cassandra já teria desmoronado ou mergulhado em crise muito mais profunda. Na cena cultural, que mais me interessa, ele já cruzou armas com Norman Mailer e movimentos ideológicos poderosos, como é o caso do feminismo. Aliás, sua independência crítica de corte polêmico se afirma até diante do movimento gay, embora há muito, bem antes da moda, ele já houvesse corajosamente assumido sua condição de homossexual.

Seu ensaio polêmico relativo ao diretor de cinema compreendido enquanto autor é provavelmente o mais conhecido e discutido. Foi publicado em 1976 no The New York Review of Books. O argumento central do ensaio visa elevar o roteirista à condição de real autor do filme, não o diretor. Mas o argumento não incorre nas simplificações grosseiras comuns nos ensaios ou artigos de viés polêmico. Recuando no tempo, até a era do cinema mudo, ressalta que então a supremacia do processo de criação fílmica cabia ao diretor. Mas eis que o cinema começa a falar e, como se sabe, ninguém fala sem um texto. É a partir daí que sobrevém a supremacia do roteirista. Embora reconheça o timbre autoral de um diretor como Ingmar Bergman, que é de resto um escritor, Vidal reduz a figura do diretor, notadamente no decurso dos anos 1930 e 1940, ao papel de um técnico competente como tantos outros diretamente envolvidos no processo de realização de filmes nos grandes estúdios americanos.

Para Vidal, o diretor enquanto autor é uma invenção dos críticos franceses, de intelectuais ligados ao grande crítico André Bazin e à revista Cahiers du Cinéma. Criada em 1951, esta célebre publicação está ainda viva. Nela se iniciaram grandes nomes do cinema francês do século 20, como François Truffaut, Claude Chabrol, Éric Rohmer e Jean-Luc Godard. Este grupo, Truffaut em particular, muito fez pelo reconhecimento estético e intelectual de diretores como Alfred Hitchcock, John Ford e Howard Hawks. Embora ressalve a importância indiscutível do primeiro – que eu ousaria qualificar como um diretor-autor, embora não assinasse o roteiro dos filmes que dirigiu – Gore Vidal considera John Ford apenas um técnico competente. Vai adiante ao afirmar que o diretor típico da época de Ford via a si próprio desse modo e assim era tratado pelos grandes estúdios de produção e pela opinião crítica corrente à época. É fato que também ressalva a qualidade distintiva de Hawks, que trabalhou em parceria com grandes escritores empregados na indústria do cinema, como é o caso de William Faulkner. Em parceria com Hawks, Faulkner criou dois filmes importantes na história do cinema americano: To have and have not (Ter e não ter) e The big sleep (O sono eterno).

Ao salientar a distinção autoral do roteirista, Gore Vidal concede atenção a alguns escritores que escreveram roteiros para grandes estúdios americanos. Além de Faulkner, acima mencionado, argumenta em defesa de F. Scott Fitzgerald, Aldous Huxley, Nathaniel West e James Agee. Vidal não atribui muita importância literária a este último, para dizer o mínimo, mas ressalta a extraordinária precisão e qualidade visual ou cinematográfica da sua escrita como roteirista. Segundo Vidal, os roteiros escritos por Agee, cuja melhor crítica cinematográfica está reunida no volume Agee on Film, eram dotados de extraordinária exatidão visual. Como foi um cinéfilo e apaixonado crítico de cinema, além de portador de imaginação literária antes de tudo visual, Agee escreveu roteiros suficientes para assegurar-lhe a autoria da obra, que assim poderia em princípio ser dirigida por qualquer técnico.

A obra que acabo de mencionar, Agee on Film, foi publicada numa coleção cujo editor é Martin Scorsese. Ela reúne a crítica produzida por Agee entre 1941 e 1948 para dois periódicos americanos: The Nation e Time Magazine. Além de uma introdução assinada por David Denby, o volume é enriquecido por uma carta que Auden endereçou ao The Nation. Embora pouco apreciasse cinema, Auden fez questão de escrever a carta para expressar seu louvor à crítica de cinema de Agee, crítica que Auden distingue como o mais notável acontecimento do jornalismo americano da época. Mas não deixa de arrematar em tom mordente: “Pode-se prever o dia triste em que Agee on Films será objeto de uma tese de Ph.D.”.

