sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Pesquisa sobre a solidão



A doutora é tão boazinha... Envia essas pesquisas sobre os doentes de solidão, e outras indesejáveis doenças, somente para acelerar minha morte, ou me levar ao desespero de escapar da solidão casando com uma megera. Removi o link, mas saiba que li a pesquisa antes. Sério, doutora, sem ser médico, sei que a solidão, sobretudo o isolamento, que é algo diferente, pode causar muito mal às pessoas. Mas isso ocorre com quem não sabe o que fazer de sua solidão. Há pessoas que vivem a solidão de forma ativa e criativa. É o meu caso. É o caso, penso, de toda pessoa dotada de subjetividade autônoma.

Daniel Lima, uma das pessoas mais solitárias que conheci, voluntariamente solitária, morreu com 95 anos de idade. Foi a pessoa mais alegre, divertida e fascinante que iluminou minha vida, também a mais livre. Se não qualificamos os diversos tipos de solidão e solitários, parece-me que a pesquisa não faz isso, não há como compreender os efeitos psicológicos e orgânicos distintos que a solidão exerce sobre uma pessoa como Daniel e os solitários infelizes e atormentados que andam por aí.

Meu pai, por exemplo, que não pôde estudar e governou desastrosamente sua vida, não sabia o que fazer de sua solidão na velhice. Ficava se balançando numa cadeira de balanço, sem ter o que fazer, remoendo memórias infelizes e isolado. Aprendeu até a gostar de futebol ouvindo jogo com radinho de pilha para ocupar-se com alguma coisa. Não é o meu caso, fique certa. Tenho uma vida muito ativa e criativa. Não sinto nenhuma diferença de ócio e rotina entre minha vida de professor e a de aposentado. Aliás, sinto-me agora melhor, pois estou livre do trânsito e dos alunos desinteressados e mal comportados, ignorantes por convicção, que me aborreciam na universidade. Portanto, se você pensa que vou adoecer de solidão e morrer logo, procure outro viúvo para herdar fortuna. Vou viver pelo menos até os 90. Em tempo: apesar da sua solidão infeliz, meu pai viveu até os 90 anos. Tivesse ele a velhice mais saudável que hoje vivo, com certeza teria vivido mais. Tenho tanta vida pela frente que já estou pensando numa forma indolor de suicídio.

Doutora: Continuando, acho essas pesquisas no mínimo discutíveis. Elas podem aferir os efeitos negativos da solidão em pessoas com o perfil dos inativos, ociosos e isolados, mas não estabelecem qualquer comparação com os solitários saudáveis, que precisam inclusive da solidão para realizar muitas de suas tendências mais pessoais inconciliáveis com o convívio indesejável ou vicioso. Por exemplo: pessoas que apreciam literatura, arte e outros afazeres criativos precisam de solidão, seriam infelizes se fossem privadas de um espaço próprio e exclusivo. Além disso, duvido que uma pessoa incapaz de viver bem consigo própria, de andar em bons termos com a própria sombra e voz que mais verdadeiramente a revelam, possa viver livre e criativamente na companhia do outro. Não acha que quem é incapaz de viver bem consigo próprio é também incapaz de conviver bem com o outro? O convívio harmonioso é apenas o correspondente da solidão harmoniosa.

Outra coisa: antes a solidão do que a vida de família ou a vida de casado que conheço na maioria dos casos. Quantas pessoas não vivem em infernos domésticos e continuam dentro deles por que são incapazes de viver sozinhas? Quantas não se refugiam na ilusão, nas fantasias mais insensatas, contanto que a realidade intolerável lhes escape? E o que dizer desse gado errante, ululando sua histeria vazia nos mega shows e tantos espetáculos áridos acionados pela sociedade das massas? Se não estabelecemos esse tipo de comparação, como é o caso da pesquisa que você me enviou, o estudo não tem nenhuma validade, ou tem apenas para as pessoas cujo perfil de solitário eu qualificaria como negativo.

A velhinha mais generosa, viva e ativa que conheço escolheu morar sozinha num pequeno apartamento. Tem já 80 anos. Depois de uma vida inteira dedicada ao marido, filhos, netos, incontáveis parentes atados à corrente da família extensa ainda típica da nossa região fundada no patriarcalismo, descobriu que precisava viver sua solidão voluntária antes de morrer. Ninguém na família compreendeu sua decisão. Daí a perplexidade de alguns, de outros a suspeita de que sua escolha seria sintoma de alguma mágoa da família, algo indesejável e inconfessável. Nada disso. Queria apenas viver a solidão de que se sentiu privada a vida inteira. Queria sua ilha inviolada onde afinal poderia conviver consigo própria isenta do tumulto das gentes, das invasões rotineiras e não raro estafantes. Apesar do amor ao marido, que ainda impregna sua memória e ilumina sua solidão voluntária; apesar do amor que devota aos filhos e netos, sentiu que precisava viver uma dimensão de sua vida anulada ou comprimida pela presença contínua de uma família ampla e absorvente. Hoje equilibra de modo saudável os dois pratos no geral tortos da balança: a solidão e o convívio, sua ilha de eleição e a companhia ruidosa da família. É uma das poucas pessoas felizes que conheço, ou pelo menos capazes de harmonizar esses extremos desavindos da vida.

Anthony Storr, psicanalista inglês, escreveu um belo livro intitulado Solitude. Já o comentei um pouco no meu blog. É o melhor estudo psicológico que conheço sobre a solidão. Ele apresenta um quadro totalmente diferente da solidão. Ressalta, por exemplo, o quanto ela importa como fonte de realização artística, científica e intelectual, o quanto ela é importante para a pessoa comum, que pode aprender a conhecer-se melhor, a conviver melhor consigo própria. O livro dele foi traduzido há pouco. Acho que valeria a pena conhecê-lo, pois, como lhe disse, é o melhor estudo que já li sobre a solidão.

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