Baseado em fatos extraídos da obra Some time in the Sun, de Tom Dardis, Gore Vidal realça a relação de escritores de renome com Hollywood, os que citei dois parágrafos acima, para reforçar seu argumento central em defesa do roteirista como autor. Cuida entretanto de corrigir Dardis ao afirmar que as características de exatidão visual verificáveis nos roteiros de James Agee não eram exclusivas dele, mas sim a regra observável nos roteiristas da época. Vale a pena, neste passo, citar uma observação de Kurosawa que Vidal com prazer transcreve no seu ensaio, já que leva água para o seu moinho: “Com um roteiro muito bom, até mesmo um diretor de segunda classe é capaz de fazer um filme de primeira classe. Mas com um roteiro ruim, até mesmo um diretor de primeira classe é incapaz de fazer um filme que seja realmente de primeira classe”. (Gore Vidal, De Fato e de Ficção, p. 76).

Vidal retraça a linha crítica de procedência francesa que resultou na entronização do diretor como autor. Para isso, ressalta em particular um artigo de 1948 assinado por Alexandre Astruc, discípulo de André Bazin. Nesse artigo ousadamente polêmico, cujo título é “La Caméra-Stylo”, Vidal identifica mais que um artigo polêmico, identifica um manifesto em defesa da autoria absoluta e solitária do diretor. Embora a tradutora brasileira, Heloísa Jahn, traduza stylo meramente como caneta, suponho que Astruc confere ao termo, além deste sentido, o de estilo, que confere singularidade autoral a uma obra.

Entre outras teses ousadas, Astruc sustenta que Descartes, fosse ele acaso nosso contemporâneo, faria um filme para expressar apropriadamente suas ideias contidas no Discurso do Método. Vidal retruca com razão que o cinema é incapaz de expressar ideias complexas. Acrescenta ainda que o Descartes contemporâneo, Sartre, expressou sua filosofia num romance, A Náusea, não num filme. Aliás, conviria acrescentar o fiasco cinematográfico que resultou da experiência de Sartre quando este se associou a John Huston para escreveu o roteiro – infilmável, segundo Huston – do filme Freud.

No meu entender, o cinema sempre precisará da palavra, isto é, da literatura para expressar dimensões da realidade cujo sentido último é abstrato e portanto inacessível à pura exposição apreensível pelos sentidos. Uma das grandes forças expressivas do cinema reside, por exemplo, no seu poder de descrição. Isso explicaria em parte o fato de hoje um leitor, mesmo dotado de cultivada formação literária, ter bem pouca paciência para atravessar páginas e páginas de descrição de paisagens, cidades, lugares, tipos humanos etc. Bastaria pensar nos grandes romances do século 19, uma época ainda privada da cultura audiovisual disseminada no mundo contemporâneo.

Eu mesmo confesso já não ter tempo e pachorra para fixar na memória, depois de páginas e páginas de descrição cerrada, uma cena de batalha ou um baile da alta sociedade ou ainda a simultaneidade febril de uma metrópole. Estas cenas são muito comuns na grande literatura do século 19 e sobretudo na do século 20. Se vemos um filme, bastam alguns planos gerais alternados com alguns planos médios e outro tanto de close-up. Isso importa mais e tem muito mais eficácia e economia expressiva do que dezenas de páginas de um romancista genial como Dostoiévski, por exemplo.
Um telefilme ou minissérie baseado em Crime e Castigo ilustra muito bem meu argumento. Produzido pela BBC e dirigido por Julian Jarrold, é uma obra que nada tem de especial e de resto não tem como traduzir em linguagem cinematográfica as abstrações psicológicas e metafísicas supremamente realizadas em termos literários por Dostoiévski. No entanto, do ponto de vista descritivo, o filme facilmente traduz em alguns enquadramentos e takes o que, na obra de Dostoiévski, demanda páginas e páginas de descrição minuciosa e alentada. Todo o ruído e a sujeira e a miséria humana das ruas e cortiços de Petersburgo podem ser sinteticamente expostos em alguns enquadramentos variáveis de câmera.

Nenhum diretor assistido por seu cinegrafista precisa de gênio descritivo para imprimir realidade e sentido a cenas ficcionais desse tipo que se tornaram banalidade no universo cultural contemporâneo saturado de tecnologia e imagens. Qualquer diretor de telenovela da Globo, qualquer cinegrafista pode hoje sem embaraço transpor imagens desse tipo para a tela e daí para os nossos sentidos que há algumas gerações atrás precisavam valer-se do talento descritivo dos escritores. Essa é uma das razões de obras de grande fôlego analítico e densa complexidade teórica resultarem infilmáveis ou então findarem amputadas de seu sentido mais definidor em adaptações cinematográficas. Que diretor, não importando seu talento, pode transpor Em Busca do Tempo Perdido para a tela e ainda, para considerarmos um pouco a nossa literatura, Memórias Póstumas de Brás Cubas? Conheço as tentativas feitas em ambos os casos, mas lamento dizer que os resultados são bem pobres.

Como sabemos, Gore Vidal tem razões pessoais de sobra para argumentar em defesa da função autoral do roteirista. Além de romancista e crítico de literatura, trabalhou também como roteirista nos anos 1950, entre o esplendor e a decadência dos grandes estúdios afinal arruinados pelo advento da televisão como veículo hegemônico da cultura de massa na cena americana. Convém todavia destacar que essas razões pessoais entram no seu argumento apenas por via indireta e de resto em nada comprometem a força objetiva do que postula no seu ensaio. Como já deixei evidente, o alvo que mira negativamente é o diretor, que no seu entender, salvo as exceções antes referidas, se apropria injustamente dos créditos autorais do roteirista. Avançando no argumento, ele também concede qualidades autorais ao fotógrafo – ou câmeraman, como vem escrito no ensaio. Aqui ele acentua o papel fundamental desempenhado por Gregg Tolland em Cidadão Kane, o grande ícone da história do cinema cuja autoria, à exceção da crítica devastadora procedente de Pauline Kael, é sempre conferida a Orson Welles às expensas de Tolland e do roteirista Herman Mankiewicz.

Indo além do próprio argumento de Gore Vidal, que de passagem atribui funções autorais ao fotógrafo e ao cinegrafista (por vezes os termos se confundem, como na obra Trajetória Crítica, de Jean-Claude Bernardet) e também ao montador, atualmente também confundido com o editor de imagens, acrescentaria que a direção de arte também exerce papel fundamental no processo de factura da obra. Lembro-me, a propósito, de que Hector Babenco honestamente declara no making of de Carandiru que seus filmes seriam irrealizáveis sem a contribuição decisiva de Clóvis Bueno, seu diretor de arte. Faço esse registro ligeiro para concluir que, no meu entender, o filme é uma obra de criação coletiva. Esqueceu-me também ressaltar o papel dos atores, que para o grande público são os únicos que de fato importam.

No frigir dos ovos, considero que o argumento de Gore Vidal em defesa da autoria do filme atribuível ao roteirista encerra peso ponderável. Os filmes que distinguiram a carreira de Joseph Losey no cinema inglês, conferindo-lhe uma discutível aura autoral, seriam inconcebíveis sem os roteiros assinados por Harold Pinter. Vidal sublinha este fato, que integralmente endosso. No presente, ficando ainda restrito ao cinema inglês, distingo dois entre vários outros roteiristas ingleses que ficam injustamente à sombra dos diretores para os quais escrevem roteiros extraordinários. Refiro-me a Christopher Hampton, que além de escritor é também diretor ocasional, e David Hare, nome importante da dramaturgia inglesa. Hampton tem entre outros créditos – ou teria, pois o crédito autoral conferido ao roteirista é sempre secundário em relação ao diretor – o excelente roteiro que escreveu para Atonement (Desejo e Reparação). Quanto a David Hare, ressaltaria o roteiro que escreveu para The Hours (As Horas).

Gore Vidal é injusto ou desatento ao passar ao largo de diretores como Charlie Chaplin, Hitchcock, cujo peso autoral menciona muito sumariamente, Fellini, sobre quem simplesmente silencia, e François Truffaut, a quem de resto recusa mérito autoral. Outros críticos do seu ensaio poderiam ainda, baseados em argumentos objetivamente sustentáveis ou inclinações subjetivas, acrescentar nomes fundamentais da história do cinema. Penso aqui, ao correr da memória, em Billy Wilder, Visconti, Pasolini, Glauber Rocha, Buñuel, Godard, Fassbinder, David Lean, Kubrick... Não entro nos meandros e no varejo da questão. O que acentuo, agora em defesa de Gore Vidal, é a importância decisiva do roteirista, quase sempre subestimada em benefício do diretor.

O fato é que a crítica francesa, no ponto de partida, entronizou o diretor como essa figura mítica a quem passamos a atribuir a função autoral da obra cinematográfica. É um excesso injustificável. Nisso concordo integralmente com o ensaio de Gore Vidal, que todavia incorre num outro extremo também insustentável na ordem objetiva da controvérsia ao reivindicar a autoria da obra para o roteirista. O que penso, e assim concluo, é que o filme é uma obra de autoria coletiva. Os pesos e papéis são variáveis, mas o resultado final é fruto de uma atividade colaborativa e grupal muito complexa. Por isso é injusto conferir o mérito da autoria a qualquer agente individualmente considerado, seja o diretor, o roteirista, o cinegrafista ou ainda, pensando nas projeções míticas do grande público, o intérprete.
Recife, 3 de outubro de 2010.

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